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Me salva

Trilogia
Primeiro capítulo
Enquanto afundo no meu paraíso silencioso

Ana
É comum que eu sinta o dia distorcido, minha mente não costuma sossegar com muita facilidade, meus
pensamentos nunca param, minhas noites também não são muito melhores, mas meu conforto é saber que
tenho ele ao meu lado.

Meu sono leve começa a pesar, de repente sinto como se todas as minhas memórias fossem absorvidas,
todos os meus traumas e cicatrizes mais profundas já não existem mais, sei que não deveria, mas quando
acordar novamente tudo estará mais claro, me desculpe Éden mas agora eu preciso me entorpecer um
pouco mais durante esta noite, dormirei por mais tempo, mas não se preocupe, eu sempre vou voltar para
você.

Lucy
É possível acordar e não se lembrar onde está quase todos os dias da sua vida?

Depois de ir a alguns médicos descobri um caso grave de Alzheimer que faz com que eu tenha lapsos de
memória muito fortes, posso me esquecer de semanas ou dias, caso não consiga entender imagine o
seguinte: em uma bela noite você dorme, e na manhã seguinte percebe que se passou semanas desde
aquele dia especial do qual se lembra com tanto carinho, eu lembro das minhas aulas de dança e dos meus
maiores gostos, mas é péssimo ter buracos na memória, estar sempre com o sentimento de que muito se
foi e eu nem faço ideia de como passei, eu consegui levar essa vida na infância e na adolescência, mas no
exato momento eu estou sendo literalmente sequestrada.

Acordei pela noite nos braços de um homem com o qual eu não quero estar, quando percebo dou um pulo
e acabo caindo da cama, ele levanta assustado, quando vê minha cara de confusão fica irritado.

-Lucy, é você? (pergunta Éden incrédulo)

-Infelizmente sim (eu respondo com um suspiro) conheço Éden mas não confio nele e principalmente não
gosto dele.

A pior parte é que não sei como vim parar aqui nos braços desse gorila irritante e orgulhoso, ele me trata
bem, mas nunca me deixa sair, sinto falta da minha liberdade, sempre tento coisas novas como distrair ele e
procurar as chaves da tranca das portas e janelas, já tentei passar um bilhete por baixo de frestas e já
consegui escapar algumas vezes, fui para longe e consegui me livrar dele por um tempo mas sempre que a
doença ataca eu levanto dias depois na mesma situação, as vezes em um quarto diferente, ele sempre me
encontra onde estou e me traz de volta, eu suponho.

Até onde me lembro ele já tentou me seduzir e jogar um charme durante um tempo, e a principal conclusão
é de que eu não me dou bem com o sujeito, digamos que eu não tenho fama de ser a pessoa mais tolerante
do mundo, ele nunca levantou a mão para mim e nunca me obrigou a fazer nada, apesar de todas as nossas
discussões, em um dos meus ataques acabei acertando a perna dele com uma faca, quando ele gritou e o
ferimento começou a sangrar eu desmaiei e acordei dias depois, passei aquela tarde inteira rindo de como o
idiota mancava, sim infelizmente Éden passa bem.

Não sei o verdadeiro motivo para Éden me manter presa neste quarto, ele não me deixa visitar o resto da
casa, até porque segundo ele, eu tenho tudo que preciso nesse cômodo, acho que ele apenas aproveita pra
me abraçar enquanto durmo, as vezes, parece que ele é apenas um pobre solitário em busca de companhia,
mesmo que a companhia esteja brigando e esfaqueando ele no decorrer do tempo.

Depois que acordei fui direto para a barra de Ballet me alongar, tenho apenas algumas horas antes que
Éden entre por aquela porta com meu almoço, meu único sopro de liberdade é quando estou dançando, é a
única coisa que Éden não pode me tirar.

Depois de me alongar resolvi reencenar os paços da boneca de pano que dancei na quinta série no teatro
da escola, enquanto isso relembro algumas memórias do passado.

Eu não sei exatamente como tudo isso começou, na primeira vez que o vi, Éden estava muito elegante, mas
não fazia meu tipo, eu estava completamente desconfortável naquele dia, com o encontro que meus pais
tinham me arranjado com esse garoto, não sei o que deu na cabeça deles para fazer isso comigo, eles
sempre foram muito presentes na minha criação, me apoiavam o quanto podiam apesar da minha doença e
do meu temperamento explosivo, e eu sei que meus pais tinham a melhor das intenções quando tentaram
me apresentar o Éden e se eu fosse hétero é bem provável que eu tivesse uma quedinha por ele, apesar
dessa situação em que me vejo, impossibilitada de reencontrar novamente minha família e todo resto do
mundo, Éden é o tipo de garoto calmo, faz de tudo para ser agradável, é alto e parece fazer academia pelo
menos uma vez por semana, ele é inteligente o suficiente para conversar com qualquer pessoa, mas não
inteligente demais para parecer um nerd chato, enfim, o sonho de muitas garotas mas não o meu.

-TOC, TOC (Éden bate na porta, logo em seguida entra trazendo meu almoço)

Eu o agradeço apenas por educação afinal de contas eu não me sinto a pessoa mais sortuda do mundo por
almoçar com um sequestrador do meu lado.

Ao mesmo tempo em que Éden se esforça para ser um cavalheiro, dá para perceber que ele se sente um
pouco ansioso com a minha presença, mexendo os pés de forma compulsória, como se, em todo os
momentos que passamos juntos ele estivesse esperando alguma coisa acontecer.

Minha última memória, antes de acordar presa nessa brincadeira de pega-pega infinito, é de estar sentada
na fonte conversando com Elise, minha melhor amiga desde os meus 4 anos, passamos a maior parte do
ensino médio unidas como duas irmãs, estávamos indo morar juntas em outra cidade por causa da
faculdade, eu pretendia me declarar e pedir Elise em namoro, como se não fosse óbvio os meus
sentimentos por aquela tonta, eu realmente adoro ela por inteiro, amo nossas conversas o jeito, o sorriso
bobo e despreocupado, a companhia dela conseguia iluminar tudo que estava ao meu redor, mesmo nos
dias mais chuvosos, era ela quem sempre tinha as melhores e mais malucas ideias, e como a melhor amiga
que sou, incentivava todas elas sem pensar duas vezes, até hoje temos tatuagens de coração na perna que
combinam, assim posso me lembrar dela mesmo nesse vazio intenso que eu sinto depois de ficar sem vê-la
por mais de 2 anos.

Hoje pretendo escapar novamente, mas dessa vez decidi ir até a polícia, não ficar com medo em algum
hotel, ou até na rua procurando pelo apartamento em que eu e Elise alugamos na época em que viemos
morar aqui, eu não conheço muito bem as ruas, tinha planos de sair visitando os melhores lugares da
cidade junto com Elise, mas antes disso acontecer eu já estava nas garras de Éden.

Éden sempre me traz livros e jogos de tabuleiro, mas presa neste cubículo com pouca luz nem o maior
comediante do mundo conseguiria me distrair ou tirar algum sorriso de mim, não tenho a ilusão de
acreditar que ele se importa o suficiente comigo para me entreter, eu sei que ele só faz isso porque acha
que algum dia eu vou desistir de fugir desse lugar, enquanto jogo damas com Éden, percebo que é
impressionante como alguns garotos têm capacidade limitada de evolução, jogo todos os tipos de jogos
com Éden e costumo ganhar a maioria, mas dama eu nunca perco nem mesmo uma partida, e além de não
se cansar de perder, Éden parece nunca aprender nada de novo com todas as milhares de derrotas.

-Éden, pode pegar água pra mim? Preciso me manter hidratada para te derrotar na próxima partida.

-Claro, se eu trouxer uma jarra cheia você me deixa ganhar pelo menos uma partida?(Éden pergunta
enquanto me olha e torce o canto dos lábios para baixo, fingindo tristeza)

-Só nos seus sonhos bebê, eu nunca vou deixar você ganhar de mim, pode chorar à vontade( eu respondo
para Éden olhando para minhas unhas como se me importa-se muito mais com elas do que com os
comentários desse ogro.)

Logo após a saída de Éden do quarto eu corro para a cômoda e pego o abajur de bronze pesado, me
escondo atrás da porta, demora apenas alguns segundos até que eu consiga ouvir os passos de Éden se
aproximando pela escada, espero até ver o corpo inteiro surgir na minha frente, e só então quando tenho a
visão clara e completa de sua cabeça dou o mais alto pulo que já havia dado em toda minha vida e golpeio o
abajur com força contra sua cabeça, Éden se curva um pouco para frente mais não cai, dessa forma preciso
acertar novamente o abajur na cabeça de Éden para desacordar o desgraçado e acabar com os gritos de dor,
logo depois não penso duas vezes e começo a correr me jogando pelas escadas e chegando até a porta da
frente, cheia de trancas, culpa da minha última fuga, parece que Éden aprendeu pelo menos uma lição
afinal de contas, mas para sua má sorte eu ainda estava segurando o abajur pesado, comecei a bater e
entortar todas as trancas da porta com ele, como se tivesse uma marreta em minhas mãos, (acho que
depois dessa o abajur nunca mais vai iluminar as noites de ninguém) meus braços já estavam doloridos
depois de tanto esforço, apenas larguei o abajur no chão e comecei a dar pontapés na porta, quando me
afastei e fui correndo, jogando meu corpo contra a porta, caí no chão e só então consegui ver a luz da tarde
no meu rosto.

A rua não era nem u pouco movimentada apesar de ter casas espalhadas por toda parte não havia
movimento de carro nem de vizinhos caminhando, quanto mais corria desesperada em busca da delegacia
mais próxima dou de cara com um garoto ruivo que andava de patins pela rua.

-Ei vaca, sai de cima de mim cega (reclama o ruivo mal educado e da boca suja)

-Ei ruivinho me fala onde esta a delegacia eu estou fugindo de um sequestrador e preciso o quanto antes
fazer uma denúncia antes que ele me alcance (respondo para o ruivinho ignorando a falta de educação do
menino)

-Sobe um pouco mais essa rua e vira a direita, depois é só ir reto (fala o ruivinho finalmente entendendo a
gravidade da minha situação e me ajudando em alguma coisa)

-levantei do chão com meu joelho ralado sangrando e ajudeio menino a levantar, agradeci pela valiosa
informação e continuei correndo pela rua até meus pulmões ficarem completamente sem ar, demorou
tanto para chegar que eu pensei que o ruivinho estivesse me enganando, afinal de contas não são todos
que se compadecem pelas dores alheias nesse mundo.

Quando cheguei na delegacia tinham algumas cadeiras com pessoas esperando para serem atendidas e
poder registrar suas queixas, felizmente um guarda que ficava de vigia na porta se preocupou o suficiente
para me deixar ficar em uma sala separada, me deu água, e chamou um enfermeiro para me ajudar com as
feridas do meu joelho, quando eu consegui acalmar a minha respiração um policial veio conversar comigo, e
saber o que tinha acontecido.

Foi complicado conversar com os policiais, já que eu não tinha muitas informações sobre Éden não sabia
nem o sobrenome nem a idade, não gravei o número da casa nem da rua onde eu morava.

Enquanto ficava confusa

Ana
Eu nunca consegui ver o mundo de uma boa forma, como se minha mente sempre encontrasse o caminho
de volta até a preocupação. Desde os meus 4 anos tenho medo de tudo, minha cabeça nunca para de se
preocupar, não sei exatamente como tudo isso começou, talvez meu cérebro esteja me protegendo de
alguma outra doença que eu possa ter caso a lembrança venha a tona, meu medo é não estar totalmente
preparada para essas memórias, pode ser que eu esteja em algum lugar público com Éden e causar algum
problema em algum restaurante ou no cinema, meus amigos podem me achar louca já que não conhecem
meu outro lado,

eu sei o que está pensando, nosso relacionamento já existe por uns 2 anos não é possível que depois de
tanto tempo ele sinta vontade de me largar, mas Éden provavelmente já está de saco cheio de mim, ainda
mais depois de Lucy dar uma facada na perna dele (essa menina é fogo, mas eu não culpo ela), Éden tem o
costume de ser muito compreensível ou é o que eu penso, já que ele nunca me conta seus verdadeiros
sentimentos, sempre tenho a sensação de que à qualquer momento Éden vai explodir e me mandar catar
coquinho na estrada, sempre que acordo fora de casa levanto assustada, com medo de não poder voltar
porque talvez Éden tenha finalmente me chutado, sempre volto o mais rápido possível, depois de chegar
em casa e vê-lo novamente é muito difícil não desabar em lágrimas por isso só deixo que aconteça,
abandono a vergonha e curto a liberação dos meus sentimentos para que Éden possa me consolar, isso já
aconteceu tantas vezes que nem faço questão de me lembrar o lugar onde estava mas gosto

mesmo que esse gatilho faça com que Lucy suma da minha vida para sempre, acho que ela é a única
atrapalhando o que nós temos por agora, as vezes me sinto mal agradecida por ela, já que só ela pode me
ajudar agora, ela é como uma irmã com quem eu nunca posso conversar minha piscicologa me disse que
talvez fosse melhor ter uma conversa séria com ela e explicar o que está acontecendo, talvez ajudasse a
tornar as coisas mais simples, mas eu tenho medo, talvez ela me conte aconteceu comigo...

Lucy
Depois que a sensação de adrenalina passou a única coisa que restou foi a voz esganiçada e os inúmeros
soluços que eu dava enquanto tentava contar a minha história em meio ao choro de emoção e medo de
voltar aquele lugar novamente, alguns policiais iam e vinham, ficavam confusos e faziam perguntas que me
geravam constrangimento, como se eu tinha sido abusada durante esses anos por Éden, mas como minha
situação era muito complicada por conta do Alzheimer eu simplesmente disse que não sabia, o que deixava
cada um deles mais confusos ainda, eu não tinha nenhum documento que comprovasse o meu estado
psicológico, então de nada bastaria explicar tudo isso para nenhum deles, no fim eu só precisava entrar em
contato com os meus pais e finalmente seria resgatada dessa cidade e do ogro que me aprisionou durante
dois anos, pelo menos era isso o que eu pensava até um dos últimos policiais entrar.

o rosto do policial me parecia muito familiar, quase como se eu o conhecesse profundamente, ao mesmo
tempo que sentia que poderia confiar a minha vida a ele, assim que me notou na sala o policial levou um
susto, e depois voltou ao semblante de policial sério, apesar de estar evidente que era uma máscara muito
mal colocada, eu notei que tinha algo muito errado e que ele me conhecia de algum lugar porém estava
com receio de me contar ou de me ajudar de qualquer forma, resolvi jogar o joguinho dele, não que eu
tivesse qualquer escolha.

-Qual é o seu nome?( o policial me pergunta enquanto abre o notebook da polícia, provavelmente para
verificar os registro de jovens desaparecidas e procurada pela família em casos de sequestro, fico feliz afinal
de contas deve ser mais fácil localizar o telefone dos meus pais e voltar para a minha família, foram 2 anos
de isolamento completo, uma tortura emocional, meus pais devem estar sentindo a minha falta com muita
frequência além da preocupação, sou filha única então eles devem ter passado todos esses anos
desesperados.

- Meu nome é Lucy Green Allen

Após ouvir meu nome o policial fica mais confuso ainda

- por acaso você tem irmãos Lucy? (pergunta o policial, parecendo ainda mais incrédulo, vale salientar que o
policial tem o costume de ficar cada vez mais pálido sempre que passa seu olhar sobre mim)

- Não sou filha única, inclusive, acho bom que procure direito nos registros, meus pais devem estar muito
preocupados e eu não vejo a hora de voltar para casa afinal estou sem contato com eles a cerca de 2 anos.

- Mocinha me desculpe interromper, mas provavelmente vamos ter que procurar pelos seus registros pela
sua digital, não encontro nenhuma informação sua apenas pelo nome ou data de nascimento.

O policial pegou uma máquina que escaneia a digital, após verificar nos registros nada foi encontrado
nenhum pedido de resgate nenhum cadastro meu, da minha família solicitando resgate, nenhuma notícia e
nem mesmo meus amigos preocupados com a minha ausência, nem mesmo Elise...

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