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Grupos de ouvidores de vozes: estratégias e enfrentamentos 1145

controle sobre suas próprias vidas (BAKER, 2012; deu por permitir uma compreensão amplia-
COLEMAN; SMITH, 2006; ROMME; ESCHER, 1997). da das experiências dos sujeitos, sem en-
Considerando a importância das experiên- cerrá-las em categorias prévias, e “levando
cias desenvolvidas pelo movimento de ouvi- a sério diferentes formas de pensamento e
dores de vozes para o campo da saúde mental, outras formas de conhecimento próprias a
o objetivo deste artigo é discutir as estratégias essas comunidades”, como propõem Nunes
propostas por grupos realizados no contexto e Torrenté (2013, P. 286).
italiano, para o enfrentamento da experiência Os grupos acompanhados reuniam-se
de ouvir vozes, por seus participantes. com periodicidades diferentes, que variavam
entre a semanal e a quinzenal, e duravam
entre uma hora e meia e duas horas. Ocorriam
Metodologia dentro de serviços de saúde mental, coorde-
nados por ouvidores de vozes e profissionais
Este trabalho consiste em um estudo quali- de saúde mental. Participava desses grupos
tativo, de abordagem etnográfica, realizado um número variável entre 8 e 15 pessoas.
junto aos grupos de ouvidores de vozes, em A inserção das pesquisadoras nos grupos se
três cidades do interior da Itália. Os grupos deu por meio de contato com os coordenado-
foram acompanhados por duas pesquisa- res, consulta prévia e concordância de todos
doras, no período entre outubro de 2014 os membros desses grupos. Os dados foram
e janeiro de 2016. O percurso etnográfico obtidos através da observação participante e
iniciou-se em outubro de 2014, no acompa- os registros foram feitos em diários de campo.
nhamento ao grupo de Gubbio (Perúgia), e Os dados estão identificados no texto con-
seguiu-se aí por seis meses. Já de março de forme as iniciais das cidades onde os grupos
2015 a fevereiro de 2016, deu-se nos grupos foram acompanhados, aqui denominados: G,
Settimo Torinese (Turim) e San Giuseppe ST e SGC. Letras alfabéticas foram utilizadas
di Cairo (Savona), sendo utilizadas a obser- para identificar os participantes dos grupos.
vação participante e a descrição densa em A pesquisa atendeu a todos os procedi-
diário de campo, além de entrevistas, como mentos éticos e foi aprovada pelo Comitê de
complementares. Nesses períodos, o per- Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina
curso etnográfico incluiu a participação das da Universidade Federal de Pelotas, por
pesquisadoras nas reuniões dos grupos e no meio do parecer nº 750.144, de 2014.
acompanhamento de outras atividades na
comunidade, e cuidadosamente as ingressou
no campo, de modo a garantir-lhes o direito Discussão e resultados
de entrada, a aceitação dos ouvidores de
vozes e a formação do vínculo de confiança.
O trabalho de campo teve como ponto de Grupos de ouvidores de vozes: senti-
partida o compartilhamento do local com dos e vínculos
eles, as normas que foram por eles estabe-
lecidas, a linguagem constituída no próprio A organização de grupos de autoajuda/ajuda
grupo social, suas crenças em relação às mútua compostos por ouvidores de vozes tem
vozes, suas práticas e modos de lidar com possibilitado a criação de espaços coletivos de
elas, a atribuição de sentido às mesmas e as compartilhamento dessas experiências. Tais
relações sociais entre os membros do grupo, grupos apostam na capacidade de produzir
desenvolvendo, em seguida, uma descrição uma melhor convivência com as vozes, a partir
minuciosa em diário de campo. do compartilhamento de vivências, informa-
A escolha da abordagem etnográfica se ções e estratégias de enfrentamento.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 115, P. 1143-1155, OUT-DEZ 2017

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1146 KANTORSKI, L. P.; ANTONACCI, M. H.; ANDRADE, A. P. M.; CARDANO, M.; MINELLI, M.

Um ponto que se destaca dentro dessa abor- as vozes, porque lhe diziam que era uma prosti-
dagem diz respeito à possibilidade de discutir tuta e ordenavam para que parecesse erotizada
as vozes como uma experiência real na vida diante das pessoas. Era uma exposição muito
dos sujeitos, sem a preocupação de classificá- grande da sua pessoa. Ela diz que não gosta de
-las como expressão de um processo de adoe- recordar tudo que fez. Era muito estranho, por-
cimento, ou religioso, mas sim em um contexto que ela não se reconhecia no que estava fazendo.
mais amplo de narrativas pessoais e de sentidos Sentia-se insegura, angustiada. (ST).
para aqueles que as experimentam.
Assim, os grupos têm o potencial de confe- P. fala das vozes e do medo quando aquela mu-
rir legitimação a tais experiências, por meio do lher que ele ouvia lhe dizia que era um pedófilo,
compartilhamento destas em um coletivo. Ou pois pensava que todos ao seu redor acreditavam
seja, representam um lugar seguro para falar no que a voz dizia dele. Diz que foi um período
sobre as vozes; um local para descobertas de muito difícil, porque não tinha confiança em nin-
significados para alcançar o controle sobre a guém. (ST).
experiência; um espaço de construção de redes
sociais de suporte; um ambiente para desenvol- O medo que caracteriza essa fase está
ver-se enquanto agente transformador na vida ligado à construção social, que relaciona as
de outro membro do grupo (ZANNI, 2017). vozes à loucura e à esquizofrenia, e ao pavor
Os ouvidores de vozes são pessoas for- de ouvir vozes que outros não escutam. Essa
temente estigmatizadas, portanto, tendem experiência solitária, que está na ordem do
a valorizar a chance de conhecer outras tabu e é quase proibida de ser partilhada, faz
pessoas com experiências semelhantes. com que o ouvidor de vozes reconheça a ex-
Como consequência, os grupos de ouvidores periência como assustadora.
de vozes têm se disseminado, fornecendo um Outro aspecto importante é a relação do
contexto seguro para que seus participantes aparecimento das vozes, na maioria das
compartilhem experiências e permitam a vezes, com uma vivência de um trauma
divulgação de estratégias para lidar com as sofrido pelo ouvidor, parecendo ser mais
vozes, e ainda considerem crenças alternati- grave quando as vozes iniciam na adolescên-
vas sobre elas (RUDDLE; MASON; WYKES, 2011). cia (BAKER, 2012; COLEMAN; SMITH, 2006; CONTINI, 2013A;
Vale destacar que o fato de ouvir vozes que ROMME; ESCHER, 1997). As experiências traumá-
as demais pessoas não ouvem é relatado por ticas são variadas e dizem respeito a singu-
muitos ouvidores como uma experiência per- laridades e circunstâncias socioculturais e
turbadora e até mesmo desesperadora. Romme históricas, como, por exemplo, a relatada em
e Escher (1997), ao caracterizarem a experiên- uma das reuniões:
cia de ouvir vozes, dividem-na em três fases: a
fase de surpresa, a fase de organização e a fase Logo no início da reunião, A. pergunta a Ab.
de estabilização. A primeira fase, da surpresa, como ele está, pois ele demonstra claramente es-
segundo os autores, é caracterizada pela maior tar triste. [...] Ab. fala pouco, e tem muita dificul-
parte dos que ouvem vozes como uma experi- dade com a língua italiana. Conta que começou
ência de início vívido, súbito e surpreendente. a ouvir as vozes logo que chegou à Itália. Relata
No mesmo sentido, são os relatos dos partici- que hoje está bem, porque as vozes lhe disseram
pantes dos grupos acompanhados. Em algumas que o serviço é um lugar bom; e que as ouve so-
reuniões, tal fase pode ser reconhecida, como mente quando chega ao abrigo. (ST).
mostram os fragmentos a seguir:
No fragmento supracitado, o fato de ter
G. diz que é muito difícil falar de como se sente. passado por um processo muitas vezes
Ela se sentiu muito assustada quando iniciaram traumático, como as imigrações que têm

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 115, P. 1143-1155, OUT-DEZ 2017

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