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Antônio Frederico de Castro Alves (1847-1871)

O Poeta dos Escravos é considerado a principal expressão condoreira da poesia brasileira.


Sua obra rom-pe com a idealização amorosa e com o ufanismo e aponta para tendências
realistas. Baiano, Castro Alves estudou Direito em Recife e em São Paulo. Partici-pou da
campanha abolicionista e de escândalos amoro-sos. Foi muito aclamado e reconhecido,
sendo elogiado inclusive pelos ácidos José de Alencar e Machado de Assis.

Na poesia lírica, com a obra Espumas flutuantes (1870), a única publicada em vida, abordou
o amor de forma mais concreta do que seus antecessores. Em seus poemas, Castro Alves
descreve cenas amorosas explorando o erotismo sem subterfúgios. Diferente-mente da
poesia social, que veremos a seguir, o lirismo amoroso castroalvino traz uma linguagem
simples e coloquial.

O "ADEUS" DE TERESA

A vez primeira que eu fitei Teresa,


Como as plantas que arrasta a correnteza,
A valsa nos levou nos giros seus
E amamos juntos E depois na sala
"Adeus" eu disse-lhe a tremer co'a fala
E ela, corando, murmurou-me: "adeus."

Uma noite entreabriu-se um reposteiro. . .


E da alcova saía um cavaleiro
Inda beijando uma mulher sem véus
Era eu Era a pálida Teresa!
"Adeus" lhe disse conservando-a presa
E ela entre beijos murmurou-me: "adeus!"

Passaram tempos sec'los de delírio


Prazeres divinais gozos do Empíreo
... Mas um dia volvi aos lares meus.
Partindo eu disse - "Voltarei! descansa!. . . "
Ela, chorando mais que uma criança,
Ela em soluços murmurou-me: "adeus!"

Quando voltei era o palácio em festa!


E a voz d'Ela e de um homem lá na orquesta
Preenchiam de amor o azul dos céus.
Entrei! Ela me olhou branca surpresa!
Foi a última vez que eu vi Teresa!
E ela arquejando murmurou-me: "adeus!" 
A poesia social de Castro Alves trata da opressão do povo brasileiro, e tem como tema
fundamental a escravidão. A linguagem utilizada pelo poeta para defender seus ideais é
grandiosa, com gosto acentuado pelas hipérboles e por espaços amplos como o mar, o céu, e
o infinito. A indignação ganha realce com o tom declamatório conferido por exclamações,
inter-rogações, reticências e apóstrofes. É interessante observar que, embora a temática se
aproxime do realis-mo, a ênfase emocional é inegavelmente romântica.

Obra para Análise:


‘O NAVIO NEGREIRO’

Publicado em 1868, antecedeu em vinte anos a Abo-lição da Escravatura no Brasil. 


Quanto à estrutura, as seis partes que compõem es-te poema têm estruturas diferentes,
afirmando a liber-dade formal romântica. 

PARTE I
'Stamos em pleno mar... Doudo no espaço 
Brinca o luar — dourada borboleta; 
E as vagas após ele correm... cansam

 
Como turba de infantes inquieta. 

'Stamos em pleno mar... Do firmamento 


Os astros saltam como espumas de ouro... 
O mar em troca acende as ardentias, 
— Constelações do líquido tesouro... 
'Stamos em pleno mar... Dois infinitos 
Ali se estreitam num abraço insano, 
Azuis, dourados, plácidos, sublimes... 
Qual dos dous é o céu? qual o oceano?... 

'Stamos em pleno mar... Abrindo as velas 


Ao quente arfar das virações marinhas, 
Veleiro brigue corre à flor dos mares, 
Como roçam na vaga as andorinhas... 

Donde vem? onde vai? Das naus errantes 


Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço? 
Neste saara os corcéis o pó levantam, 
Galopam, voam, mas não deixam traço. 

Bem feliz quem ali pode nest'hora 


Sentir deste painel a majestade! 
Embaixo — o mar em cima — o firmamento... 
E no mar e no céu — a imensidade! 

Oh! que doce harmonia traz-me a brisa! 


Que música suave ao longe soa! 
Meu Deus! como é sublime um canto ardente 
Pelas vagas sem fim boiando à toa! 

Homens do mar! ó rudes marinheiros, 


Tostados pelo sol dos quatro mundos! 
Crianças que a procela acalentara 
No berço destes pélagos profundos! 

Esperai! esperai! deixai que eu beba 


Esta selvagem, livre poesia 
Orquestra — é o mar, que ruge pela proa, 
E o vento, que nas cordas assobia... 
.......................................................... 
Por que foges assim, barco ligeiro? 
Por que foges do pávido poeta? 
Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira 
Que semelha no mar — doudo cometa! 

Albatroz! Albatroz! águia do oceano, 


Tu que dormes das nuvens entre as gazas, 
Sacode as penas, Leviathan do espaço, 
Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas. 
Esta primeira parte é formada por onze quartetos, com todos os versos decassílabos, sendo
rimados ape-nas os pares.
O poeta evoca a beleza utilizando as imagens hiper-bólicas do mar, do céu e do infinito. No
final pergunta-se por que aquele barco foge dele. Pede então ajuda ao albatroz para
aproximar-se da embarcação.

PARTE II
Que importa do nauta o berço, 
Donde é filho, qual seu lar? 
Ama a cadência do verso 
Que lhe ensina o velho mar! 
Cantai! que a morte é divina! 
Resvala o brigue à bolina 
Como golfinho veloz. 
Presa ao mastro da mezena 
Saudosa bandeira acena 
As vagas que deixa após. 

Do Espanhol as cantilenas 
Requebradas de langor, 
Lembram as moças morenas, 
As andaluzas em flor! 
Da Itália o filho indolente 
Canta Veneza dormente, 
— Terra de amor e traição, 
Ou do golfo no regaço 
Relembra os versos de Tasso, 
Junto às lavas do vulcão! 

O Inglês — marinheiro frio, 


Que ao nascer no mar se achou, 
(Porque a Inglaterra é um navio, 
Que Deus na Mancha ancorou), 
Rijo entoa pátrias glórias, 
Lembrando, orgulhoso, histórias 
De Nelson e de Aboukir.. . 
O Francês — predestinado — 
Canta os louros do passado 
E os loureiros do porvir! 

Os marinheiros Helenos, 
Que a vaga jônia criou, 
Belos piratas morenos 
Do mar que Ulisses cortou, 
Homens que Fídias talhara, 
Vão cantando em noite clara 
Versos que Homero gemeu ... 
Nautas de todas as plagas, 
Vós sabeis achar nas vagas 
As melodias do céu! ... 

São quatro décimas com versos heptassílabos rima-dos em ABABCCDEED.


Aqui o poeta faz um elogio aos marinheiros e às suas façanhas.

PARTE III
Desce do espaço imenso, ó águia do oceano! 
Desce mais ... inda mais... não pode olhar humano 
Como o teu mergulhar no brigue voador! 
Mas que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras! 
É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ... 
Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror! 

Uma única estrofe de seis versos alexandrinos (do-decassílabos). Nas asas do albatroz, o
poeta aproxima-se da embarcação e se espanta com o que vê. Neste momento há uma
ruptura com a idealização e uma dolorosa tomada de consciência.

PARTE IV
Era um sonho dantesco... o tombadilho 

Que das luzernas avermelha o brilho. 


Em sangue a se banhar. 
Tinir de ferros... estalar de açoite... 
Legiões de homens negros como a noite, 
Horrendos a dançar... 

Negras mulheres, suspendendo às tetas 


Magras crianças, cujas bocas pretas 
Rega o sangue das mães: 
Outras moças, mas nuas e espantadas, 
No turbilhão de espectros arrastadas, 
Em ânsia e mágoa vãs! 

E ri-se a orquestra irônica, estridente... 


E da ronda fantástica a serpente 
Faz doudas espirais ... 
Se o velho arqueja, se no chão resvala, 
Ouvem-se gritos... o chicote estala. 
E voam mais e mais... 
Presa nos elos de uma só cadeia, 
A multidão faminta cambaleia, 
E chora e dança ali! 
Um de raiva delira, outro enlouquece, 
Outro, que martírios embrutece, 
Cantando, geme e ri! 

No entanto o capitão manda a manobra, 


E após fitando o céu que se desdobra, 
Tão puro sobre o mar, 
Diz do fumo entre os densos nevoeiros: 
"Vibrai rijo o chicote, marinheiros! 
Fazei-os mais dançar!..." 

E ri-se a orquestra irônica, estridente. . . 


E da ronda fantástica a serpente 
Faz doudas espirais... 
Qual um sonho dantesco as sombras voam!... 
Gritos, ais, maldições, preces ressoam! 
E ri-se Satanás!... 

Seis estrofes de seis versos rimados em AABCCB. O terceiro e o sexto versos são
hexassílabos e os demais são decassílabos.
Esta é a parte em que o poeta descreve os horro-res do navio negreiro. A escravidão não
poupa mulheres nem crianças. Negros são açoitados ao som de uma “orquestra” de sons
sinistros como gritos, gemidos, chicotes e ferros, que ilustram uma cena infernal.

PARTE V
Senhor Deus dos desgraçados! 
Dizei-me vós, Senhor Deus! 
Se é loucura... se é verdade 
Tanto horror perante os céus?! 
Ó mar, por que não apagas 
Co'a esponja de tuas vagas 
De teu manto este borrão?... 
Astros! noites! tempestades! 
Rolai das imensidades! 
Varrei os mares, tufão! 

Quem são estes desgraçados 


Que não encontram em vós 
Mais que o rir calmo da turba 
Que excita a fúria do algoz? 
Quem são? Se a estrela se cala, 
Se a vaga à pressa resvala 
Como um cúmplice fugaz, 
Perante a noite confusa... 
Dize-o tu, severa Musa, 
Musa libérrima, audaz!... 

São os filhos do deserto, 


Onde a terra esposa a luz. 
Onde vive em campo aberto 
A tribo dos homens nus... 
São os guerreiros ousados 
Que com os tigres mosqueados 
Combatem na solidão. 
Ontem simples, fortes, bravos. 
Hoje míseros escravos, 
Sem luz, sem ar, sem razão. . . 

São mulheres desgraçadas, 


Como Agar o foi também. 
Que sedentas, alquebradas, 
De longe... bem longe vêm... 
Trazendo com tíbios passos, 
Filhos e algemas nos braços, 
N'alma — lágrimas e fel... 
Como Agar sofrendo tanto, 
Que nem o leite de pranto 
Têm que dar para Ismael. 

Lá nas areias infindas, 


Das palmeiras no país, 
Nasceram crianças lindas, 
Viveram moças gentis... 
Passa um dia a caravana, 
Quando a virgem na cabana 
Cisma da noite nos véus ... 
... Adeus, ó choça do monte, 
... Adeus, palmeiras da fonte!... 
... Adeus, amores... adeus!... 

Depois, o areal extenso... 


Depois, o oceano de pó. 
Depois no horizonte imenso 
Desertos... desertos só... 
E a fome, o cansaço, a sede... 
Ai! quanto infeliz que cede, 
E cai p'ra não mais s'erguer!... 
Vaga um lugar na cadeia, 
Mas o chacal sobre a areia 
Acha um corpo que roer. 

Ontem a Serra Leoa, 


A guerra, a caça ao leão, 
O sono dormido à toa 
Sob as tendas d'amplidão! 
Hoje... o porão negro, fundo, 
Infecto, apertado, imundo, 
Tendo a peste por jaguar... 
E o sono sempre cortado 
Pelo arranco de um finado, 
E o baque de um corpo ao mar... 

Ontem plena liberdade, 


A vontade por poder... 
Hoje... cúm'lo de maldade, 
Nem são livres p'ra morrer. . 
Prende-os a mesma corrente 
— Férrea, lúgubre serpente — 
Nas roscas da escravidão. 
E assim zombando da morte, 
Dança a lúgubre coorte 
Ao som do açoute... Irrisão!... 

Senhor Deus dos desgraçados! 


Dizei-me vós, Senhor Deus, 
Se eu deliro... ou se é verdade 
Tanto horror perante os céus?!... 
Ó mar, por que não apagas 
Co'a esponja de tuas vagas 
Do teu manto este borrão? 
Astros! noites! tempestades! 
Rolai das imensidades! 
Varrei os mares, tufão! ... 

Esta parte é composta por nove décimas (estrofes de dez versos), com versos heptassílabos,
sendo o primeiro e o terceiro brancos (sem rima). Forma-se a seqüência ABCBDDEFFE.
A famosa apóstrofe que inicia e encerra esta parte constitui uma invocação, primeiramente a
Deus, e em seguida para as próprias figuras titânicas da natureza (mar, astros, tempestades,
tufão) para que se ponha um fim aos horrores da escravidão. O poeta contrasta o passado
heróico e livre daqueles que eram escravizados com sua degradante condição atual.

PARTE VI
Existe um povo que a bandeira empresta 
P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!... 
E deixa-a transformar-se nessa festa 
Em manto impuro de bacante fria!... 
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta, 
Que impudente na gávea tripudia? 
Silêncio. Musa... chora, e chora tanto 
Que o pavilhão se lave no teu pranto! ... 

Auriverde pendão de minha terra, 


Que a brisa do Brasil beija e balança, 
Estandarte que a luz do sol encerra 
E as promessas divinas da esperança... 
Tu que, da liberdade após a guerra, 
Foste hasteado dos heróis na lança 
Antes te houvessem roto na batalha, 
Que servires a um povo de mortalha!... 

Fatalidade atroz que a mente esmaga! 


Extingue nesta hora o brigue imundo 
O trilho que Colombo abriu nas vagas, 
Como um íris no pélago profundo! 
Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga 
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo! 
Andrada! arranca esse pendão dos ares! 
Colombo! fecha a porta dos teus mares!

Três estrofes em oitava rima (oito versos rimados em ABABABCC).


Indignado, o poeta denuncia que a bandeira brasilei-ra, que simbolizara a liberdade na
Independência, servia agora de mortalha (roupa fúnebre) aos escravos. Ao final do poema,
há um apelo aos heróis do novo mundo (Cristóvão Colombo e José Bonifácio de Andrada)
para ponham fim àquela situação vergonhosa.

Intertextualidade:

CONFIRA O VÍDEO DA MÚSICA DE CAETANO VELOSO, COM IMAGENS DO


FILME AMISTAD:
A herança da escravidão ainda se faz presente em nossa sociedade. Embora a opressão se
manifeste de outras formas, ela ainda se manifesta contra boa parte da população negra,
marginalizada durante séculos. Essa realidade é denunciada por movimentos culturais como
o rap e o hip hop e também em músicas como a que selecionamos abaixo:

Todo Camburão Tem Um Pouco De Navio Negreiro

(O Rappa - Composição: Marcelo Yuka)

Tudo começou quando a gente conversava

Naquela esquina alí


De frente àquela praça
Veio os homens
E nos pararam
Documento por favor
Então a gente apresentou
Mas eles não paravam
Qual é negão? qual é negão?
O que que tá pegando?
Qual é negão? qual é negão?

É mole de ver
Que em qualquer dura
O tempo passa mais lento pro negão
Quem segurava com força a chibata
Agora usa farda
Engatilha a macaca
Escolhe sempre o primeiro
Negro pra passar na revista
Pra passar na revista

Todo camburão tem um pouco de navio negreiro


Todo camburão tem um pouco de navio negreiro

É mole de ver
Que para o negro
Mesmo a aids possui hierarquia
Na áfrica a doença corre solta
E a imprensa mundial
Dispensa poucas linhas
Comparado, comparado
Ao que faz com qualquer
Figurinha do cinema
Comparado, comparado
Ao que faz com qualquer
Figurinha do cinema
Ou das colunas sociais

Todo camburão tem um pouco de navio negreiro


Todo camburão tem um pouco de navio negreiro

Análise da obra - parte IV


"O Navio Negreiro" 

Um dos mais conhecidos poemas da literatura brasileira, "O Navio Negreiro – Tragédia no
Mar", foi concluído pelo poeta em São Paulo, em 1868 – quase 20 anos depois, portanto, da
promulgação da Lei Eusébio de Queirós, que proibiu o tráfico de escravos (4 de setembro
de 1850). A proibição, no entanto, não vingou de todo, o que levou Castro Alves a se
empenhar na denúncia do horror a que eram submetidos os africanos na cruel travessia
oceânica. É preciso lembrar que, em média, menos da metade dos escravos embarcados
nos navios negreiros completava a viagem com vida. Composto em seis partes, o poema
alterna métricas variadas para obter o efeito rítmico mais adequado a cada situação
retratada. Assim, inicia-se com versos decassílabos que representam, de forma claramente
condoreira, a imensidão do mar e seu reflexo na vastidão dos céus:

",Stamos em pleno mar... Doudo no espaço 


Brinca o luar – doirada borboleta – 
E as vagas após ele correm... cansam 
Como turba de infantes inquieta.

,Stamos em pleno mar... Do firmamento 


Os astros saltam como espumas de ouro... 
O mar em troca acende as ardentias, 
– Constelações do líquido tesouro...

,Stamos em pleno mar... Dois infinitos 


Ali se estreitam num abraço insano 
Azuis, dourados, plácidos, sublimes... 
Qual dos dois é o céu? Qual o oceano?...

,Stamos em pleno mar... Abrindo as velas 


Ao quente arfar das virações marinhas, 
Veleiro brigue corre à flor dos mares, 
Como roçam na vaga as andorinhas..."
Nos porões dos navios, negros
escravizados são conduzidos para o Brasil.
A viagem da África para a América era
uma sucessão de horrores. Amontoados
nos porões das embarcações, os africanos
passavam fome e frio. Milhares morriam
antes de chegar ao seu destino; não
resistiam às doenças e à saudade de casa.
Estes preferiam a morte no mar ao
abandono na terra desconhecida

Anote! 
O poema inicia-se com a supressão da vogal "E" inicial da palavra "Estamos", grafada
"Stamos" para que o poeta forme um verso decassílabo.
É um recurso tipicamente romântico: a expressão suplanta o cuidado formal.

Eu lírico 

Na segunda parte do poema – composta em versos redondilhos maiores (heptassílabos) –,


ao seguir o navio misterioso, pedindo emprestadas as asas do albatroz, o eu lírico escuta as
canções vindas do mar. Ao se aproximar, na terceira parte, em versos alexandrinos, o eu
lírico horroriza-se com a "cena infame e vil", descrita na quarta parte do poema, por meio
de versos heterossílabos, alternando decassílabos e hexassílabos:

"Era um sonho dantesco... O tombadilho 


Que das luzernas avermelha o brilho. 
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite... 
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar... 

Negras mulheres, suspendendo às tetas 


Magras crianças, cujas bocas pretas 
Rega o sangue das mães: 
Outras, moças... mas nuas, espantadas, 
No turbilhão de espectros arrastadas, 
Em ânsia e mágoa vãs.

E ri-se a orquestra, irônica, estridente... 


E da ronda fantástica a serpente 
Faz doudas espirais...
Se o velho arqueja... se no chão resvala, 
Ouvem-se gritos... o chicote estala. 
E voam mais e mais... 

Presa nos elos de uma só cadeia, 


A multidão faminta cambaleia, 
E chora e dança ali! 
Um de raiva delira, outro enlouquece... 
Outro, que de martírios embrutece, 
Cantando, geme e ri!"
Mercado de escravos: apesar da proibição ao tráfico em
1831, esse comércio aviltante continuou livremente até por
volta de 1850.

Na quinta parte, novamente em heptassílabos, o poeta faz um retrocesso temporal,


descrevendo a vida livre dos africanos em sua terra. Cria, assim, um contraponto dramático
com a situação dos escravos no navio. Na última estrofe, Castro Alves retoma os
decassílabos do início para protestar com veemência contra a crueldade do tráfico de
escravos:

"E existe um povo que a bandeira empresta 


P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?!... 
Silêncio!... Musa! chora, chora tanto 
Que o pavilhão se lave no teu pranto!... 

Auriverde pendão de minha terra, 


Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra, 
E as promessas divinas da esperança... 
Tu, que da liberdade após a guerra, 
Foste hasteado dos heróis na lança,
Antes te houvessem roto na batalha, 
Que servires a um povo de mortalha!... 

Fatalidade atroz que a mente esmaga! 


Extingue nesta hora o brigue imundo 
O trilho que Colombo abriu nas vagas,
Como um íris no pelago profundo! ...
Mas é infâmia de mais... Da etérea plaga 
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo... 
Andrada! arranca este pendão dos ares! 
Colombo! fecha a porta dos teus mares!"
Máscara de Metal que se
Usa nos Negros que têm o
Hábito de Comer Terra,
aquarela sobre papel de
Jean-Baptiste Debret.

Uma fonte alemã

O crítico Augusto Meyer apontou a influência do poema "Das Sklavenschiff" ("O Navio
Negreiro", 1854), do poeta romântico alemão Heinrich Heine (1797-1856), sobre a obra
homônima de Castro Alves. A leitura dos versos de Heine, traduzidos pelo mesmo Augusto
Meyer, não deixa dúvidas quanto à influência sobre o escritor baiano. Tanto o segmento
inicial do poema brasileiro quanto a dança macabra descrita na quarta parte são inegáveis
recriações do original alemão: 
"Música! Música! A negrada 
Suba logo para o convés! 
Por gosto ou ao som da chibata 
Batucará no bate-pés. 

O céu estrelado é mais nítido 


Lá na translucidez da altura.
Há um espreitar de olhos curiosos 
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Em cada estrela que fulgura 

Elas vieram ver de mais perto 


No mar alto, de quando em quando, 
O fosforear das ardentias.
Quebra a onda, em marulho brando. 

Atrita a rabeca o piloto 


Sopra na flauta o cozinheiro, 
Zabumba o grumete no bombo 
E o cirurgião é o corneteiro. 

A negrada, machos e fêmeas,


Aos gritos, aos pulos, aos trancos, 
Gira e regira: a cada passo, 
Os grilhões ritmam os arrancos 

E saltam, volteiam com fúria incontida, 


Mais de uma linda cativa 
Lúbrica, enlaça o par desnudo – 
Há gemidos, na roda viva."

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