Você está na página 1de 239
FRANKLIN FERREIRA Pensadores Cristaos Agostinho DeAaZ Tradugioo de citagoes em latim Paulo José Benicio eS AGADEMICA ©2006, de Franklin Ferreira ey . Vida Todos os direitos em lingua portuguesa reservadas por Editora Vida PROIBIDA A REPRODUGAO POR QUAISQUER MEIOS, SALVO EM BREVES CITAGOES, COM INDICAGKO DA FONTE. Eprrora Viva Rua Julio de Castilhos, 280, CEP 03059-000 Séo Paulo, SP | Coordenagio editorial: Rosana Brandio Tel: 0 xx 11 6618 7000 | Fdigao: Lilian Jenkino ¢ André Jenkino do Carmo Fax: 0 xx 11 6618 7050 | Revistio: Polyana Lima wwweditoravida.com,br | Diagramacéo: Sonia Peticov wonw.vidaacademicanec | Capa: Marcelo Moscheta Dados Internacionais de Catalogagao na Publicagao (CIP) (Camara Brasileira do Liveo, SP, Brasil) Ferreira, Franklin ‘Agostinho de AaZ./ Franklin Ferrera-—Sio Paulo : Editora Vida, 2006. (Série pensadores ctistios) Bibliografia ISB 85-7367-938-7 1 .Agostinho, Santo, Bispo de Hipona, 354-430 I, Titulo I Série. 06-0122 DD 280.092 Indice para catdlogo sistemético: 1. Agostinho: Pensadores cristios: Cristianismo 280.092 Dedicatéria Certa vez, referindo-se ao dr. John Gerstner, professor de Histéria da Igreja no Pittsburg Theological Seminary (USA), R.C. Sproul disse: “Tive a felicidade de estudar com um professor que confirmava o cristianismo cldssico. Ele era 0 nosso professor mais severo e que mais exigia de nds no terre- no académico, Sua mente sempre pronta a nos preparar ar- madilhas e sua singular habilidade de raciocinio Idgico ¢ conclusivo me impressionavam. Ele parecia sobrepujar o res- tante dos professores tanto em conhecimento quanto em brilhantismo analftico”. Com profunda gratidao, digo exa- tamente o mesmo sobre os professores John Samuel Hammett e Alan Doyle Myatt. Eles tiveram igual significado em mi- nha vida! Sumario Preficio Agostinho, bispo de Hipona: doutor da graca Em peregrinagao De monge a bispo As principais controvérsias O fim de uma cra Cronologia Notas Bibliografia A B ADEODATO 43 BATISMO ALIANGA 43 BELEZA ALMA 44 BEM AMIZADE 45 c AMOR 46 CASTIDADE ANJOS 48 CEU APOLOGETICA 50 CHRISTUS VICTOR ARVORE 51 CIDADE DE DEUS, CIDADE ASCENSAO 51 DATERRA ASTROLOGIA 53 CONCUPISCENCIA 15 16 21 23 35 39 215 239 54 56 58 58 59 59 60 63 CONFISSAO 63 CONSCIENCIA 64 CONTEMPLAGAO 64 CONVERSAO, 65 CRIAGAO 67 CRIAGAO, DIAS DA 69 CRIAGAO, HUMANIDADE 69 CRISTO TOTAL 70 CRUZ 70 CULPA 71 CULTO, LITURGIA 71 CULTO AOS MORTOS 72 D DEMONIOS 72 DEUS, ESPIRITO SANTO 72 DEUS, FILHO 72 DEUS, IMUTAVEL 73 DEUS, PAI 74 DEUS, TRINDADE 75 DEUS, UNICO 80 E EDUCAGAO, FILOSOFIA 82 EDUCAGAO, METODO 84 ENTRETENIMENTO. 85 ESCRITURA, CANON 85 ESCRITURA, INSPIRACAO 88 ESCRITURA, INTERPRETAGAO 90 ESCRITURA, SUFICIENCIA 94 ESPIRITO SANTO 96 ETERNIDADE 97 EUCARISTIA, CEIA DO SENHOR 97 EXISTENCIA 98 EXTASE 99 HH FAMILIA 100 FE 101 FELICIDADE, BEM-AVENTURANGA 103 G GRAGA GRAGA, BENEFICIOS GRAGACOMUM GRAGA COOPERANTE GRAGAPERSEVERANTE GRAGA PREVENIENTE GUERRA H HERESIA HOMEM, SERHUMANO HUMILDADE 1 IDOLATRIA IGREJA IMAGEM DEDEUS INFERNO INVEJA IRMAOS JESUS CRISTO, NATUREZAS JESUS CRISTO, SACRIFICIO JUIZO FINAL JUSTIFICAGAO, LEGISLACAO, LEGISLADOR LIVRE-ARBITRIO, LIBERDADE J L LUTAESPIRITUAL MAL MANIQUEISMO MARIA, MARTIRIO MATRIMONIO MENTIRA MERITO MILAGRES MILENIO M 104 106 108 110 112 112 4114 115 116 117 118 119 122 124 124 125 125 128 130 131 132 132 136 136 138 139 41 142 144 144 144 145 MONICA MORAL MORTE MUNDO N NASCIMENTO VIRGINAL ° ORAGAO P PASTORAL PAZ PECADO ORIGINAL PECADO PESSOAL PEDRO PELAGIO, PELAGIANISMO PENITENCIA, ARREPENDIMENTO PERDAO PERSEVERANGA POBRES, POBREZA PRAZER PREDESTINAGAO, ELEIGAO PREGAGAO, PRESCIENCIA PROSPERIDADE, PROVIDENCIA Q QUEDA R RECAPITULACAO REDENGAO 146 149 150 152 153 153 155 158 158 161 162 164 165 165 167 169 170 171 176 177 179 180 181 182 182 REGENERAGAO RELIGIAO RESSURREIGAO REVELAGAO SABEDORIA SACRAMENTOS SACRIFICIO SALMOS SALVAGAO SANTIFICAGAO SATANAS, DIABO SEDUGAO SEPTUAGINTA SOFRIMENTO SUPERSTIGAO TEMPO. TENTAGAO TRADICAO UNA “VERDADE vicio VIDA ETERNA VIRTUDE ‘VONTADE DE DEUS Zz ZELO 188 189 189 191 191 193, 194 195 196 196 197 198 199 200 200 201 205 205 206 207 209 210 212 213 214 Prefacio Todo livro em portugués que permita um melhor conhe- cimento das idéias de Agostinho é sempre bem-vindo. Afi- nal, trata-se reconhecidamente de um dos personagens centrais da histéria da igreja e do pensamento cristao. Sao muitas as peculiaridades do bispo de Hipona que o tornam uma figura tao notdvel ¢ influente. Em primeiro lugar, vale lembrar sua experiéncia religiosa dramatica e pungente, que © levou de uma vida libertina a uma conversio marcante e um compromisso genuino com Deus, conforme ele mesmo narra, de forma inédita, nas suas Confissbes. Outra area ple- na de conseqiiéncias foi a sua variegada trajetéria filosdfica e intelectual, primeiro como maniquefsta, depois como neoplaténico (influéncia da qual nunca se afastou totalmen- te) e finalmente como cristo, Um aspecto adicional de Agostinho que o torna fascinan- te foi o fato de ele conciliar uma intensa atividade pastoral com uma reflexao teoldgica igualmente apaixonada e fértil. Foi o seu profundo interesse pelo bem-estar da igreja, nao sé a sua propria diocese no norte da Africa, mas a igreja crista no sentido mais amplo, que 0 levou a envolver-se nas famosas controvérsias que foram tao importantes na articulacao de muitos aspectos da sua teologia. Nos seus escritos antimani- queistas, ele teve a oportunidade de repensar uma questao crucial para tantas 4reas da doutrina crista — a natureza do bem e do mal. Os debates com os cismaticos donatistas 0 impeliram a desenvolver a sua eclesiologia, a sua concepc4o sobre 0 ministério cristo e 0 seu entendimento dos sacra- mentos. Finalmente, a controvérsia contra Peldgio fez que reconsiderasse muitas de suas idéias na 4rea fundamental da doutrina da salvagao. Por causa da profundidade, coeréncia, criatividade e am- plitude do seu pensamento, o tedlogo norte-africano do quin- to século marcou profundamente toda a reflex4o teoldgica posterior, das mais diversas correntes. Influenciou a prépria tradicfo catélica, ainda que a sua igreja tenha rejeitado cer- tos aspectos salientes da sua soteriologia. E afetou decisiva- mente a teologia protestante, a comecat dos seus representantes mais destacados, Martinho Lutero e Jodo Calvino. Este ulti- mo chegou ao ponto de escrever em uma de suas obras: Augustinus totus noster est (Agostinho é todo nosso). Nao seria um exagero dizer que a teologia protestante é essencialmen- te uma forma de agostinismo com adaptagies. Por essas e outras raz6es o presente trabalho do pastor e professor Franklin Ferreira se torna téo relevante. Agostinho —DeAaZ éuma obra de envergadura, que resultou de um imenso e cuidadoso trabalho de pesquisa. Sua parte inicial dé ao leitor uma boa nogao contextual ao oferecer um pano- rama biogrdfico do personagem, no qual sao situadas com clareza as suas idéias teoldgicas e a sua vasta producio literd- ria. Essa seco se encerra com uma valiosa cronologia das datas mais significativas da vida de Agostinho. Em seguida, a coletanea de citagées propriamente dita apresenta excertos do pensamento do grande pensador so- bre 134 tdpicos de grande interesse. Alguns tépicos contém apenas uma breve citacio. Outros, mais significativos, podem conter além de dez citacdes, muitas delas bastantes extensas. E o que é mais importante: essas citagdes sdo retiradas de uma grande variedade de obras de Agostinho, permitindo uma visdo realmente abrangente da sua reflexfo teoldgica. No final do livro est4 um outro recurso valioso para os leitores ¢ pesquisadores, que é uma extensa ¢ rica lista de re- feréncias bibliogréficas. Além de um bom ntimero de notas explicativas em ordem alfabética, o volume também é enri- quecido por 687 notas bibliogrdficas que identificam as fon- tes de um igual ntimero de citagdes. Por causa da amplitude do seu escopo e da maneira criteriosa como foram feitas as selecSes que a compéem, esta obra esta destinada a tornar-se uma importante referéncia nos estudos agostinianos em por- tugués. Irao consult4-la com proveito nao sé os que queiram encontrar rapidamente uma citag4o de Agostinho sobre de- terminado assunto, mas aqueles que desejam ter um contato mais prolongado com as fontes primdrias de um tedlogo tao fascinante e original! Dr. Aubert Souza DE Matos Centro Presbiteriano de Pés-Graduagao Andrew Jumper Agostinho, bispo de Hipona: doutor da gracga Precisamos de um Agostinho ou um Lutero para nos falar novamente; caso contrdrio, a luz da graca de Deus serdé nao somente ofiscada, mas completamente extinta na nossa época. R. C. Sprout Poucos tedlogos cristaos so tao relevantes para nossa épo- ca como Agostinho. Em meio a sua luta pessoal, em sua pe- regrinagao em diregao & fé crista, surgiram perguntas que refletem os conflitos espirituais de muitos cristaos modernos: a Escritura € realmente a fonte tiltima de autoridade para nossas crengas? Como podemos interpretar corretamente a Escritura? O que é exatamente 0 mal? Como o mal entrou na Criagao? Por que somos tao freqiientemente incapazes de fazer o bem? Por que nos encontramos tantas vezes amando coisas erradas? Como podemos aprender a amar 0 bem? Como o pecado tem afetado nossa capacidade de amar o que é certo e odiar 0 que é errado? Como 0 pecado tem afe- tado nossa vontade e personalidade? Se Deus é infinitamen- te poderoso e amoroso, por que o mundo esté cheio de tanto mal e¢ sofrimento? Quem é Deus? Como podemos chegar 4 salvacéo? Onde podemos encontrar a igreja verdadeira? Por seu embate com tais questées e pela profundidade e abrangéncia das respostas que ofereceu a elas, Agostinho se tornou o maior tedlogo cristao desde 0 apdstolo Paulo, diri- gindo a mente e os ensinamentos da igreja por mais de mil anos apés a sua morte. EM PEREGRINACAO O norte da Africa produziu quatro gigantes do cristianis- mo ocidental: Tertuliano, Cipriano, Atandsio e Agostinho. Aurelius Augustinus, mais conhecido como Santo Agos- tinho, nasceu em Tagaste, provincia romana na Numidia — hoje Souk-Ahras, na Argélia —, em 13 de novembro de 354.* Ele foi o primogénito de Patricio, conselheiro municipal e membro da classe média, que permaneceu pagio até as vés- peras de sua morte, e da crista Ménica, que orou fervorosa e constantemente em seu favor, O irmao de Agostinho, Navigio, morreu jovem, ¢ a irma, Perpétua, foi membro dos primei- ros mosteiros. *As duas principais biografias sobre o bispo de Hipona, em portugues, soa de Garry Wits, Santo Agostinho, eo classico escrito por Peter Brown, Santo Agostinho: uma biografia. Esta biografia classica, originalmente publicada em 1967, hé mais de trinta anos é a narrativa-padrao sobse a vida de Agostinho. A edico langada aqui é uma versio atualizada em 2000, apds a descoberta de sermdes ¢ cattas até entao desconhecidos; no epilogo Brown reconhece, dentre ‘outras coisas, que na primeira verséo retratou Agostinho bem mais severo do que ele teria sido. Cf. Eugene Pererson, Take and read: spiritual reading: an annotated list, p. 96: ‘A influencia de Agostinho na vida crista é, em grande parte, benéfica, mas no totalmente. Por set multidimensional e difusa, requer considetagao re- petida, Serdo necessérias muitas visitas para apreciar e entender sua existéncia eas conexdes complexas entre sua experiéncia e a cultura secular, Cada retorno a Agostinho tem seu beneficio: perspicdcia, admoestagao, encanto, sagacidade, prudéncia, anelo, A vida crista ¢ ampla, Agostinho viveu-a plenamente. A biografia de Brown faz justica tanto aos emaranhados complexos dos tempos quanto a simplicidade profunda que veio A existéncia, gradualmente, nessa vida santa”, Para uma introdugao aos temas principais da teologia de Agostinho, cf. Justo L. Gonzatez, Uma histéria do pensamento cristo, v. 2, p. 15-54. Em 365, com 11 anos, Agostinho foi enviado para estu- dar em Madaura. Os idiomas com que se expressava eram o punico (ou cartaginés), a lingua de sua terra, e o latim, que dominava com perfeigao.> Em 370, voltou a Tagaste, ¢ aos 17 anos transferiu-se para Cartago, para estudar retérica e artes liberais. Vim para Cartago e logo fui cercado pelo ruidoso fervilhar dos amores ilfcitos. Ainda n4o amava, e j4 gostava de ser amado, e, na minha profunda miséria, eu me odiava por nao ser bastante miseravel. Desejando amar, procurava um obje- to para esse amor, € detestava a seguranga, as situag6es isen- tas de risco, Tinha dentro de mim uma fome de alimento interior — fome de ti, 6 meu Deus.’ Seu pai, Patricio, morreu no ano seguinte, e Agostinho conheceu uma mulher, com quem se uniu nesse mesmo ano; cla se tornaria sua companheira durante quinze anos — cle a abandonou depois, e néo mencionou seu nome nas obras que escreveu. Em Cartago, ele leu Horténsio, de Cicero. A leitura dessa obra levou-o a se apaixonar pela filosofia. A partir de entao, passou a buscar a verdadeira sabedoria, que acabaria por leva- lo & fé crista.2 Em 373, tornou-se um ouvinte (auditor) maniqueu,‘ sendo esse, provavelmente, o ano do nascimento de seu filho Adeodato, falecido em 390. Em 374, regres- ‘Ele nunca dominou o gtego, em grande parte por causa das “terrfveis ameagas e castigos”, empregados na sala de aula. Cf. AGosTINHO, Confisses, 1.14.23, p. 38. Sendo assim, cresceu nele a baralha entre o querer e 0 nao querer. Agostinho queria tornar-se cristéo. Mas ainda nao. Sabia que nao podia mais interpor dificuldades de ordem intelectual, o que fazia a luta consigo mesmo ser ainda mais intensa. De todos os lados vinham noticias de outras pessoas que haviam feito o que ele nao arriscava fazer, e sentia inveja. Certo dia, em agosto de 386, Agostinho sentou-se no jar- dim de uma casa que alugava com alguns amigos. Ele lia, com um amigo chamado Alfpio, o texto da epistola de Paulo aos Romanos,‘e conversava sobre o evangelho pregado e en- sinado pelo apéstolo, Nesse momento, nao podendo tolerar a companhia de seus amigos, e tampouco a sua, ele fugiu para o outro lado do jardim, onde se encontrou em terrfvel agonia de espirito. ‘Romanos, de todas as epistolas paulinas, provavelmente éa mais importante. Eisso nao s6 por ser a mais extensa. Do ponto de vista doutrinal, é uma das mais ricas ea mais estruturada. Fssa epfstola foi comentada por Martinho Lutero, Jodo Calvino, Karl Barth, John Murray, Lloyd-Jones, John Stott ¢ C. E. B, Cranfield, dentre outros. Sua interpretagio desempenhou um papel decisivo em dois'mo- mentos da histéria da Igreja: no século V, por ocasiao da crise pelagiana e das grandes concrovérsias sobre a liberdade da graca, e no século XVI, quando da Reforma protestante. Historicamente, nenhuma outta epistola exerceu igual in- fluéncia, e seu estudo ¢ vital para a espiritualidade crista. Cf. EF. Bruce, Roma- nos; introdugao e comentario, p. 50-2, Ww Deixci-me, nao sei como, cair debaixo de uma figueira ¢ dei livre curso as l4grimas, que jorravam de meus olhos aos bor- botdes, como sacrificio agraddvel a ti. E muitas coisas eu te disse, no exatamente nestes termos, mas com o seguinte sentido: “E tu, Senhor, até quando? Até quando continuards irritado? Nao te lembres de nossas culpas passadas!”. Sentia- me ainda preso ao passado, e€ por isso gritava desesperada- mente: “Por quanto tempo, por quanto tempo direi ainda: amanhi, amanha? Por que nao agora? Por que nao pér fim agora 4 minha indignidade?”.* Toma ¢ lé. Toma e lé— Tolle, lege. Estas palavras, que algu- ma crianca gritava em suas brincadeiras infantis, chegaram aos ouvidos do abatido Agostinho, que sofria profunda- mente debaixo da figueira, As palavras que as criangas grita- yam pareciam ser um sinal do céu. Pouco antes, Agostinho jogara, em outro lugar do jardim, o texto que estivera lendo. Agora voltou para 14, tomou-o e leu as seguintes palavras do apéstolo Paulo: “Nao em orgias e bebedeiras, nem na devas- sidao ¢ libertinagem, nem nas rixas e citimes. Mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e nao procureis satisfazer os desejos da carne”.’ Nao quis ler mais, nem era necessdrio, Mal terminara a lei- tura dessa frase, dissiparam-se em mim todas as trevas da duvida, como se penettasse no meu coragéo uma luz de cer- teza. Marcando a passagem com o dedo ou com outro sinal qualquer, fechei 0 livro e, de semblante ja tranqitilo, o mos- trei a Alipio.® Nas palavras do apéstolo, Agostinho encontrou 0 que es- tivera procurando por muito tempo. Dedicou-se totalmente a vida crista e deixou sua ocupagao como professor, buscan- do levar a vida de um monge ao converter sua casa em mos- teiro para oragSo, estudo e reflexo. 20 DE MONGE A BISPO Em 387, com 33 anos, na noite da Pascoa de 24 para 25 de abril, Agostinho foi batizado por Ambrésio; seguiram-no seu filho, Adeodato, e 0 amigo de juventude, Alfpio, que viria a ser bispo de Tagaste. Ele abandonou a vida puiblica, indo morar em Cassicfaco, com amigos e familiares. Pouco depois, a piedosa mae de Agostinho, Ménica, faleceu em Ostia Tiberina, perto de Roma. Ele entao voltou para a Africa, indo de novo para ‘Tagaste, onde vendeu suas posses e se dedicou a seu ideal de vida comum: estudo, pobreza, trabalho e meditag4o. Pouco depois, mudou-se para Hipona — que ficava préxima da atual Annaba, na Argélia —, para procurar um lugar onde fundar um mosteiro e viver com seus irmaos. Em 391, foi ptaticamente obrigado a ser ordenado presbitero. Confor- me os planos, fundou um mosteiro e nele viveu, presbitero e monge, no ascetismo e no estudo “segundo a maneira e a regra estabelecida no tempo dos Apéstolos”.” Quatro anos depois, também contra sua vontade, Agosti- nho foi eleito bispo coadjutor. O velho bispo Valério propée a assembléia designar um padre com possibilidades de auxili4-lo, principalmente na pregacao. A presenga de Agostinho nao passara despercebida. Houve um 86 grito: “Agostinho, bispo”. O candidato protesta, recal- citra, chora. Nao adianta nada: a ordenagao estava decidida.® £A andlise meditativa da vida interior, dos desejos e das paixdes ¢ umas das principais caracterfsticas da espiritualidade agostiniana. Meditagao significa re- fletir com nossa menre sobre a Biblia eas verdades de Deus, a fim de amarmosa Deus mais pessoalmente e vivermos como ele quer que vivamos. A meditagio é uma forma de conversa com Deus, ou na presenca de Deus, que é mental, em vez de ser meramente verbalizada. Cf. James Houston, Orar com Deus: desenvolven- do uma transformadora e poderosa amizade com Deus, p. 262-6, Para a diferen- aentrea otagio verbal, meditacfo, contemplagio e oragao extatica, v. p. 249-76, a Logo Agostinho estava ensinando o Credo aos bispos da regido.” Em 396, aos 42 anos, sucedeu ao bispo Valério, em Hipona. O mosteiro que ele fundou acabou por se tornar um semindrio para presb{teros e bispos para toda a Africa. Suas atribuig6es pastorais serviam: 1) A igteja de Hipona, a que estava e sentia-se ligado: a pre- gacao (duas vezes por semana — sdbado e domingo —, as vezes por mais dias consecutivos ou ainda duas vezes ao dia), a audientia episcopalis, que ocupava também o dia todo, o cuidado com os pobres e os érfaos, a formagao do clero, a organizagao dos mosteiros masculinos e femininos, a admi- nistragao dos bens eclesidsticos de que nao gostava, mas tole- rava, a visita aos enfermos; 2) a igreja africana: participagao nos conflitos programados anualmente, freqiientes viagens para responder ao convite dos colegas ou para atender a ne- cessidades eclesidsticas; 3) & igreja universal: controvérsias dogmaticas, resposta a muitas interpelagées, livros e livros sobre as mais variadas quest6es que lhe eram propostas e impostas.? No perfodo de 386 a 396, Agostinho jé tinha escrito de forma consideravel. A primeira categoria de livros escritos nesse perfodo consiste em didlogos filoséficos: Contra os aca- démicos, Soliléquios, A vida feliz e A ordem (386), A imortalt- dade da alma e A gramdtica (387), A grandeza da alma (387-8), O livre-arbttrio (388-95), O mestre (389) eA misi- ca (389-91). O segundo grupo é composto de obras contra os maniqueus: A moral da igreja catélica e A moral dos maniqueus (388), As duas almas (391) ¢ Controveérsia contra “Ao permitir que Agostinho pregasse, Valério infringiu um privilégio zelosa- mente guardado da hicrarquia africana — o de que somente o bispo, sentado em seu trono elevado, devia expor as Escrituras” (Peter BROWN, op. cit., p. 172-3). Fortunato, 0 maniqueu (392). A ultima categoria é composta de obras teoldgicas e exegéticas: Sobre 0 Génesis, contra os maniqueus (386-391), A verdadeira religiéo (389), Questoes diversas (389-96), A utilidade do crer (391), A fé e 0 stmbolo (393), algumas Cartas e alguns Sermées.'° AS PRINCIPAIS CONTROVERSIAS A teologia de Agostinho se desenvolveu em meio a uma série de debates. Em seu primeiro grande debate teoldgico, ele se ocupou dos maniqueus. Na maioria das vezes, a polé- mica é apologética: ele defende a dignidade da igreja e seu direito exclusivo de se chamar Igreja de Cristo.’ Contra o racionalismo de seus adversdrios, Agostinho mostra que a fé nao exclui a inteligéncia — as duas se esclarecem e se refor- cam mutuamente. Defende também o Antigo Testamento como prepatacao do Novo Testamento, e que aquele esta em harmonia e continuidade com este. Deus preserva beleza e bondade na Criacéo. O mal é a corrupgao do bem, resulta- do do livre pecado do homem. Agostinho, sob influéncia do neoplatonismo, e seguindo seu préprio génio, denunciou de forma especial o dualismo metafisico do maniqueismo, com seu conseqiiente panteismo e materialismo.'! No segundo debate teoldgico, Agostinho se viu diretamen- te confrontado com o donatismo. Esse movimento, cujo nome vem de Donato, bispo de Cartago falecido em 332, surgiu durante a perseguicao dos imperadores Décio e Dio- cleciano. Os donatistas, que se percebiam como uma igreja de puros, recusaram a ordenagio de um bispo suspeito de ter entregado as Escrituras por ocasiao de uma petseguicao, ‘Qs maniqueus pretendiam, em vio, remontar seus ensinos a0 préprio Jesus Cristo, ao passo que a verdadeira igreja, por meio dos apdstolos, deriva de Jesus sta autoridade, a qual constitu a base da fé crista. julgando severamente os cristéos que acolhiam com, segun- do lhes parecia, demasiada indulgéncia os chamados /apsi ou traditores — os que haviam tra{do a fé diante do poder romano. Chegaram a rejeitar a validade dos sacramentos administrados por ministros que eles julgavam impuros, pois, para os donatistas, os sacramentos sé teriam valor se o minis- tro fosse digno. Alids, aqueles batizados por ministros indig- nos deviam ser rebatizados por bispos donatistas. Alguns deles comegaram a se reunir em milicias armadas, assaltando e agre- dindo os ministros crist4os, tornando a situag4o extremamente tensa. Para Agostinho, os donatistas eram culpados do pecado de cisma, apartando-se da Igreja de Jesus Cristo, ¢ foi por ocasiao desse conflito que ele elaborou sua teologia dos sa- cramentos e da igreja. Sustentou firmemente que a graca sacramental age por si mesma, ex opere operato (que pode ser traduzido como “em virtude do préprio ato”), sendo irrele- vantes as condicdes espirituais do ministro. Em seu entendi- mento, os sacramentos continuam vélidos porque é Cristo quem os oferece. Ele elaborou, sobretudo, a doutrina da igre- ja, como o corpo de Cristo unificado pelo amor no Espirito. Aqueles que dela se afastam possuem em vio a fé, os sacra- mentos e mesmo as virtudes. Assim, Agostinho foi levado a afirmar uma igreja invisivel, conhecida apenas por Deus — os eleitos, os verdadeiros cristaos —, dentro da igreja visfvel, que era a igreja na terra. Enquanto esperamos a vinda do Senhor, santos e pecadores esto misturados, Somente Deus conhece seus eleitos. Essa diferenciagdo entre a igreja visivel ea igteja invisfvel foi enfatizada por Jodo Calvino e outros tedlogos protestantes. Aos escritos, Agostinho acrescentou encontros e debates. Uma conferéncia publica, realizada em 411, reuniu 286 bis- pos catédlicos e 279 bispos donatistas em Cartago. Os pri- 24 meiros levaram vantagem, com o poder civil intensificando as medidas repressivas. Agostinho sempre tentou afastar as torturas graves e a pena de morte; no entanto, aceitou e até justificou algumas vezes certo grau de coer¢4o, por parte do poder civil, por amor a um bem maior: a salvacdo da alma e a unidade da igreja. Diante do retorno & ordem que disso resultou e das conversées julgadas leais, ele reconheceu a necessidade do uso de represséo por parte do Estado. Mas apenas nessa polémica, por causa de seus desdobramentos, ele buscou apoio no Estado — acima de tudo, Agostinho buscou a paz e a “manutengao da paz pela paz”. As obras desse segundo perfodo, de 396 a 411, contém seus escritos antimaniqueistas posteriores: Contra a epistola de maniqueu (397), Contra Fausto, 0 maniqueu (398) ¢ A natureza do bem (399). Em seguida, houve alguns escritos eclesidsticos: O batismo (400), Conira a epistola de Petiliano (401) e A unidade da igreja (405). Finalmente, houve algu- mas obras teoldgicas e exegéticas: A doutrina cristé (397), Confissbes (398-9), Comentdrio literal ao Génesis (400-15) € A Trindade (400-16). Dessa época, so ainda as obras: Os bens do matriménio, o tnico tratado totalmente dedicado ao casamento, e A santa virgindade (401). Cartas, Sermées e Comentério aos Salmos também foram escritos no perfodo. Dentre tais obras se destacam trés. Nos nove primeiros livros de Confissées, Agostinho relata sua vida até a morte de Monica: sua miséria no pecado ¢ a lenta ascensao para a pre- senca de Deus. Essa obra ndo é uma narrativa ou didrio, mas uma longa orac&o, em que o autor recorda na presenga de Deus os 34 anos, meditando sobre sua peregrinagao espiri- tual, revendo a busca pessoal por Deus confessada no peca- do e proclamada na soberania e liberdade da graga de Deus, que lhe concede misericérdia e 0 perdoa. O décimo livro apresenta uma anédlise psicolégica de seu estado de espirito 25 no perfodo da redag&o da obra, ¢ os trés livros finais contém, partindo da nartagio bfblica da Criagdo, consideragdes so- bre Deus, 0 mundo, o tempo e a eternidade.} Em A doutrina cristd, na verdade um manual de herme- néutica e pregagao, Agostinho estabeleceu importantes prin- c{pios de interpretagdo biblica. Nos primeiros trés livros, oferece alguns deles: 1. A fé é um pré-requisito fundamental para o intérprete da Palavra de Deus. 2. Deve-se considerar o sentido literal ¢ histérico do texto. 3. O Antigo Testamento ¢ um documento cristolégico. 4. O propésito do expositor ¢ descobrir 0 sentido do texto e nao o de atribuir-lhe sentido. 5. O credo ortodoxo deve controlar a interpretagao das Es- crituras. G. O texto nao deve ser estudado isoladamente, mas no seu contexto bfblico geral. 7. Se o texto for obscuro, nao se pode tornar matéria de fé. As passagens obscuras devem dar lugar as passa- gens claras. 8. O Espirito Santo nao dispensa o aprendizado das Ifnguas originais, geografia, hist6ria, ciéncias naturais, filosofia etc. 9. As Escrituras nao devem ser interpretadas de modo a se contradizerem, Para isso, deve-se considerar a progressi- vidade da revelacao.!> 'Eugene PETERSON diz: “A espiritualidade envolve levar nossa experiéncia pessoal a sétio como matéria-prima para a redengio e santidade, examinando seu material, nossa vida, com tanto rigor quanto o fazemos coma Escriturae douttina. As Confissdes sao as balizas desse exercicio” (op. cit., p. 3). Para James Houston, “enquanto ndo lermos as Confissdes de Agostinho, nao teremos idéia da honesti- dade que podemos expressar diante de Deus” (op. cit., p. 253). Cf. tb. Peter Brown, op. cit,, p. 195-224. 26 No livto final, que trata da oratéria, Agostinho estabelece uma relacdo entre os princfpios da retérica e a tarefa da pre- gacdo. Ele insistiu que a pregacao tem trés propésitos: ins- truir, agradar e persuadir, e afirmou que o pregador é 0 que interpreta e ensina as verdades divinas. Também deu énfase a necessidade de haver um acordo entre a vida e as palavras do pregador, bem como a necessidade de oracgo como um preparo para a pregacao do sermio. Quem quiser conhecer ¢ ensinar deve, na verdade, primeira- mente aprender tudo o que € preciso ensinar, e adquirir 0 talento da palavra como convém a um homem da igteja. Mas, no momento mesmo de falar, que pense nestas palavras do Senhor, que se aplicam particularmente ao coracao bem disposto: “Quando vos entregarem nao fiqueis preocupados em saber como ou 0 que haveis de falar, porque ndo sereis vés que estareis falando naquela ora, mas o Espirito de vosso Pai é que falard em vés”." A Trindade é a obra dogmatica mais importante de Agos- tinho, que levou dezesseis anos para termind-la. Estd dividi- da em duas partes: a primeira, com uma énfase biblica e teoldégica, vai dos livros ] ao VII. Ele aceitou sem discussao a verdade que existe um s6 Deus, que ¢ Trindade, e que o Pai, o Filho ¢ 0 Espirito Santo so simultaneamente distintos ¢ coessenciais, numericamente um quanto 4 substancia. Na explicagao que faz do mistério trinitdrio, Agostinho concebe a unidade da natureza divina, antes de considerar as Pessoas divinas em separado. Sua formula trinitariana é: uma sé na- tureza subsistindo em trés Pessoas. Essas trés Pessoas se apro- priam de modo distinto da mesma natureza: o Pai sem princfpio, o Filho por geracao eterna do Pai e o Espirito San- to espirado pelo Pai ¢ pelo Filho. Seus escritos est4o repletos de declaragdes detalhadas quanto a isso. 27 A segunda parte, do livro VIII ao XV, tem um enfoque psicoldgico ¢ filosdfico. Nessa parte, Agostinho desenvolve as analogias trinitarianas, que ele descobre especialmente na alma humana, criada a imagem de Deus. E esse ultimo pon- to que constitui o elemento de maior originalidade no trata- do. Freqiientemente tem sido dito que a principal analogia trinitdria dessa segdo é a do amante (amans), do objeto ama- do (quod amatur) e do amor que os une (amor). Porém, a discussiéo de Agostinho de tal analogia ¢ bastante curta, e ¢ apenas uma transicdo para aquela que considera a analogia mais importante, a da atividade da mente quando dirigida para si mesma ou, melhor ainda, para Deus. As analogias trinitarianas resultantes foram: 1. A mente, seu conhecimento de si mesma e seu amor de si mesma. 2. A meméria ou 0 conhecimento potencial da mente de si mesma, o entendimento, isto é, sua apreensdo de si mesma 4 luz das raz6es eternas ea vontade, ou amor de si mesma, pela qual 0 processo do ato de conhecimen- to € posto em movimento. 3. A mente, lembrando, conhecendo e amando ao pré- ptio Deus. Agostinho considera que apenas quando a mente focaliza a si mesma, com todas as suas poténcias de lembranga, en- tendimento e amor a seu Criador, ¢ que a imagem de Deus, que ela traz em si, corrompida pelo pecado, pode ser plena- mente restaurada. Entao, seguindo o entendimento agosti- niano, apenas no préprio Deus estd a base para a razio e a linguagem humana, para nossa capacidade de escolha, para nossa profunda diversidade de emogoes, para a apreciacdo da beleza, para nossa propensio A criatividade, para nosso 28 senso de ética ¢ cternidade, para nosso desejo de relaciona- mento social.!° No terceiro e mais acalorado debate teoldgico de Agosti- nho, comega a controvérsia sobre a doutrina da graca.! Peld- gio, nascido na Gra-Bretanha, famoso por sua disciplina moral, ao chegar a Roma, em torno do ano 400, comegou a ensinar os seguintes pontos: Addo foi criado mortal e teria morrido quer tivesse pecado, quer no; 0 pecado de Addo contaminou s6 a ele e nao a raga humana; as criangas recém- nascidas estéo naquele estado em que cstava Adao antes da queda; a raga humana inteira nem morte por causa da mor- te de Adao, nem ressuscita pela ressurreigao de Cristo; a Lei, tanto quanto o Evangelho, conduz ao Reino dos céus; mes- mo antes da vinda de Cristo houvera homens sem pecado.'¢ Para Peldgio, nao haveria a necessidade de alguma graca es- pecial de Deus, pois ela era algo que estaria presente em to- dos os lugares, em todo momento. Esses ensinos logo chegaram ao norte da Africa. Agostinho se opés a Peldgio. Para isso, ele se lembrou de como foi dificil sua conversao, em como ele orava: “Por quanto tempo, por quanto tempo direi ainda: amanh4, amanha? Por "Para mais informagées sobre a soteriologia na época pré-nicena, antes da controvérsia pelagiana, v. Reinhold Szeperc, Manual de historia de las doctrinas, v. 1, p. 325-8. Seeberg nota que a atitude dos pais gregos sobre o problema do livre-arbitrio era fundamentalmente diferente dos pais latinos. Aqueles pattem do intelecto, a0 qual a vontade esté subordinada e por meio do qual opera. O que co homem pensa poders fazer, Os latinos, ao contrétio, concedem a vontade uma posi aurénoma. Os pais gregos consideram que o homem opera o comego de suasalvagao, e que depois Deus cooperatia com a gtaca. Os pais latinas, por causa da énfase na doutrina do pecado original, consideram que Deus comega a obra, edepois o homem cooperaria com sua vontade, enfatizando muito fortemente a obra da graga, ainda que nao-exclusiva, Os mestres orientais enfatizaram entao uma sinergia divina, e os ocidentais, uma sinergia humana, 29

Você também pode gostar