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ELEMENTOS DA CULTURA PORTUGUESA

Há três espécies de homem: os vivos, os mortos e os que andam no mar.


(Platão)

- O MAR, A VIAGEM, A GEOGRAFIA


Ai eu coitada!
Como vivo em gran cuidado
por meu amigo
que ei alongado!
Muito me tarda
o meu amigo na Guarda!

Ai eu coitada!
Como vivo em gran desejo
Por meu amigo
Que tarda e non vejo!
Muito me tarda
O meu amigo na Guarda! (D.Sancho – século XII)

Ó mar salgado, quanto do teu sal,


São lágrimas de Portugal! (Fernando Pessoa – Mensagem)

- O DESCONCERTO CAMONIANO
Os Lusíadas: sinfonia e réquiem de Portugal
E também as memórias gloriosas
Daqueles reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando,
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da morte libertando:
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte. (Canto I)

Ó glória de mandar! Ó vã cobiça!


Desta vaidade, a quem chamamos fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
C’uma aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimenta! (Canto IV)

Vão os anos descendo, e já do estio


Há pouco que passar até o outono;
A fortuna me faz o engenho frio,
Do qual já não me jacto nem me abono;
Os desgostos me vão levando ao rio
Do negro esquecimento e eterno sono.
Mas tu me dá que cumpra, ó grã rainha
Das musas, co que quero à nação minha. (Canto X)

No mais, musa, no mais que a lira tenho


Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a pátria, não, que está metida
No gosto da cubiça e na rudeza
Duma austera, apagada e vil tristeza. (Canto X)

- O LIRISMO À PORTUGUESA – UMA LITERATURA


LACRIMEJANTE
CANTIGA
Acho que me deu Deus tudo
para mais meu padecer
os olhos para vos ver,
coração para sofrer,
e língua para ser mudo.

Olhos com que vos olhasse,


coração que consentisse,
língua que me condenasse,
mas não já que me salvasse
de quantos males sentisse.

Assi que Deus me deu tudo


Para mais meu padecer:
Os olhos para vos ver,
Coração para sofrer,
E língua para ser mudo. (Século XIII)

Sobre estas duras, cavernosas fragas,


Que o marinho furor vai carcomendo,
Me estão negras paixões na alma fervendo
Como fervem no pego as crespas vagas.

Razão feroz, o coração me indagas,


De meus erros a sombra esclarecendo,
E vás nele (ai de mim!) palpando, e vendo
De agudas ânsias venenosas chagas.

Cego a meus males, surdo a teu reclamo,


Mil objetos de horror co’a idéia eu corro,
Solto mil gemidos, lágrimas derramo.

Razão, de que me serve o teu socorro?


Mandas-me não amar, eu ardo, eu amo.
Dizes-me que sossegue, eu peno, eu morro. (Bocage – século XVIII)

Eu tenho lido em mim, sei-me de cor,


Eu sei o nome a meu estranho mal:
Eu sei que fui a renda dum vitral,
Que fui cipreste e caravela e dor!

Fui tudo no mundo que há de maior;


Fui cisne e lírio e águia e catedral!
E fui, talvez, um verso de Nerval,
Ou um cínico riso de Chamfort...

Fui a heráldica flor de agrestes cardos,


Deram as minhas mãos aroma aos nardos...
Deu cor ao eloendro a minha boca...

Ah! De Boabdil fui lágrima na Espanha!


E foi de lá que eu trouxe esta ânsia estranha!
Mágoa não sei de quê! Saudade louca! (Florbela Espanca – século XX)

- O ORIENTE: FASCÍNIO E DECADÊNCIA


Eu vi a luz em um país perdido.
A minha alma é lânguida e inerme.
(Camilo Pessanha)

Sonho-me às vezes rei, nalguma ilha


Muito longe, nos mares do oriente,
Onde a noite é balsâmica e fulgente
E a lua cheia sobre as águas brilha.
(Antero de Quental)

A Índia será, ou cuido que já o é, uma doença de Portugal. Queira Deus que
não mortal doença. (José Saramago – Que farei com este livro?)

- O SÉCULO XIX - DECADÊNCIA E PESSIMISMO


Portugal é uma choldra! (Eca de Queiros – O Mandarim)

Se quisermos resumir em poucas palavras, as causas da desorganização da


sociedade peninsular, achamos três que nos dão a chave do problema. O
Individualismo, o jesuitismo e as conquistas. O individualismo dera grandes
homens – agora dá apenas miseráveis (...) jesuitismo é agora apenas uma
religião de obediência, e uma escola de sistemática perversão. As conquistas
foram a empresa que os dois sentimentos anteriores levaram a executar – e
agora são apenas a sentina que vaza sobre a Península um ouro corruptor, o
estigma da escravidão, a sífilis, o amor da ociosidade, a desordem dos
costumes. (Oliveira Martins)

Pobres, fracos, humilhados, depois dos tão formosos dias de poderio e


renome, que nos resta senão o passado... Lá temos os tesouros de nossos
afetos e contentamentos. (Alexandre Herculano)

Mais dez anos de barões e regime da matéria, e infalivelmente nos foge deste
corpo agonizante de Portugal o derradeiro suspiro do espírito. Creio nisto
firmemente. Mas ainda espero melhor todavia, porque o povo, o povo povo,
está são. Os corruptos somos nós, os que cuidamos saber e ignoramos tudo.
(Almeida Garrett)

Caía a noite. Eu ia afora,


Vendo uma estrela que lá mora,
No firmamento português.
E ela traçava-me o meu fado
“Serás poeta e desgraçado!”
Assim se disse, assim se fez. (António Nobre)

- O SAUDOSISMO – FERNANDO PESSOA E TEIXEIRA DE


PASCOAES
O futuro é a aurora do passado. (Teixeira de Pascoaes)

Prepara-se em Portugal uma renascença extraordinária, um ressurgimento


assombroso. (...) Tenhamos fé. Tornemos essa crença, afinal, lógica, num
futuro mais glorioso do que a imaginação o ousa conceber, a nossa alma e o
nosso corpo, o quotidiano e o eterno de nós. Dia e noite, em pensamento e
acção, em sonho e vida, esteja connosco, para que nenhuma de nossas almas
falte à sua missão de hoje, de criar o supra-Portugal de amanhã.

E a nossa grande Raça partirá em busca de uma Índia nova, que não existe
no espaço, em naus que são construídas “daquilo de que os sonhos são
feitos”.
(Fernando Pessoa - Trechos de A Nova Poesia Portuguesa – 1912)

Os índios da Índia inglesa dizem que são índios, os da Índia portuguesa que
são portugueses. Nisto, que não provém de qualquer cálculo nosso, está a
chave de nosso possível domínio futuro. Porque a essência do grande
imperialismo é converter os outros em nossa substância, o converter os
outros em nós mesmos. (Fernando Pessoa - Fragmentos do “livro” inacabado
Comentário maior às profecias do Bandarra)

O povo português é, essencialmente, cosmopolita. Nunca um verdadeiro


português foi português: foi sempre tudo.(...) Quem, que seja português, pode
viver a estreiteza de uma só personalidade, de uma só nação, de uma só fé?
Que português verdadeiro pode, por exemplo, viver a estreiteza estética do
catolicismo, quando fora dele há que viver todos os protestantismos, todos os
credos orientais, todos os paganismos mortos e vivos, fundindo-os
portuguesmente no Paganismo superior? Não queiramos que fora de nós
fique um único deus! Absorvamos os deuses todos! Conquistamos já o Mar:
resta que conquistemos o Céu, ficando a terra para os Outros, os eternamente
Outros, os Outros de nascença, os europeus que não são europeus porque
não são portugueses. Ser tudo, de todas as maneiras, porque a verdade não
pode estar em faltar ainda alguma cousa! Criemos assim o Paganismo
Superior, o Politeísmo Supremo! Na eterna mentira de todos os deuses, só os
deuses todos são verdade.(Fernando Pessoa - Trechos de entrevista concedida
a António Alves Martins, publicada na Revista Portuguesa, n.23/24, de
13/10/1923)

ANTES E DEPOIS DE 74 NA POESIA


Estar aqui dói-me. E estou aqui
há novecentos anos. Não cresci nem mudei. (Manuel Alegre – Canto
Peninsular)

No meu país há uma palavra proibida.


Mil vezes a prenderam, mil vezes cresceu. (Manuel Alegre – O canto e as
armas)
_________
Um sítio. Um sítio sagrado algures no tempo.
Um sítio por dentro. Um obscuro ponto
No mapa luminoso
Do coração. (Manuel Alegre – Ítaca)

Cheguei à procura de um sonho. A floresta


recebera meus passos no prenúncio
das colinas e vales onde me esperava
o silêncio de um nome. (Fernando Pinto do Amaral – Horace Townsend)

Esta é a madrugada inicial que eu esperava


O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livre habitamos a substância do tempo. (Sophia de Mello Breyner – 25 de
abril)

O Portugal futuro é um país


Aonde o puro pássaro é possível
E sobre o leito negro do asfalto da estrada
As profundas crianças desenharão a giz
Esse peixe da infância que vem na enxurrada. (Ruy Belo – País possível)

Portugal: questão que tenho comigo mesmo,


golpe até ao osso, fome sem entretém, ricim engraxado, feira cabisbaixa, meu
remorso
meu remorso de todos nós (Alexandre O´Neill – Portugal)
O OLHAR DO OUTRO
A voz do poema não era a voz do poeta:
era a voz do povo,
o grito do povo, o choro do povo. [...] (Aguinaldo Brito Fonseca, 1949 –
C.Verde)

Estamos juntos.
E moçambicanas mãos nossas
dão-se
[...]
com os olhos incendiados
nos poentes do Mediterrâneo
recordamos as noites mornas na praia da polana
e a beijos sorvo a tua boca no Senegal
e depois tingimos mutuamente
os lábios das negras amoras de Jerusalém [...] (José Craveirinha – Canto do
nosso amor sem fronteira, 1995)

Quitandeira de ananases
eu gosto dos teus olhos
quando me fitas assim
tímida e suplicante
a expiar crimes
sofrendo por ter sofrido
Gosto dos teus olhos
que me segredam o tudo está consumado
do teu calvário
e me indicam
o caminho do ressurgimento. (Agostinho Neto – Vendedeira de ananases,
1987)

Um caminho de areia solta conduzindo a parte


Nenhuma. As árvores chamavam-se casuarina,
Eucalipto, chanfuta. Plácidos os rios também
Tinham nomes por que era comum designá-los.
Tal como as aves que sobrevoavam rente o matagal
e a floresta rumo ao azul ou ao verde mais denso
e misterioso, habitado por deuses e duendes
de uma mitologia que não vem nos tomos e tratados
que a tais coisas é costume consagrar-se. Depois,
com valados, elevações e planuras, e mais rios
entrecortando a savana, e árvores e caminhos,
aldeias, vilas e cidades com homens dentro,
a paisagem estendia-se a perder de vista
até ao capricho da linha imaginária. A isso
chamávamos pátria [...]
Uma
só e várias línguas eram faladas e a isso,
por estranho que pareça, também chamávamos pátria. [...] legado
de palavras, pátria é só a língua em que me digo. (Rui Knopfli – Pátria,
1978)

- O PESO DA HISTÓRIA
Lá vai o português, diz o mundo, quando diz, apontando umas criaturas
carregadas de História que formigam à margem da Europa. Lá vai o
português, lá anda. Dobrado ao peso da História, carregando-a de facto, e
que remédio – índias, naufrágios, cruzes de padrão (as mais pesadas). Labuta
a côdea de sol-a-sol e já nem sabe se sonha ou recorda. Mal nasce deixa de
ser criança: fica logo com oito séculos. (José Cardoso Pires – E agora José?)

Éramos peixes, percebe, peixes mudos em aquários de pano e de metal,


simultaneamente ferozes e mansos, treinados para morrer sem protestos, para
nos estendermos sem protesto nos caixões da tropa (...) Éramos peixes, somos
peixes, fomos sempre peixes, equilibrados entre duas águas na busca de um
compromisso impossível entre a inconformidade e a resignação (...) e jogados
por fim na violência paranóica da guerra, ao som de marchas guerreiras e
dos discursos heróicos dos que ficavam em Lisboa, (...) enquanto nós, os
peixes, morríamos nos cus de Judas uns após os outros, tocava-se um fio de
tropeçar, uma granada pulava e dividia-nos ao meio, trás!, o enfermeiro
sentado na picada fitava estupefato os próprios intestinos que segurava nas
mãos (...) (Antonio Lobo Antunes – Os cus de Judas)

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