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3. Conceito da região "Nordeste" no Brasil

Vale ressaltar, de início, que o conceito econômico e político de "região"


exposto anteriormente é de natureza dinâmica por definição, fundamentado que
está no movimento de reprodução do capital e das relações de produção. Essa
dinamicidade choca-se, até certo ponto, com o conceito geográfico de região, que se
baseia em características físicas; mas, sem dúvida, não apenas o conceito de região
de geografia humana ultrapassa os limites estreitos da geografia física, como
também os recentes avanços no sentido de conferir um caráter dinâmico à ciência
geográfica em geral, contribuem para aproximar a abordagem da moderna geografia
da esposada por este trabalho. Quando se passa ao nível do concreto, no entanto, o
choque mais profundo ainda não reside no que foi exposto anteriormente, mas
centra-se no conflito entre a abordagem que aqui se propõe e os limites territoriais-
político-administrativos das regiões. No caso sob exame, do Nordeste do Brasil,
dificilmente se conseguirá evitar o ter que enquadrar a "região" econômica e política
nos limites das divisões territoriais-político-administrativas dos Estados que
compõem o Nordeste brasileiro. Entretanto, vale a pena também argumentar a favor
desse enquadramento, não apenas pelo caráter inacabado e tentativo da proposta
de "região" que aqui se contém, mas sobretudo porque os limites territoriais-
administrativos dos Estados que compõem o Nordeste brasileiro estão carregados
da própria história da formação econômico-política nacional e de suas
diferenciações; tão-somente em períodos mais recentes é que o processo de
"integração nacional" impele no sentido de um progressivo distanciamento entre as
determinações formais da reprodução do capital e aqueles limites político-
administrativos.

A própria consciência ou reconhecimento da "região" Nordeste tem sofrido


mutações importantes no curso da história econômica e social nacional. É possível
constatar, sem recuar muito no tempo, que o Nordeste como "região", tanto no
sentido aqui proposto quanto no sentido mais corrente na literatura, na opinião
pública e nas políticas e programas governamentais, somente é reconhecível a partir
de meados do Século XIX, e sobretudo neste século. Há, pois, na história regional e
nacional, vários "nordestes". Reconhecia-se, no período da Colônia, "regiões" dentro
do que hoje é o Nordeste, com amplitudes muito mais restritas: sobretudo no que
corresponde hoje aos Estados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e
Alagoas, a "região" era reconhecível como o locus da produção açucareira, enquanto
os espaços dos Estados que hoje correspondem ao Ceará e Piauí eram relativamente
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indiferenciados, desenvolvendo atividades econômicas de pouca expressão


na economia colonial e quase nunca assimilados ao que se poderia chamar de
"Nordeste"(10). O Maranhão era um caso à parte, pois ligou-se ao capitalismo
mercantil através de formas diversas daquelas que regulavam a produção da
riqueza dos espaços mais ao lês-te. Os Estados da Bahia e Sergipe, ou melhor falando,
os espaços que hoje correspondem a esses Estados, não eram considerados como
"Nordeste"; embora ali, sobretudo na Bahia, predominasse também a atividade de
produção do açúcar determinada, como nos Estados mais ao norte, pelas suas
relações com o capitalismo mercantil europeu. A classe social proprietária era, de
certa forma, muito autônoma em relação aos seus parentes sociais dos Estados mais
ao norte; em outras palavras, nos espaços de produção açucareira de Pernambuco,
Paraíba, Alagoas e Rio Grande do Norte, a classe proprietária fundada na produção
do açúcar era praticamente a mesma, sobretudo porque sua reprodução enquanto
classe social dependia de sua hegemonia sobre a totalidade dos espaços que hoje
correspondem àqueles Estados, o que se comprova historicamente pela própria
crônica das grandes famílias senhoriais. Essa cissiparidade das famílias do
"baronato" do açúcar era a sua forma de assegurar-se o controle sobre a terra. Os
adágios populares diziam que "quem não era Cavalcanti era cavalgado" em
Pernambuco, Paraíba, Alagoas e Rio Grande do Norte, adágio que poderia ser
entendido aos Maranhão, Albuquerque e uns poucos nomes familiares mais. O
próprio ditado popular era uma forma pela qual as classes dominadas se
reconheciam nas dominantes. Não se encontra essa ligação com os grandes ramos
familiares da Bahia - nenhum habitante das classes dominadas da Bahia
reconheceria um Cavalcanti como um dominador, o que significa dizer que a
reprodução do capital, ou mais precisamente a produção do valor que era
apropriada pelo capitalismo mercantil, no espaço do que hoje é a Bahia, fechava-se
sobre si mesma, isto é, completava sua circularidade na relação Bahia-Metrópoles
coloniais; em outras palavras, nesses termos, a Bahia era outra "região".

É possível, pelo exposto, reconhecer "região" nos termos teóricos e


metodológicos aqui propostos? Em outras palavras, onde residiam as diferenças na
circularidade do processo produtivo, na estrutura de classes e no conflito social?
Algumas constantes podem ser anotadas, o que viria em desfavor da perspectiva
deste trabalho: a relação colonial, que fundou os "arquipélagos" da história
econômica nacional (11) na base escravocrata da produção, são constantes não
apenas dentro do Nordeste mas válidas para o resto da Colônia.
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Em segundo lugar, tanto a relação Metrópole-Colônia quanto o nível de


desenvolvimento das forças produtivas começaram a engendrar novas formas de
capital no interior de cada uma das "regiões": é fato notório da história nacional a
hegemonia comercial do Recife sobre os espaços em torno, estendendo-se para os
territórios da Paraíba, Alagoas e Rio Grande do Norte e, mais remotamente, até o
Ceará e Piauí. Essa hegemonia significava uma forma de capitalismo mercantil no
interior da própria "região". Não é sem razão que as revoluções "nordestinas" foram
apenas aquelas que tiveram por sede exatamente os espaços da hegemonia
açucareira, e onde aparecem pela primeira vez contradições entre as diversas
formas de produção e apropriação do valor: a revolução dos "mascates", que opunha
exatamente os comerciantes contra os "barões" do açúcar, pode ser considerada
uma revolução pré-burguesa; a Confederação do Equador, que se estendia desde
Pernambuco, passando pela Paraíba, Alagoas, Rio Grande do Norte e atingindo até o
Ceará, opunha os interesses internos da produção do valor às formas de apropriação
desse valor, intermediados agora pelos interesses da Inglaterra, como potência
capitalista hegemônica. Esse movimento separatista encontrava suas bases sociais
reais na diferença de interesses e na diferença entre as várias formas do capital, na
esfera da produção e da circulação. Não foi um recurso meramente ideológico, nem
um mero transplante de ideias francesas e norte-americanas, a proclamação de uma
República no espaço disputado pela produção do valor da economia açucareira e
pelas formas emergentes do capital comercial interno, umas em contradição, outras
em aliança com a reprodução do capital em escala mundial, comandado pela
potência imperialista emergente, mas já contestado pelo surgimento da
concorrência inter-imperialista.

As primeiras décadas deste século, e quase todo o século XIX, vão configurar
outro Nordeste, ou outros "Nordestes"(13). Essas no-vas configurações estão
marcadas sobretudo pela emergência, consoli-dação e hegemonia de outras formas
de produção e conflito de interes-ses em outros espaços; em suma, pela constituição
de outra "região" no contexto da nação que se independentizava. Essa outra "região"
é a do café, constituída preliminarmente pela mesma determinação ex-jerna, isto é,
pelas suas relações com as potências imperialistas, e fun-dada também
preliminarmente pelo mesmo modo escravista de produ-ção, mas que se
diferenciava na mesma medida em que a circularidade do processo de produção e
apropriação do valor se esgotava na rela-ção externa-interna e nos requisitos que
essa relação recolocava como pressupostos do processo de produção; isto é, na
subordinação aos in-teresses do capital financeiro inglês sobretudo, mas francês
também, e no caráter distinto da competição inter-impérios: a disputa pelos mer-
cados que começava a intensificar-se sobretudo entre o capital inglês e norte-
americano. Internamente, a constituição da "região" do café desdobrava-se na
mesma medida em que avançava desde o Vale do
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Paraíba até o Oeste paulista, homogeneizando-se internamente e diferenciando-se


da outra "região" - o Nordeste açucareiro - na mesma medida em que esta era
excluída dos novos circuitos de produção e apropriação do valor gerado pela
mercadoria café. Essa hegemonia constantemente reiterava os pressupostos da
produção, que por sua vez apareciam tanto no produto quanto na forma da
repartição do excedente: o financiamento inglês, como pressuposto, e os juros do
capital inglês como parte da repartição do excedente. O Nordeste "açucareiro" era
deslocado pela competição inter-imperialista, que centrava sua disputa agora na
apropriação e controle da produção do açúcar no Caribe. Em outras palavras, a
forma de produção do valor da economia açucareira daquele "Nordeste" não
encontrava formas de

Enquanto o Nordeste "açucareiro" semiburguês tinha sua ex-pansão


cortada pela simbiose dialética da constituição de outra "re-gião" com o capital
internacional, um outro Nordeste emergia gradual-mente, submetido e reiterado
pelas mesmas leis de determinação de sua relação com o capital internacional: o
Nordeste "algodoeiro-pecuário". Sem penetrar na esfera da produção, o capital
internacio-nal apropriou-se da esfera da circulação, da comercialização, e por esse
fato, a política econômica do Segundo Império e da República Velha, que centrava
suas atenções na manutenção de uma taxa de câmbio que era simultaneamente
condição da reprodução e forma da apropriação internacional de parte do produto
social, compatibilizava os interesses da reprodução do capital na "região" do café e
na "re-gião" - no novo Nordeste - do algodão-pecuária. Não é sem razão que tanto o
controle político da Nação começou a escapar das mãos da burguesia açucareira do
"velho" Nordeste, quanto o controle polí-tico interno do "velho" e do "novo"
Nordeste começou a passar às mãos da classe latifundiária que comandava o
processo produtivo al-godoeiro-pecuário, reiterado pela sua subordinação aos
interesses do capital comercial e financeiro inglês e norte-americano. A imagem do
Nordeste, que as crônicas dos viajantes de fins do Século XVIII e princípios do Século
XIX descreveram em termos da opulência dos "barões" do açúcar, e que depois iria
inspirar a nostálgica pseudo-sociologia de Gilberto Freyre, começou a ser
substituída pela imagem do Nordeste dos latifundiários do sertão, dos "coronéis";
imagem rús-tica, pobre, contrastando com as dos salões e saraus do Nordeste "a-
çucareiro". Nesse rastro é que surge o Nordeste das secas. A funda-mentação do
Estado unitário que prevaleceu por todo o Segundo Im-pério e continuou, República
Velha adentro, sob a forma da coligação "café-com-leite" residia sobretudo na
homogeneidade dos processos de reprodução do capital, na sua subordinação aos
interesses do capi-tal comercial e financeiro inglês e norte-americano: "coronéis" do
al-godão, pecuária e "barões" do café e Estado oligárquico são os agen-tes.e a forma
da estrutura do poder(15).
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Esse "Nordeste" algodoeiro-pecuário, oligárquico, cujas leis de


reprodução/subordinação serão tratadas em outra parte desta investigação,
submeteu o "velho" Nordeste açucareiro, em trânsito para formas burguesas de
produção e apropriação do valor, e permaneceu intocado até praticamente a década
dos cinqüenta deste século. Os impulsos de industrialização, que tomaram forma na
conversão dos "engenhos" de açúcar em usinas, fenômeno que arranca do último
quartel do século XIX e se esgota nas primeiras décadas deste, e de outro lado na
implantação da indústria têxtil, foram abortados pelas mesmas razões e causas que
contribuíram para refrear a própria industrialização da "região" do café: pela
reiteração/subordinação aos interesses do capital comercial e financeiro inglês e
norte-americano. Essa submissão do "Nordeste" açucareiro ao "Nordeste"
algodoeiro-pecuário chegou inclusive a fazer retroagir o próprio movimento da
reprodução do capital e das relações de produção no "Nordeste" açucareiro,
fazendo-o adotar, como condição de sobrevivência, ainda que marginal, leis de
reprodução que eram próprias do "Nordeste" algodoeiro-pecuário. Premida pelas
tenazes, de um lado da reiteração dos pressupostos da produção agroexportadora
da "região" do café, que se consubstanciava na política econômica de
valorização/sustentação dos preços do café, e de outro pela emergência do
"Nordeste" algodoeiro-pecuário, a economia açucareira recriou internamente
mecanismos de uma acumulação primitiva, que tomaram a forma do "cambão" e de
outros processos de relação de produção pré-capitalistas. Esse impasse gerou de um
lado a descapitalização da própria economia açucareira, o abortamento da completa
constituição de uma força-de-trabalho assalariada, o abortamento da dissolução do
semicampesinato que se havia formado em suas franjas - o caso das zonas do
Agreste dos Estados mais orientais - e por fim a própria reconversão da estrutura
fundiária em latifúndios.

O andamento das leis de reprodução do capital e das relações de produção


tomava rumos diversos na "região" do café. Rompido o me-canismo de reposição da
economia agroexportadora, em parte pela própria inviabilidade de sua sustentação
devido à porção do excedente do produto social, que era apropriado pelo capital
financeiro inglês e norte-americano sob a forma de juros da dívida externa, o que
impos-sibilitava a acumulação; e em parte devido à quebra da economia in-
ternacional capitalista na crise dos anos trinta, emerge a industrializa-ção. Não se
descreverá aqui esse processo(16); importa observar a mu-dança operada nas
formas de reprodução do capital, que acarretou da mesma maneira mudanças nas
leis de repartição do produto social, au-mentando a fração do excedente que se
acumulava internamente, e as mudanças nas relações de produção, com a explosiva
emergência do proletariado urbano. Surge a diferenciação das formas do capital:
tan-to se expande e consolida o capital industrial, quanto emerge o capital
financeiro, e a intervenção do Estado na economia assume outro cará-
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ter, prejudicando a forma de reprodução da economia agroexportadora. A estrutura


do poder sofre importantes mutações; depois de um breve período de transição,
quando as necessidades da acumulação tornaram imperiosa a convivência do capital
industrial com a oligarquia do café, tem início um período em que a hegemonia do
capital industrial e seu controle sobre o aparelho produtivo, as relações de produção
e o próprio Estado são claramente reconhecíveis. A "região" do café passa a ser a
"região" da indústria: São Paulo é o seu centro, o Rio de Janeiro seu subcentro, Minas
Gerais e o Paraná seus limites e a expansão da fronteira dessa "região" começa a
capturar os espaços vazios do Centro-Oeste.

A conversão da "região" do café em "região" da indústria começa a redefinir


a própria divisão regional do trabalho em todo o conjunto nacional(17). Seu papel
nessa divisão regional do trabalho no que respeita à "região" Nordeste passa a ser
de um lado, sistematicamente, a reserva do exército industrial de reserva: as
migrações Nordeste-São Paulo chegam a constituir um formidável contingente que
vai suprir os postos de trabalho criados pela industrialização, e contribuir para
manter baixos os níveis de salário real de toda a massa trabalhadora (18); por outro
lado, os diferenciais da taxa de lucros começa a drenar o capital que ainda se
formava no Nordeste; e ainda sob outro aspecto, a mudança da política econômica
que se centrava agora na viabilização da reprodução do capital industrial,
favorecendo sistematicamente uma taxa de câmbio subestimada, ao mesmo tempo
que elevava nacionalmente as taxas alfandegárias para proteção da indústria de
transformação, deu lugar a um mecanismo de triangulação das trocas de
mercadorias Nordeste-Exterior-Centro-Sul-Nordeste que deprimia a taxa de
realização do valor das mercadorias produzidas no Nordeste, inviabilizando ainda
mais a reprodução do capital na região nordestina (19).

As contradições da reprodução do capital e das relações de produção em


cada uma ou, pelo menos, nas duas principais "regiões" do país, sinal de uma
redefinição da divisão regional do trabalho no conjunto do território nacional,
começam a aparecer como conflito entre as duas "regiões", uma em crescimento,
outra em estagnação. É nesse contexto, e tendo por objetivo explícito a atenuação ou
pelo menos a contenção da intensificação das disparidades regionais, a correção dos
"desequilíbrios regionais", que nasce o planejamento regional para o Nordeste. A
SUDENE, sua forma institucional, é uma espécie de Revolução de 30 defasada de pelo
menos duas décadas; seu surgimento, segundo um diagnóstico muitas vezes
equivocado - matéria para discussão em outra parte deste trabalho - incorpora
elementos do falso conflito inter-regional; para ganhar força e dar maior dimensão
ao conflito, a própria definição da "região" Nordeste, em seu sentido político-
administrativo, é ampliada: o Nordeste da SUDENE estende-se agora do Maranhão
à Bahia, incorporando inclusive uma pequena faixa do território mineiro, cujas
características climáticas assemelham-se às do sertão nordestino. Como quase
sempre acontece, o Nordeste da SUDENE assume os contornos da ideologia da classe
dominante da "região" da indústria: desde que os movimentos migratórios do
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Nordeste para São Paulo ganharam força e intensidade, os migrantes de todos os


Estados do Nordeste e mesmo os dos Estados do Norte são apelidados em conjunto
de "bahianos".

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