Você está na página 1de 10

a coisa pega mesmo, pega no negócio, né? Então, ela aguenta, ela é forte e tal.

A mulher negra, ela 21


isso é um problema muito sério, esse deslocamen- aguenta ser escrava sexual do outro, ela não é
to de sujeito, então é uma questão que a gente tem dona do seu corpo, o corpo dela é do outro, é para

Psicologia e o Direito à Memória e à Verdade


que pensar. A mesma questão do machismo, né, o usufruto do outro. Então, é importante refletirmos
homem se forma a partir da posição da mulher, de que forma que vão ser tratadas essas questões
tem privilégios contra o homem, não é cobrada todas aí, né? E a intervenção, falar um pouquinho
dele, por exemplo, a responsabilidade da criação da intervenção que a gente tem que fazer, eu acre-
dos filhos, e é muito interessante discutir isso por- dito que assim, a gente, primeiramente, pegando
que, no movimento negro, isso acontece. Conheço um exemplo que eu tive da minha experiência pes-
várias negros importantes, não vou citar nomes soal, sozinho a gente quebra a cara, coce, pode ser
aqui, que abandonaram as companheiras lá com competente, você pode ser estudioso, como eu fui,
os filhos e foram lá militar. Acho sério isso, muito era um bom aluno, era um bom menino, e cheguei
sério. Conheço vários da minha geração que fazem no shopping, o cara me deu porrada. Então, tem
isso, eu tenho orgulho de dizer que eu criei a mi- essa, sozinho, você não resolve. Então, todos os
nha filha sozinho, a partir do momento em que a espaços que a gente conseguir construir de juntar

CADERNOS TEMÁTICOS CRP SP


mãe dela não tinha condições de criar, por ques- as pessoas, de conversar, de formar Acho que essa
tões que não vale a pena dizer aqui agora, e eu as- é a questão mais importante, acho importante a
sumi essa condição. E não vou dizer que é tranqui- questão política, acho que é necessário a gente fa-
lo isso, claro que esse machismo que tá na gente, zer isso também, não tô negando, mas o fato da
muitas vezes, eu me questionava por que aconte- gente sentir-se parte de um coletivo, sentir-se par-
ceu isso, ficava revoltado em muitos momentos, te de um grupo, sentir-se parte do segmento social
mas isso é uma ação política importante de ser co- nos dá força para enfrentar, e isso, para isso, é im-
locada. Esse deslocamento, reposicionar é uma portante a gente ter uma postura política junto da
coisa bastante complicada. Então, essa questão sua família, dos nossos filhos, etc., uma postura
que o Hamilton coloca, o branco tem que se repo- política junto às nossas companheiras e compa-
sicionar enquanto branco, repensar-se enquanto nheiros, uma postura política com os irmãos ne-
branco, não é ser solidário, é repensar-se enquan- gros que estão com a gente na universidade, no
to tal, você tem que abrir mão de privilégios ra- trabalho e etc., independente das divergências, é
ciais, então isso é uma coisa que aponta para isso. tudo isso, porque isso significa a gente sentir-se
E, aí, todas as perguntas que foram feitas, politizar parte de um coletivo e é assim que a gente conse-
a dor, a questão pobreza, o racismo, a questão so- gue ter forçapara poder enfrentar todas essas ma-
cial, a intervenção, a formação, vai nesse sentido. zelas. Rapidamente, perguntas mais pontuais, de-
Quando a gente fala politizar a dor, politizar a sintervenção da polícia, essa luta é antiga do
morte, é uma coisa muito louca. Se você pensar, Movimento Negro, é antiga, ela vem desde os anos
por exemplo, a Lélia Gonzales fala bastante nisso, 80, no final, quando estava lá a Constituinte, é an-
as imagens de controle que são construídas sobre tiga, pelo seguinte motivo: primeiramente tem
a população negra, sobre a mulher negra, por uma vitória parcial nessa luta, né? A polícia mili-
exemplo, a mulher negra é forte, ela tem um corpo tar, por ser militar, os crimes dos PMs eram julga-
forte para o trabalho, tem corpo forte para supor- dos pelo Tribunal Militar, é evidente que o Tribu-
tar todas essas dores e é interessante a gente ver nal Militar, que é um tribunal de exceção criado na
como é que isso é desprezado nessas mães que têm ditadura, tinha uma tratamento feito com os as-
os seus filhos mortos, ela aguenta, ela aguenta. O sassinatos cometidos por PMs diferente do que
desprezo, a humilhação que elas passam na revis- eram os assassinatos cometidos por civis. Então,
ta íntima dos presídios, a humilhação que elas por conta disso, a gente achava que aquele tribu-
passam quando são atendidas no IML para reco- nal de exceção, a gente defendia o fim da polícia
nhecer corpos dos seus filhos que são mortos, a militar. Houve um acordo em 91, e aí, o que acon-
humilhação que elas passam na ação judicial e teceu? Aprovou-se uma mudança apenas de fó-
tudo isso, nos tribunais de justiça, nos julgamen- rum, manteve-se a polícia militar só que os crimes
tos e etc., essa humilhação que elas passam, o des- cometidos pelos PMs poderiam ser julgados de
prezo que elas passam. Então, essas imagens que acordo com a demanda do Ministério Publico, a
estão lá é que elas suportam, elas aguentam, elas policia civil. Mas a PM, veja só, o fim da polícia mi-
são fortes para aguentar isso. Na questão da saú- litar, a ideia é um pouco isso que o Hamilton colo-
de, como que os médicos tratam as mulheres ne- cou, a ideologia militar não tem sentido, é uma
gras, inclusive, no parto, no exame ginecológico, forca pública criada, pelo menos, historicamente,
22 para dar segurança aos cidadãos, militar combater Brasil? Pegando uma comparação, Editais do
com o outro, combate com o inimigo, que é o ini- MINK(?), geralmente é dez, 20 milhões, então isso
migo aqui? Então, é uma questão de concepção é um problema, cara, não tem grana. Eu acho as-
que tá colocada aqui. É evidente que isso não vai sim, uma grande questão para o Movimento Negro
resolver o problema do racismo, aliás, a gente tem é discutir isso mesmo, orçamento, discutir priori-
que perder a ilusão que vai haver uma medida, um dades políticas, a gente tem que ter esse tipo de
decreto, uma lei que vai acabar com o racismo, preocupação. Muitas vezes, a gente é chamado
isso não vai acontecer nunca, isso é um conjunto para conversar no governo, pessoal vai lá, tal, tal e
de medidas que você vai ter que ir construindo, essas questões, que são pontuais, vai conversar
mas é um passo importante a ser dado. E a segun- com o governo o quê? Qualquer proposta, não vai
da coisa é o Juventude Viva, concordo e assino em- ter grana. Não tô lá para tirar fotografia, ano é isso.
baixo com o que o Hamilton colocou, eu acho que Eu fui agora, passei agora, esses dois dias, quinta
o Juventude Viva tem um aspecto importante, que e sexta no seminário da CPIR sobre questão de co-
é o seguinte: foi um reconhecimento oficial do ge- municação e racismo, foi muito interessante as-
nocídio, então, levantou os dados, existem locais sim, tinham várias iniciativas de blogs, de coleti-
onde está acontecendo isso, isso é importante, ins- vos de comunicação de negros e negras, tudo isso,
titucional do genocídio, porque isso abre um flan- o que o governo federal vai fazer para isso? Editais,
co quando você viabiliza um problema, facilita a financiamento ou não? Isso aí é papo furado, dizer
sua reivindicação, sua luta e seu confronto. Quan- que é bacana, bacana, bacana é papo furado, con-
do você inviabiliza, você fica eternamente falan- versa fiada. Então, acho que a relação com o gover-
do: “Existe isso, existe isso…”, então, nesse ponto, no é institucional, Estado, e aí, não dá dinheiro,
foi importante. Agora, essa é a questão que está porque dinheiro é nosso, é dinheiro público, e se a
sendo colocada, o Movimento Negro, a gente tem gente efetivamente considera que isso é priorida-
que ter essa reflexão também, tem que constituir de, a prioridade se dá a partir de orçamento. Esse
força política para chegar a quebrar a porta, essa debate que a gente tem que fazer é o que a educa-
coisa nossa, houve um deslocamento do proble- ção faz, é 10% do PIB para educação, acho que é a
ma, o Juventude Viva foi para outro setor, apagou a mesma coisa que a gente tem que fazer: qual por-
temática racial. Agora, o maior problema de tudo centagem do PIB a gente quer para políticas de
isso, de políticas institucionais, Tatiana tá em combate ao racismo?
Guarulhos, você deve ver bem isso, é que o seguin-
te: a construção da CPIR, conselhos, não tem gra- Jonathas Salathiel
na. Não tem dinheiro, a CPIR teve um corte de or- Quero responder o que o CRP vem fazendo. Em
çamento nos dois últimos anos de 25%; a CPIR diferentes situações, conversando com militantes
nacional não tem quadro próprio de funcionários, negros, conclui que contar a nossa história, as
ela vive do quê? De funcionários emprestados de nossas dores e as nossas alegrias, é uma das for-
outros ministérios, e ninguém empresta bom fun- mas da gente se fortalecer É um pouco nesse viés
cionário, tá? A SMP aqui em São Paulo também que eu, enquanto conselheiro no CRP São Paulo,
não tem quadro próprio de funcionários. Para você venho propondo também para o CRP que dialo-
ter uma ideia, os nomeados tinham que limpar o gar com os psicólogos, com aquele que procura
próprio banheiro até, não tinha nada. Não tem gra- a psicologia, é uma forma de fortalecer. Não vejo
na, um corte orçamentário, quer dizer, vejam só, aí uma forma estruturada e pronta, a gente está
falam que é prioridade, os governos falam que é construindo junto. Por isso, conseguimos abrir
prioridade o antirracismo, pra mim, dá grana, dá o espaço do GT de Psicologia e Relações Raciais,
dinheiro, você pode dar boas ideias, sem orçamen- que acontece uma vez por mês, conseguimos dei-
to não resolve. A CPIR lançou agora um edital para xar marcado aqui no CRP que, em toda discussão
montagem de projetos para o SINAPIR. O SINAPIR que o CRP propuser, ter o recorte racial, até para a
foi uma proposta aprovada na ultima CONAPIR, gente não ficar falando para nós mesmos. É poder
que é o Sistema Nacional de Promoção de Igualda- fazer com que isso não seja uma luta só dos ne-
de Racial, ai os órgãos municipais mandarem pro- gros, são psicólogos negros e psicólogos brancos
jetos observatórios, outros projetos para poder que têm que discutir. Ainda há outras formas e o
implantar a SINAPIR. Esse Edital, ele tinha como que fazer ainda está em discussão Acho que isso
orçamento três milhões e 400 mil reais, para con- é uma construção, não é fácil e não vai ser fácil,
templar projetos de até 200 mil reais, ou seja, 17 e a gente não gosta do que é fácil, então vamos
projetos no Brasil, quantos (incompreendido) no brigar e lutar.
Genocídio da Juventude Negra, 23

Psicologia e o Direito à Memória e à Verdade


pobre e periférica: questões
objetivas e subjetivas em debate.
CATARINA PEDROSO
PSICANALISTA, MEMBRO DO MARGENS CLÍNICAS, GRUPO QUE ATENDE VITIMAS DA VIOLÊNCIA POLICIAL E TRABALHA
NA PASTORAL CARCERÁRIA COM EGRESSOS DO SISTEMA PRISIONAL

CADERNOS TEMÁTICOS CRP SP


Pretendo fazer uma apresentação do grupo Mar- Além disso, a criação da Clínicas do Testemu-
gens Clínicas ao qual pertenço, de que modo co- nho coincide com a instalação de varias comis-
meçamos a trabalhar e qual é a relação do nosso sões da verdade, que usam toda uma mobiliza-
trabalho clínico com uma dimensão política. ção em torno da questão da ditadura. Mas, como
O Margens começa a se organizar em setem- falou um colega nosso do Margens Clínicas, o
bro de 2012 a partir de um pedido do movimen- Dario de Negreiros, em um debate na USP, por
to Mães de Maio, que era um movimento com o ocasião dos 50 anos do golpe, entendemos que
qual tínhamos proximidade. Este movimento se os mesmos pilares da justiça de transição, que se
formou em maio de 2006, a partir das mortes de referem ao período da ditadura, devem ainda ser
retaliação da policia, por conta dos ataques do aplicados na nossa frágil democracia. Penso que
PCC. Foi uma semana em que morreram pelo me- vale a pena então, falar quais são os pilares que
nos 500 pessoas. Então, alguns desses familiares sustentam essa ideia de justiça de transição. São
se organizaram para lutar pelo esclarecimento eles: o direito a memoria, o direito a verdade, a
dos crimes, pela verdade dos fatos, por políticas punição dos criminosos, a reparação das vitimas
reparatórias e nos trazem essa demanda de aten- e a reforma das instituições. Nesse mesmo de-
dimento psicológico para os familiares e mais do bate, foi citada Rosa Cardoso1, que define o que
que isso, pedem uma ajuda nessa luta por uma são os crimes que lesam a humanidade. Segundo
reparação integral. A fala das mães que nos che- ela são violações fundamentais dos direitos hu-
ga é de que elas estavam ficando loucas e que não manos, como torturas e assassinatos, cometidos
estavam encontrando espaços de atendimento por agentes do estado, de forma sistemática ou
na rede pública, um atendimento adequado, seja generalizada e como parte de uma política de se-
porque o atendimento era essencialmente psiqui- gurança deliberada. Essa descrição que ela faz
átrico, medicamentoso, ou porque o atendimento dos crimes da ditadura é absolutamente perfeita
não dava conta das necessidades que se coloca- para os crimes que continuam acontecendo na
ram a partir dos crimes cometidos. democracia, em relação, principalmente, a po-
Além disso, não por acaso, Margens Clínicas pulação preta, pobre, periférica. Além disso, os
surge exatamente no contexto de criação de outra agentes do estado, responsáveis por esses crimes
política reparatória para as vitimas da ditadura, na democracia, também continuam impunes e
que é a criação da Clínicas do Testemunho, que é anônimos. Então, exatamente da mesma forma
o atendimento psicológico a vitimas da ditadura. É como acontecia na ditadura, as circunstancias
um momento em que o estado reconhece pela pri- dos crimes não são esclarecidas e isso com o aval
meira vez, que além de uma reparação financeira, do Judiciário, que arquiva os inquéritos, quer di-
há outras ordens de reparação que o estado preci- zer, é toda uma estrutura que começa ali na ponta
sa dar conta. É a primeira vez em que o estado tam- com o policial que comete o crime, mas que en-
bém reconhece que há outras medidas necessárias fim, passa pelo delegado, passa pela policia civil,
para compor o que é formalmente conhecido como passa pelo Judiciário, e que faz esses crimes caí-
justiça de transição, quer dizer, a transição de um rem no esquecimento. Então, as vitimas da nossa
período autoritário, de um período ditatorial para 1 http://www.revistaacervo.an.gov.br/seer/index.
uma democracia a se consolidar. php/info/article/viewFile/685/568
24 democracia são também assim como na ditadu- partimos da ideia de que a clínica é em si política.
ra, abandonadas a um esquecimento tão drásti- O atendimento de cada sujeito que ali é recebido
co quanto aquele do período ditatorial. Uma das é um ato politico. No entanto, acho que tem ou-
ideias importantes para o nosso grupo é de que tra dimensão da política que queremos alcançar
aquilo que não pode ser simbolizado para o su- com esse trabalho que vale a pena aprofundar.
jeito, retorna como sintoma e entendemos que De que modo as vivencias subjetivas das pessoas
isso acontece também, no campo social, ou seja, que atendemos se relacionam com essa dimensão
aquilo que não foi socialmente elaborado, social- política da democracia e da justiça de transição?
mente transformado, vai retomar como sintoma. Como falei anteriormente, trata-se de crimes que
No caso da violência policial, é essa a leitura são relegados ao esquecimento absoluto. Sob nos-
que fazemos, temos uma instituição policial que so ponto de vista, o não reconhecimento por par-
permanece exatamente a mesma. Há uma mu- te do Estado desses crimes cometidos, significa a
dança fundamental do papel da policia durante continuidade sistemática dessa violação, é como
a ditadura. Antes, ela era uma força de reserva se o crime continuasse existindo e se repetindo e
do Exercito e passa a fazer uma atuação ostensi- os familiares, quando não encontram na socieda-
va o que permanece até hoje, a logica militar de de esse tipo de reconhecimento dos crimes, vivem
ter os cidadãos como inimigos e que precisam ser a experiência de carregar o fardo de um luto que
combatidos, eliminados. Há outras reformas insti- não pode se realizar. Como são crimes silenciados
tucionais que não foram feitas, como reforma no e negados, essas pessoas mortas e os familiares
Judiciário e na policia civil também, que é militari- têm o direito à memória também negado. Então,
zada na sua logica de funcionamento. Então, par- os pais e familiares tornam-se eles mesmos as se-
timos dessa ideia de que aquilo que não pôde ser pulturas dessas vitimas. O que a gente ouve nos
transformado, não pôde ser elaborado vai existir relatos deles é a experiência de carregar um fardo
como um sintoma e vai continuar produzindo seus dessa dimensão e se não o fizerem, é como se eles
efeitos. Foi a partir de tudo isso, com todas essas fossem responsáveis por uma segunda morte des-
ideias mobilizadas que montamos esse coletivo sas pessoas. A fantasia que se coloca é um pouco
para, a partir dos atendimentos psicanalíticos, essa, é como se até eles se esquecessem, é como se
subsidiar uma luta maior por memoria das pes- essas pessoas nunca tivessem existido e o traba-
soas vitimadas, pela elucidação dos crimes, pela lho de luto não pode se realizar. O trauma é muito
responsabilização dos violadores, pela reparação mais violento do que uma experiência de violên-
integral das vitimas e pela reforma das instituições cia ordinária, porque ela vem da onde nunca de-
que autorizam e realizam esses crimes. veria vir, quer dizer, do estado. Então, sob nosso
Nós nos organizamos da seguinte maneira, so- ponto de vista, o reconhecimento desses crimes é
mos 10 psicanalistas de São Paulo, fazemos um o primeiro passo para que essas pessoas possam
grupo terapêutico em Santos e também, fazemos começar um processo de elaboração do trauma,
atendimentos aqui em nossos consultórios, porque o que não significa dizer que o trauma possa ser
essa é a forma que encontramos para responder superado. Pensamos que tem sempre algo de insu-
imediatamente a demanda dos familiares por aten- portável no traumático, que não pode ser dito, que
dimento. Mas, como eu falei, esses atendimentos não pode ser simbolizado, mas achamos também
são subsídios para uma luta maior que é dar conta e apostamos nisso, que o trauma pode encontrar
de todas essas demandas que consideramos funda- um outro lugar, um lugar possível na historia do
mentais para caminhar para uma democracia mais sujeito. Nosso trabalho é um passo, no sentido de
solida. Além dos atendimentos, temos supervisões, buscar um reconhecimento social e esclarecimen-
discussões teóricas, e recebemos encaminhamen- to dos fatos, e uma reparação integral para esses
tos, não somente do movimento Mães de Maio, mas familiares, no sentido de uma elaboração social
também, da Defensoria Pública. desses acontecimentos. É por isso, não por outro
Agora acho que vale a pena colocar de que motivo que também apoiamos, junto com os fami-
modo esses atendimentos clínicos se relacionam liares de outros movimentos, a instalação de uma
com uma dimensão política. No Margens Clínicas, comissão da verdade dos crimes da democracia.
RAFAEL ALVES LIMA 25
PSICANALISTA, PROFESSOR DO DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA DO INSTITUTO DE EDUCAÇÃO, LETRAS, ARTES,

Psicologia e o Direito à Memória e à Verdade


CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS, DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO TRIANGULO MINEIRO, MEMBRO DO GRUPO MARGENS
CLÍNICAS, MEMBRO DA REDE CLÍNICA DO LABORATÓRIO JACQUES LACAN, DO IPUSP E DO LABORATÓRIO DE TEORIA
SOCIAL, FILOSOFIA E PSICANÁLISE.

Boa tarde a todos que estão aqui ou que nos acom- nil. Para a minha grata surpresa nesse momento
panham pela transmissão. É uma oportunidade percebo que é possível escutar um grupo, princi-
única poder estar aqui no CRP, apresentando palmente sob o ponto de vista teórico. Voltei aos
esse nosso trabalho do Margens Clínicas, porque textos clássicos do Pichon Rivière, e consultei
me parece necessário transformar algumas das uma autora que pra mim foi bastante importante,
nossas ideias que acontecem internamente, coi- chamada Graciela Jasiner. Esta autora escreveu
sas que a gente escuta e nos mobiliza a pensar um livro chamado “Coordenando Grupos2”, que
em algo publico, em algo compartilhado, o que para mim cumpriu uma função importante tradu-

CADERNOS TEMÁTICOS CRP SP


nos parece bastante importante. Ao longo da se- zindo o klainês argentino datado do Pichon para
mana, comecei a pensar a respeito do nome do uma linguagem lacaniana. Essa tradução para
nosso encontro: Contra o genocídio da população mim foi importante, do ponto de vista da escuta
negra: Subsídios Técnicos e Teóricos para Psicolo- e mais do que isso, o que para mim foi bastante
gia e especialmente, um nome, um significante, significativo foi a possibilidade de perceber como
por assim dizer, que me chama bastante atenção era fundamental naqueles grupos que esse luto,
é genocídio. Porque nomeamos genocídio da po- que essa experiência de luto, pela qual passavam
pulação negra como genocídio. “Theodor Adorno, essas mães, pela qual passavam esses familia-
filosofo da escola de Frankfurt, em um texto cha- res pudesse se coletivizar e se transformar em
mado ‘Mensagem em uma Garrafa”, traduzido na luta política. Para ilustrar vou apresentar uma
coletânea do Zizek, chamada “Um Mapa da Ideo- vinheta clínica, uma vinheta muito rápida que
logia1”, faz um comentário sobre a palavra geno- na verdade, não aconteceu comigo, mas com um
cídio. Ela aparece para os ingleses para nomear colega nosso. Enquanto estava escutando um
o inominável, quer dizer, não se conseguia dizer grupo, chega uma mãe que há três meses havia
sobre o que era, o que havia acontecido no ho- perdido o seu filho numa situação típica: um po-
locausto, o que o nazismo fez com os judeus. Na licial passou de moto, olhou, viu um jovem que
impossibilidade de nomear, foi preciso criar uma ele considerou suspeito, essa categoria bisonha,
palavra para designar o horror histórico que tinha negro, periférico, atirou, matou. Nesse dia essa
acontecido. Achei importante trazer esse elemen- mãe chega até o grupo terapêutico e diz: “Hoje
to porque eu tenho algumas questões a respeito. eu vim aqui ao grupo para dizer que eu vou me
Porque chamamos de genocídio e não de exter- matar. Na verdade, eu vou fazer o seguinte, antes
mínio, por exemplo? Também tenho minhas du- de me matar, eu vou matar o sujeito que matou o
vidas a respeito de certas posições históricas que meu filho”. Talvez seja dizer o óbvio, mas é com
vão sendo feitas, e acho que propositalmente fei- alguma dificuldade que os familiares conseguem
tas, para termos categorias mínimas para pensar descobrir quem foram os policiais que mataram
no que está acontecendo. Também temos a nossa o filho, por uma serie de motivos, desde geográ-
versão contemporânea, por assim dizer, de tentar ficos até a questão de classe social. Continuando
nomear o inominável, e genocídio é uma palavra essa pessoa fala o seguinte: “Antes de me matar
que tem servido e extermínio é uma palavra que eu vou matar o sujeito que matou o meu filho e vou
precisamos voltar e conceituar para veicula-la. fazer o seguinte, eu vou até a delegacia, vou cha-
No Margens Clínicas participei um tempo des- mar o fulano, vou levantar uma arma e vou atirar
sa experiência da escuta do grupo e isso para nele e em seguida, eu me mato, vou dar um tiro na
mim, foi um grande aprendizado, uma grande têmpora, porque dei uma pesquisada na internet
novidade. Preciso confessar que até antes dessa e percebi que dar um tiro na têmpora se for bem
experiência, eu nunca botei muita fé, por assim aplicado, é menos doloroso e isso tá certo, vou fa-
dizer, em psicanalise de grupo, tinha uma espé- zer mais ou menos no dia tal, faixa de horário mais
cie de preconceito, um pouco de arrogância juve- ou menos tal”, quer dizer, já estava tudo muito
1 http://www.saraiva.com.br/um-mapa-da-ideolo- 2 http://www.saraiva.com.br/um-mapa-da-ideolo-
gia-394436.html gia-394436.html
26 bem programado para que viesse a acontecer. O mãe que perde o seu filho, ou seja , detecta um
grupo vira para ela e fala: “Não faça isso”, e ai, eu dado cultural linguístico que é uma mãe que per-
quero dar a primeira sublinhada por assim dizer, de o seu filho não dispor de uma palavra a partir
de caráter mais psicanalítico, pois essa fala não da qual ela possa relatar, testemunhar o seu so-
é uma estratégia de adaptação no sentido mais frimento e partilha-lo. Existe um buraco, um ver-
criticável do termo, como se fosse o analista do dadeiro buraco linguístico no que diz respeito a
grupo que fala, mas é uma pessoa, um membro possibilidade de estabelecer um reconhecimento
do próprio grupo que fala. O argumento que se imediato, por meio da linguagem, estabelecer um
segue é impressionante. A pessoa fala: “Não faça laço com o outro. Se você tem uma palavra capaz
isso, você tá sendo individualista se você fizer isso, de designar uma posição subjetiva, uma posição
lembre-se de que nossa causa aqui nesse grupo é na linguagem, de um filho que perde a sua mãe,
pela desmilitarização da policia, pelo fim do exter- a palavra é órfã ou órfão, não há nenhuma pala-
mínio dos nossos filhos, dos filhos de outras tantas vra em nenhuma cultura, em nenhuma língua do
mães, que podem morrer a qualquer hora na peri- mundo capaz de designar uma mãe que perde o
feria, a gente quer justiça, a gente quer uma outra seu filho, Dada a antinaturalidade, o caráter ines-
policia e se você tratar do assassinato do seu filho perado, o caráter trágico, o caráter surpreendente
de maneira individual, a gente perde força políti- desse tipo de experiência, a linguagem não pode
ca”, Imaginem uma mãe que acaba de perder o dar conta desse tipo de fenômeno. Então, a gen-
seu filho numa situação muito delicada, muito te acaba se havendo com essa posição radical do
frágil de um luto latente tendo que escutar e ser inominável, dessa posição extrema da impossibi-
chamada de individualista. Ela se levanta e fala: lidade de poder falar sobre esse sofrimento que
“Eu não estou dando conta disso, eu não quero… não tem um significante de onde partir. Estamos
pra mim tá difícil demais, dá licença, eu vou em- nos havendo, afinal de contas, com essa pergun-
bora”, ela se levanta e na medida em que ela se ta que vou deixar em aberto que é como falar em
levanta, uma pessoa do grupo se levanta. Vai reparação, que é um dos nossos grandes desafios
até ela e a abraça, e nesse momento em que ela clínicos em nosso trabalho no Margens Clínicas. É
a abraça, outras pessoas do grupo se levantam e dessa maneira que a gente está tentando bordejar
vão em torno desse abraço e conseguem partilhar a nossa clínica, bordejar o real para conseguir di-
essa experiência de luto, dizendo: “Estamos jun- zer aquilo que não é possível ser dito.
tas, todas nós passamos pela mesma experiência Outro paradoxo que eu quero apresentar para
que você está passando de ter perdido o seu filho”. vocês, é como exigir que o Estado promova algum
É preciso coletivizar esse luto e é a partir dessa tipo de reparação pelos crimes que ele mesmo
coletivização, que ele pode vir a se transformar veicula. Um ponto bastante delicado no interior
em luta política. desse paradoxo é a relação entre a psicanalise
Espero que essa vinheta possa ilustrar a po- e o estado, que funciona enquanto uma não-re-
tencia do coletivo, que o próprio dispositivo gru- lação. Acho que todos vocês sabem que não há
pal pode criar, lá onde ele se torna medida clínica uma regulamentação do estado para a profissão
de si mesmo, lá onde ele escuta a si próprio, sem de psicanalista, é preciso ser psicólogo ou médi-
reparar, mas mantendo o caráter trágico da experi- co. Isso sempre interessou a psicanalise na me-
ência do luto, para transformá-lo em luta política. dida em que foi mais interessante que o estado
Anteriormente fiz uma pontuação a respeito não metesse o bedelho onde ele não foi chama-
da denominação do genocídio, e agora também do. Mas ai temos uma dificuldade suplementar,
quero fazer uma pontuação a respeito da noção de que é a transposição da nossa escuta como uma
reparação. Existe um uso psicanalítico do termo, política pública de saúde mental. Então, que tipo
tradicionalmente estabelecido, especialmente de relação, estamos tentando ter com o estado,
por Melanie Klein, e o uso da noção de reparação essa figura que a psicanalise nunca fez muita
pela justiça de transição. A meu ver surge um im- questão de ter como amigo, como parceiro, diria
passe diante do qual não nos acovardamos: como muito menos como regulador ou legislador, para
reparar o irreparável? Lembro especificamente tentar tornar essa clínica que a gente desenvolve
de uma psicanalista, iugoslava, radicalizada na em mais uma política pública. Elisabeth Roudi-
França há muitos anos, chamada Radmila Zygou- nesco em seu livro “O Paciente, o Terapeuta e o
ris que faz uma constatação incrível para a gente Estado”, fala que isso vira uma verdadeira caça
pensar do ponto de vista clínico. A autora comen- ao charlatanismo, Queremos sublinhar esse cará-
ta que não há palavra capaz de designar uma ter publico da nossa proposta. É uma clínica que
deve necessariamente, ser pública, que não pode de, nossos parceiros de Margens Clínicas em 27
ser restrita a uma esfera privada, justamente, que eles dizem: “As breves narrativas ao serem
porque como nos ensina a cena clínica, trata de retiradas da invisibilidade do silencio são capa-

Psicologia e o Direito à Memória e à Verdade


sofrimentos que têm um resultado direto na vida zes de incitar a reflexão acerca das razoes do seu
individual, mas que diz enferma numa situação sufocamento”. São os Amarildos, os DGs, são os
social, sob uma situação política que é a violên- casos que perguntam insistentemente: ‘Por que o
cia do estado. Então, o nosso desafio é produzir senhor atirou em mim?’, que acontecem todos os
essa transformação de como traduzir o sofrimen- dias nas periferias que promovem essas narrati-
to individual que escutamos para que ele informe vas. O Foucault, em um de seus textos, chama-
sobre a situação social da violência e extermínio do “ A vida dos Homens Infames” diz que essas
da população negra e indo além, como traduzir narrativas são as que nos revelam mais radical-
essa experiência em proposições de projetos de mente como se dá o choque com o poder lá onde
políticas públicas em saúde mental. Estamos nos elas emergem. Então, para fechar a ideia, se do
havendo com essa pergunta, porque partimos ponto de vista politico, nós temos que lutar pela
já do pressuposto de que a roda clínica é por si garantia e pela constatação de quantos são esses

CADERNOS TEMÁTICOS CRP SP


só política, e mesmo quando ela acontece numa mortos, acho que o trabalho clínico, a psicanalise
ambiência privada, ela tem um destino publico, deve informar quem são, trazer essas narrativas
ela se orienta para o social, ela se orienta para a a tona, porque se nós não soubermos quem são,
política. Então, queria trazer aqui uma citação ou quantos são, pode se perder numa espécie de
dos nossos parceiros Jorde Broide e Emilia Broi- estatística inerte ou estatística sem uso clínico.
28 JOSELICIO JUNIOR
JORNALISTA E PÓS GRADUADO EM MÍDIA, FORMAÇÃO E CULTURA PELO CELACC – ECA – USP, MEMBRO DA
COORDENAÇÃO NACIONAL DO CIRCULO PALMARINO, CORRENTE DO MOVIMENTO NEGRO E PRESIDENTE DO INSTITUTO
DE ESTUDOS AFRO-BRASILEIRO MANOEL QUIRINO.

Como foi anunciado aqui, faço parte do Circulo radigma e, acima de tudo, de denuncia daquele
Palmarino, uma entidade nacional do Movimento processo. Então, também não é a toa que é nesse
Negro e que nos últimos oito anos vem tentando momento que a Rota é mais ativa, mas também é
construir um debate politico, uma leitura a partir nesse momento que o movimento hip hop surge
da conjuntura de quais são os desafios que estão com maior intensidade, e eu costumo dizer que
colocados para o enfrentamento do racismo e se alguém quer entender um pouco o que foi a
quais são as características desse racismo que, na década de 90 no nosso Brasil, ter um raio x do
nossa concepção, é estrutural da sociedade bra- Brasil na década de 90, basta ouvir “Raio X do
sileira e vem construindo varias engenharias. Se Brasil”, do Racionais MC’s. Mas temos uma infle-
por um lado, o debate do racismo não estava ne- xão também, que aconteceu nos últimos 12 anos,
cessariamente colocado no processo escravocra- e é inegável que houve mudanças mas que pro-
ta, foi justamente a acumulação de riqueza que se duziram uma dinâmica que também reflete e, de
construiu nesse período e o projeto de nação que certa maneira, mantem essa profunda desigual-
se construiu no pós-abolição é a engenharia que dade. É importante dizer que foi nesses últimos
produziu o verdadeiro abismo econômico, social 12 anos que mais se avançou na regulação e na
e cultural entre negros e não negros na sociedade ampliação de espaços institucionais para se de-
brasileira. Essa engenharia vai sendo moldada ao bater a questão das políticas ditas de promoção
longo dos tempos até chegar aos dias de hoje pro- da igualdade racial, fruto obviamente de toda
duzindo, mantendo, apesar de algumas inflexões uma pressão do movimento popular e daquilo
algumas mudanças no caminho, uma profunda que se acumulou nos últimos anos. A primeira lei
desigualdade entre negros e não negros na so- que o Lula assinou foi a Lei 10.639, que institui
ciedade brasileira e que se materializa na nossa a obrigatoriedade do ensino da historia e da cul-
concepção de diversas formas. tura africana, afro-brasileira em todas as esferas
Como já mencionado em mesa anterior nesse de ensino. Logo em seguida, a formação da CPIR,
processo de redemocratização do Brasil tivemos o próprio Estatuto de Igualdade Racial, as três
acesso a um documento da Escola Superior de conferencias da igualdade racial. Inclusive na ul-
Guerra Na década de 90, a Escola Superior de tima conferencia, a Presidente Dilma afirmou que
Guerra trouxe uma discussão sobre quais eram os reconhecia a existência do racismo, que o exter-
desafios para o desenvolvimento do país nos pró- mínio da juventude negra era um dos principais
ximos 20 anos e eles encontravam dois elemen- sintomas desse processo e a única coisa que ela
tos centrais que poderiam impedir o processo de apresentou de fato, de novidade foi os 20% de
desenvolvimento do Brasil, um eram os cinturões cotas no serviço publico. Mas vivemos uma con-
de miséria, frito daquele modelo neoliberal, de tradição. Acabou de sair uma preliminar do mapa
desemprego estrutural, de redução das políticas da violência que aponta que só em 2012, 56 mil
de estado e o outro elemento era, que também é pessoas foram assassinadas em nosso país sendo
fruto desse modelo, que é a questão dos meno- ampla maioria jovens entre 15 e 29 anos, e em
res abandonados e que esse contingente poderia torno de quase 70% jovens negros.
ser superior aos aparatos repressores e que era A contradição é que enquanto se avança do
necessário sistematicamente combater esse seg- ponto de vista da representação e de marcos re-
mento. E não é a toa que é justamente nesse pe- gulatórios institucionais, permanece um proces-
ríodo, que a Rota atuou de forma mais ativa no so de desigualdade e um processo sistemático de
estado de São Paulo, nesse período de transição extermínio, que, para nós, gera um genocídio.
entre o final da década de 80, inicio da década Isso não é algo factual, não é algo momentâneo,
de 90. E também é nesse momento que são cons- mas algo que vem se estruturando ao longo dos
truidas varias bases de resistência, inclusive da séculos e que se materializa numa política sis-
juventude periférica, através da cultura, princi- temática que coloca essa população numa con-
palmente da cultura hip hop , como um elemento dição de vulnerabilidade e de exclusão social.
de contestação e de construção de um novo pa- Para conseguirmos ter uma percepção do porque
dessa contradição, é preciso pensar a conjuntura neráveis, que produz um aumento sistemático da 29
em que estamos colocados, em que se tem uma violência. Por isso que na nossa leitura é algo es-
inflexão de um lado, do ponto de vista de garan- truturante e que por isso não é algo factual, não é

Psicologia e o Direito à Memória e à Verdade


tia de marcos regulatórios, mas por outro lado, se algo que se resolve formando melhores profissio-
mantém a estrutura de privilégios no país, princi- nais da segurança pública, não é um problema de
palmente através da manutenção de uma política formação. É um problema que é inerente ao pró-
econômica que continua beneficiando o capital prio funcionamento desse modelo, desse projeto
especulativo, com fortalecimento do agronegócio de desenvolvimento, esse projeto de extermínio e
como a grande alavanca da balança comercial e de genocídio da nossa juventude. Não adianta ga-
o processo de expansão do consumo. A garantia rantir marcos regulatórios, sem que haja, de fato,
de uma tentativa da ascensão social para a po- mudanças estruturais, mudanças de paradigmas
pulação, e dá muito simplesmente pela expansão nas relações políticas e , nesse sentido, tem uma
do mercado de consumo, através do credito e agenda política que vem sendo construida no ul-
não, de fato, de uma grande distribuição de ren- timo período em torno disso, como o fim dos atos
da e garantia de direitos sociais. E isso começa a de resistência, com mecanismos que foram cons-

CADERNOS TEMÁTICOS CRP SP


provocar um conjunto de contradições em que a truídos a partir da ditadura militar, como formas
própria estabilidade é colocada em cheque, como de controle social e de criminalização dos movi-
por exemplo o que nós vimos acontecer com o mentos, mas principalmente, das populações em
debate sobre o transporte publico, a mobilidade maior vulnerabilidade, das periferias...Tem sido
urbana em junho do ano passado. E além disso, uma agenda importante, a questão do fim dos
há um projeto de expansão desse capitalismo, atos de resistência como um mecanismo de legi-
através dos grandes centros urbanos, essa políti- timação e institucionalização do direito de matar
ca de trazer os grandes eventos para o país, uma nas periferias. O debate da desmilitarização da
política de expansão das fronteiras do capitalis- policia é também um elemento fundamental. Não
mo que produz uma combinação que eu diria ser que a gente possa ter a ilusão de que uma poli-
quase uma bomba relógio. Então, você amplia o cia civil possa ser menos assassina, mas eu acho
credito, mas não amplia a distribuição de renda, que é preciso dar passos importantes no sentido
você cria uma expectativa na população de me- da desmilitarização, porque uma estrutura mili-
lhoria de qualidade de vida, mas que esbarra na tar serve para o combate ao inimigo e a partir do
realidade concreta. A pessoa começa a ganhar momento que você tem uma estrutura, em que o
um pouquinho mais, começa a ter um credito três cara chegar com a farda amarrotada é mais puni-
vezes maior daquilo que ela ganha, começa a ga- tivo do que ele matar uma pessoa, algo de errado
nhar uma expectativa de vida: “já que a saúde é e de esquizofrênico tem nessa estrutura de rela-
uma porcaria, então, eu vou ter um planinho de ção com a segurança pública e com o papel que
saúde, já que a educação é uma porcaria, eu vou a policia poderia ter. Então, de fato, o debate da
pôr meu filhinho numa escolinha particular”, Vai desmilitarização não é menor nesse sentido, mas
se formando uma grande bolha de expectativas nos coloca o desafio de pensar qual o modelo de
que não correspondem a uma estrutura urbana, policia que nós queremos e que modelo de segu-
de mobilidade, de condições de cidadania e co- rança pública é importante nesse sentido.
meçam a criar contradições que não conseguem Acho que um outro sintoma importante desse
dar respostas. E quem está a margem desse pro- momento e que escancara as contradições para
cesso de uma possível inclusão, ou de uma pos- além das ditas jornadas de junho, é um outro fe-
sível ascensão social, que está nas pontas desse nômeno que traduz muito esse momento que nós
processo, sofre duas vezes com esse projeto de estamos vivendo e que eu considero como um
desenvolvimento, porque é o primeiro a ser im- momento pedagógico para o debate do racismo
pactado por essa expansão do capitalismo nos no Brasil, que foi a questão do rolezinho. O ro-
grandes centros, com essa política de especula- lezinho foi um fenômeno social importantíssimo,
ção imobiliária, com esse projeto de remoções porque de certa maneira, ele traz a tona esse de-
de comunidades para poder abrigar os grandes bate que estamos fazendo. Quando você propõe
eventos, com a política de encarceramento da para essa juventude que para ser reconhecido na
nossa juventude e também, com a política de sociedade, você precisa necessariamente ter e
guerra às drogas, que é um dos principais moto- poder consumir, essa a ideia que se constrói coti-
res que intensifica o processo de criminalização e dianamente, que para ser reconhecido, ser aceito
de militarização dos territórios considerados vul- é vestir determinada roupa, é vestir determinada
30 marca. Isso, inclusive, é um elemento não só de do Candomblé, da capoeira, do samba, etc....Há
identidade, mas também, condição para ser acei- um processo também de criminalização do funk
to em determinados espaços. E quando essa ju- que (sem ignorar um conflito geracional, a ques-
ventude resolve fazer isso de forma organizada tão da perturbação e uma serie de outros elemen-
ou espontânea e isso ganha dimensões e começa tos que são colocados), é de certa maneira, um
a ameaçar, de alguma forma, os interesses daque- espaço que essa juventude tem encontrado para
les que estão encastelados nos seus espaços de dar vasão a essas angustias que são colocadas
poder, se escancara o papel do estado de conter no centro desse turbilhão politico e socioeco-
essa população. Tem dois fatos que mostram isso nômico que estamos vivendo. A criminalização
e para mim está diretamente imbricado com o de- desses espaços também fortalece esse projeto de
bate do genocídio. O Judiciário foi o primeiro a extermínio e de genocídio da nossa juventude,
garantir aos donos dos shopping centers, o direito Na verdade, a ideia foi trazer alguns elementos
de impedir os rolezinhos e a forma encontrada foi da conjuntura que estão colocados, algumas
selecionar quem podia ou não podia entrar nos coisas que nos fazem refletir sobre esse momen-
shopping centers. Acho que esse mecanismo por to tão importante, tão contraditório e ao mesmo
si só, essa institucionalização de definir quem era tempo, efervescente. O sentimento que tenho é
ou não era rolezeiro, quem ia ou não ia, já escan- que há uma efervescência, há uma vontade, uma
cara de certa maneira, essa seletividade e esse insatisfação colocada no seio da sociedade, mas
processo de discriminação e do quanto o racismo que isso não necessariamente vai se canalizar
é latente na nossa sociedade. E por outro lado, as para mudanças mais avançadas e progressistas.
próprias autoridades do Executivo, trouxeram o Poderá ir também, por um caminho conservador.
problema para si, dizendo: “Olha, de fato, o ro- A forma como o Estado, como a estrutura do Es-
lezinho não pode acontecer no shopping, nós tado, na sua máxima complexidade reage a isso é
vamos resolver isso garantindo mais espaços de da forma mais violenta e repressora possível, e é
lazer na periferia”, como se isso por si só conse- por isso que nós precisamos a todo momento nos
guisse dar respostas a essa política. Está imbrica- levantar contra esse processo de criminalização
do nisso, o processo de criminalização dos bailes da pobreza, militarização dos territórios, crimi-
funks na periferia. Considero que, guardadas as nalização dos movimentos sociais, porque são
devidas proporções, é o mesmo processo que le- formas de tentar impedir que se construa formas
vou à criminalização do e lá atrás da Umbanda, alternativas ao que está posto ai na sociedade.

Você também pode gostar