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A caixa de Pandora: um olhar sobre os mitos e medos na representação da


mulher

Article · January 1990

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1 author:

Cybele Almeida
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
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�real.dade

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MULHER E
E DUCACÃO
Número especial organizado por

Eliane Marta Teixeira Lopes (UFMG)


Guacira Lopes Louro (UFRGS)
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Gênero: uma categoria útil de análise histórica


Joan Scott 5
"Histoire de Femmes": uma revisão bibliográfica
Eliane Marta Teixeira Lopes 23
Lembranças de velhas colonas italianas: trabalho, família e educação
Guaclra Lopes Louro 3.3
As mulheres professoras e o ensino estatal
Helena Costa Araújo 45
E no princípio era o verbo...ou reflexões sobre a relação da mulher com a fala política
Sllvana Maria Leal C6ser 59
A Caixa de Pandora: um olhar sobre os mitos e os medos na representação da mulher
Cybele Croasettl de Almeida 67
Estar no feminino: mal-estar?
M6nlca Almeida Belisário 81
Como teorizar o patriarcado?
R. W. Connell 85

EdHoração: Aldo Luiz Jung

Capa: Kundry Lyra Klippel

Aulnatur.. e número. avul_


Educação" Realidade é uma publicação semestral da Pedidos de essinaturas devem ser enviados ao seguinte
Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio endereço, juntamente com cheque cruzado em nome de
Grande do Sul. Educação e Realidade:

EdHor..: Alceu R. Ferrari e Rovllio Costa Educação e Realidade


Faculdade de Educação
Conselho edHorlal: Balduino Antonio Andreola (prasi­ Universidade Federal do Rio Grande do Sul
dente), Alceu Ferrari, Aldanei Areias, Fernando Becker, Av. Paulo da Gama, s/no, 8" andar
Maria Estela Dal Pai Franco, Mérion Campos Bordas, 90049 - Porto Alegre - AS
Norma Regina Marzola, Rosa M- Hessel Silveira, Rovllio Fone (0512) 25 1067 e 27 5867
Costa, Rute Vivian Ângelo Baquero Brasil

Organizador.. deate número: Eliane Marta Teixeira Assinatura para 1990: 13 BTNf
Lopes. Guacira Lopes Louro Número avulso: 8 BTNf
No exterior, via aérea:
Secretária: Jacy Busato Assinatura 1990: USS 15.00
Número avulso: USS 8.00
Composição: Central de Produções da Faculdade de
Educação ISSN OHlO - 3143
Gender, n, a grammatical term on/y. To das inexploradas.
ta/k of persons or creatures of masculi­ Explícita, porque o uso gramatical implica em
ne or feminine gender, meaning of the regras que resultam da atribuição do masculino
male or female sex, is either a jocularity
ou do feminino; plena de possibilidades inexplo­
(permissible or not according to con­
radas, porque em muitas línguas indo-européias
text) or a blunder (Fowler's Dictionnary
há uma terceira categoria - o sexo impreciso ou
of Modem English Usage, Oxford 1940).
o neutro.
Na sua utilização mais recente, "gênero"
queles que se propõem a codificar os parece primeiro ter feito sua aparição entre
A sentidos das palavras lutam por uma causa as feministas americanas que queriam insistir
perdida, porque as palavras, como as idéias e sobre o caráter fundamentalmente social das
as coisas que elas são feitas para significar, distinções fundadas sobre o sexo. A palavra
têm uma história. Nem os professores de Ox­ indicava uma rejeição ao determinismo biológi­
ford nem a Academia francesa têm sido inteira­ co implícito no uso de termos como "sexo" ou
mente capazes de represar, de captar e fixar os "diferença sexual". O gênero enfatizava igual­
sentidos resgatados do jogo da invenção e da mente o aspecto relacional das definições
imaginação humana. Mary Wortley Montagu normativas da feminidade. Aquelas que esta­
juntou mordacidade à sua denúncia do "belo vam preocupadas pelo fato de que a produção
sexo" ("meu único consolo de pertencer a este de estudos femininos se centrava sobre as
gênero é ter certeza de que eu jamais casarei mulheres de maneira demasiado estreita e
com uma delas") fazendo um uso deliberada­ separada utilizaram o termo "gênero" para
mente errôneo da referência gramatical. Através introduzir uma noção relacional em nosso
dos séculos, as pessoas utilizaram de modo vocabulário de análise. Segundo esta opinião,
figurado os termos gramaticais para evocar os as mulheres e os homens eram definidos em
traços de caráter ou os traços sexuais. Por termos recíprocos e nenhuma compreensão de
exemplo, a utilização proposta pelo Dictionnaire um deles podia ser alcançada por um estudo
de la langue française de 1876, é: "Não se sabe separado. Assim, Natalie Davis afirmava, em
de que gênero ele é, se ele é macho ou fêmea, 1975: "Penso que nós deveríamos nos interes­
diz-se de um homem muito dissimulado, do sar pela história tanto dos homens como das
qual não se conhece os sentimentos". E Glad­ mulheres, e que não deveríamos trabalhar
stone fazia esta distinção em 1878: "Atena não somente sobre o sexo oprimido, assim como
tinha nada do sexo além do gênero, nada da um historiador das classes não pode fixar seu
mulher além da forma". Mais recentemente - olhar apenas sobre os camponeses. Nosso
demasiado recente para que pudesse encontrar objetivo é compreender a importância dos
seu caminho nos dicionários ou na Encyclope­ sexos dos grupos de gênero no passado
dia of Social Sciences as feministas começa­
-
histórico. Nosso objetivo é descobrir o alcance
ram a utilizar a palavra "gênero" mais seriamen­ dos papéis sexuais e do simbolismo sexual nas
te, num sentido mais literal, como uma maneira diferentes sociedades e períodos, é encontrar
de se referir à organização social da relação qual era o seu sentido e como eles funciona­
entre os sexos. A referência à gramática é ao vam para manter a ordem social e para mu­
mesmo tempo explícita e plena de possibilida- dá-Ia".

EDUCAÇÃO E REAUDADE, Porto Alegre, 16(2):5-22, Jul/dez. 1990 5


Além disso, o que é talvez mais importante, implicam uma idéia de causalidade econômica
o "gênero" era um termo proposto por aquelas e ,uma visão do caminho pelo qual a história
que sustentavam que a pesquisa sobl"e as avançou dialeticamente. Não há este tipo de
mulheres tr;mSformaria fundamentalmente os clareza ou de coerência nem para a categoria
paradigmas no interior de cada disciplina As de raça nem para a de gênero. No caso do
pesquisadoras feministas assinalaram muito gênero, seu uso implicou num leque tanto de
cepo que o estudo das mulheres não acrescen­ posições teóricas como de referências descriti­
taria somente, novos temas, mas que ele iria vas das relações entre os sexos.
igualmente. impor um reexame; critico das pre­
missas e dos critérios do trabalho científico As(os) historiadoras(es)feministas que, como .
existente. "Nós aprendemos", escreviam três a maioria dos historiadores são formadas(os)
historiadoras feministas "que inscrever as mu­ para estarem mais à vontade com a descrição
lheres na história' implica necessariamente a do que com a teoria, têm todavia procurado
redefinição e o alargamento das noções tradi­ cada vez mais encontrar formulações teóricas
cionais daquilo que é historicamente importan­ utilizáveis. Elas(eles) têm feito isto ao menos
te, para incluir tanto a experiência pessoal e por duas razões. Primeiro, porque a proliferação
subjetiva quanto as atividades públicas e políti­ de estudos de caso, na história de mulheres,
cas. Não é demais dizer que, tão hesistantes parece exigir uma perspectiva sintética que
quanto possam ser os começos reais de hoje, possa explicar as continuidaçles e descontinui­
uma tal metodologia implica não somente uma dades e dar conta das desigualdades persis­
nova história das mulheres mas igualmente tentes, mas também das experiências sociais
uma nova história". A maneira pela qual esta radicalmente diferentes. A seguir porque a
nova história iria por sua vez incluir a experiên­ defasagem entre a alta qualidade dos trabalhos
cia das mulheres e dela dar conta dependia da recentes de história das mulheres e seu status
medida na qual o gênero podia ser desenvolvi­ marginal em relação ao conjunto da disciplina
do como uma categoria de análise. Aqui as (que pode ser mensurado pelos manuais,
analogias com a classe (e a raça) eram explíci­ programas universitários e monografias) mostra
tas; de fato as pesquisadoras feministas que os limites das abordagens descritivas que não
tinham uma visão política mais global apelavam questionam os conceitos dominantes no interior
regularmente a estas três categorias para a da disciplina, ou ao menos que não questionam
escrita de uma nova história. O interesse pelas estes conceitos de modo a abalar seu poder e,
categorias de classe, de raça e de gênero, talvez a transformá-los. Não foi suficiente para
assinalava, primeiramente, o engajamento do asCos) historiadoras(es) de mulheres provar seja
pesquisador numa história que incluía os dis­ que as mulheres tiveram uma história, seja que
cursos das(os) oprimidas(os) e numa análise do as mulheres participaram das principais desor­
sentido e da natureza de sua opressão; assina­ dens políticas da civilização ocidental. No que
lava, em seguida, a consideração pelos pesqui­ se refere à história das mulheres, a reação da
sadores e pesquisadoras de que as desigualda­ maioria das(os) historiadoras(es) não feministas
des de poder são organizadas segundo estes foi o reconhecimento e em seguida a devolução
três eixos, pelo menos. da história das mulheres a um domínio separa­
A litania classe, raça e gênero sugere uma do ("as mulheres tiveram uma história separada
paridade entre os três termos mas, em realida­ daquela dos homens, em conseqüência deixe­
de, isto não é assim. Enquanto que a categoria mos as feministas fazerem a história das mulhe­
"classe" repousa sobre a teoria complexa de res que certamente não nos concerne"; ou "a
Marx (e seus desenvolvimentos ulteriores) da história das mulheres concerne ao sexo e à
determinação econômica e da transformação família e deveria se fazer separadamente da
histórica, as de "raça" e de "gênero" não carre­ história política e econômica"). No que se refere
gam associaçOes semelhantes. Não há unanimi­ à participação das mulheres na história, a
dade entre aqueles que utilizam os conceitos reação foi um interesse mínimo, no melhor dos
de classe. Alguns pesquisadores se servem de casos ("minha compreensão da Revolução
noções weberianas, outros utilizam a classe Francesa não muda aprendendo que as mulhe­
como uma fórmula momentâneamente heurísti­ res dela participaram"). O desafio colocado por
ca Não obstante, quando nós invocamos a este tipo de reações é, em última análise, um
classe, nós trabalhamos com ou contra uma desafio teórico. Ele exige não somente a rela­
série de definiçOes que, no caso do marxismo, ção entre experiências masculinas e femininas

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no passado, mas também o laço entre a histó­ (contrariamente às práticas habituais) que as
ria do passad o e as práticas históricas atuais. mulheres são sujeitos históricos válidos, o
Como o gênero funciona nas relações sociais "gênero" inclui as mulheres, sem lhes nomear,
humanas? Como o gênero dá um sentido à e párece assim não constituir uma ameaça
organização e à percepção do conhecimento crítica. Este uso de "gênero" é um aspecto que
histórico? As respostas dependem do gênero se poderia chamar de busca de uma legitimida­
como categoria de análise. de institucional para os estudos feministas, nos
Na sua maioria, as tent,ativas de teorização anos ao.
do gênero não conseguiram sair dos quadros Mas este é apenas um aspecto. "Gênero"
tradicionais das ciências sociais: elas utilizam tanto é substituto para mulheres como é igual­
formulações provadas que propõem explica­ mente utilizado para sugerir que a informação
ções causais universais. Estas teorias tiveram, sobre o assunto "mulheres" é necessariamente
no melhor dos casos, um caráter limitado informação sobre os homens, que um implica o
porque elas têm tendência a incluir generaliza­ estudo do outro. Esta utilização insiste sobre o
ções reduzidas ou demasiado simples; estas fato de que o mundo das mulheres faz parte do
destr6em não somente a complexidade. do mundo dos homens, que ele é criado em e por
sentido que propõe a história, como disciplina, este mundo. Este uso rejeita a validade inter­
da causalidade Social, mas também o engaja­ pretativa da idéia de esferas separadas e
mento feminista na elaboração de análises que sustenta que estudar as mulheres de maneira
levem à transformação •. isolada perpetua o mito de qüe uma esfera, a
Um exame crítico destas teorias exporá seus experiência de um sexo, tenha muito pouco, ou
limites e permitirá propor uma· abordagem nada, a ver com o outro sexo. Além disso, o
alternativa. gênero é igualmente utilizado para designar as
As abordagens utilizadas pela maioria das­ relações sociais entre os sexos. Seu uso rejeita
(os) historiadoras(es) dividem-se em duas explicitamente explicações biológicas como
categorias distintas. A primeira é essencialmen­ aquelas que encontram um denominador
te descritiva; quer dizer, ela se refere à existên­ comum, para diversas formas de subordinação,
cia de fenômenos ou de realidades sem inter­ no fato de que as mulheres têm as crianças e
pretar, explicar ou atribuir uma- causalidade. O que os homens têm uma força muscular superi­
segundo uso é de ordem causal; ele elabora or. O gênero torna-se, antes, uma maneira de
teorias sobre a natureza dos fenômenos e das indicar "construções sociais" - a criação inteira­
realidades, buscando compreender como e mente social de idéias sobre os papéis adequa­
porque estas tomam as formas que têm. dos aos homens e às mulheres. É uma maneira
Na sua utilização recente mais simples, de se referir às origens exclusivamente sociais
"gênero" é sinônimo de "mulheres". Os livros e das identidades subjetivas dos homens e das
artigos de todos os tipos que tinham como mulheres. O gênero é, segundo esta definição,
assunto a história das mulheres substituíram, uma categoria social imposta sobre um corpo
nos últimos anos, nos seus títulos o termo sexuado. Com a proliferação dos estudos dos
"mulheres" por "gênero". Em certos casos, sexos e da sexualidade, o gênero tornou-se
mesmo se esta utilização se refere vagamente uma palavra particularmente útil, pois ele ofere­
a certos conceitos, ela visa de fato fazer reco­ ce um meio de distinguir a prática sexual dos
nhecer este campo de pesquisas. Nestas papéis sexuais consignados às mulheres e aos
circunstâncias, o uso do termo "gênero" visa homens. Ainda que os pesquisadores reconhe­
indicar a erudição e a seriedade de um traba­ çam a relação entre o sexo e (o que os sociólo­
lho, pois "gênero" tem uma conotação mais gos da família chamaram) os "papéis sexuais",
objetiva e neutra do que "mulheres". O "gênero" estes pesquisadores não traçam entre os dois
parece se integrar na terminologia científica das uma ligação simples ou direta. O uso de "gêne­
ciências sociais e, então, se dissociar da políti­ ro" põe a ênfase sobre todo um sistema de
ca (pretensamente ruidosa) do feminismo. relações que pode incluir o sexo, mas ele não
Nesta utilização, o termo "gênero" não implica é diretamente determinado pelo sexo, nem
necessariamente uma tomada de posição sobre determina diretamente a sexualidade.
a desigualdade ou o poder, ainda mais que ele Estes usos descritivos do gênero foram
não designa a parte lesada (e até o presente empregados pelas(os) historiadoras(es), na
invisíveQ. Enquanto que o termo "história das maioria dos casos, para delimitar um novo
mulheres" revela sua posição política afirmando terreno. À medida de que os historiadores

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sociais se voltavam para novos objetos de aqui consagrar-lhes um pouco de tempo.
estudo, o gênero revelava temas como as Somente através deste exercicio, pode-se
mulheres, as crianças, as famílias e as ideolo­ avaliar a utilidade dessas teorias e, talvez,
gias dos gêneros. Em outras palavras, este uso articular uma abordagem teórica mais sólida
do gênero não se refere nada mais do que aos As(os) historiadoras(es) feministas têm em­
dominios - tanto estruturais quanto ideológicos pregado toda uma série de abordagens na
- que implicam as relações entre os sexos. análise do gênero, mas estas podem ser reme­
Devido a que na aparência, a guerra, a diplo­ tidas a três posições teóricas. A primeira, uma
macia e a alta política não têm a ver explicita­ tentativa inteiramente feminista, empenha-se em
mente com estas relações, o gênero parece explicar as origens do patriarcado. A segunda
não se aplicar a estes objetos e então não se situa no interior de uma tradição marxista e
parece pertinente para a reflexão dos historia­ busca um compromisso com as críticas feminis­
dores que trabalham sobre- a política e o poder. tas. A terceira, fundamentalmente dividida entre
Isto tem como resultado a adesão à uma certa o p6s-estruturalismo francês e as teorias de
visão funcionalista, fundamentada, em última relação do objeto, inspira-se em diversas esc0-
análise, sobre a biologia e a perpetuação da las de psicanálise para explicar a produção e a
idéia de esferas separadàs no registro da reprodução da identidade de gênero do sujeito.
história (a sexualidade ou a política, a família ou As teóricas do patriarcado colocaram sua
a nação, as mulheres ou os homens). Mesmo atenção sobre a subordinação das mulheres e
se, nesta utilização, o termo gênero afirme que encontraram a explicação desta na "necessida­
as relações entre os sexos são sociais, ele de" masculina de dominar as mulheres. Na
nada diz sobre as razões pelas quais estas adaptação engenhosa que Mary O'Brien fez de
relações são construídas como são, não diz Hegel, ela definiu a dominação masculina como
corno elas funcionam ou como elas mudam. No o efeito do desejo dos homens de transcender
seu uso descritivo, o gênero é então um con­ sua privação dos meios de reprodução da
ceito associado ao estudo das coisas relativas espécie. O princípio de continuidade da gera­
às mulheres. O gênero é um novo tema, um ção restitui a primazia da paternidade e obscu­
novo domínio de pesquisas históricas, mas ele rece o duro trabalho fornecido pelas mulheres
não tem a força de análise suficiente para na maternidade e a realidade social disto. A
questionar (e mudar) os paradigmas históricos fonte da libertação das mulheres reside em
existentes. "uma compreensão adequada do processo de
Certos historiadores estavam, certamente, reprodução", numa avaliação das contradições
conscientes deste problema; daí os esforços entre a natureza do trabalho reprodutivo das
para empregar teorias que possam explicar o mulheres e a mistificação ideológica (masculina)
conceito de gênero e dar conta da transforma­ deste. Para Sulamith Firestone, a reprodução
ção histórica. De fato, o desafio consistia em era igualmente a "amarga armadilha" das mu­
reconciliar a teoria, que estava concebida em lheres. No entanto, na sua análise mais materia­
termos universais, com a história, que se enga­ lista, a libertação delas viria das transformações
java no estudo dos contextos específicos e da na tecnologia da reprodução que poderia, num
transformação fundamental. O resultado foi futuro não demasiadamente longínquo, eliminar
muito eclético: os empréstimos parciais que a necessidade dos corpos das mulheres como
invalidam a força de análise de uma teoria agentes da reprodução da espécie.
particular ou, pior, que empregam seus precei­ Se a reprodução era a chave do patriarcado
tos sem ter consciência de suas implicações; para algumas, para outras a resposta encontra­
ou as tentativas para dar conta da transforma­ va-se na sexualidade em si mesma. As formula­
ção que, por terem como molde teorias univer­ ções audaciosas de Catherine MacKinnon são
sais, não fazem mais do que ilustrar temas suas, mas são, ao mesmo tempo características
invariantes; ou ainda estudos maravilhosos e de uma certa abordagem: "A sexualidade está
cheios de imaginação nos quais a teoria está para o feminismo assim como o trabalho está
todavia tão escondida que estes estudos não para o marxismo: é aquilo que mais nos perten­
podem servir de modelos para outras pesqui­ ce e o que todavia nos é mais roubado". A
sas. Devido a que, freqüentemente, as teorias reificação sexual é o processo primário de
nas quais as(os) historiadoras(es) se inspiraram submetimento das mulheres. Alia o ato à pala­
não foram claramente articuladas em todas as vra, a construção à expressão, a percepção à
suas implicações, parece digno de interesse constrição, o mito à realidade. O homem beija

8
a mulher; sujeito verbo objeto". Continuando mais histórica, já que elas são guiadas por uma
sua analogia com Marx, MacKinnon propõe teoria da história. Mas, sejam quais forem as
como método de análise feminista não o mate­ variações e adaptações, o fato que elas se
rialismo dialético mas os grupos de consciên­ imponham a exigência de encontrar uma expli­
cia Expressando a experiência partilhada de cação "material" limitou ou, ao menos, retardou
reificação, sustentava ela, as mulheres são o desenvolvimento de novas direções de análi­
levadas a compreender sua identidade comum se. No caso onde se avança uma solução
e são conduzidas à ação política Assim para fundada sobre um duplo sistema (composto de
MacKinnon, a sexualidade se situava fora da dois domínios, o patriarcado e o capitalismo,
ideologia e era suscetível de ser descoberta que são separados mas em interação), como
pela experiência como um fato imediato. Na no caso onde a análise desenvolvida se refere
análise de MacKinnon, ainda que as relações mais estritamente aos debates marxistas orto­
sexuais sejam definidas como sociais, não há doxos sobre os modos de produção, a explica­
nada - salvo a desigualdade inerente à relação ção das origens e das transformações dos
em si mesma - que possa explicar porque o sistemas de gênero acha-se fora da divisão
sistema de poder funciona assim. As relações sexual do trabalho. Famílias, lares e sexualida­
desiguais entre os sexos são, no fim das con­ des são, no fim das contas, todos, produtos da
tas, a fonte das relações desiguais entre os transformação dos modos de produção. É
sexos. Apesar de afirmar que a desigualdade, assim que Engels concluía suas explorações
tendo suas origens na sexualidade, é integrada sobre A Origem da Famflia , é lá que repousam
em "todo um sistema de relações sociais", ela enfim as análises da economista Heidi Hart­
não explica como este sistema funciona. mann. Hartmann insiste sobre a necessidade
As teóricas do patriarcado questionaram a de considerar o patriarcado e o capitalismo
desigualdade entre os homens e as mulheres como dois sistemas separados, mas em intera­
de diversas maneiras importantes mas, para ção. Mas à medida que ela desenvolve sua
as(os) historiadoras(es), suas teorias têm pro­ argumentação, a causalidade 9conômica tor­
blemas. Primeiro, enquanto elas propõem uma na-se prioritária e o patriarcado está sempre se
análise interna ao sistema de gênero, elas desenvolvendo e mudando em fun�o das
afirmam igualmente a prioridade deste sistema relações de produção. Quando ela sugere que
em relação à organização social em seu con­ "é necessário eliminar a divisão sexual do
junto. Mas as teorias do patriarcado não mos­ trabalho enquanto tal para terminar com a
tram como a desigualdade de gênero estrutura dominação masculina", ela entende por isso
todas as outras desigualdades ou como o colocar um fim à segregação profissional se­
gênero afeta estes domínios da vida que não gundo os sexos.
parecem ser a ele ligados. Em segundo lugar, Os primeiros debates entre as feministas
a análise permanece baseada sobre a diferença marxistas giraram em torno dos mesmos
física, que a dominação toma a forma de apro­ problemas: a rejeição do essencialismo daque­
priação do trabalho reprodutivo da mulher pelo les que sustentavam que "as exigências da
homem ou a da reificação sexual das mulheres reprodução biológica" determinavam a divisão
pelos homens. Toda a diferença física se reves­ sexual do trabalho sob o capitalismo; o caráter
te de um caráter universal e imutável, mesmo fútil de integração dos "modos de reprodução"
se as teóricas do patriarcado levam em consi­ nos debates sobre os modos de produção (a
deração a existência de mutações nas formas reprodução permanece uma categoria oposta
e nos sistemas de desigualdaes de gênero. e não tem um status equivalente àquele do
Uma teoria que repousa sobre a variável única modo de produção); o reconhecimento que os
da diferença física é problemática para as(os) sistemas econômicos não determinam de
historiadoras(es): ela pressupõe um sentido maneira direta as relações de gênero e que, de
permanente ou inerente ao corpo humano - fato, a subordinação das mulheres é anterior ao
fora de uma construção social ou cultural - e capitalismo e continua sob o socialismo; a
em conseqüência a não historicidade do gêne­ busca, apesar de tudo, de uma explicação
ro em si mesmo. De um certo ponto de vista, a materialista que exclua as diferenças físicas
história torna-se um epifenômeno que oferece naturais. Uma tentativa importante de sair deste
variações intermináveis para o mesmo tema círculo veio de Joan Kelly, em seu ensaio A
imutável de uma desigualdade de gênero fixa dupla visao da teoria feminista, onde ela susten­
As feministas marxistas têm uma abordagem tava que os sistemas econômicos e os sistemas

9
de gênero agiam reciprocamente uns sobre os por outro lado, nenhum outro ensaio, salvo este
outros para produzir as experiências sociais e de Benjamim, aborda seriamente as questões
históricas; que nenhum dos dois era causal, teóricas que este coloca. Há antes um pressu­
mas que os dois ·operam simultaneamente para posto tácito que percorre o volume, segundo o
reproduzir as estruturas socio-econômicas e as qual o marxismo poderia ser ampliado para
estruturas de dominação masculina de uma incluir as discussões sobre a ideologia, a cultu­
ordem social particular". A idéia de Kelly de que ra e a psicologia, e que esta ampliação será
os sistemas de gênero teriam uma existência efetuada pelo viés de pesquisas sobre dados
independente constituiu uma abertura concep­ concretos como os que são empreendidos na
tual decisiva, mas sua vontade de permanecer maioria dos artigos. A vantagem de uma tal
dentro de um quadro marxista a levou a colocar abordagem é que ela evita as divergências
a ênfase na causalidade econômica, mesmo no agudas; sua desvantagem é que ela deixa
que concerne à determinação das estruturas de intacta uma teoria já inteiramente articulada,
gênero: ·A relação entre os sexos opera em que mais uma vez conduz a relações de sexo
função das estruturas s6cio-econômicas e fundadas sobre relações de produção.
através daquelas; mas também em função das Uma comparação entre as tentativas das
estruturas de gênero·. Kelly introduziu a idéia feministas marxistas americanas e as de suas
de uma ·realidade social fundada sobre o sexo· homólogas inglesas, mais estreitamente ligadas
mas ela tinha a tendência de sublinhar o cará­ à política de uma tradição marxista potente e
ter social mais do que sexual desta realidade e, viável, revela que as inglesas saíram-se pior ao
freqüentemente , o uso que ela fazia do ·social· colocar em questão os entraves de explicações
era concebido em termos de relações econômi­ estritamente deterministas. Esta dificuldade
cas de produção. expressa-se de maneira mais espetacular nos
A análise da sexualidade que foi mais longe, debates recentes, surgidos na New Left Review,
entre as feministas marxistas americanas, entre Michelle Barret e seus críticos, os quais a
encontra-se em Powers of Desire, um volume acusavam de abandonar uma análise materialis­
de ensaios publicado em 1983. Influenciadas ta da divisão sexual do trabalho no capitalismo.
pela importância crescente que militantes Ela se expressa também pelo fato de que as
políticos e pesquisadores davam à sexualidade, pesquisadoras que tinham inicialmente empre­
pela insistência do filósofo francês Michel endido uma tentativa feminista de reconciliação
Foucault no fato de que a sexualidade é produ­ entre a psicanálise e o marxismo, e que tinham
zida dentro de contextos históricos, pela convic­ insistido sobre a possibilidade de uma certa
ção de que a ·revolução sexual· contemporânea fusão entre os dois, tenham escolhido hoje uma
exigia uma análise séria, as autoras centraram ou outra destas posições teóricas. A dificuldade
suas interrogações sobre a ·política da sexuali­ para as feministas inglesas e americanas que
dade·. Assim fazendo, elas colocaram a ques­ trabalham dentro do quadro do marxismo é
tão da causalidade e propuseram uma série de evidente nos trabalhos que mencionei aqui. O
soluções; de fato, o mais surpreendente neste problema com o qual elas são confrontadas é
volume é a falta de unanimidade, sua manuten­ o inverso daquele que coloca a teoria do patri­
ção de tensões na análise. Se as autoras arcado. No interior do marxismo, o conceito de
individuais tendiam a sublinhar a causalidade gênero foi por muito tempo tratada. como um
dos contextos sociais (identificados freqüente­ sub-produto das estruturas econômicas cam­
mente ao econômico), elas não deixam de biantes: o gênero não teve seu próprio estatuto
sugerir a necessidade de estudar a ·estrutura­ de análise.
ção psíquica da identidade de gênero·. Se se Um exame da teoria psicanalítica exige uma
fala freqüentemente da ·ideologia de gênero· distinção entre escolas, já que se teve a ten­
que ·reflete· as estruturas econômicas e sociais, dência de classificar as diferentes abordagens
há também um reconhecimento crucial da segundo as origens nacionais de seus fundado­
necessidade de compreender ·0 laço· com­ res ou da maioria daquelas(es) que as aplicam.
plexo ·entre a sociedade e uma estrutura psí­ Há a Escola Anglo-americana, que trabalha
quica persistente·. De um lado, os responsáveis com os termos das teorias de relação de objeto
por esta coletânea adotam o argumento de (object-relation theories). Nos Estados Unidos,
Jessica Benjamim segundo o qual a política é o nome de Nancy Chodorow que é o mais
devia incorporar a atenção ·aos componentes associado a esta abordagem. Numa outra, o
eróticos e fantasmáticos da vida humana·, mas, trabalho de Carol Gilligan teve um impacto

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multo vasto sobre a produção clentfflCa ameri­ quê.
cana, e compreendido dentro do domínio da Minha reserva com relação à teoria de rela­
história. O trabalho de Gilligan se inspira no de ções de objeto, dirige-se ao seu literalismo, ao
Chodorow, mesmo se ele se interessa menos fato de que ela faz depender a produção da
pela construção do sujeito do que pelo desen­ identidade de gênero e a gênese da transfor­
volvimento moral e pelo comportamento. Con­ mação, de estruturas de interação relativamente
trariamente à escola anglo-americana, a escola pequenas. Tanto a divisão sexual na famHia
francesa se fundamenta sobre as leituras estru­ como as tarefas designadas para cada um dos
turalistas e pós-estruturalistas de Freud no pais desempenham um papel crucial na teoria
contexto das teorias da linguagem (para as de Chodorow. O produto dos sistemas domi­
feministas a figura central é Jacques Lacan). nantes ocidentais é uma divisão clara entre
As duas escolas interessam-se pelos proces­ masculino e feminino: ·0 sentido feminino de si
sos pelos quais é criada a identidade do sujei­ é fundamentalmente ligado ao mundo, o senti­
to; ambas centram seu interesse sobre as do masculino de si é fundamentalmente separa­
primeiras etapas do desenvolvimento da criança do·. Segundo Chodorow, se os pais estivessem
a fim de encontrar as indicações sobre a forma­ mais envolvidos nos seu deveres parentais e
ção da identidade de gênero. As teóricas das mais presentes nas situações domésticas, as
relações de objeto colocam a ênfase sobre a conseqüências do drama edipiano seriam
influência da experiência concreta (a criança vê, provavelmente diferentes.
ouve, tem relações com aqueles que se ocu­ Esta interpretação limita o conceito de gêne­
pam dela, em particular, por certo, com seus ro à esfera da família e à experiência doméstica
pais), enquanto que os pós-estruturalistas e, para o historiador, ela não deixa meios de
sublinham o papel central da linguagem na ligar este conceito (nem o indivíduo) a outros
comunicação, na interpretação e na representa­ sistemas sociais, econÔmicos, políticos ou de
ção do gênero. (Para os pós-estruturalistas, poder. Sem dúvida está implícito que as dispo­
·Iinguagem· não designa somente as palavras, sições sociais que exigem que os pais traba­
mas os sistemas de significação - as ordens lhem e as mães executem a maioria das tarefas
simbólicas - que precedem o domínio da pala­ de criação das crianças estruturam a organiza­
vra propriamente dita, da leitura e da escrita). ção da família Mas a origem destas disposi­
Uma outra diferença entre estas duas escolas ções sociais não é clara, nem por que elas são
de pensamento refere-se ao subconsciente, articuladas em termos de divisão sexual do
que para Chodorow é, em última instância, trabalho. Não se vê também questionamento
suscetível de compreensão consciente, enquan­ sobre o problema da desigualdade, por oposi­
to que, para Lacan, não o é. Para os lacania­ ção ao da assimetria. Como podemos explicar,
nos, o subconsciente é um fator decisivo na no interior desta teoria, a associação persisten­
construção do sujeito; ademais, é o lugar de te da masculinidade com o poder, isto é o fato
emergência da divisão sexual e, por esta razão, de que os valores mais altos são investidos na
um lugar de instabilidade constante para o virilidade e não na feminidade? Como podemos
sujeito sexuado. explicar o fato de que as crianças aprendem
Nos últimos anos, as historiadoras feministas estas associações e avaliações mesmo quando
foram atraídas por estas teorias, seja porque elas vivem fora de lares nucleares, ou no interi­
elas servem para basear conclusões particula­ or de lares onde o marido e a mulher dividem
res em observações gerais, seja porque elas as tarefas parentais? Penso que nós não o
parecem oferecer uma formulação teórica podemos sem uma certa atenção aos sistemas
importante no que concerne ao gênero. De simbólicos, quer dizer, aos modos como as
mais a mais, as(os) historiadoras(es) que traba­ sociedades representam o gênero, servem-se
lham com o conceito de ·cultura feminina· citam dele para articular as regras de relações sociais
os trabalhos de Chodorow e Gilligan de certo ou para construir o sentido da experiência. Sem
modo como provas e como explicações de o sentido não há experiência; sem processo de
suas interpretações; aquelas que têm proble­ significação não há sentido (o que não quer
mas com a teoria feminista se voltam para dizer que a linguagem é tudo, mas que uma
Lacan. Ao final das contas, nenhuma destas teoria que não a leve em consideração não
teorias me parece inteiramente utilizável pelas­ saberá perceber os poderosos papéis que os
(os) historiadoras(es) ; um olhar mais atento símbolos, as metáforas, e os conceitos jogam
sobre cada uma poderia ajudar a explicar por na definição da personalidade e da história

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humanas). to" e pela téndência a reificar, como a dimensão
A linguagem é o centro da teoria lacaniana; principal do gênero, o antagonismo subjetiva­
é a chave de acesso da criança à ordem sim­ mente produzido entre homens e mulheres.
bólica. Através da linguagem é construída a Além do mais, mesmo se a maneira pela qual
identidade sexuada Segundo Lacan, o falo é o "o sujeito" é construído permanece aberta, a
significante central da diferença sexual. Mas o teoria tende a universalisar as categorias e as
sentido do falo deve ser lido de maneira meta­ relações entre masculino e feminino. A conse­
fórica O drama edipiano dá a conhecer à qüência para as(os) historiadoras(es) é uma
criança os termos da interação cultural, já que leitura redutiva dos dados do passado. Mesmo
a ameaça de castração representa o poder, as se esta teoria toma em consideração as rela­
regras da lei (do paQ. A relação da criança com ções sociais ligando a castração à proibição e
a lei depende da diferença sexual, de sua à lei, ela não permite introduzir uma noção de
identificação imaginária (ou fantasmática) com especificidade e de variabilidade histórica O
a posição masculina ou feminina. Em outras falo é o único significante, o processo de cons­
palavras, a imposição de regras de interação trução do sujeito com gênero é, em última
social é sexuada de maneira inerente e específi­ instância, previsível já que é sempre o mesmo.
ca, pois a relação feminina com o falo é forço­ Se, como o sugere a teórica do cinema Teresa
samente diferente da relação masculina. Mas a de Lauretis, nós temos necessidade de pensar
identificação de gênero, mesmo se ela aparece a construção de uma subjetividade dentro dos
sempre como sendo coerente e fixa, é de fato contextos sociais e históricos, não há nenhum
extremamente instável. Como as palavras em si meio de precisar estes contextos nos termos
mesmas, as identidades subjetivas são os que propõe Lacan. De fato, mesmo na tentativa
processos de diferenciação e de distinção, de Lauretis, a realidade social (quer dizer, as
exigindo a supressão das ambiguidades e dos relações "materiais, econômicas e interpessoais,
elementos opostos a fim de assegurar (criar a que são de fato sociais e, numa perspectiva
ilusão de) uma coerência e compreensão mais ampla, históricas") parece se situar à parte
comuns. A idéia de masculinidade repousa do sujeito. Precisamos de uma maneira de
sobre a repressão necessária de aspectos conceber a "realidade social" em termos de
femininos - do potencial bissexual do sujeito - gênero.
e introduz o conflito na oposição do masculino O problema do antagonismo sexual nesta
e do feminino. Os desejos reprimidos estão teoria tem dois aspectos. Primeiramente, ele
presentes no inconsciente e constituem uma projeta uma dimensão eterna, mesmo quando
ameaça permanente para a estabilidade de está bem historicizado, como em Sally Alexan­
identificação de gênero, negando sua unidade, der. Sua leitura de Lacan a conduziu à conclu­
subvertendo seu desejo de segurança. Além são que "o antagonismo entre os sexos é um
diSSQ, as representações conscientes do mas­ aspecto inevitável da aquisição da identidade
culino e do feminino não são imutáveis pois sexual... Se o antagonismo está sempre latente,
elas variam segundo os usos do contexto. Um é possível que a história não possa oferecer
conflito sempre existe, então, entre a necessida­ uma solução, mas somente a reformulação e
de que tem o sujeito de uma aparência de reorganização permanente da simbolização da
totalidade, e a imprecisão, a relatividade da diferença, e da divisão sexual do trabalho". É
terminologia e sua dependência em relação à talvez seu incurável otimismo que me deixa
repressão. Este tipo de interpretação torna cética, ou então o fato de que eu não soube
problemáticas as categorias "homem" e "mulher" ainda me desfazer da episteme do que Fou­
sugerindo que o masculino e o feminino não cault chamava de Idade Clássica. Seja o que
são características inerentes, mas construções for, a formulação de Alexander contribui para
subjetivas (ou fictícias). Esta interpretação fIXar a oposição binária entre masculino-femini­
implica também que o sujeito se acha em um no como a única relação possível e como um
processo constante de construção, e oferece aspecto permanente da condição humana. Ela
um meio sistemático de interpretar o desejo perpetua, mais do que põe em questão, aquilo
consciente e inconsciente referindo-se à lingua­ ao qual Denise Riley se refere como a "insupor­
gem como um lugar adequado para a análise. tável aparência de eternidade da polaridade
Enquanto tal eu a considero instrutiva. sexual". Ela escreve: "o caráter historicamente
Também me sinto incomodada pela fixação construído de oposição (entre masculino e
exclusiva sobre as questões relativas ao "sujei- feminino) produz como um de seus efeitos este

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ar precisamente invariável e monótono de não tratam da oposição binária em si..
oposição homens/mulheres". Temos necessidade de uma rejeição do
É precisamente esta oposição, em todo o caráter fIXO e permanente da oposição binária,
seu tédio e monotonia, que (para voltar aos deumahistoricização e de uma desconstrução
anglo-saxões) é posta em evidência no trabalho autênti� dos termos da diferença sexual.
de Carol Gilligan. Gilligan explicou os diferentes· Devemos nos tornar mais atentas às distinções
modos de desenvolvimento moral de meninos entre nosso vocabulário de análise e o material
e meninas, em termos de diferenças de "experi­ qu� queremos analisar. Devemos encontrar os
ência" (de realidade vivida). Nâo é surpreenden­ meios (mesmo incompletos) para submeter sem
te que asCos) historiadoras(es) de mulheres ceSsar nossas categorias à crítica, nossas
tenham recuperado suas idéias e as tenham àQálises à auto-crítica O que significa analisar
utilizado para explicar as "Vozes diferentes" que dentro de· seu contexto a maneira pela qual
seu trabalho lhes havia permitido ouvir. O opera toda oposição binária, derrubando e
primeiro problema que coloca este tipo de deslocando sua construção hierárquica, em
empréstimo é um deslocamento que se opera lugar de aceitá-Ia como real, como evidente por
a seguir na atribuição da causalidade: a argu­ si ou como sendo da natureza das coisas. Num
mentação começa por uma afirmação do tipo "a certo sentido, as feministas não têm feito senão
experiência das mulheres leva-as a fazer esco­ isto atrâvés dos anos. A história do pensamento
lhas morais que dependem de contextos e de feminista é uma história da recusa da constru­
relações" para chegar a "as mulheres pensam ção hierárquica entre masculino e feminino, em
e escolhem este caminho porque elas são seus contextos específicos; é uma tentativa de
mulheres". Fica implicado nesta abordagem a reverter ou deslocar seus funcionamentos.
noção a-histórica, senão essencialista, de As(os) historiadoras(es) feministas estão agora
mulheres. Gilligan e outros extrapolaram sua em poSiçãO de teorizar suas práticas e de
própria descrição, fundamentada sobre uma desenvolver o gênero como categoria de análi­
pequena amostra de alunas americanas do fim se.
do século XX, a todas as mulheres. Esta extra­ As preocupações teóricas relativas ao gênero
polação é evidente principalmente, mas não como categorià de análise só emergiram no fim
exclusivamente, nas discussões sobre "cultura do século XX. Elas estão ausentes da maior
.

feminina" efetuadas por certas(os) historiadoras­ parte das teorias sociais formuladas desde. o
(es) que, extraindo seus dados desde as santas século �III até o começo do século XX. De
da Idade Média até às militantes sindicalistas fato, algumas destas teorias construíram sua
modernas, dão-nos como evidência da hipótese lógica a partir das analogias com a oposição
de Gilligan que quer que a preferência feminina masculino/feminino, outras reconheceram uma
pelo relacional seja universal. Este uso das "questão feminina", outras ainda se preocupa­
idéias de Gilligan se coloca em oposição fla­ ram com a formulação da identidade sexual
grante com as concepções mais complexas e subjetiva, mas o gênero, como meio de falar de
historicizadas da "cultura feminina" que se sistemas de relações sociais ou entre os sexos
podem encontrar no simpósio de Feminist não tinha aparecido. Esta falta poderia explicar
Studies de 1980. De fato, uma comparação em parte a dificuldade que tiveram as feminis­
desta série de artigos com as teorias de Gil­ tas contemporâneas de integrar o termo gênero
ligan revela a que ponto sua noção é a históri­ nos conjuntos teóricos pré-existentes e de
ca, definindo a categoria homem/mulher como convencer os adeptos de uma ou outra escola
uma oposição binária que se auto-reproduz - teórica de que o gênero fazia parte de seu
estabelecida sempre da mesma maneira. Insis­ vocabulário. O termo gênero faz parte de uma
tindo sempre sobre as diferenças fixadas (no tentativa empreendida pelas feministas contem­
caso de Gilligan, fazendo um uso simplificador porâneas para reinvindicar um certo terreno de
dos dados históricos e dos resultados mais definição, para insistir sobre a inadequação das
heterogêneos sobre o sexo e o raciocínio moral, teorias existentes em explicar as desigualdades
para sublinhar a diferença sexuaQ, as feministas persistentes entre as mulheres e os homens. É,
retorçam o tipo de pensamento que desejam ao meu ver, significativo que o uso da palavra
combater. Ainda que insistam sobre a reavalia­ gênero tenha emergido num momento de
ção da categoria do "feminino" (Gilligan sugere grande efervescência epistemológica entre os
que as escolhas morais das mulheres poderiam pesquisadores das ciências sociais, efervescên­
ser mais humanas do que as dos homens), elas cia que, em certos casos, toma a forma de uma

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evolução dos modelos cientificos para os para compreender como funciona o gênero,
modelos literários (da ênfase posta sobre a como sobrevém a mudança. Enfim, ternos
causa para a ênfase posta sobre o sentido, necessidade de substituir a noção de um poder
confundindo os gêneros da investigação, se­ social unifICado, coerente e centralizado por
gundo a formulação do antropólogo Clifford qualquer coisa que esteja próxima do conceito
Geetz). Em outros casos, esta evolução toma a foucaultiano de poder, entendido como conste­
forma de debates teóricos entre aqueles que lações dispersas de relações desiguais, consti­
afirmam a transparência dos fatos e aqueles tuídas pelos discursos nos "campos de forças"
que insistem sobre a idéia de que toda realida­ sociais. No interior desses processos e estrutu­
de é interpretada ou construída, entre os que ras, há espaço para um conceito de agente
defendem e os que põem em questão a idéia humano, como esforço (pelo menos parcial­
de que o homem é o mestre racional de seu mente racional) de construir uma identidade,
próprio destino. uma vida, um conjunto de relações, uma socie­
No espaço aberto por este debate, pela dade com certos limites e com a linguagem -
critica da ciência que desenvolvem as ciências linguagem conceitual que por sua vez põe
humanas e pela crítica do empirismo e do limites e contém a possibilidade de negação,
humanismo que desenvolvem os pós-estrutura­ de resistência, de reinterpretação, de jogo de
listas, as feministas não somente começaram a invenção metafórica e de imaginação.
encontrar uma voz teórica própria; elas também Minha definição de gênero tem duas partes
encontraram aliados científicos e políticos. É e diversas subpartes. Elas são ligadas entre si,
dentro deste espaço que nós devemos articular mas deveriam ser distinguidas na análise. O
o gênero como uma categoria de análise. núcleo essencial da definição repousa sobre a
O que poderiam fazer as(os) historiadoras­ relação fundamental entre duas proposições: o
(es) que, depois de tudo, viram sua disciplina gênero é um elemento constitutivo de relações
rejeitada como uma relíquia do pensamento sociais fundadas sobre as diferenças percebi­
humanista? Não penso que nós devemos das entre os sexos, e o gênero é um primeiro
deixar os arquivos ou abandonar o estudo do modo de dar significado às relações de poder.
passado, mas acredito, em compensação, que As mudanças na organização das relações
devemos mudar alguns de nossos hábitos de sociais correspondem sempre a mudanças nas
trabalho, algumas questões que temos coloca­ representações do poder, mas a direção da
do. Devemos examinar atentamente nossos mudança não segue necessariamente um único
métodos de análise, clarificar nossas hipóteses sentido. Como elemento constitutivo das rela­
principais, e explicar como pensamos que a ções sociais fundadas sobre as diferenças
mudança tem lugar. Ao invés de pesquisar as percebidas, o gênero implica em quatro ele­
origens únicas, devemos conceber os proces­ mentos: primeiro, os símbolos culturalmente
sos de tal modo ligados entre eles que não disponíveis que evocam representações simbó­
poderiam estar separados. É evidente que nós licas "(e com freqüência contraditórias) - Eva e
escolhemos problemas concretos para estudar Maria como símbolo da mulher, por exemplo,
e que estes problemas constituem os começos, dentro da tradição cristã do Ocidente - mas
ou recortes de processos complexos. Mas são também os mitos da luz e da escuridão, da
os processos que é necessário sem cessar ter purificação e da poluição, da inocência e da
em mente. Devemos nos perguntar mais segui­ corrupção. Para as(os) historiadoras(es), as
damente como as coisas se passaram para questões interessantes são as das representa­
descobrir por que elas se passaram; segundo ções simbólicas invocadas, de suas modalida­
a formulação de Michelle Rosaldo, devemos des e de seus contextos. Em segundo lugar, os
pesquisar não uma causa geral e universal, conceitos normativos que põem em evidência
mas uma explicação significativa: "Vejo agora as interpretações do sentido dos símbolos, que
que o lugar da mulher na vida social humana se esforçam para limitar e conter suas possibili­
não é diretamente o produto do que ela faz, dades metafóricas. Estes conceitos estão
mas do sentido que adquirem estas atividades expressos nas doutrinas religiosas, educativas,
através da interação social concreta". Para fazer científicas, políticas ou jurídicas e tomam a
surgir o sentido, temos necessidade de tratar o forma típica de uma oposição binária, que
sujeito individual bem como a organização afirma de maneira categórica e sem equívocos
social e de articular a natureza de sua interrela­ o sentido do masculino e do feminino. De fato
ção, pois ambos têm uma importância crucial estas afirmações normativas dependem da

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rejeição ou da rapressAo de outras possibilida­ parentesco, mas não exclusivamente; ele é
des alternativas e, as vezes, há confrontações construído igualmente na economia e na orga­
abertas a seu respeito (quando e em quais nização política, que, pelo menos em nossa
circunstâncias, é o que deveria preocupar sociedade, operam atualmente de maneira
as(os) historiadoras(es». A posição que emerge amplamente independente do parentesco.
como posição dominante é, contudo, declarada O quatro aspecto do gênero é a identidade
a única possível. A história posterior é escrita subjetiva Concordo com a idéia da antropóloga
como se estas posições normativas fossem o Gayle Rubin de que a psicanálise fornece uma
produto de um consenso social mais do que de teoria importante para a reprodução do gênero,
um conflito. Um exemplo deste tipo de história uma descrição da "transformação da sexualida­
é dado por aqueles que tratam a ideologia de biológica dos individuos à medida de sua
vitoriana da mulher no lar como se ela fosse aculturação". Mas a pretensão universal da
criada num bloco, como se ela não fosse posta psicanálise me deixa cética Mesmo se a teoria
em questão a não ser posteriormente, enquanto lacaniana pode ser útil para a reflexão sobre a
que ela foi assunto permanente de divergências construção da identidade sexuada, as(os)
de opinião. Um outro exemplo vem dos grupos historiadoras(es) têm necessidade de trabalhar
religiosos fundamentalistas atuais, que quise­ de maneira mais histórica. Se a identidade de
ram ligar necessariamente suas práticas à gênero é unicamente e universalmente fundada
restauração do papel "tradicional" das mulheres, sobre o medo da castração, a pertinência do
supostamente mais autêntico, enquanto que na questionamento histórico é negada. Mais ainda:
realidade há poucos antecedentes históricos os homens e as mulheres reais não cumprem
que testemunhariam a realização inconteste de sempre os termos das prescrições da sua
um tal papel. sociedade ou de nossas categorias de análise.
O desafio da nova pesquisa histórica é fazer Os historiadores devem antes de tudo examinar
explodir essa noção de fixidez, é descobrir a as maneiras pelas quais as identidades de
natureza do debate ou da repressão que pro­ gênero são realmente construídas e relacionar
duzem a aparência de uma permanência eterna seus achados com toda uma série de ativida­
na representação binária do gênero. Este tipo des, de organizações e representações sociais
de análise deve incluir uma noção de política historicamente situadas. E surpreendente que
bem como uma referência às instituições e à as melhores tentativas neste domínio tenham
organização social - este é o terceiro aspecto sido, até o presente, as biografias : a interpreta­
das relações de gênero. ção de Lou Andreas-Salomé por Biddy Martin,
Certos pesquisadores, principalmente os o retrato de Catharine Beecher por Kathryn
antropólogos, reduziram o uso da categoria de Sklar, a vida de Jessie Daniel Ames por Jacque­
gênero ao sistema de parentesco (fixando seu line Hall e a reflexão de Mary HiII sobre Char­
olhar sobre o universo doméstico e a família lotte Perkins Gilman. Mas os tratamentos coleti­
como fundamento da organização sociaO. Nós vos são igualmente possíveis, como o mostram
temos necessidade de uma visão mais ampla Mrinalini Sinha e Lou Ratté em seus respecti­
que inclua não somente o parentesco mas vos trabalhos sobre a construção de uma
também (em particular para as sociedades identidade de gênero entre os administradores
modernas complexas) o mercado de trabalho coloniais britânicos nas fndias, e para os Hin­
(um mercado de trabalho sexualmente segrega­ dus educados na cultura britânica que se
do faz parte do processo de construção de tornaram dirigentes nacionalistas anti-imperialis­
gênero), a educação (as instituições de educa­ tas.
ção somente masculinas, não mistas, ou de
co-educação fazem parte do mesmo processo), A primeira parte da minha definição de
o sistema político (o sufrágio universal faz parte gênero, então, é composta desses quatro
do processo de construção do gênero). Não elementos e nenhum dentre eles pode operar
tem muito sentido reconduzir à força estas sem os outros. No entanto eles não operam
instituições à sua utilidade funcional para o simultaneamente, como se um fosse um sim­
sistema de parentesco, ou sustentar que as ples reflexo do outro. De fato, é uma questão
relações contemporâneas entre os homens e as para a pesquisa histórica saber quais são as
mulheres são produtos de sistemas anteriores relações entre esses quatro aspectos. O esbo­
de parentesco fundados sobre a troca de ço que eu propus do processo de construção
mulheres. O gênero é construído através do das relações de gênero poderia ser utilizado

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para examinar a classe, a raça. a etnia ou não britânicos e americanos. Natalie Davis mostrou
importa qual processo social. Meu propósito foi corno os conceitos de masculino e feminino
clarificar e concretizar como se deve pensar o estavam ligados às percepções e às críticas
efeito do gênero nas relações sociais e institu­ das regras da ordem social no primeiro período
cionais, porque esta reflexão não tem sido feita da França moderna. A historiadora Caroline
freqüentemente de maneira sistemática e con­ Bynum deu nova luz à espiritualidade medieval
creta Mas a teorização do gênero é apresenta­ pela atenção que trouxe às relações entre os
da em minha segunda proposição: o gênero é conceitos do masculino e do feminino e o
uma primeira maneira de dar significado às comportamento religioso. Seu trabalho nos
relações de poder. Seria melhor dizer: o gênero permite melhor compreender as formas pelas
é um primeiro campo no seio do qual, ou por quais estes conceitos informam a política das
meio do qual, o poder é articulado. O gênero instituições monásticas e as crenças individuais.
não é o único campo, mas ele parece ter Os historiadores da arte abrem novas perspecti­
constituldo um meio persistente e recorrente de vas no momento em que decifram as implica­
dar eficácia à significação do poder no Ociden­ ções sociais das representações pictóricas dos
te, nas tradições judaico-cristãs e islâmicas. homens e das mulheres. Estas interpretações
Corno tal, esta parte da definição poderia estão fundamentadas na idéia de que as lin­
parecer pertencer à seção normativa de minha guagens conceituais empregam a diferenciação
argumentação, mas não é assim, pois os con­ para estabelecer o sentido e que a diferença
ceitos de poder, ainda que reforçando o gêne­ sexual é um modo principal de dar significado
ro, não se referem sempre literalmente ao à diferenciação. O gênero é então um meio de
gênero em si mesmo. O sociólogo francês decodifICar o sentido e de compreender as
Pierre Bourdieu escreveu sobre as maneiras relações complexas entre diversas formas de
pelas quais a "di-visão do mundo", fundada interação humana. Quando as(os) historiadoras­
sobre as referências às "diferenças biológicas", (es) buscam encontrar as maneiras pelas quais
aquelas que se referem à divisão sexual do o conceito de gênero legitima e constrói as
trabalho, da procriação e da reproduçaõ", relações sOciais, elas(eles) começam a compre­
oper�m como " a mais fundada das ilusões ender a natureza recíproca do gênero e da
coletivas". Estabelecidos como um conjunto sociedade e as maneiras particulares e situadas
objetivo de referências, os conceitos de gênero dentro de contextos específicos, pelas quais a
estruturam a percepção e a organização con­ política constrói o gênero, e o gênero constrói
creta e simbólica de toda a vida social. Na a política
medida em que estas referências estabelecem A política não constitui senão um dos domíni­
distribuições de poder (um controle ou um os nos quais o gênero pode ser utilizado para
acesso diferencial às fontes materiais e simbóli­ a análise histórica. Escolhi por duas razões os
cas), o gênero torna-se envolvido na concepção exemplos seguintes ligados à política e ao
e na: construção do poder em si mesmo. O poder, no sentido mais tradicional, quer dizer,
antrop6logo francês Maurice Godelier assim o naquilo que realça o governo e o Estado-nação.
formulou: "( ... ) não é a sexualidade que cria Primeiro, porque se trata de um território prati­
fantasia (phantasme) na sociedade, mas antes camente inexplorado, já que gênero tem sido
a sociedade que cria fantasia (phantasme) na percebido como uma categoria antitética às
sexualidade, no corpo. As diferenças entre os tarefas sérias da verdadeira política. Em segui­
corpos que nascem de seu sexo são constan­ da, porque a história política - que permanece
temente solicitadas a testemunhar as relações sempre o modo dominante de interrogação
sociais e as realidades que não têm nada a ver histórica - foi o bastião de resistência à inclu­
com a sexualidade. Não somente testemunhar, são de materiais ou questões sobre as mulhe­
mas testemunhar para, ou seja, legitimar". res e o gênero.
A função de legitimação do gênero funciona O gênero foi utilizado literalmente ou analogi­
de várias maneiras. Bourdieu, por exemplo, camente pela teoria política para justificar ou
mostrou como, em certas culturas, a exploração criticar o reinado de monarcas e para expressar
agrícola era organizada segundo conceitos de as relações entre governantes e governados.
tempo e de estação que repousavam sobre Poder-se-ia contar com que os debates dos
definições da oposição entre masculino e contemporâneos sobre os reinados de Eliza­
feminino. Gayatri Spivak fez uma análise rica beth I da Inglaterra e de Catarina de Médicis na
em implicações de certos textos de escritores França tivessem tratado da capacidade das

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mulheres na direçAo polftica; mas em um perio­ BonaId começa com uma analogia, para
do onde parentesco e realeza estavam intrinse­ estabelecer, em seguida, uma correspondência
camente ligados, as discussões sobre os reis direta entre o divórcio e a democracia Reto­
homens colocavam igualmente em jogo as mando argumentos bem mais antigos à propó­
representações da masculinidade e da femini­ sito da boa ordem familiar como fundamento da
dade. As analogias com a relação marital dão boa ordem de Estado, a legislação que pôs em
uma estrutura para os argumentos de Jean ação esta posição redefiniu os limites da rela­
Bodin, Robert Filmer e John Locke. O ataque ção marital. Da mesma maneira, em nossa
de Edmund Burke contra a Revolução Francesa época, as ideologias polfticas conservadoras
desenvolve-se ao redor de um contraste entre desejariam fazer passar toda uma série de leis
as harpias feias e assassinas dos sans-culottes sobre a organização e o comportamento da
(as megeras do inferno, sob a forma desnatura­ família que mudariam as práticas atuais. O nexo
da da mais vil das mulheres) e a feminidade entre os regimes autoritários e o controle das
doce de Maria Antonieta, que escapa à multi­ mulheres foi bem observado, mas não estuda­
dão "para procurar refúgio aos pés de um rei e do a fundo. No momento crítico para a hege­
de um marido" e da qual a beleza tinha já monia jacobina, durante a Revolução francesa,
inspirado a altivez nacional. (É em referência ao na hora em que Stalin se apoderou do controle
papel apropriado ao feminino dentro da ordem da autoridade, na tomada do poder nazista na
política que Burke escreveu, "para que possa­ Alemanha ou do triunfo do Ayatolá Komehini:
mos amar a nossa pátria, nossa pátria deve ser em todas essas circunstâncias, os dirigentes
amável"). Mas a analogia não concerce sempre que se afirmam legitimam a dominação, a força,
ao casamento nem mesmo à heterossexualida­ a autoridade central e o poder soberano identi­
de. Dentro da teoria política da Idade Média ficando-os com o masculino (os inimigos, os
islâmica, os símbolos do poder político fizeram forasteiros, os subversivos e a fraqueza são
mais freqüentemente alusão às relações sexu­ identificados com o feminino) e literalmente
ais entre um homem e um rapaz, sugerindo não traduziram este código em leis que põem as
somente a existência aceitável de formas de mulheres no seu lugar (interditando-lhes a
sexualidade comparáveis às que descreve participação na vida política, declarando o
Foucault (em seu último livro a respeito da aborto ilegal, impedindo o trabalho assalariado
Grécia clássica), mas também a incompatibilida­ das mães, impondo códigos de trajar para as
de das mulheres com relação a toda noção de mulheres). Estas ações e sua programação têm
polftica ou de vida pública. pouco sentido nelas mesmas; na maior parte
Para que este último destaque não seja dos casos, o Estado não tinha nada de imedia­
interpretado como a idéia de que a teoria to ou de material a ganhar com o controle das
poIftica reflete simplesmente a organização mulheres. Estas ações não podem adquirir um
social, parece importante notar que a mudança sentido a menos que sejam integradas numa
nas relações de gênero pode se produzir a análise da construção e consolidação do poder.
partir de considerações sobre as necessidades Uma afirmação de controle ou de força tomou
de Estado. Um exemplo surpreendente é fome­ a forma de uma política para as mulheres.
cidQ pela argumentação de Louis de Bonald, Nestes exemplos, a diferença sexual foi conce­
em 181 6, sobre as razões pelas quais a legisla­ bida em termos de dominação e de controle
ção da Revolução francesa sobre o divórcio das mulheres. Estes exemplos podem nos dar
devia ser anulada: idéias de diversos tipos de relações de poder
que se constr6em na história moderna, mas
Do mesmo modo que a democracia esta relação particular não constitui em tema
polftica permite ao povo, perte fraca da político universal. Segundo modos diferentes,
sociedade polftica, se voltar contra o por exemplo, os regimes democráticos do
poder estabelecido, do mesmo modo o século XX igualmente construíram suas ideolo­
divórcio, verdadeira democracia do­ gias políticas a partir de conceitos generificados
méstica, permite à esposa, parte fraca,
que eles traduziram em políticas concretas: o
se revoltar contra a autoridade marital ...
estado providência, por exemplo, demonstrou
A fim de manter o Estado à salvo dos
danos do povo, é necessário manter a seu paternalismo protetor através de leis dirigi­
famnia à salvo dos danos das esposas das para mulheres e crianças. Ao longo de toda
e dos filhos. história , certos movimentos socialistas ou
anarquistas recusaram completamente as

17
metáforas de domlnaçAo, apresentando de jovens para proteger o Estado - tomou formas
maneira imaginativa suas criticas de regimes ou diversificadas, cIesde o apelo explrcito à virilida­
de organizações sociais particulares, em termos de (a necessidade de defender mulheres e
de transformação de identidades de gênero. Os crianças que de outro modo seriam vulnerá­
socialistas utópicos na França e na Inglaterra, veis), até a crença no dever que teriam os filhos
nos anos 1830 e 1840, conceberam seus de servir a seus dirigentes ou ao rei (seu paJ),
sonhos de um Muro harmonioso em termos de e até as associações entre a masculinidade e o
naturezas complementares dos indivíduos, poderio nacional. A alta política, ela mesma é
ilustradas pela união do homem e da mulher, o um conceito generiflCado, pois estabelece sua
"indivíduo social". Os anarquistas europeus importância decisiva e sua empresa pública, as
foram conhecidos desde muito tempo por sua razões de ser e a realidade de existência de
recusa das convenções do casamento burguês sua autoridade superior, precisamente graças
mas também por suas visões de um mundo no à exclusão das mulheres do seu funcionamen­
qual a diferença sexual nãb implicaria hierar­ to. O gênero é uma das referências recorrentes
quia pelas quais o poder político foi concebido,
Trata-se de exemplos de laços explícitos legitimado e criticado. Ele se refere à oposição
entre o gênero e o poder, mas eles não são masculino-feminino e fundamenta ao mesmo
mais que uma parte da minha definição de tempo seu sentido. Para proteger o poder
gênero como forma primeira de significar as político, a referência deve parecer certa e fIXa,
relações de poder. Freqüentemente a ênfase fora de toda construção humana, tomando
posta sobre o gênero não é explícita, mas ele parte da ordem natural ou divina. Desta manei­
não deixa de ser uma dimensão decisiva da ra, a oposição binária e o processo social
organização da igualdade e da desigualdade. tornam-se ambos partes do sentido do poder
As estruturas hierárquicas repousam sobre ele mesmo; pôr em questão ou mudar um
percepções generalizadas da relação pretensa­ aspecto ameaça o sistema inteiro.
mente natural entre masculino e feminino. A
articulação do conceito de classe no século XIX Se as significações de gênero e de poder se
se apoiava sobre o gênero. Quando, por exem­ constroem reciprocamente, como as coisas
plo, na França, os reformadores burgueses mudam? De um ponto de vista geral, respon­
descreviam os trabalhadores em termos codifi­ deu-se que a mudança pode ter várias origens.
cados como femininos (subordinados, fracos, As desordens políticas de massa que mergu­
sexualmente explorados como as prostitutas), lham as ordens antigas no caos e engendram
os dirigentes trabalhadores e socialistas res­ as novas podem revisar os termos (e por isso
pondiam insistindo sobre a posição masculina a organização) do gênero na sua busca de
da classe trabalhadora (produtores, fortes, novas formas de legitimação. Mas elas podem
protetores das mulheres e das crianças). Os não o fazer; as noções antigas de gênero
termos desse discurso não se referiam explicita­ igualmentê serviram para validar novos regimes.
mente ao gênero mas, nas suas referências, As crises demográficas, causadas pela fome,
eles colocavam em jogo certos "códigos" gene­ pestes ou guerras, algumas vezes colocaram
riflCados para estabelecer sua significação. em questão as visões normativas do casamento
Nesse processo, as definições normativas de heterossexual (como foi o caso em certos
gênero, historicamente situadas, (e tomadas meios e certos países no correr dos anos
como as dadas) são reprodúzidas e integradas 1920); mas elas igualmente provocaram polftl­
na cultura da classe trabalhadora francesa. cas de natalidade que insistiam sobre a impor­
Os assuntos da guerra, da diplomacia e da tância exclusiva das funções maternais e repro­
alta política aparecem seguidamente, quando dutoras das mulheres. A transformação das
as(os) historiadoras(es) da história política estruturas de emprego pode modificar as
tradicional põem em questão a utilidade do estratégias de casamento; ela pode oferecer
gênero para seu trabalho. Mas, aqui também, novas possibilidades para a construção da
devemos olhar além dos atores e do valor literal subjetividade; mas ela pode igualmente ser
de suas palavras. As relações de poder entre vivida como um novo espaço de atividade para
nações e o status dos sujeitos coloniais torna­ as moças e esposas obedientes. A emergência
ram-se compreensíveis (e então legítimos) nos de novos tipos de símbolos culturais pode
termos das relações entre masculino e femini­ tornar possível a reinterpretação ou mesmo a
no. A legitimação da guerra - sacrificar vidas de reescrita da história edipiana, mas ela pode

18
servir para reatuaJizar este drama terrfvel em elas participaram de grandes e pequenos
termos ainda mais eloquentes. São os proces­ eventos da história humana? O gênero legiti­
sos políticos que vão determinar o resultado mou a emergência de carreiras profISSionais?
que carregará - político no sentido que diversos Para citar o título de um artigo recente da
atores e diversas significações se enfrentam feminista francesa Luca Irigaray, o sujeito da
reciprocamente para assegurar o controle. A ciência é sexuado? Qual é a relação entre a
natureza desse processo, os atores e as ações política estatal e a descoberta do crime de
não podem ser determinados senão concreta­ homossexualidade? Como as instituições s0-
mente, se o situamos no tempo e no espaço. ciais incorporaram o gênero nos seus pressu­
Nós não podemos escrever a história desse postos e nas suas organizações? Houve em
processo a menos que reconheçamos que algum momento conceitos de gênero. verdadei­
"homem" e "mulher" são ao mesmo tempo ramente igualitários sobre os quais fossem
categorias vazias e transbordantes pois que, projetados ou mesmo fundados sistemas políti­
quando parecem fIXadas, elas recebem, apesar cos?
de tudo, definições alternativas, negadas ou A exploração dessas questões fará emergir
reprimidas. uma história que oferecerá novas perspectivas
Num sentido, a história política foi jogada no a velhas questões (como, por exemplo, é
terreno do gênero. É um terreno que parece imposto o poder político, qual é o impacto da
fixo mas no qual o sentido é contestado e guerra sobre a sociedade), redefinirá as antigas
flutuante. Se nós tratamos a oposição entre o questões em novos termos (introduzindo, por
masculino e o feminino como sendo problemá­ exemplo, considerações sobre a família e a
tica mais do que conhecida, como qualquer sexualidade no estudo da economia e da
coisa qu� é definida e incessantemente cons­ guerra), colocará as mulheres visíveis como
truída dentro de um contexto concreto, deve­ participantes ativas e estabelecerá uma distân­
mos então perguntar não somente qual é o cia analítica entre a . linguagem aparentemente
desafio das proclamações ou dos debates que fixa do passado e nOssa própria terminologia.
invocam o gênero para explicar ou justificar Além disso, esta nova história abrirá possibilida­
suas posições, mas também como as percep­ des para a reflexão sobre as estratégias políti­
ções implícitas do gênero são invocadas ou cas atuais e o futuro (utópico), pois ela sugere
reativadas. Qual é a relação entre as leis sobre que o gênero deve ser redefinido e reestrutura­
as mulheres e o poder de Estado? Por que (e do em conjunção com uma visão de igualdade
desde quando) as mulheres são invisíveis como política e social que inclui não somente o sexo
sujeitos históricos ainda que nós Saibamos que mas também a classe e a raça.

* * *

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* * *

Tradução de Guacira Lopes Louro de Les Cahiers du Grif - /e genre de I'histoire, n. 37/38. Paris, Éditions Tierce,
1988.

Obs: as notas foram suprimidas nesta versão.

22
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ste texto pretende expor, de maneira sucin­ Farge


E ta e organizada, embora reconhecidamente
e Inevitavelmente limitada, alguns livros e arti­ Não se trata de preencher um branco falando das
gos que marcaram a trajetória dessa linha de mulheres e de sua história, porque não há um
pesquisa chamada, em um certo momento, branco a preencher. É preciso, ao contrário, passar
em negrito os contornos de um desenho apag8clo,
entre os franceses, de 'Histoire des Femmes'.
mas bem traçado, do qual ninguém até agora se
Pouco desenvolvida entre nós no campo da
ocupou. Reconhecer situaçOes em que as análises
História, praticamente inexiste se pensamos a
históricas nao exploraram a relação entre o femini­
educação da mulher em uma perspectiva no e o masculino, desconhecendo a força motriz
histórica. Nosso objetivo é o de colocar disponí­ de acont�lmentos que foram analisados sem levar
vel, para um maior número de leitores da área em conta .' fato. As cidades do século XVIII
de Educação, além de algumas referências eram um lugar privilegiado onde o novo mundo
bibliográficas, o debate em torno da questão, estava em geataçAo. Nessa desordem, a divIsA0
tal camo vem se dando na França, não desco­ dos papéis sexuais nao obedece a um código fixo
nhecendo, contudo, que ele se dá, em direçOes , rfgido , a turbulência das mulheres do povo,
semelhantes embora não as mesmas, em suas estratégias cotidianas ar se manifestam
claramente corno força de iniciativa e transforma­
outros países, como a Inglaterra, os Estados
Unidos e o Canadá. ção.

Vozes Irregulares: Flora Trlstan e George


Sand, ambivalêncIa de uma filiação. Pascale
Werner
Em 1979 é publicado em Paris o livro de
O mito da excluída e o mito da mulher liberada.
ensaios "L'hlstolre sans quaIHés·'. A capa
Uma violêncIa paradoxal. Nas fontes de um
mostra 'La Blanchisseuse' de Toulouse Lautrec:
desafio, as mulheres terroristas nos an08 de
uma mulher de avental, às voltas com roupas.
1880. Chrlstlne Fauré
Na quarta capa um desenho mostra as autoras
A ação das mulheres terroristas russas que nos
dos ensaios. O livro é uma coletânea de textos
anos de 1880 se lançaram contra o despotismo
sobre a identidade histórica das mulheres.
explicitam o desejo de afirmação social recusa­
do ao seu sexo e colocam a questão da rela­
Pesquisa atual. Nesse momento do feminismo nao
ção entre a mulher e o poder do Estado.
se trata de escapar das difrceis realidades da
busca do passado, mas de nele reconhecer a Primeiras armas Intermezzo, récH. A Infin­
espessura e o sentido do presente. Pesquisa a ela de uma mulher ou os vestfglos de uma
multas vozes. Nao se trata de construir uma história. EJlsabeth Salvaresl
Imagem unificada, nem edificante através desses A mulher popular rebelde. MlcheJle Perror
fragmentos de uma outra história. A mulher ImaginárIa dos homens - PolítIca,
Ideologia e Imaginário no movimento operá­
Um livro certamente marcante e que será rio. Chrlstlne Dufrancatel
referência para quantos queiram refletir sob r e a
questão. São sete pequenos ensaios. Vejamos Por que os discursos sobre as mulheres nao se
do que falam. transformam em rolftica? Por que isso permanece
L'hlstolre ébruHée2 - Mulheres na socieda­ palavra de homem? Por que é que nao é nesse
de pré-revolucIonária parIsiense. Arle"e tipo de palavra que a mulher pode se exprimir?

EDUCAÇÃO E REAUDADE, Porto Alegre, 16(2):23--32, jul/dez. 1990 23


M faladelr.. Femlnlamo e morallamo.
• questOes como: - como a história pode mudar
Genevleve Fral8se a percepção do historiador e suas problemáti­
É permitido às mulheres falar; é permitido às cas? - que críticas pode-se fazer às linhas e
mulheres contar sua história social e política problemáticas utilizadas até aqui nesse campo
Hoje o mundo masculino tolera nossos discur­ de pesquisa?
sos; mas ele os escuta? É preciso se interrogar Pode-se falar de pelo menos duas publica­
sobre os discursos feministas do século XIX e ções a partir dai: o artigo de Arlette Farge
começo do XX. Ainda que heterogêneos no seu publicado no Boletim no 3 do CRIF (Centre de
conteúdo político, todos estão impregnados de Recherches de Réflexion et d'information fémi­
moralismo. A que atribuir esse domínio da nistes) no outono de 1983 e o livro que leva o
moral? mesmo título do Colóquio, por iniciativa de Alain
Paire e sob a direção de Michelle Perrot4•
No Prefácio, Pascale Werner vai nos dizendo Segundo Arlette Farge, desde o início de sua
da história que se fez e da história que se quer preparação, ficou claro que era importante
fazer. E cita Michelet, expoente de uma posição pedir a participação a colegas homens que
que se prolongou: tivessem trabalhado de alguma forma com a
questão, pois isso permitiria uma discussão
'A história que nós colocamos no feminino é um mais profunda do problema e exigiria deles
rude e selvagem macho, um viajante bronzeado e uma certa obrigação de se definir em relação a
empoeirado... Natureza é uma mulher.' O território um tema sobre o qual são, habitualmente,
do historiador permaneceu longo tempo exclusivo muito silenciosos. Ao mesmo tempo, face a
de um sexo, paisagem enquadrada sobre os
eles, poder-se-ia estabelecer o seguinte debate:
lugares onde se exerce o poder dos homens e
como a história das mulheres pode mudar a
seus conflitos, expulsando para fora dos seus
percepção do historiador e suas problemáticas?
limites os lugares das mulheres. (...) Quantas
resistências ainda a vencer para reconhecer que a
Esta interrogação colocada àqueles que majori­
história é sexuada... Artesãs do cotidiano no tariamente escrevem a História, dirigem seus
sentido forte do termo, quando o artesanato caminhos, políticas e financiamentos, poderia
significa invenção e engenhosidade, saber e poder esclarecer que não se trataria de criar um
fazer, as mulheres criaram na precariedade do dia 'gueto-áJíbí' onde as mulheres pudessem juntas
a dia, esta malha, a mais fina do tempo social, em tratar de seu passado, mas de discutir, antes
torno da qual a história se faz ou desfaz(...) Saindo de mais nada, essa problemática na escritura
do mito para entrar na história, arrisca-se de ar
geral da História. 'Existe aí ambição, absoluta­
encontrar o retrato de uma ilusão. Estranha impres­
mente legítima, e não como se poderia crer, um
são de repetição a cada eclosão do feminismo,
curvar-se cerimonioso diante daqueles que nos
como se a história das mulheres ficasse sempre
no mesmo lugar, movimento de fluxo e refluxo, governam'.
voltando sempre ao lugar de sarda, sempre disper­ Se a História das mulheres já possuia uma
so pelo mesmo impasse, a divisão entre o masculi­ história era preciso, naquele momento, se
no e o feminino, essa troca desigual que se repro­ debruçar sobre algumas questões: que objetos
duz na desigualdade. Mas é lá onde essa história e que sujeitos emergiram ou foram escolhidos?
se amarra que ela pode se desamarrar e é nessas Interrogar-se sobre as fontes e suas possíveis
tensões e nesses distanciamentos que podemos leituras, sublinhar as tentativas específicas,
descobrir nossas referências. Portadoras dessa saber enfim se se produziu alguma coisa nova,
história sem qualidades, portadoras dessa história
seja em relação ao vocabulário ou aos concei­
não identificável através das qualidades reconheci­
tos, reunir os eixos privilegiados da reflexão etc.
das pelos hábitos dominantes, as mulheres deslo­
Essas interrogações levariam ao reconhecimen­
cam, sem dúvida, os limites de uma representação
cristalizada do mundo. to tácito de que o campo fora construído de
maneira empírica, para responder a questões
11 políticas e existenciais, sem a preocupação com
definições teóricas.
Em 1983 várias autoras desses ensaios Assim, as comunicações foram elaboradas a
acima referidos e outros pesquisadores reuni­ partir de questões que emergiram da prática da
ram-se para um Colóquio no College d'Echan­ história de mulheres levada a efeito por historia­
ges Contemporains de Saint- Maximin, cujo dores e historiadoras. A saber:
tema era 'L'hlstolre des femmes est-elle - Como nasceu a história das mulheres; que
posslble?'. O debate se organizou em torno de temas inicialmente privilegiou; como as institui-

24
çOes e a midia receberam; de como é impossf­ suma: onde 88 está?
vai separar a história das mulheres da maneira Após um tempo de perplexidade e de se colocar
como ela foi concebida (Mette Farge). a pergunta: as mulheres têm uma história? não se
- A demografia histórica e a quantificação duvida mais que as mulheres têm uma história e
que produzem história Logo, pode-se escrever
das mulheres; os buracos na memória daqueles
essa histórla,mas nAo sem antes discutir os proble­
que contam e informatizam (Cristhiane Kla­
mas que já apresenta. Hoje as mulheres estão na
pisch).
ordem do dia, nas Universidades, nas Academias,
- Pode-se falar em cultura feminina? (Agnes nas revistas de divulgação ou nas cientificas; mas
Fine). nAo convém ceder à Ilusão: quantitativamente o
- A história das mulheres passa pela história lugar que ocupam é muito modesto, um capitulo
de seus corpos? (C. Fouquet). suplementar a acrescentar, sem modificar o con­
- A chegada de um tema historiografico: o junto. Pode-se de fato duvidar que essa produção
masculino e o feminino. Sua história, sua crítica nova tenha mudado a natureza do olhar histórico,
(Jacques Revel). tantos são os silêncios que continuam a reinar e o
- História da diferença de sexos nas socieda­ silêncio a prevalecer. Diante disso não se deve
interrogar sobre seu conteúddo e seus métodos?
des arcaicas (Pauline Schmitt).
É preciso se debruçar sobre as dificuldades intrfn­
- As fontes orais e a experiência de sua
secas e extrfnsecas:
utilização privilegiada para a história das mulhe­
res (Sylvie Ven de Casteele e Daniele Vold­ Fontes:
mann). - Os fatos e gestos atinentes à História das
- Uma história da mulher é possível sem a
mulheres não são aqueles que habitualmente
elaboração paralela de uma história da condi­ prendem a atenção dos observadores, daque­
ção masculina? (Alain Corbin). les que registram fatos. Dessa maneira será
- Cronologia e história das mulheres: nova
difícil encontrá-los registrados nas fontes primá­
leitura da cronologia e sua possível feminização rias mais recorrentemente utilizadas.
(Yvonne Knibiehler). - O discurso normativo sobre o que as
- A história do feminismo: a esquecida da mulheres deveriam ser, em geral, mascara o
história das mulheres; sua historiografia crítica que eram.
(Genevieve Fraisse). - O olhar sobre a mulher é sempre mediatiza­
- As mulheres, o poder, a história: necessida­
do. É fundamental decodificar a natureza dessa
de de se colocar a questão do poder das mediação.
mulheres, de sua evolução e de sua eficácia - Deve-se buscar explorar todas as fontes
como representação (Michelle Perrot). clássicas, às quais convém colocar novas
A expectativa de Arlette Farge em relação a questões, pois é o olhar que constitui o objeto.
esse Colóquio era:
- Os documentos jamais falam por si mes­
mos. O ponto de vista que se lhes aplica con­
... um momento privilegiado que permitirá Ir mais
segue extrair coisas diferentes e reconstrói
longe e diferentemente; ao mesmo tempo, uma
diferentemente a informação.
verdadeira satisfação, pensar que esses dez anos
- As fontes orais nos permitem escutar as
permitiram balançar o sexismo presente na histo­
riografia, mesmo se esses dez anos se fizeram no silenciadas da história, levando em conta que
corpo a corpo, sem programa e sem um a priori como documentos orais não são uma panacéia;
teórico. Ela preciso construir, opor um saber a como qualquer outro requerem crítica e elabo­
outro; nós o fizemos. ração. Esses textos, em geral extremamente
saborosos, fazem passar para o outro lado do
A maioria desses temas discutidos foram espelho e, desse ponto de vista, são insubstituí­
transformados em artigos no livro dirigido por veis.
Michelle Perrot, já citado, e podem permitir
captar os problemas que essa linha de pesqui­ Conteúdo:
sa vem enfrentando e que questões operatórias O que se fez até aqui foi um inventário daqui­
é preciso não negligenciar. No Prefácio: lo que foi esquecido, daquilo que foi perdido.
Hoje já se pergunta pelas causas desse esque­
Após um tempo de acumuIaçAo primitiva é tempo cimento. Não se trata mais de fazer uma histó­
de se Interrogar: que significa exatamente essa ria da infelicidade feminina, uma história dicotô­
linha? quais foram suas raizes e suas necessida­ mica, mas de enveredar pelas zonas mistas de
des? quais são seus resultados e seus efeitos?
fronteiras imprecisas, muito mais ricas de serem
que saber ela produziu? por que e para quem? em

25
exploradas. parece desejável que a história dos papéis femini­
nos deixe de ser escrita como uma história à parte,
Objeto: precisamente para que ela possa encontrar um
estatuto e um lugar na história social global, onde
Os objetos de estudo pesquisados até aqui
as práticas femininas e as práticas masculinas
pertenciam ao campo dos papéis ditos naturais
encontram sua verdadeira significação.
das mulheres: maternidade, prostituição, parto.
No máximo chegava ao trabalho de mulheres,
Em "Prática e efeitos da História das Mulhe­
a representação na literatura e suas lutas.O
res",Arlette Farge6 se pergunta: em que ponto
corpo da mulher era tomado no seu sentido
está a história das mulheres? qual sua relação
biológico. O que se busca hoje nio 6 mais o
com a História como área de conhecimento?
sexo no seu sentido biológico, mas o gênero,
Resumindo, vejamos:
definido pelos papéis, práticas culturais e
Na verdade, houve um significativo crescimento
representaç6es simbólicas.
de pesquisas feitas por mulheres, sobre mulhe­
A questão maior, segundo Perrot, é a da
res mas essa apropriação do tema se fez sem
relação entre os sexos, da diferença entre os
sexos. Trata-se de cessar de brandir a misogi­
;
a enovação de problemáticas de conjunto.
Acrescenta-se uma tese, um capítulo a uma
nia como explicação do lugar dado às mulheres
tese, sem se interrogar verdadeiramente o
e interrogar as práticas sociais, os tipos de
conceito de "diferença entre os sexos". Fre­
discursos e representações, evitando as dicoto­
quentemente permanece subjacente e constan­
mias natureza/cultura, doméstico/público.
temente utilizada a dialética da opressão e da
Trata-se de encarar de frente e aceitar a ambi­
dominação que não permite que se faça uma
valência das coisas, preferindo às zonas de
história social econômica e política de confron­
divisão muito claras as de conflito e contradi­
tação entre os sexos. Muitas análises não
ções. Nio se trata de constituir um novo
conseguem deixar de ser enunciados tautológi­
território que será a história das mulheres,
cos postulando desde o começo aquilo que se
tranqüila concessio onde elas poderio se
encontrará forçosamente no fim. Nos trabalhos
lamentar à vontade ao abrigo de toda contra­
que dizem respeito ao século XVIII e XIX, existe
dlçio, MAS de mudar o olhar, a dlre�io do
uma grande predileção por discursos e textos
olhar histórico, colocando a questao da
normativos. Isso é natural, se se pensa na
relaçio entre os sexos como central.
dificuldade de fontes. São textos escritos por
Jacques Revel vai retomar essa questão da
filósofos, médicos, padres, teólogos, juristas,
relação entre os sexos no seu artigo "Masculi­
educadores sobre a mulher e seus perigos, sua
no/Feminino: sobre o uso hlstorlográflco dos
anatomia e fisiologia, suas doenças e suas
pap61s sexuais". Seu objetivo é refletir sobre a
funções. São textos que revelam uma visão das
utilização de um conjunto de categorias, os
relações entre os mundos masculino e feminino
papéis sexuais , na análise histórica, a partir de
5 e as dificuldades e até violências exercidas por
um pequeno número de trabalhos recentes .
um sobre o outro. Os textos escritos a partir
Segundo Revel, até pouco tempo, os historiado­
desse tipo de material são, em geral, marcados
res pareciam ignorar que as sociedades que
por enorme indignação diante daquilo que se
estudavam eram divididas também em sexos.
pôde escrever em outras épocas . No entanto,
Tratavam-nas como se fossem, não necessaria­
é necessário colocar outras questões sobre os
mente masculinas, mas neutras. A redução das
textos, sobre as formas de discurso, sobre sua
categorias de sexo à sua determinação biológi­
recepção, a periodização de suas semelhanças
ca foi o que mais impediu que se pensasse na
e diferenças, sua função social e política. Um
sua existência e suas funções sociais. Uma
pouco como se tragados por um espelho, os
sensibilidade nova para a história, que inclui a
autores tornam-se prisioneiros e repetem ao
explosão feminista pós 68 e a anexação de
infinito, através de um jogo de ecos sutis, o que
territórios contíguos à História como a Antropo­
já foi dito, sem chegar a perceber aquilo que os
logia, a micro-história, acabaram por criar uma
textos estudados produziram como subprodu­
nova percepção da história social. Mas todo
tos (transgressões ou mesmo indiferenças) e
esforço ainda se dirige para o pólo feminino,
aquilo que construíram ou impediram de ser
enquanto que o território masculino parec�
construído em um espaço social de uma época.
permanecer no anonimato das causas perdi­
Submetidos ao objeto passam assim, freqüente­
das. Para o autor,
mente, da indignação à fascinação. Como se o
discurso estudado fosse mais forte que o olhar

26
pousado sobre ele; como se as imagens evoca­ o sistema cultural e seu imaginário. Não se trata
das não cessasm se de fazer efeito. É preciso mais de estabelecer invariantes definitivas de
interrogar essa fascinação, refletir sobre suas um lado ou de outro, mas de retraçar minucio­
motivações e se preocupar em contrapartida samente as transformações e as diferenças,
com os textos normativos nos quais o homem destacando a importância das diferenças s0-
é o objeto de recomendações. É provável que ciais e tensões econômicas no próprio interior
exista uma inconsistência de ordem metodológi­ da divisão entre os sexos.
ca e intelectual quando se analisam pedaços
de vida de mulheres sem confrontá-los àqueles 111
de vidas dos homens. A história de mulheres
tem mantido uma relação ambivalente com o Poderíamos comentar ainda outros artigos
passado. Certos trabalhos propõem uma idéia que trabalham as questões metodológicas que
de progresso da condição feminina ao longo do dizem respeito não apenas a essa maneira de
tempo, outros a de uma permanência eterna de fazer História, chamada de história das mulhe­
um estatuto desvalorizado. Como se a História res, mas a uma história que está subvertida
fosse forçosamente linear e descuidada em pela "entrada em cena de novos atores sociais".
relação aos avanços e aos recuos; como se o Mais vale é ler o livro. No entanto, ainda para
presente saísse intacto de um passado cristali­ localizar a questão na historiografia francesa, é
zado. Reconstituir a história das identidades preciso que se fale de um terceiro moment07 ou
culturais, sociais e políticas das mulheres é de uma terceira fase dessa produção coletiva
evitar de "congelá-Ia" entre duas imagens que exprime uma certa tendência mais geral.
imóveis e conformes à realidade: aquela de um Trata-se da utilização da palavra gênero no
passado concluído ou aquela de um presente âmbito das pesquisas e reflexões que incluem
paralisado pela tradição. A História é o lugar a mulhe,s. O assunto é bem tratado pelo Ca­
das contradições, das idas e vindas, dos "aca­ hiers du GRIF", que dedicou um número duplo
valamentos", em que as coerências e as incoe­ em 1988 ao exame da questão. O título da obra
rências têm seu justo lugar; não é e não pode é "L. G.nr. de I'Hlatolr." e na quarta capa
ser um lugar de perenidades. A autora chama uma pergunta aparentemente banal: "De qual
ainda a atenção sobre uma muito recente e gênero é esta história do gênero humano?"
benvinda produção masculina, ainda que vinda Nele se inclui a tradução para o francês do
de historiadores com menos prestígio. A fasci­ artigo de Joan Scott, "Gênero: uma categoria
nação que os textos normativos exercem sobre útil de análise histórica".
as mulheres parece ser exercida também sobre Esse número dos Cahiers pretende abrir,
esses homens. Sob o pretexto de pôr às claras dentro de um determinado domínio do saber, a
a misoginia de certos textos assiste-se a uma questão da prática e do conceito de pesquisas
curiosa aliança (quase cumplicidade) com eles. feministas, tal como evoluiu desde sua apari­
O vocabulário é guloso e jubilatório e o leitor ção. Pergunta-se: qual seria o critério que
fica sem saber se o autor enuncia ou acentua permitiria qualificar uma pesquisa de feminista?
os efeitos dos textos deslisando subrepticia­ Pesquisa feminista é aquela pesquisa realizada
mente, ele mesmo, em direção a essa misoginia por mulheres? Ao que parece não basta ser
que dizia culpada no começo... O importante uma pesquisadora e também não basta ter
seria estabelecer enfim uma história das ten­ como objeto de estudo as mulheres.
sões entre os papéis masculinos e femininos e
fazer tanto de seus conflitos, como de suas É o quadro de leitura que ela produz e aplica ao
complementaridades uma articulação que campo do saber, e no limite de todo saber, e pelo
atravessaria o "récit" histórico. Não se trata de qual ela modela ou remodela, sobretudo constrói

constituir um campo fechado do saber, mas ao


esse saber. Esse quadro de leitura toma por
parâmetro a noção de gênero (gender; genre) tal
contrário, seria necessário renovar o questiona­
como as feministas americanas elaboraram, a
mento dos historiadores introduzindo a noção
saber, o parâmetro do que nós chamamos em
de diferença entre os sexos, cercando os francês 'Ia difference des sexes' (a diferença dos
momentos sucessivos e frequentemente simul­ sexos), mas uma diferença que Inclui a disslmetria
tâneos em relações de força, indiferenças, lutas dos diferentes e sua articulação em termos do
de poderes, ódios e desejos entre homens e poder. (... )Asslm, as pesquisas feministas produzem
mulheres,que construiram não apenas o con­ efeitos em todo campo do saber ( e não apenas
junto do tecido social e político, mas dividiram no campo delimitado pelo objeto-mulher) e elas
podem potencialmente ser conduzidas por outros

27
que nAo mulheres. Se se considera que o campo dessa relação um objeto da história
do saber é um campo construido 9 que ele foi até
aqui construrdo na ignoráncia do gênero (da
diferença dos sexos), isto é, do ponto de vista de IV
um só sexo, as pesquisas feministas tendem a
reconstrur-Io a partir disso que foi recalcado. Talvez agora caiba a pergunta: como é que
Essa reconstituição visaria a elaborar um campo
a educação passou a pensar sua história
de saber que se desenvolvesse paralelamente, a
dentro de todo esse movimento?
partir desses atores que seriam as mulheres? Ou
visaria a elaborar um campo complexo onde
apareceriam constantemente as tensões provoca­ Em 1976 o número especial de "Tempa
1
das pela divisão sexuada dos atores? Os dois, Modernes" 1 marca um momento importante.
sem dúvida, o primeiro sendo necessário e de uma Diversos historiadores dele participam e alguns,
carta maneira preliminar ao estabelecimento do bem conhecidos, emprestam sua marca a uma
segundo. Por exemplo, a periodização da história nova maneira de perceber a história da educa­
ou a determinação e a hierarquia das formas ção. Os títulos são sugestivos: "Pour É mile et
literárias nAo são as mesmas segundo o ponto de par Émile. Sophie, ou I'invention du ménage";
vista dos atores privilegiados, mesmo se sua "La petite filie, sa mere et I'institutrice"; "Historiet­
validade possa e deva ser reconhecida. O primeiro
tes pour Fillettes" etc.
passo é tornar reconhecida a sexuação do saber,
ficando entendido que a elucidação desses pres­
A apresentação, assinada por Leila Seb­
supostos não arrurna, mas consolida o valor de
uma reflexão nesses limites. O segundo passo bar-Pignon, esclarece as intenções do grupo
seria o de tornar claras as tensões que o duplo que se reuniu para escrever:
registro sexuado Impõe ao saber e à realidade.
Não foi dito que esse trabalho sobre educação de
Em resumo recusa-se, nesse grupo e nesse meninas deveria ser restrito às mulheres. No
momento, o nome Hlstolre des Femmes, entanto e sem a exclusão premeditada dos h0-
História das Mulheres, considerando-se que mens, mulheres que não se conheciam até então
se reuniram para refletir, interrogar-se, exprimir
essa denominação isola e marginaliza o saber
dificuldades e Incertezas sobre um trabalho que
produzido, em relação às instituições e aos
elas conduziam sozinhas, a duas, ou em grupo a
sistemas estabelecidos de saber,que lhe nega, partir de um projeto determinado. (...) Em conjunto
de saída, um valor geral. Quando se fala de e cada uma do lugar de sua prática - cultural,
mulheres (femmes) de qual mulher se fala? profissional, polftica - procurou-se constituir uma
Além disso, considera-se que não se pode arqueologia da educação das meninas. E esta
escrever essa história independente daquela de pesquisa obriga a um détour pela infância da
relações de poder, nem da "história dos ho­ mulher - sua história - sua origem, seu lugar ainda
mens". Assim, o que prentende é, não uma esquecido na história, guardado na memória de
História das Mulheres, mas uma reintegração homens e mulheres, nos arquivos e livros esqueci­
das mulheres na História. O gênero poderia ser dos. Tudo a ser dito, a ser escrito.
(...) Nosso desejo de escrever sobre meninas era
urna boa saída teórica para a questão, pois
nosso desejo de escrever sobre nós, diferindo,
sendo uma noção relacional, seria uma maneira
talvez, o momento do 'Eu'. E entrevistamos: textos,
de referir-se à organização social da relação
imagens, mães, pais, educadoras... mais que a nós
entre os sexos, e a primeira maneira de signifi­ mesmas diretamente. Desvio que não impediu a
car as relações de poder. cada uma de estar comprometida neste trabalho,
Em recente publicação10 Arlette Farge retoma mas de forma diferente. Uma mulher existe. Uma
a questão mais ou menos na mesma perspecti­ menina existe. Existiu em toda mulher. Mas insis­
va: te-se em negar. É o que diz o discurso contra as
mulheres: a menina é criança, futura mulher, aluna,
O arquivo fala 'dela' e a faz falar. Motivado pela indivrduo, Jamais menina
urgência, se Impõe um primeiro gesto: encontrá-Ia, Denunciar, recusar com violência toda opressAo,
como se colhe uma espécie perdida, uma flora manipulação, mutilação. Interrogar-se, trabalhar,
desconhecida, fazer seu retrato como se refaz um lutar para ocupar de maneira diferente um espaço
esquecimento, marcar cada traço como se exibe conquistado, e não concedido, como menina,
uma morta. Gesto útil do colecionador, mas gesto mulher mãe, educadora - pois são as mulheres
inacabado; tornar vislvel a mulher lá onde a história que continuam a educar as meninas. Viver, sonhar,
omitia sua visibilidade obriga a um corolário: criar um novo imaginário que curve o polfiico às
12
trabalhar sobre a relação entre os sexos, fazer suas exigências.

28
Ao que parece, por todas as citações e todas os princípios e os modos que guiam e
referências a essa revista que aparecem daí ajudam na vida visando à salvação. Tratava-se
para frente em trabalhos sobre a questão, ela de formar cidadãs competentes que soubessem
foi um marco decisivo na constituição desse ler, escrever e sucintamente contar, e que
campo de pesquisa. assim pudessem ajudar os pais de família nos
Em 1980 o nO 2 da revista Penelope,13 reali­ seus negócios. O lar, o atelier, a loja, o traba­
zado por Genevieve Fraisse, nos dá o panora­ lho, a família, todos se beneficiariam dessas
ma do que acontecia no campo das pesquisas ·aquisições· pedagógicas. Trata-se enfim de
nessa área. No ·Mode d'Emploi· ou naquilo a formar donas de casa ensinando-Ihes saberes
que poderíamos chamar Apresentação, adverte úteis: costurar, remendar, tricotar, fazer a
que se tratava mesmo de educação de meni­ renda, o que já é uma profissionalização. De
nas, pois não se fazia esta da mesma maneira um lado ao outro da cadeia pedagógica, a
que se fazia a dos meninos. Este, o da educa­ edificação, a moralização, a espiritualização,
ção dos meninos, é um campo de pesquisas fazem do sistema educativo um instrumento
que vai por si, pois quando se fala em história eficaz para introduzir as jovens parisienses na
da educação é sempre da educação dos 'civilização das clvllldades'18.
meninos que se trata. Nessa revista diferentes O livro é dividido em seis capítulos: 1. As
pesquisadores nos apresentam resumos de dez escolas da cidade; 2. As parisienses na escola;
linhas de pesquisas.14 O grupo de pesquisado­ 3. Do regulamento à prática cotidiana; 4. Manei­
ras que trabalham no Centro responsável por ras de aprender; 5. As pequenas ciências que
este trabalho estará, daí para frente, sempre convêm às meninas; 6. Sair da escola, entrar na
presente em publicações que se propõem a vida
debater a questão da história das mulheres, Após uma pequena, mas precisa conclusão
seja ela voltada para a educação ou para - são apenas três páginas - chega-se à parte
qualquer outra problemática. que mais surpreende e maravilha o pesquisa­
No campo das publicações de livros, tomarei dor da história da educação no Brasil. São os
três que a mim - naturalmente - me pareceram Anexos e o Inventário das fontes e Bibliografia.
mais instigantes e sugestivos de pesquisas Nos Anexos temos a transcrição de documen­
entre nós1� L'éducation des filies au temps des
.• tos tais como 'Anuário de ensino feminino em
Lumieres·, de Martine Sonnet, ·Saintes ou Paris'que vem a ser uma pequena estatística do
Pouliches I'éducation des jeunes filies au XIXe que acontecia na cidade em termos de educa­
siecle· de Isabelle Bricard e ·De meres en filies ção; ' Inventário dos móveis da Casa real do
I'éducation des françaises 1850-1880" de Ma­ Enfant-Jésus'; 'Emprego do tempo nos pensio­
rie-Françoise Lévy. natos das Ursulinas'. O inventário das fontes
O livro de Martine Sonnet, como o título deixa (elas existem!) é organizado segundo o tipo de
claro, está situado no século XVIII. O que pre­ fonte (manuscritas ou impressas) e segundo
tende é ler, pela primeira vez, o destino peda­ sua localização e código. As fontes impressas
gógico das pequenas parisienses dos séculos são organizadas por grandes assuntos (por
XVII e XVIII. Daniel Roche, que prefacia o livro, exemplo: Congregações Femininas de Ensino,
faz uma constatação logo na primeira linha de Escolas Paroquiais de Caridade etc). O mesmo
seu Prefácio, alentadora aos historiadores da é feito com as indicações bibliográficas: O
educação. Diz ele:·De vinte anos para cá, a espaço parisiense e seus habitantes no século
história da educação se transformou completa­ XVIII; As mulheres, a infância e a vida familiar
mente, na França e por toda parte·. É nessa no Antigo Regime; A educação no Antigo
perspectiva de ruptura com a história das idéias Regime: estudos gerais e sobre os meninos; A
pedagógicas que se inscreve esse livro. educação das meninas no Antigo Regime.
A autora mostra em um texto extremamente Mesmo que a História da educação dessas
bem escrito e sobretudo bem fundamentado parisienses, tão longe de nós, não interesse ao
que a educação das meninas era diferente e pesquisador brasileiro,tudo isso torna esse livro
em que era diferente e porque era diferente da extremamente interessante e útil, não apenas
dos meninos. E, ainda, que a escola parisiense por seu específico conteúdo, mas sobretudo
também contribuiu para formar e divulgar uma por essa pedagogia da pesquisa histórica
imagem tradicional da mulher através da peda­ ·Nós as educamos como santas, depois nós
gogia da vigilância e de uma modesta instru­ as entregamos como potrancas· é a frase de
ção. Era preciso formar boas cristãs, dar a Georges Sand que serve de epígrafe ao livro de

29
lsabelle Bricard, e dai seu titulo. Bem menos reforçar as funções da mulher e da mãe cristãs
acadêmico que o de Martine Sonnet - pois que no seio da família É nesse momento que o
um é a publicação de uma Tese e o outro não culto da Virgem, modelo de mulher e mãe, vai
- sua preocupação não é com o sistema esc0- assumir contornos mais fortes que nunca. O
lar, mas com a educação da mulher que se dá culto marial, marcado nesse perlodo pela
em todo lugar. Seu marco cronológico não é proclamação do dogma da Imaculada Concei­
extenso, o Primeiro e Segundo Império francês, ção, o 8 de dezembro 1854, encontra o apogeu
século XIX . A Terceira República, com os seus de sua expressãol7• Os anos que se seguem
Uceus, transformaria a menina de então, fazen­ vão assistir ao debate, que de resto ainda se
do-a bem diferente daquHo que havia sido sua prolonga, sobre a questão da laicidade do
avó. O espaço do qual fala é um espaço aristo­ ensino. O papel da mulher, como esposa e
crático no qual cresciam as moças de ' boa mãe, vai estar no centro desse conflito.
família'. Para buscar reconstituir seu destino,
sua educação, sua vida cotidiana, suas emo­ Retirar as mulheres do domfnio e autoridade da
ções, a autora buscou as mais diversas fontes. Igreja constitui um meio de remediar o divórcio
Buscou e cruzou os Relatórios de Inspeção aos intelectual dos cOnjuges, fator prejudicial à harmo­
nia doméstica. Relaxado o domfnio religioso, uma
pensionatos leigos da capital, com livros de
famnia com valores renovados se fundaria sobre a
educação, jornais femininos, testemunhos
unidade dos coraçOes, na aproximação dos cor­
vividos - memórias, correspondências, diários
pos. Escapando à uma devoção cega, a mulher
Intimos - e ainda obras de ficção - romances e esclarecida, instrufda e diligente, se tornaria - dona
peças de teatro que refletem os costumes de da casa - a abelha responsável por um lar-ninho,
cada tempo. Incompleto - já que não recorre a uma mãe vigilante à qual é delegada uma virtude
arquivos privados - e parcial - já que feito por civilizadora: uma mulher a qual, projetada na
uma mulher - assim a autora reconhece seu estatuária, se tornaria a imagem da República.
trabalho,
Para isso era preciso examinar o modelo e
Mas ficaria satisfeita se, mesmo na sua imperfei­ este é buscado no material de pesquisa: 256
ção, esse estudo pudesse lançar uma luz sobre a obras escritas por mulheres cristãs, pertencen­
vida de nossas avós e finalmente fazer justiça tes à burguesia, algumas à aristocracia, foram
àquelas moças que não tinham o direito nem de resenhadas. Esses livros, contos, romances,
falar, nem de fazer falar delas.
novelas, para uso específico de meninas e
meninas-moças, são livros de educação.
A educação das francesas no século XIX é
Foram escolhidos e reagrupados por temas
também trabalhada por Marie-Françoise Lévy na
como por exemplo "a felicidade", "a primeira
perspectiva dessa - quase - indecifrável trama
comunhão", "o anjo da casa", a boa e a má
mãe e filha O livro é dividido em quatro capítu­
mãe". Esses romances para uso dessas meni­
los: 'Fragmentos da infância', 'O Despertar
nas e mocinhas, pode-se legitimamente supor,
religioso', 'A aurora da menina moça', 'Os anos
foram lidos. Basta considerar as suas numero­
silenciosos'. Seu objetivo é o de
sas edições e reedições . Todos eles levam em
consideração as obras clássicas de educação
captar em um momento histórico preciso quais são
ou pedagogia feminina, como as de Mme de
os valores e os princfpios em torno dos quais se
estrutura a educação das mulheres, no tempo em
Maintenon, de Fénélon, de Mme Campan, de
que a Igreja detém uma influência considerável. Mme de Genlis, tecendo considerações favorá­
veis ao clero, que protegia as publicações e as
A idéia da autora é de que a educação colocava nas Bibliotecas. É nesse momento
nesse momento é sobretudo uma educação que encontram sua mais real coerência históri­
doméstica As meninas da burguesia são ca Depois de 1880 os livros para as mulheres
educadas na família por sua mãe, algumas não se apóiam mais sobre a noção religiosa do
vezes assistidas por uma professora particular, bem e do mal, menos ainda sobre a missão da
ainda que algumas delas por volta dos doze mulher cristã no seio da família. Outros ensina­
anos passem a frequentar alguma escola , ou mentos como a economia doméstica e a pueri­
pensionato particular. A Igreja, por sua vez, cultura é que vão fazer parte, a partir de então,
retoma sua longa tarefa de conquista das daquilo que vai constituir a educação das
almas. Ela vai, nesse momento histórico de mulheres.
profundas conturbações sociais e políticas, Uma outra fonte examinada foram os "escri-

30
tos religiosos, obras de clérigos pertencentes Concluindo, gostariamos de dizer que todo
em sua maioria a uma ordem regular. Esses esse debate não cessou, sequer sossegou, o
manuais fixam com precisão a atitude, os que deixa essa resenha já um pouco ultrapas­
deveres da mulher cristã, do nascimento à sada, conquanto que, assim espero, bastante
morte. O mês de Maria, os livros de devoção útil. No campo da historiografia brasileira traba­
escritos pelos Jesuftas, e os periódicos consa­ lhos importantes, de muito boa qualidade têm
grados ao culto marial, revelam a importância sido produzidos111 e os Núcleos feministas têm
conferida à Virgem, esse modelo que é referên­ somado à sua - agora um pouco arrefecida -
cia na educação das mulheres. Palavras seve­ militância, um sério trabalho de pesquisa. Na
ras, austeridade no tom: o discurso religioso área da educação - alvfssarasl - vem aconte­
exorta a uma devoção profunda e autêntica.' cendo coísa semelhante. Grupos dentro das
A autora recorreu ainda aos diários íntimos Universidades vêm iniciando e implantando
das meninas moças. Alguns inéditos, outros essa linha de pesquisa, ampliando aquilo que
publicados anônimamente e encontrados na poucas pessoas e algumas instituições já
Biblioteca Nacional constituem sempre uma vinham realizando,reconhecendo, finalmente,
preciosa fonte reveladora do quotidiano, das que a educação é sexuada, que na história
emoções e sobretudo dos efeitos do modelo existem outras relações que não apenas as de
inculcadol8• cl�.

Belo Horizonte, verão de 1990.

***

Notas

1. PAIRE, Alain. L'histoire sans qualités. Paris, Nahoum-Grappe ressaltou a dificuldade de se


Galilée, 1979,223pp. empregar o termo 'gender' em francês, já que,
para expor uma linha de pesquisa ele é opaco.
2. A palavra ebruitée pode ser traduzida por Se se diz na França, e ela reconhece que
alardeada, propalada. pode ser diferente em pafses de Ifngua inglesa,
que se trabalha com "genre", ninguém saberá
3. Este artigo está traduzido no livro de artigos do que é que se está falando, que trabalho
de Michelle Perrot organizado por Estela seria esse.
Brescianni "Os exc lufdos da história". Rio de
Janeiro, Paz e Terra, 1988. 9. Les Ca hiers du GRIF. Paris, Editions TIerce,
Printemps 88, n" 37/38. Ver neste número o
4. PERROT, Michelle. Une histoire des femmes artigo de Joan Scott traduzido por Guacira
est-elle posslble? Paris, Rivages, 1984. Louro.

5. Resumir esse artigo traz uma dificuldade 10. FARGE, Arlette. Le Gout de l'Arc hlve. La U­
adicional que é o desconhecimento e a dificul­ brairie du.lOCe siecle, Paris,Seuil, 1989. 153pp.
dade de acesso aos artigos que o autor cita
como exemplos das questOes que propOe. 11. Temps Modernes nO spécial: Petites Filies an
Assim, o que vai exposto é apenas a idéia Éducation. Mai, 1976
central do texto.
12. PIGNON, Leila Sebbar. Une patife filie, ça
6. Este texto, embora fruto do mesmo Colóquio existe. Presentation - Temps Modernes op.cit.
e pela mesma autora, é em vários pontos p. 1769,1no.
diferentes do outro a que me referi atrás e vale
a pena rever também este. 13. PENELOPE pourl'histolre des femmes. Educa­
tion des filies, Enseignement des femmes. N°
7. É preciso ficar claro que utilizo a palavra 2 Printemps 1980. Publication du Groupe
momentos não como etapas sucessivas e d'Études Féministes de l'Université Paris 7 et
demarcadas, mas como espaços de tempo du Centre de Recherches Historiques de
delimitados. l'ÉcoIe des Hautes Études en Sciences Soeia­
les. Foram publicados treze números temáti­
8. Em curso dado em Belo Horizonte, na Facul­ cos e no último, dedicado à Velhice das Mu­
dade de Educaçêo (12-9-89), Veronique lheres, a explicaçêo de que a ausência de

31
recursos, apesar do apolo Institucional, Impe­ ro da BeIJe Époque. Rio de Janeiro, paz e
diria a continuação da publicaçAo. Terra, 1989. COSTA, Albertina de O. e
BRUSCHINI, Cristina. Rebeldia e Submissão.
14. Destaco algumas dessas linhas que me pare­ Estudos sobre a condição feminina. São
cem mais atraentes: 'A Igreja e a Escola de Paulo, Vértice, Fundação canos Chagas, 1989.
meninas'; 'Jornais para meninas'; 'Mulheres BERNARDES, Maria Theraza C.C. Mulheres de
professoras'; 'Ensino doméstico'; 'InstltulçOes­ ontam? Rio de Janelro-Século XIX. São Paulo,
Escolarização'. T.A.Queiroz, 1989. SAMARA, Enl de Mesquita
As Mulheres, o poder e a farnOla. São Paulo,
15. SONNET, Martlne. L'Éducatlon des filies au Século XIX. São Paulo, Marco Zero, 1989.
temps des Lumieres. ParIs,Cerf,1987. 354p; D'INCAO, Maria Angela (org.). Amor e Famflia
BRICARD, lsabelle. St#ntes ou Pouliches no Brasil. São Paulo, Contexto, 1989. Destaca­
L'éducatlon des feunas filies au XlXe slàc/e. mos ainda a reedição de duas obras de Nfsia
Paris, Albln Michel,1985.351p. LÉVY, Marie­ Floresta: . Direitos das Mulheres
Françoise. De meres en filies L'éducation des e Injustiça dos Homens. Introdução e Notas de
françaises 1850-1880. Paris, Calman-Lévy, Constância Uma Duarte. São Paulo, Cortaz,
1984.190p 1989. ( A primeira edição é de 1832)
-:-__:---:' Opúsculo Humanltário.lntrodu­

16. Esse parágrafo é um resumo de trechos do ção e notas de peggy Sharpe-Valadares. São­
Prefácio de Daniel Roche. Paulo, Cortez/INEP,1989. (A primeira edição é
de 1853).
17. A esse respeito Cf: LANGLOIS, Claude. Le
Catholiclsme au féminln. Les congregations 20. Ao final desse trabalho agradeço a muitas
françaises ê supérieur généra/ au XlXe siàc/e. pessoas. Agradeço a muitas mulheres em
Paris, Editions du Celf, 1984.n6p. especial. A várias autoras de trabalhos citados
nesse artigo que me receberam com gentileza
18. Os resumos dos livros citados foram feitos a e disponibilidade, Arlette Farge, Michelle Perrot
partir de suas IntroduçOes ou Prefácios. e Genevieve Fralsse, e com amor, Véronique
Nahoum-Grappe, quando do meu Já,
19. Podemos destacar os seguintes trabalhos infelizmente, distante P6s-doutorado em Paris.
publicados recentemente: BRESCIANI, Maria Ao meu pequeno GEHEM, Grupo de Estudos
Stella M.(org) A Mulher no Espaço Público. da História da Educação da Mulher (FaE­
Revista Brasileira de Hist6ria.v.9 n" 18. UFMG), Ude, Cidinha, Samora, Silvana, Iracê
ANPUH.São Paulo, Marco Zero,1989. SOIHET, e Shirley e ao grande Grupo que aqui e ali,
RacheI. Condição Feminina e formas de vio­ tem lutado bravamente para sair do gueto, em
lência. Mulheres pobres e ordem urbana 1890- especial, Teresa Cunha e Guacira E ainda à
1920. Rio de Janeiro, Forense, 1989. ESTE­ Odália, e ao RO porque me mostram ao vivo,
VES, Martha de Abreu. Meninas Perdides. Os a cada café da manhã, que a vida mesmo é
populares e o cotidiano amor no Rio de Janei- que é essa fascinante trama de relações do
indissolúvel tripé raça. classe e...gênero.

***

Eliane Marta Teixeira Lopes é professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais
e coordenadora do Grupo de Estudos sobre História da Educação da Mulher da FAE/UFMG.

32
ste artigo apóia-se em lembranças de algu­ Garibaldi, e, mais tarde, fundam Antonio Prado,
E mas mulheres de uma pequena comunida­ Alfredo Chaves, Encantado e outras.
de italiana do Rio Grande do Sul. Seus depoi­ Conta Loraine Giron que "a divisão de terras,
mentos constituíram-se no elemento fundamen­ em todas as colônias, obedeceu ao sistema de
tai de uma pesquisa que desenvolvi, com apoio glebas contínuas denominadas léguas", estas
do CNPq, intitulada "A Mulher e a Educação na eram divididas por estradas (travessões) e a
Antiga Colônia Italiana no Rio Grande do Sul". partir destes eram demarcados os lotes. Não
Aqui procuro trazer a fala destas mulheres e havia qualquer regularidade tanto com relação
articulá-Ia a algumas reflexões. às características dos lotes como à sua destina­
Antes de ouvi-Ias, no entanto, parece ser ção, ou seja, eles eram de várias dimensões,
importante fazer alguns destaques sobre o tinham muita diversidade quanto a qualidade da
processo de imigração italiana neste estado e terra e localização, eram de vários preços (sem
conhecer um pouco a comunidade onde elas que estes elementos estivessem relacionados:
viveram e vivem até hoje. dimensão - qualidade - preço); e ainda eram
distribuídos sem que se levasse em conta o
A ColÔnia Hallana tamanho das famílias. Segundo esta autora é
provável que tenha havido muita especulação
Foi por volta de 1875 que os italianos come­ na implantação das colônias.
çaram a chegar no Rio Grande do Sul. Cin­ À época da imigração italiana, cabia ao
qüenta anos antes deles, em 1824, haviam governo provincial a maior parte do investimen­
chegado os alemães, os quais estavam a esta to para a empresa colonizadora, e este investi­
época já estabelecidos. A população na provín­ mento era posteriormente pago pelo colono.
cia concentrava-se, no entanto, apenas na Assim, após cinco anos,os colonos deveriam
região da Depressão Central e no Litoral e uma pagar suas dívidas (o lote, ferramentas, semen­
pequena parte ficava na Encosta Inferior do tes). O governo imperial cobria as despesas
Planalto. Havia, portanto, muitas terras desabi­ com a viagem desde a Europa e a hospeda­
tadas, especialmente nas encostas da serra. gem dos primeiros tempos. Diz Loraine:
Com a diminuição do fluxo de alemães, no
intuito de povoar estas regiões, o governo o cálculo das dividas (...) era realizado conside­
estimula a vinda de imigrantes de outras áreas rando 30% a mais sobre o valor total do lote
da Europa. recebido. Este cálculo não levava em conta o
Os italianos se estabelecem portanto numa número de membros da famOia Para receber os
tftulos provisórios, da propriedade da terra, os
região que se limita com a dos descendentes
colonos deveriam saldar 20% de seus compro­
de portugueses, por um lado, e com a dos
missos com o Governo. Só depois de ter sido
imigrantes alemães, por outro. São geralmente liquidada toda a divida, seriam fornecidos os
terras de maior altitude (de 600, 900 metros) e tftulos definitivos das propriedades (Giron apud
em muitas zonas cobertas de pinheirais, o que Dacanal e Gonzaga, 1980, p. 63).
desistimulara os criadores de gado e agriculto­
res. Ali eles fundam as colônias de Duque de Assim é de se supor que os colonos passa­
Caxias, Dona Isabel, Conde d'Eu, as chamadas ram duros anos preocupados com suas dívidas.
"colônias velhas" e que hoje correspondem aos A maioria saldou-as inteiramente, uns poucos
municípios de Caxias do Sul, Bento Gonçalves, tiveram-nas perdoadas e outros, por não paga-

EDUCAÇÃO E REAUDADE, Porto Alegre, 16(2):33-43, Jul/dez. 1990 33


rem, tiveram seus bens leiloados. aspiração de todos os imigrantes. Assim as
Ainda que muitos tenham vindo para o Brasil tradições e valores culturais se conservaram
na esperança de enriquecer e voltar, para a mais oralmente do que por escrito, mas não se
maioria este enriquecimento não se deu, e perderam: foram transmitidas de uma geração
foram muitos os que ficaram na nova terra No à outra através da família, da religião, do traba­
sul, sua presença iria marcar um tipo novo de lho, da música e das festas.
exploração do solo e desenvolver um novo Parece-me interessante ressaltar o quanto o
agrupamento social (no Rio Grande haviam valor do trabalho e, através dele, a conservação
tradicionalmente se constituído estâncias agro­ da terra e da pequena propriedade vão se
pecuárias - grandes extensões de terra nas tornar marcas significativas deste grupo social.
mãos de poucos e ricos proprietários). Isso talvez ajude a entender um pouco suas
Devemos notar que ao' final do século XIX, atitudes, geralmente mais conservadoras do
pouco tempo depois da chegada dos italianos, ponto de vista político e cultural.
a criação de gado mostra-se mais ou menos Buscando, pois, uma comunidade que de
estacionária no Rio Grande, com problemas de algum modo conservasse ainda hoje mais
competição com a produção do Prata; nesta autenticamente a vida da primitiva colônia
época já está em desenvolvimento a agricultura italiana, encontrei Santa Tereza, quarto distrito
na zona colonial (alemã e italiana) e começan­ de Bento Gonçalves (RS), distante da sede 30
do em outras áreas do estado as plantações de km. Entre montes, banhada pelos rios Marrecão
arroz e trigo. Também já há neste momento e Taquari, a comunidade foi fundada pelos
condições para o desenvolvimento do comércio imigrantes ao redor de 1887. Uma igreja e um
e para a instalação das primeiras fábricas: são campanário constituem o marco principal da
curtumes, sapatarias, fábricas de vinho, vinagre, praça, ao redor da qual várias construções do
etc., todos produtos ligados ao setor agropecu­ fim do século passado e início deste ainda se
ário. conservam. O campanário (ao estilo de Treviso
Algumas modificações podem ser notadas no e recentemente restaurado) é um orgulho da
final do século na sociedade sulina. Neste comunidade, pois foi construído pelos antigos
processo os imigrantes têm papel significativo: imigrantes com tijolos feitos a mão. A igreja
como pequenos proprietários e artesãos eles primitiva foi, ao contrário, destruída e em seu
vão contribuir para o desenvolvimento das lugar, há uns doze anos atrás, ergueu-se uma
camadas sociais médias e com seus agrupa­ modernosa construção.
mentos em vilas, linhas e picadas, vão contribu­ Chega-se a Santa Tereza por duas estradas
ir para o processo de urbanização em cresci­ de terra, o que torna os trinta quilômetros mais
mento. É interessante observar que os imigran­ lentos e talvez contribua para uma certa preser­
tes traziam para aqui experiências diversifica­ vação do ritmo de vida local. Ao longo da
das. Muitos vinham do trabalho agrícola, mas estrada velha vêem-se casas de alvenaria
outros eram operários industriais e artesãos em (algumas modernas e ricas, a maioria simples,
sua terra de origem (alfaiates, carpinteiros, mas SÓlida); de quando em quando obser­
ferreiros, sapateiros, funileiros, farmacêuticos, vam-se pequenos oratórios e algumas igrejas e
músicos, etc.). capelas maiores. Dos dois lados da estrada a
Suas vilas e povoados se organizavam quase plantação da uva é uma constante, demarcada
sempre ao redor de uma igreja católica, que por plátanos. Várias escolas municipais de
geralmente dispunha de um salão recreativo e primeiro grau também podem ser observadas.
de uma escola primária paroquial. A religião era A estrada nova atravessa uma zona muito
um ponto importante na vida cultural destes menos habitada, embora as videiras estejam
grupos e era ao redor da igreja que se desen­ igualmente presentes por todos os lados.
volviam as quermesses, os jogos, as reuniões Não há na localidade hotel ou restaurante;
para conversar e discutir. uma padaria fornece refeições aos que estão
A escola, como instituição formal de trans­ por ali de passagem. Há uma sub-prefeitura,
missão e elaboração do saber sistematizado, uma agência do Banco do Estado, uma central
da cultura letrada, não era a princípio muito telefônica, um posto de gasolina e um camping
valorizada, nas comunidades italianas. Aí se às margens do rio Taquari; além da Cooperati­
acreditava muito mais na importância do traba­ va Vinícola
lho, ou seja, se confiava mais nas próprias Se os mais jovens se afastam para estudar e
mãos para vencer na vida - o que era afinal a as vezes ficam morando em centros maiores

34
(Bento Gonçalves, Porto Alegre, São Paulo), participavam do trabalho da roça, plantavam
ainda há famOias que conseguem conservar milho, feijão, mandioca .. Da uva faziam vinho e
filhos, noras e netos morando e trabalhando suco para consumo próprio (não para venda),
juntos ou muito próximos. Ao entrar em contato pois eram, de modo geral, de famOias pobres.
com algumas destas famOias - através de Além desta atividade havia o trabalho domés­
caminhos estreitos ou cruzando o rio de caia­ tico - exclusividade feminina.
que - observei que numa mesma ·Iinha· muitos Começavam cedo nestas lidas. Conta d.
eram parentes. Maria:
Sendo o foco inicial da pesquisa a educação
das mulheres nos tempos mais antigos, dirigi Com seis anos eu era empregada (...)para
minha atenção para referências às primeiras cuidar das crianças e quando elas iam dormir
escolas na região. Como muitas outras comuni­ eu ia para cozinha fazer comida. Com cinco
dades, também em Santa Tereza o primeiro 'soldi' por mês (.. ) Isto com seis aninhos...
. .

·colégio· foi mantido por um professor que,


Possivelmente a situação de d. Maria (traba­
conforme a lembrança dos mais velhos, atendia
numa mesma sala os diferentes ·livros· (adianta­ lhar na casa de outros e receber por isso) não
mentos). Segundo depoimentos, ali chegavam era a mais comum. Em geral todas as mulheres
desde meninas cuidavam dos irmãos menores
a estudar 70, 80 alunos. Era uma escola mista,
mas poucas meninas a freqüentavam. Em 1928 e ajudavam a mãe nas tarefas domésticas, além
do trabalho da roça.
foi construída na localidade a primeira escola
Diferente das mulheres urbanas das cama­
municipal e, em 1939, começou a funcionar o
das médias ou pequena burguesia, que identifi­
Grupo Escolar Vicente Rodrigues.
cam trabalho como trabalho fora de casa, as
Com apoio de um filho da terra (diretor do
colonas parecem compreender de um modo
Museu do Imigrante em Bento Gonçalves) fui
mais global o trabalho ou, pelo menos, não
apresentada a algumas mulheres de Santa
fazem classificações e subdivisões no ·seu·
Tereza e com cinco delas conversei mais longa­
trabalho. Não parece haver também uma valo­
mente. Foram elas: Elizabeth (89 anos), Maria
ração diferente, já que todas as tarefas são
(93 anos), Adelina (71 anos), Marieta (92 anos)
percebidas por elas como igualmente necessá­
e Anita (69 anos). Nossas conversas ocorreram
rias e indispensáveis. Na roça, ao lado dos
em suas casas na presença de suas famílias
homens (maridos, irmãos, pais) exerciam todas
(em três delas os maridos estavam presentes e
as atividades: plantar, colher, ou mesmo montar
acrescentaram comentários). Os depoimentos
num animal, levar uma tropa de burros e trans­
foram gravados (embora com algumas falhas)
portar o excedente da produção para ser
e não houve roteiro fixo para as entrevistas.
vendido. Somado a isto estava o trabalho
Nestas cinco histórias há muitos pontos em
doméstico, as usualmente chamadas
comum, mas sem dúvida o elemento que
atravessa todas as recordações é o trabalho.
... tarefas não remuneradas de reprodução, quer
Quando indagadas sobre a preocupação dos
dizer, todas aquelas atividades que contribuem
pais para com a sua educação, ou ·que coisas·
para que se reproduza e se reponha a força de
seu pai e mãe desejavam que aprendessem, as trabalho e a unidade familiar. Estas atividades
respostas da maioria delas se encaminhava são, entre outras, a transformação e preparação
para ·Iavar roupa, ajudar na roça, cuidar das dos alimentos, a criação e educação dos filhos,
crianças menores, costurar, fazer alguma comi­ a atenção paramédica e psicológica, a vincula­
da·, enfim para o trabalho. Esta a lembrança ção social com outras famOias e grupos e a
imediata, ou a educação mais básica e indis­ realização de atos cerimoniais e rituais coletivos
pensável. Ouvindo um a um os depoimentos foi (Arizke, L 1986, p. 60).
ficando claro para mim que o trabalho teria de
ser o eixo interpretativo, ao qual a educação (e O trabalho da roça era primordialmente para
outros fatores) se articulava. A fala dessas a própria subsistência do grupo familiar, daí
mulheres ajudará a conhecer melhor esta provavelmente sua (quase) não distinção do
realidade. trabalho doméstico. Ambos se constituem
trabalhos não remunerados - pelo menos em
Uda das Mulheres: a Roça e a Casa grande parte. Talvez isto ajude a entender
A
melhor porque estas mulheres não fazem uma
Na colônia italiana, meninas e mulheres classificação (hierarquizada) do trabalho fora de
casa e em casa. Com exceção de uma depoen-

35
te (a mais jovem, Anita) que referiu ter sido seu colo, e outros dois segurando a barra da saIa".
pai um grande plantador de uva, todas as A responsabilidade que as mulheres assu­
demais pareciam ter crescido com dificuldades mem com relação à casa, ao chamado mundo
econômicas. O excedente da roça (pouco) era do privado, implica não só na manutenção das
vendido, com o que podiam comprar os demais condições materiais deste mundo (alimentação,
produtos necessários para a vida As evidên­ vestuário, saúde, higiene etc.) como também o
cias desta situação são muitas: o tipo de comi­ zelo pelo bem-estar dos que ali convivem. Pela
da, a partilha dos alimentos entre os numerosos tradição desta região, como de algumas outras,
irmãos, o mesmo vestido servindo a várias ao casar a mulher "passa" para a famma do
irmãs (cada uma ia à missa uma vez com ele), marido, ligando-se mais estreitamente a esta e,
o abandono da escola para ajudar à famma e em conseqüência, assumindo encargos a ela
muitos outros. referentes. É portanto "natural" dentro deste
Perguntada se havia diferença entre o seu contexto a situação vivida por D. Elizabeth que,
trabalho e o de seus irmãos homens, D. Adelina pelo casamento, passa a ter a obrigação de
lembra: cuidar do pai e dos irmãos solteiros de seu
marido, além, obviamente, de seus próprios
Trabalhavam parelho. Eu trabalhava mais na filhos.
roça. Depois, com nove anos, ia na aula. De Por outro lado, talvez fosse interessante
manha, na aula, de tarde, na roça. Era uma roça refletir um pouco sobre o sentido deste "mundo
de escravo, bem dizer. Boa, produzia bastante, privado", pois aqui o que temos é uma socieda­
mas tinha que carregar tudo nas costas (era
de em que o trabalho - atravessando a casa e
morro). Comecei a ajudar meu pai desde pe­
a roça - liga estes mundos, ao invés de sepa­
quena, mais na roça do que em casa Depois
.

chegava em casa e então tinha de ajudar minha rá-los. Nas sociedades urbanas industrializadas
mãe: tirando leite, varrendo o terreno. .. tem-se o oposto disto, ou seja, tem-se uma
clara separação entre o trabalho doméstico,
Certamente as condições de vida eram muito não remunerado, do trabalho remunerado, fora
dificeis para todos (o que provocou a participa­ do lar. De certo modo, aqui, o trabalho na roça
ção de um dos maridos na entrevista, reivindi­ é uma continuidade do trabalho da casa e, em
cando também para si a dureza do trabalho, ambos, a mulher está envolvida Isto talvez
quando percebeu que se destacava o esforço pudesse contribuir para uma menor distinção
feminino). Estes colonos que exploraram e entre mundo privado e público.
ampliaram, à custa de muito sacrifício, lotes que No entanto, parece-me que há algo mais,
seus pais ou avós receberam como imigrantes, além do trabalho (remunerado),que distingue
sofreram - enquanto grupo social - o desam­ estes mundos. Há diferenças no âmbito dos
paro de governos que lhes prometeram apoio, contatos Oá que no mundo público há o conta­
ferramentas, sementes etc. e, como contam, to com "os outros" - os de fora da famma), há
"abriram o mato a facão". Embora pequenos diferenças nas possibilidades de troca (e confli­
proprietários, certamente fIZeram, e muitos tos) de idéias, influências, poderes. E estas
ainda fazem, parte das camadas dominadas. diferenças, que denotam a maior amplitude do
No entanto, dentro deste grupo há uma outra mundo público, parece que permaneciam
dominação, a qual, ainda que tenha algumas privilégio dos homens, pelo menos nos primei­
diferenças em relação aos grupos urbanos ros tempos desta comunidade. As horas de
médios e burgueses, mantém as mesmas lazer, os jogos e a conversa na "bodega" no
características daqueles. Refiro-me à domina­ domingo eram uma prerrogativa masculina, que
ção das mulheres e crianças pelos homens. possivelmente tinha como contrapartida o
As mulheres da colônia trabalhavam junto encontro das mulheres na igreja, ou na própria
com os homens, mas também, e principalmen­ realização (coletiva) de algumas tarefas domés­
te, trabalhavam para os homens. ticas que, por força das condições da época,
Quando D. Elizabeth vai se casar (aos 19 tinham de ser realizadas fora da casa, em
anos), o pai do seu futuro marido está viúvo lugares públicos (por exemplo, lavar roupa no
com dois filhos solteiros. Recebe ela então, rio). No entanto, entendo que, mesmo com
pelo casamento, a responsabilidade de cuidar estas alternativas, certamente havia desigualda­
de quatro homens adultos. Logo após começa de no tocante à "mobilidade"e aos contatos; ou
a ter seus filhos, o que faz com que recorde seja, a possibilidade de circulação das mulhe­
que ia à roça com "um filho na barriga, outro no res nesta comunidade era menor do que a dos

36
homens. qualquer prática social. Resistência que, neste
caso, acarretava, provavelmente, mais imposi­
Poder e Autoridade ção da força do pai e também seu desafeto.
A fala sugere ainda a compreensão de que
Quando D. Elizabeth está recordando sua a mãe - mesmo batendo mais nos filhos -
história, ela em dado momento afirma: também estava submetida à autoridade do
marido. "A mãe sabia" (que não podia respon­
Nem parece verdade o que eu fiz I Depois de der). "A mãe era como uma irmã" (as mulheres
quatro dias que eu ganhei ele [o filho], eu percebem que têm uma identidade, têm um
estava no rio, tinha que lavar roupa e era d0- lugar social semelhante).
mingo. ( . .) Eu precisava trabalhar. Eu confessei Esta situação de submissão ao homem
uma vez que fui no padre, que eu "anche" era
(marido, pai) parece que não as impedia,
domingo eu tinha as vezes que lavar roupa no
rio. O que ele me disse? "Deixa, faz um pouqui­
contudo, de uma grande desenvoltura nas
nho escondido, para não dar exemplo ao po­ decisões menores do cotidiano, na organização
vo"( ... ) Vê, não é como agora, que se tem um do seu tempo e o dos filhos. Na comunidade
tanque em casa, que se lava por perto... de Santa Tereza, há referência a mulheres que
sustentaram (no sentido mais amplo do termo)
Eu pergunto, quase afirmando: - Pedia-se suas famílias, seja devido à viuvez, seja devido
muito conselho para os padres, não é? E ela a um marido mais "fraco" para os negócios.
imediatamente responde, firme: "Mas é claro! Pareceram-me, contudo, que estas histórias
Tinha alguém que entendia as coisas". eram contadas como excepcionais, ou, pelo
A autoridade do padre era indiscutível. Ao menos, como fatos que fugiam à regra. Certa­
lado desta, outra autoridade indiscutível tam­ mente essas mulheres existiram e atuaram
bém era masculina: a do homem da casa (o pai deste modo, ou seja, foram com suas vidas a
ou o marido). De um modo geral, as entrevista­ contraface do comportamento feminino da
das afirmaram que o pai era severo, ou lembra­ maioria Mas as depoentes transmitiram-me
ram que com um olhar ele dizia o que queria. uma tácita aceitação da autoridade masculina,
Algumas referiram que a mãe "mandava" mais até mesmo quando uma delas, com bom hu­
nas crianças, mas o pai "mandava" na mãe. De mor, fez referências jocosas e generalizadoras
certo modo havia também aqui uma divisão sobre os homens.
entre decisão e execução. O pai tomava as A hipótese que eu levantara ao projetar a
decisões consideradas importantes e a mãe pesquisa, ou seja, de que a participação femini­
executava essas decisões, era a disciplinadora na de modo direto na produção pudesse acar­
do cotidiano. Também ela obedecia ao olhar do retar uma certa consciência de sua importância
marido e conhecia seus significados. Na verda­ ou mesmo um certo poder, teve pois de ser
de era mais do que isso, a mãe introjetava a revista As mulheres que encontrei demonstra­
autoridade do pai, as probiçOes e os limites vam consciência de sua contribuição social,
para ação e acabava ajudando a reproduzi-los. tinham a percepção de que seu trabalho era
Lembra D. Adelina: "parelho" com o dos homens e ainda que era
acrescido das tarefas domésticas. No entanto
O pai era severo. Eu não posso me queixar do Isto não parece ter significado para elas o
meu pai. Ele era severo, sim, mas não respon­ poder. O poder permanecia com o homem. À
der para ele era bom. Eu tinha uma Irmã que propósito, Michelle Perrot (1988, p.167) faz uma
respondia pro pai, quando ele era demais, né? distinção entre poder (com "conotação política
Então ela respondia, mas ele não gostava dela e que designa basicamente a figura central",
Eu não respondia, calava Então assim ele com autoridade, geralmente figura masculina) e
gostava Ele não gostava que ninguém respon­
poderes ("influências difusas e periféricas, onde
desse. Quando ele mandava, era para fazer o
serviço e não responder. Eu nunca respondia
as mulheres têm sua grande parcela").
para ele. A mãe sabia. Ela me batia mais do Talvez esta fosse a parcela possível de ser
que ele (...), mas ela era como uma irmA. exercida: os poderes discretos e difusos, as
influências que, apenas sugeridas, não pertur­
D. Adelina escolheu o silêncio para lidar com bam a manutenção do poder de fato masculino.
o pai. O silêncio não foi, no entanto, o caminho M. Perrot comenta vários estudos que apre­
de sua irmã - o que aponta para os comporta­ sentam uma "inversão" do poder, ou seja,
mentos de resistência, sempre presentes em buscam fazer uma leitura nova de diversas

37
sociedades e épocas para demonstrar o poder contexto a escola não chega, pois, a ser vital,
das mulheres. Num desses estudos é mencio­ imprescindrvel (especialmente para as meninas­
nado que a "perpetuação do 'mito' do poder Imulheres). No entanto, parece que a escola
masculino serve aos interesses dos dois 'gêne­ era desejada, pelo que se nota nos depoimen­
ros'; por trás da ficção deste poder, as mulhe­ tos. Diz D. Adelina:
res podem desenvolver à vontade suas próprias
estratégias" (Rogers, apud Perrot, 1988, p. 117). Eu la à escola municipal. Era na linha Leopoldl­
Mesmo desejando fazer uma leitura que na A minha professor a (...) acho que ainda está
destacasse o poder feminino, eu não poderia viva Tinha mais de 3 km de estrada a pé (...).
estender essas afirmações ao grupo estudado. Eu fui três anos na escola Eu comecei a escre­
ver em 1928. Mas naquele tempo se passava
Como a própria Suzan Rogers que, em outro
um livro, outro, até o 50 livro. Depois tinha a
estudo, teve de reconhecer mulheres com
Seleta Eu estudava bem, ajudava bastante a
muito menos poderes, também no presente minha professora Ela tinha 40 alunos, do 10 até
caso esta foi a situação constatada. Não perce­ a Seleta Então eu ajudava a ensinar os outros.
bi o poder masculino como um "mito" ou uma Eu gostava da professora também e de estudar
ficção, muito pelo contrário ele me pareceu bastante. Mas como eu era a mais velha da
bastante concreto. casa, meu pai não me deixou estudar. Eu podia
A administração do orçamento familiar - que ter mais um ano de colégio. Ele não me deixou.
Perrot (1988,p.191) aponta como prerrogativa Eu sofri a minha parte...
feminina - não era usualmente feita pelas
mulheres na colônia Perrot indica, por exemplo, Com exceção de D. Anita, de família mais
o dia do pagamento (na situação de famílias de abastada e que teve um processo de escolari­
trabalhadores do século XIX) como "um dia de zação mais longo, todas as demais estudaram
confronto entre os sexos", já que a mulher tem pouco ou não foram à escola D. Adelina foi,
de estender o dinheiro para dar de comer à entre estas, a que cursou um período maior (3
famllia Segundo a autora, muitos operários anos), as outras lembram de alguns meses, ou
entregavam seus salários às mulheres e elas de terem saído logo após saberem ler.
"deixavam para eles uma pequena quantia para Conta D. Marieta:
a bebida".
Isso não parece ter acontecido, pelo menos Nasci do outro lado do rio. Fui à escola lá, em
Monte Belo. Minha mãe me mandou para lá
como norma, na colônia Perguntada sobre a
com minha madrinha, mas ela, antes de me
questão do dinheiro, D. Elizabeth sorri e diz que
mandar para escola, me segurava em casa para
este era muito pouco, mas era o homem que cuidar dos guris; e eu aprendi pouco. (...) As
cuidava dele. Seu marido toma a palavra e meninas (...) só o primário, mal e mal...
acrescenta: - "Quando eu me casei, ela nem
sabia as diferenças dos dinheiros". E ela, justifi­ D. Elizabeth e D. Maria não foram à escola,
cando-se (?) diz que 'inha de trabalhar muito no entanto, D. Maria conta que aprendeu
em casa para ajudar a mãe a cuidar dos ir­ sozinha a ler:
mãos, então..." (não pode aprender a lidar com
isso). Eu sei ler um pouquinho. (...) Eu não ia à esc0-
Parece-me que há necessidade de pontuar­ la Na roça (...) eu usava grampos para segurar
mos as diferenças entre os dois contextos. Os os cabelos (...) e eu comecei a escrever [com
estudos de Perrot tratam de mulheres urbanas, eles] nas folhas de milho: a, e, I, o, u. Eu e
ligadas direta ou indiretamente ao trabalho das minha IrmA. (...) Sim, os Irmãos ajudavam.
fábricas; aqui, por outro lado, nos defrontamos
com um contexto rural, uma comunidade de Em outro momento, ela expressa suas opini­
colonos pequenos proprietários, pobres, em ões sobre a importância da escola:
sua maioria
Colégio para meninas? Éramos onze de mulher,
foi uma só (...). Mas acho que era mais preciso
A Educação: escola e religião
para as mulheres do que para os homens. Por
quê? Porque sim. Porque eles vão e as mulhe­
O que era necessário e indispensável apren­ res têm que pensar em tudol Quem é que
der numa comunidade como esta? Já ficou pensa para a cozinha, para fazer comida? Os
claro que fundamental eram as lides de casa, homens não, é a mulher.
as tarefas e as habilidades da roça Neste

38
É interessante observar que as tradicionais çOes de produção e as visões de mundo.
tarefas domésticas femininas são usualmente Vivendo atualmente no mesmo distrito de
tidas como naturais, e sobre elas geralmente Santa Tereza e com condições de vida aparen­
não se concebe uma elaboração, ou seja, temente não muito diversas de algumas das
supõe-se que o cuidado das crianças, o prepa­ entrevistadas, D. Anita tem, no entanto, uma
ro dos alimentos, etc. vinculam-se ao mundo da história diferente, onde o trabalho na lavoura
natureza (tido como feminino) e não ao mundo não foi mencionado. Seus comentários sobre
da cultura (masculino), numa divisão que liga­ educação dirigiram-se para a educação escolar,
-se às concepções mais antigas. D. Maria, com da qual ela tem uma memória bem detalhada.
sua fala, acena para uma compreensão diferen­ O Colégio das irmãs onde foi estudar era um
te, lembrando que as tarefas domésticas, ainda internato, com aula o dia inteiro (pela manhã:
que repetitivas e cotidianas, exigem uma série matemática, português... ; à tarde: trabalhos
de decisões e implicam em responsabilidades, manuais, ginástica...). Destaca muito o aprendi­
para as quais não se costuma dar a devida zado de trabalhos manuais, ·sabia fazer de
importância Daí ela chamar a atenção para o tudo: triCÔ, crochê, filé, macramê .. É orgulho­
. •.

fato de que ·as mulheres têm de pensar em sa de suas habilidades, e também o é seu
tudo'· marido, que pede para que ela nos mostre suas
A seguir, quando comenta que não foi à toalhas e colchas.
escola e aprendeu pouco, diz: ·Graças a Deus D. Anita conta que o pai dizia que as filhas
eu criei meus filhos, e isto basta'· podiam seguir a profissão que quisessem,
Portanto, em relação à escola, seu depoi­ menos serem professoras. Explica que esta
mento parece mostrar sentimentos contraditóri­ restrição era feita porque na época as professo­
os. Há uma percepção de que a escola seria ras recém formadas não ficavam nas sedes dos
necessária ou importante para as mulheres, municípios, e eram mandadas para as colônias
mas ao mesmo tempo há a constatação de que e linhas. ·Uma vida sacrificada, tinha de andar
sem ela foi possível realizar a tarefa fundamen­ muitos quilômetros·. Como não havia outras
tai de sua vida: criar seus filhos. possibilidades de estudo para a mulher (conta
D. Anita pode exemplificar uma trajetória que a escola de comércio era só para rapazes)
diferente, por situar-se em outro estrato social. ela não quis continuar estudando.
Ela classificou sua família como de ·classe Como antes referi, D. Anita nos acena para a
média baixa·, mas também afirmou que seu pai diversidade, para uma certa matização nas
era um ·grande plantador de uva·. Eram quatro figuras femininas da região. Além de alguma
irmãs. Por não ter ·nenhum filho homem para diferenciação na condição social familiar, tem
cuidar dos negócios·, decidiu então o pai deixar de ser notado que ela é a mais moça do grupo
a plantação e foi morar na sede. Ela, que já entrevistado (com 19, 20 anos de diferença de
cursara os primeiros livros, foi então junto com três outras depoentes) e este dado parece ser
suas irmãs estudar no Colégio S. João, mantido importante. A geração de mulheres imediata­
por religiosas. O colégio particular, em conse­ mente seguinte (as filhas das depoentes de 90
qüência, o tipo de ensino, bem como as preten­ anos) já teve ampliadas as oportunidades de
sões que o pai tinha para suas filhas são obvia­ escolarização: pela existência de mais escolas
mente diferentes das expectativas das outras públicas, por algumas melhorias de comunica­
entrevistadas. Isto só reforça a idéia de que é ção dentro da própria região e mudanças nas
impossível falar-se em ·condição feminina·, no necessidades e aspirações do grupo familiar.
singular, e, mesmo em se tratando do estudo Quase todas as entrevistadas contaram que
de uma comunidade específica (de descenden­ suas filhas foram à escola e algumas delas se
tes de italianos) não havia aqui um único ideal formaram (concluiram o ginásio ou normaQ.
de mulher, mas sim diferentes condições femini­ Mas se havia um ponto fundamental e unifi­
nas, mediadas não só pela ascendência étnica, cador na educação das crianças, meninos e
mas pela situação de classe, história familiar meninas, este era a religião. A religião católica
etc. Importante notar também que este grupo era a referência, o apoio, a orientação, a obriga­
social (como qualquer outro) transformou-se ção.
desde a sua instalação no Rio Grande do Sul e Na casa de D. Maria, por exemplo, cujo pai
diversificou-se socialmente na medida em que tinha um salão de baile, rezava-se o terço antes
as comunidades se desenvolveram, se diferen­ do baile. ·0 pai dava um sinal, fazia assim com
ciaram, tornaram-se mais complexas as rela- a mão· (mostra) ·rezavam o terço juntos e

39
depois dançavam a noite inteira". educaçAo afinnav.se que o esforço (ffsIco e
Lembra D. Adelina: espiritual) era o móvel da vida; nada se alcan­
çaria sem esforço.
Todas as noites, o terço. A mAe também ensina­ As mulheres aprendiam a ser fortes (física e
va e o vO era catequista - catecismo italiano. moralmente), a obedecer e honrar seus homens
(... ) Mesmo que se estivesse doente, tinha que e a confiar em Deus.
rezar. Depois do terço quem tinha costura ia O trabalho era considerado por essas mulhe­
costurar, quem não tinha fazia trança [de corda,
res o seu viver, ou, em outras palavras, era
para fazer chapéus, e outras utilidades). (... ) A
pr�a também ensinava religião. As primei­
compreendido de modo global, sem diferencia­
ras oraçOes eu aprendi com ela ções o que parece tê-Ias levado a entendê-lo
,

num continuum do âmbito doméstico ao exter­


A religião era o suporte básico da educação no e deste para aquele. Esta conceptualização
(e, pelo respeito com que a ela se referem, de trabalho sugere a percepção, por elas, da
ainda hoje tem um papel muito importante na importância das mulheres para a manutenção
vida destas mulheres), ensinava-se não só pelo de suas famílias e de sua necessidade para a
exemplo, mas intencionalmente, em várias comunidade. No entanto isso não traz, como
situações. D. Elizabeth lembra que, enquanto conseqüência, o reconhecimento de um poder
ela fazia polenta ("a mulher tem sempre mais feminino semelhante ao atribuído aos homens.
alguma coisa para fazer, não é?"), o marido EIi Zaretsky (ap,H.d Sargent, 1981) considera
ensinava as orações para os filhos. D. Anita que a separação entre a casa e o lugar de
conta que sua mãe (que havia aprendido a ler trabalho, ou seja, à privatização do trabalho
sozinha) lia grandes romances em voz alta para doméstico e a realização do trabalho remunera­
as filhas (como a "Vida de Santa Genoveva"). O do fora do lar, é que constitui a causa funda­
exemplo da vida dos santos provavelmente mentai do grande aumento do sexismo. Para
servia como modelo para educação moral. ele, o capitalismo, criando esta separação,
Nesta comunidade, nos primeiros tempos acentuou a dominação sobre as mulheres e
não havia condições de o padre estar presente criou a "aparência" de que elas estão trabalhan­
todos os domingos, dai que a obrigação da do para os homens privadamente no lar; en­
missa não era fundamental, mas sim as ora­ quanto que, na realidade, elas estão trabalhan­
ções e o terço. Quando presente, o padre era do para o capital.
aquele que poderia dar uma orientação, um Heidi Hartman (apud Sargent, 1981) questie>
conselho seguro. Sua autoridade foi bem na esta argumentação, afirmando que a própria
exemplificada por D. Elizabeth: "Tinha alguém alocação dos homens num pólo (o mercado de
que entendia as coisas'" trabalho) e as mulheres em outro (o lar) não
O padre, o pai, o marido, o irmão mais velho pode ser explicada sem referência ao patriarca­
eram as autoridades que as mulheres respeita­ do.
vam. Creio que é importante notar que a comuni­
dade estudada é uma comunidade agrária e
Ainda alguns comentários que, no passado (período que foi objeto da
pesquisa), experimentava um modo de produ­
Nesta pesquisa a intenção primeira fora ção praticamente pré-capitalista Estas caracte­
destacar a educação escolar, e o encontro com rísticas parecem-me favorecer o entendimento
esta comunidade exemplar da antiga colônia na linha de Hartmann, ou seja, o patriarcado
italiana no Rio Grande do Sul me fez sentir a parece ser um elemento explicativo para a
necessidade de alargar meu olhar; de buscar dominação de sexo que antecede o capitalismo
compreender a educação de modo mais global e que, no meu entender, tem um poder explica­
e descobrir os momentos, as formas, as inten­ tivo maior.(Com isto não estou afirmando que o
ções que ela adquiriu para este grupo de capitalismo não possa ter acentuado, ou mais
mulheres. provavelmente, modificado as formas de domi­
Compreendi que a educação ali se dava nação sexista; apenas quero realçar o fato já
fundamentalmente no trabalho: na roça e na fartamente demonstrado de a dominação da
casa. Estava estreitamente ligada à vida cotidia­ mulher ter existido - e provavelmente ainda
na, preparando, desde muito cedo, as meninas existir - em muitas e diversas sociedades não
e os meninos para as funções e tarefas que capitalistas).
deveriam exercer quando adultos. Através da Seria então de indagar: se aqui encontramos

40
um grupo social no qual as mulheres exercem base é o controle que os homens têm sobre a
muitas tarefas semelhantes às dos homens, por força de trabalho das mulheres. Para ela isto
que elas não têm uma posição mais igualitária? cria solidariedade entre os homens e estes por
Algumas respostas podem ser ensaiadas. sua vez conseguem manter tal controle excluin­
Se neste contexto as mulheres participam do do as mulheres do acesso às fontes produtivas
trabalho fora do lar, realizando atividades e restringindo sua sexualidade (Hartman,H.,
semelhantes às dos homens, deve-se notar que apud Sargent, 1981).
estes, por seu lado, não participam do trabalho Numa outra perspectiva se acentuaria que o
dentro de casa, o qual permanece exclusiva­ patriarcado implica na internalização, através de
mente feminino. um processo inconsciente, das regras sociais
Assim, ainda que nos primeiros tempos da de dominação e subordinação sexual.
instalação e fixação dos imigrantes as ativida­ Há até mesmo importantes estudiosas, como
des de lavoura fossem fundamentalmente para Sheila Rowbotham, que apontam problemas
subsistência (o que permite compreender a neste conceito. Para ela, a palavra denotaria
família como uma unidade de produção e uma forma universal e histórica de opressão o
consumo), as tarefas especificamente domésti­ que acabaria nos remetendo às diferenças
cas sempre foram atribuição unicamente femini­ biológicas (fundamentalmente à capacidade de
na. A pouca demarcação entre os dois tipos de gestação das mulheres) e talvez obscurecesse
trabalho, pela não remuneração (em parte) do o fato de que as diversas sociedades ao longo
trabalho da lavoura, pode ter conduzido a esta da história construíram e constroem diferente­
compreensão mais integrada do conceito de mente os gêneros; ou seja, Sheila entende que
trabalho, mas não foi suficiente para romper o conceito de patriarcado acena muito mais
com a forte tradição patriarcal. Assim, no patri­ para a diferença sexual do que para as desi­
arcado teríamos provavelmente um dado expli­ gualdades sociais de gênero (Rowbotham,
cativo importante. Penso, no entanto, que esta apud Samuel, 1981).
é uma categoria a qual freqüentemente se Se trago aqui estas ressalvas, não o faço no
recorre sem que haja preocupação em defini-Ia, entanto com a intenção de descartar o concei­
o que talvez se deva às dificuldades teóricas to. Parece-me mais adequado acompanhar a
que a cercam; parece-me pois necessário fazer reflexão de outras estudiosas que, responden­
algumas considerações. do à Sheila, indicam a necessidade de uma
Certamente são muitas as fontes onde pode­ teoria das relações de gênero sem a qual de
ríamos buscar uma conceituação de patriarca­ pouco adiantaria colecionar informações sobre
do. Em todas elas teremos, é óbvio, uma carac­ as vidas atuais e passadas das mulheres, ou
terística comum: a idéia de uma organização ou reunir as diversas histórias de sua opressão.
regime social em que o pai (o homem, o chefe) Sally Alexander e Barbara Taylor afirmam que,
exerce a maior autoridade (ou a "autoridade assim como a dominação de classe, a de
preponderante" cf. Dicionário do Aurélio). Na gênero não pode ser entendida apenas por se
clássica obra de Engels, A Origem da Famflia, vivê-Ia É preciso analisá-Ia e as teorias que têm
da Propriedade Privada e do Estado, lemos que sido desenvolvidas em torno do patriarcado
o que caracteriza a família patriarcal é "a organi­ são, para estas autoras, as primeiras iniciativas
zação de certo número de indivíduos, livres e sistemáticas para proporcionar conceitos de
não livres, numa família submetida ao poder análise (Alexander e Taylor, apud Samuel,
paterno do chefe" (Engels, 1984, p. 95). Adiante 1981).
ele lembra que a palavra família significava, em Assim, mesmo admitindo precariedades,
sua origem, "o conjunto de escravos pertencen­ valho-me do conceito para buscar compreender
tes a um mesmo homem" e que, na Roma a vida destas mulheres.
Antiga, esta expressão servia para designar "um Mesmo que os vínculos mais concretos de
novo organismo social, cujo chefe mantinha sob posse do homem (paQ sobre os membros da
o seu poder a mulher, os filhos e certo número famnia não apareçam na maioria das socieda­
de escravos, com o pátrio poder romano e o des contemporâneas do mesmo modo que se
direito de vida e morte sobre todos eles" (En­ faziam notar nas sociedades antigas, encontra­
gels,1984, p. 96). mos, ainda hoje, uma autoridade masculina
As feministas marxistas buscam encontrar preponderante que em certo sentido pode ser
uma base material para o patriarcado e, entre entendida como um tipo de "posse" espiritual,
elas, a já citada Heidi Hartman afirma que esta e isto me parece presente no grupo estudado.

41
No entanto é oportuno notar também aqui permite pensar sobre o menor "perigO" que a
que em muitas sociedades patriarcais a mulher mulher idosa representa para (macular) a honra
tem posição central, no âmbito doméstico. Esta da família. Esta mulher é, sem dúvida, cercada
afirmação, aparentemente contraditória, é de uma certa aura de santidade, construída
desenvolvida por Luiz Aragão, em um interes­ também com muito "sacrifício" (mais uma pala­
sante estudo - O nome da mãe , no qual ele
- vra freqüentemente associada às mães). Se
examina a importância da família na sociedade isto a reveste de respeito, no entanto não lhe
brasileira e, dentro dela, o caráter central da confere poder. Como lembra este autor, a mãe
categoria mãe (ou "esposa-mãe", como diz). é uma "figura particular", que de certo modo é
Segundo ele, no Brasil, a família não restringe santificada, excluída da generalidade das
sua ação ao privado, m� invade também o mulheres, mas é importante lembrar também
plano político-civico-social. É buscando as que ao mesmo tempo persistem os aspectos
raizes desta tradição que ele nos remete às desvalorativos para o conjunto das mulheres e
sociedades mediterrâneas (e dentro delas a que, pelo menos de alguma forma, todas as
antiga sociedade romana) para mostrar nelas o mulheres compartilham desta desvalorização.
significado da família e da honra, destacando Assim, no meu entender, o caráter patriarcal
neste contexto a mãe como central. Diz ele: desta sociedade explica porque, embora partici�
pando de várias atividades com os homens, as
Observa-se uma situação onde masculino e mulheres não compartilhavam o poder. Partici­
feminino, embora princfpios antinômicos, coabi­ par diretamente da produção não dá às mulhe­
tam o mesmo espaço ffsico e simbólico do res a garantia da igualdade, como talvez se
doméstico. O fato de, nestas sociedades, um pudesse acreditar numa concepção marxista
espaço particularmente sacralizado - o lar - ao
mais "ortodoxa". Pode ser até uma condição
mesmo tempo trazer consigo o estigma arcaico
necessária, mas está longe de ser suficiente.
da "desordem feminina' Implicaria, a nosso ver,
a preocupação constante de se controlar e Nesta comunidade a força do patriarcado
mesmo exorcizar o feminino. No final desse atravessava o trabalho, a educação, a religião.
processo, e quando o consideramos em sua O respeito (e o medo) ao pai, a compreensão
lógica extrema, o desfecho esperado seria o da da identidade com a mãe, a obediência ao
santificação do feminino através de urna de marido e ao padre são todos indicadores desta
suas figuras particulares (a mae, no caso), tradição.
paralelamente li persistência da virtualidade Mas esta, como todas, não foi uma comuni­
disruptiva da categoria feminino, considerado na dade homogênea e estática As resistências
sua generalidade (Aragao, 1983, p. 122). das mulheres, expressas ou camufladas, tam­
bém ali existiram e o desejo de uma vida dife­
Essas idéias fazem-me lembrar o respeito
rente para suas filhas pode ter sido, para
que cerca a "mamma" nas famílias de origem
muitas, uma aspiração, e talvez até para algu­
italiana, especialmente quando esta é a mais
mas delas um objetivo concretizado. O alcance
velha das mães (a "nona") em um grupo. Tam­
destas mudanças, as possiveis transformações
bém esta tendência (do status da mãe aumen­
na condição feminina precisam, no entanto,
tar com a idade) é referida pelo autor e nos
ainda ser demonstrados.

***

Rararências BibliognVicas

GIRON, L "A Imigração italiana no RS: Fatores


ARAGÃO, L 'Em nome da Mae', Perspectivas determinantes', RS: Imigração e Colonização.
Antropológicas da Mulher. Vot3, R. Janeiro, Zahar, DacanaI,J. e Gonzaga, S. (org.). Porto Alegre,
1983. Mercado Aberto, 1980.

ARIZPE, L "Las mujeres campesinas y la crisis agraria PERROT, M. Os excluidos da história. Operários,
en America latina' Nueva Antropologia. Mexico, Mulheras e Prisioneiros. Rio de Janeiro, Paz e
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ENGELS, F. A Origem da FamOia, da Propriedade SAMUEL, R.(ed.). Hlstorla Popular y Teoria Socialista.
Privada e do Estado. S.Paulo, Global, 1984. Barcelona, Crftlca e Grijalbo, 1981.

42
SARGENT, L (org.). Women and Revolution. A dlscusslon of the unhappy marrlage of manclsm and femlnlsm. Baston,
South End Presa, 1981.

***

Guacira Lopes Louro é professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

43
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Introduzindo o problema aqui um objetivo aliar a esta pesquisa uma


tentativa de articulação com a situação particu­
uando se procura compreender a forma lar de Portugal no contexto mundial.
Qcomo o Estado interveio (e intervem) na
construção da profissão de ensino, não se 'São as mulheres seres Incapazes de propa­
pode deixar de anotar que se está perante uma gar Idéias Justas, combater vlcl08 e estimular
ocupação que crescentemente tem vindo a ser a vida local?
ocupada por mulheres. As Ciências Sociais
procuram evidenciar a forma como a área do Na altura em que o Estado está a lançar
trabalho, incluindo a do setor estatal, se organi­ medidas no campo educativo cada vez mais
za de forma estratificada, conduzindo as mulhe­ congruentes e dirigidas para a formação de um
res, que em períodos determinados acedem ao Estado ditatorial e corporativista,- o ·Estado
mercado de trabalho, para postos subalternos, Novo·1 - um jornal de tradição republicana
de pior remuneração, maior instabilidade e publica, em 1932, um artigo em que se afirma
exigindo menores qualificações. Assim, a força que as mulheres professoras não servem para
de trabalho feminina é sistematicamente afasta­ a profISSão, devido ·ao seu feitio, a sua consti­
da de posições de chefia. Ao mesmo tempo tuição física, a fragilidade própria do seu sexo,
verifica-se que determinadas áreas do setor de o papel de mãe e de mulher", que as tornam
trabalho são predominantemente ocupadas ou incapazes de
por mulheres ou por homens. Como aquelas
entraram, em muitos setores, posteriormente propagar idéias justas, combater vfcios, encarrei­
aos seus pares masculinos, tende a falar-se em rar melhoramentos materiais, destruir preconcei­
feminização de um setor de trabalho particular tos, concitar iniciativas,etc.2
quando é crescentemente ocupado pelas
mulheres. O ensino é um dos setores em que A imagem tão fortemente propagada duran­
visivelmente têm vindo a concentrar-se, situa­ te o regime republicano do professor como
ção que se começa a desenhar desde os finais ·sacerdote da democracia· não podia, pois, ser
do século XIX e se torna evidente nas décadas perseguida por elementos femininos: questões
seguintes, no ensino primário, tanto em Portu­ biológicas impediam as mulheres de desempe­
nhar o papel prestigiado de defensoras de uma
gal como em vários países.
Neste artigo pretende-se, em primeiro lugar, democracia frágil, a necessitar ser fortalecida
tornar visíveis diferentes perspectivas sobre a através da instrução e da intervenção na comu­
feminização do ensino - é o setor do ensino nidade. Constatava o articulista que a profissão,
primário que é aqui analisado - nas décadas de em vez de ser desempenhada por
1920 e 1930, numa altura em que Portugal está
uma legião de bons professores prontos a tomar
a passar por transformações que alteram visi­
sobre ombros a pesada tarefa (de combater) a
velmente o clima social e político, pondo termo
ignorância desenfreada na rua, na praça pública,
ao que tem sido denominado de ·Estado Ube­
no meio dos aldeOes, no seio das familias, em
ral·, para seguidamente procurar, no campo toda parte (em que) o professor deve fazer sentir
das Ciências Sociais, teorias recentemente a sua ação benéfica e purificadora,
formuladas que procuram dar conta deste
processo de feminização. Finalmente, é também estava a ser invadida por um ·a1uvião de profes-

EDUCAÇÃO E REAUDADE, Porto Alegre, 16(2):45--57, jul/dez. 1 990 45


soras"(ibidem). Encontramos, no entanto, no período repu­
blicano, outras formas de construção do 'gêne­
A irredutibilidade entre dois sexos, devida à rooll que definem as atividades das mulheres em
diferença entre os seus instintos biológicos e à termos não deterministas, e de acesso igualitá­
sua diferente relação com a reprodução, em rio em relação aos pares masculinos. Cite-se
termos de papéis a desempenhar, concebidos como exemplo, artigos da revista Educaçao
como determinando a organização da vida Social, em que a problemática é abordada,
social, constitui um elemento sufICientemente pondo em questão o 'argumento biológico',
difundido, não só no período posterior ao golpe contrapondo argumentos históricos e antropoló­
do 28 de Maio de 1926, mas também na atmos­ gicos. Procura-se aqui relacionar concepções
fera intelectual de setores republicanos específi­ deterministas sobre a ação das mulheres com
cos, no período anterior.. Esta relação entre relações de poder em que se situam, afirmando
reprodução e organização da vida social pode nomeadamente:
ser atribuída à influência de Darwin e seus
discípulos no pensamento político e social da o homem faz da mulher um animal doméstico,
época: nestes autores, extrapola-se a necessi­ que não sebe pensar, refletir, ter consciência dos
dade funcional da diversidade de comporta­ seus direitos e deveres. Não a educa, converten­
mentos sociais para que a reprodução tome do-a num ser humano; quando muito, a sua
preocupação é torná-Ia prendada; uma menina
lugar, a partir do processo de "seleção sexual'
prendada é a mulher que diverte, que recreia, que
- os indivíduos do sexo masculino competirão
exibe habilidades e sensualidades, que batuca no
entre si de forma a atrair o sexo oposto, saindo piano Chopin, as músicas sensuais de cabarés
como vencedor o mais adequado. As atitudes ou os fados das revistas, que sabe menear em
e atividades femininas de 'apagamento' deriva­ meneios licenciosos, etc. (Educação Social 1925,
riam de seu papel e lugar na reprodução, na 11 (3) 15 março, p.89).
base do pressuposto de que a 'célula feminina
assegura a permanência da espécie, enquanto Seguidamente sublinha a igualdade das
a célula masculina adquire uma capacidade mulheres no acesso a todo tipo de profissões,
peculiar e distinta para a mutação" (Coward, e a sua capacidade de as exercer, não haven­
1983:79). do 'profissões ou ocupações sociais baseadas
na natureza sexual, mas sim conforme as
A perspectiva referida naquele jornal em condições sociais" (ibidem).
relação às mulheres professoras poder-se-á
enquadrar melhor quando se estabelece a Uma terceira posição definir-se-ia numa
relação com um período em que existe uma outra vertente, defendendo que o ensino não
nítida consciência, entre os setores republica­ deveria ser majoritariamente desempenhado
nos e outros de oposição ao regime saído de por mulheres. Várias posições são tomadas
28 de maio de 1926, de que as políticas repu­ pelas associações de professores contra a
blicanas no campo da educação não consegui­ progressiva feminização da ocupação, que
ram realizar muito do que se tinham proposto. atribuem ao fato de "os homens [procurarem e
Parece haver um consenso entre os estudiosos encontrarem] funções mais lucrativas·7• Segun­
daquele período de que: do esta perspectiva, assistir-se-ia a uma degra­
dação do estatuto do professorado, devida à
(...) a República não cumpriu as suas promessas feminização da ocupação. Mais, esta não
no domrnlo educativo, mostrando-se incapaz de causava apenas a degradação do estatuto
endireitar uma situação que os seus próprios profISSional, mas a própria qualidade do ensino
dirigentes consideravam como "caótica" e de criar
se ressentia com este processo 8.
novas formas de educação para a infância e a
juventude (Nóvoa, 1987:550)4.
Não deixam de transparecer tensões, no
campo das Ciências Sociais, quando esta
Como pressuposto daquela afirmação, publi­
perspectiva se confronta com o contexto em
cada no jornal, estaria a tentativa de estabele­
que a profissão de ensino estaria situada,
cer uma relação de causa e efeito entre uma
segundo a visão que deste período nos dá
maioria de mulheres na profISSão de ensino e o
fracasso das políticas republicanas� Ant6nio Nóvoa (1987:586): os anos 20 constituí­
ram a "idade de ouro da escola', e

46
a Idade de ouro dos professores (.. ) [no perfodo
.
foco o recurso às regentes escolares), com
em que os professor es foram] mais reconhecidos base em dois tipos de argumentos: ou apontan­
do ponto-de-vlsta social, econômico e tiveram do as características "intrínsecas" femininas de
m�ior prestfgio: o processo de profISSionalização passividade e adaptação (repondo de alguma
atinge então o seu ponto culminante (idem:609).
forma argumentos biologizantes), ou explicando
essa funcionalidade em relação ao sistema
Apesar do prestígio da ocupação, o profes-
político de ditadura pela origem social do
sorado encontra-se descontente com a sua
"condição humilde de funcionários públicos"e �ecrutamento. Filomena Mónica (1977), ao
impelido por aquilo que Nóvoa (idem: 588) Interrogar-se sobre as percepções que "a
maioria silenciosa" de 70% de mulheres no
denomina de "o mito da escola, o mito da
ensino primário teria sobre o controle ideológico
igualdade de oportunidades e da democratiza­
e a desvalorização do estatuto, em que cres­
ção da escola", formula um conjunto de reivindi­
centemente o professorado estava envolvido
cações para a obtenção de maior autonomia
profissional e administrativa no exercício das
particularmente após 1933, sublinha a su �
passividade e adaptabilidade às condições
suas atividades. É pois num período de reco­
sociais, políticas e culturais em que se situava
nhecido prestígio da função docente que,
(idem:202), devido à origem social de onde
paralelamente, grupos de professore s mais
provinha: tratava-se de mulheres que tinham
intervenientes tomam consciência do estatuto
orige� nas camadas mais baixas do campesi­
menor que lhes é distribuído e atribuem-no à
nato (ldem:188), por isso particularmente ex­
feminização crescente do ensinar. Como expli­
postas ao crescente sistema de patrocinato
car esta contradição (aparente?): poder-se-á
local; mesmo como profissionais, o seu estatuto
falar de um certo exagero na visão que Nóvoa
era baixo e dependente do estatuto dos mari­
constrói sobre a situação social do professora­
dos, "provavelmente o farmacêutico da terra,
do no período republicano? ou será que o
um comerciante ou um funcionário público":
professorado masculino, mesmo em alguns dos
setores mais militantes, está imbuído de con­
Para essas raparigas - a catequista, a pupila do
cepções discriminatórias em relação aos seus
pároco, a sobrinha da governanta - a mudança
pares femininos na ocupação? do regime polftico só trouxera vantagens porque
à hierarquia social deviam o seu recém adquirido
"Funcionalidade" v.. "Dlsfunclonalldade" prestfgio (Mónica, 19n:202-203).
feminina em relação ao politlco.
Era pois esta origem social que explicava o
Vários autores salientaram já que, na passa­ conservadorismo feminino na ocupação, poden­
gem da República para o Estado Novo, o papel do concluir-se que:
do professor se transformou de urri "sacerdote
da democracia" para um "moldador de almas": dóceis, baratas e politicamente conservadoras, as
a ação da escola já não estava dirigida para mulheres tinham as qualificaçOes Ideais para
formas de modernização e desenvolvimento da educar os filhos dos pobres (idem:209).
realidade social e política, mas antes para a
No entanto, esta origem social baixa do
propagação de valores e ideais sustentadores
professorado é posta em questão, pelo menos
de um regime autoritário e de ditadura O
no que diz respeito ao período 1918-1936, por
professorado foi restringido nas suas formas de
contributos de um outro estudo: mais de 2/3 do
associação sindical e pedagógica e as suas
professorado tinha uma origem em camadas
condições de trabalho afetadas pela introdução
"intermédias (artesãoS/operários qualificados,
de processos de controle político e ideológico,
comerciantes, funcionários públicos, professo­
com implicações visíveis para a qualidade de
res, profissões liberais); apenas uma pequena
ensinoS.
percentagem provinha dos setores rurais p0-
bres (4.9% de assalariados rurais)(Nóvoa,
Podem estabelecer-se relações entre a
mudança no papel dos professores, de um
1987:602-3).
período para outro, e as formas de construção
Mónica relaciona a mudança do papel do
de identidades masculinas e femininas? Tem
professor como "guia de opinião nas comunida­
sido salientada em algumas análises a "funcio­
des de província" com o aumento de recruta­
nalidade" das mulheres professoras em relação
mento de mulheres, que "terá ass umido propor-
ao regime salazarista (sobretudo pondo em

47
çOes sem precedentes nos anos de 1930- camente como aquelas cujas atividades se
195O"(idem:200), estabelecendo assim uma esgotavam na esfera doméstica, em torno do
relação de causa e efeito entre feminização e cuidado dos filhos, da casa e do marido, pela
desaparecimento do papel do professor corno qual eram responsabilizadas, mas numa situa­
animador da comunidade local. No entanto, ção de subordinação em relação aos elementos
considerando os dados que fornece, verifica-se masculinos. E, no entanto, a retórica salazarista
que, entre 1911 e 1926, a percentagem de apresentava a famUia como a célula central na
professoras cresce 13%,enquanto entre 1926 e dinâmica da nova sociedade que se pretendia
1940 aumenta 6%(idem:209), sobressaindo construir e consolidar. Nas palavras de Salazar:
assi m o período republicano como um proces­
0.
so de feminização mais expressivo 1 Assim nós temos como lógico na vida social, e
como útil li economia, a existência regular da
Considerando os dois períodos, verifica-se famRia do trabalhador; nós consideramos funda­
que se é confrontado com perspectivas em que mentai que seja o trabalhador a sustentá-Ia'

se assume a "funcionalidade" política e educati­


defendemos que o trabalho da mulher casada, �
de maneira geral, mesmo o da mulher solteira,
va das mulheres professoras no ensino primário
comprendida na famRia e sem ser responsável
em relação ao sistema salazarista, ao mesmo
por esta, não deve ser encorajado; nunca houve
tempo que se sublinha a sua "disfuncionalida­ uma boa dona de casa que não tivesse muito o
de" em relação regime republicano, o que que fazer. As mulheres não compreendem que
poderia conduzir a visões essencialistas da não se atinge a felicidade pelo prazer, mas sim
"condição feminina", em termos de anulamento pela renúncia. As grandes nações deveriam dar
e passividade, ausente como está uma reflexão o exemplo, conservando as mulheres no lar. Mas
e uma teoria da construção das identidades as grandes nações parecem ignorar que a consti­
femininas e masculinas por ideologias, estrutu­ tuição sólida da famRia não pode existir se a
radas historicamente no contexto de condições esposa viver fora da sua casa13•

materiais específicas, corno propõe Michelle


Não deixa de ser relevante verificar que,
Barret (1984:84). Como esta autora afirma,
muito do trabalho realizado nesta área tem um
apesar desta acentuação tão exclusiva nas
atividades domésticas femininas e do permane­
caráter descritivo, desenvolvendo-se em torno
cer das mulheres fora da esfera pública, a
da questão "que imagens de mulheres são
feminização do ensino ao longo do salazarismo
apresentadas?", sem que seja integrado numa
continuou a acentuar-se, embora a ritmo mais
perspectiva articulada teoricamente (idem:100).
lento, o que parece pôr em causa a total eficá­
Na instância de produção cultural, e mais
cia do discurso ideológico então produzido.
especificamente na de reprodução cultural, um
conjunto de conceitos procuram dar corpo a
Isto conduz-nos a analisar a "efetividade"
processos particulares ocorridos na transmis­
das ideologias (como a da domesticidade) não
são de divisões de "gênero" ("estereotipia",
como recepção direta, compulsiva e uniforme,
"compensação", "conluio", "recuperação")­
por parte de grupos sociais que apresentam
(idem:1OB). O de "compensação" tem especial
uma diversidade cultural e percursos existenci­
relevância quando aplicado à situação vivida no
ais diferenciados. Como M. Barret acentua
Estado Novo, pois refere-se à "apresentação de
(1980:106-7), a "ideologia não é transparente"
imagética e idéias que tendem a elevar o valor
na forma como é lida, interpretada, interioriza­
moral da feminilidade"(idem:109), num contexto
de relações patriarcais"ll. A "ideologia da do­ da, mas é antes indicadora "dos limites dentro
dos quais determinados sentidos são construí­
mesticidade" apresenta aqui um significado
dos e negociados numa determinada formação
preciso, dentro da referência constante no
social". A ênfase acrescida no papel doméstico
Salazarismo à família , pela qual nos batemos
e maternal das mulheres no Estado Novo não
como pedra duma sociedade bem organizada12
foi suficiente para estancar a procura crescente
e que se poderia caracterizar corno uma
de trabalho assalariado por parte de professo­
família repressiva, tradicional, em que a mulher
ras (muitas delas casadas). Mas, como tem
não tinha o estatuto de parceira com os mesmos sido freqüentemente assinalado, foi um trabalho
direitos, mas os de sócia subordinada (Mónica, que o Estado Novo enquadrou, através de uma
1977:275). forte ideologização, percorrendo as práticas
educativas que o professorado utilizava, impe­
As mulheres eram pois construídas ideologi- dindo as professoras de aceder a cargos

48
diretivos nas escoIas1., prescrevendo o tipo de o caminho é-lhes constantemente obstruk:lo.
apresentação física e os comportamentos Também nas lutas operárias desaparecem das
sociais que tinham de ser seguidos por estas, primeiras páginas (Belo et aJ., 1987:263)17.
incluindo o perfil de marido conveniente para
uma professora primária(M6nica 19n:186). O entrelaçar da esfera doméstica na vida
profl8slonal da professora
Se a obra de Filomena M6nica nos propor­
ciona uma análise da forma como se estrutura Procurou-se até aqui examinar perspectivas
ideologicamente o discurso do Estado Novo em que, nas décadas de 1920 e 1930, confrontam
torno da família, esta análise não é relacionada a questão da feminização do ensino, relacio­
com a atuação das professoras na sociedade nando-a com a diminuição do estatuto profISSio­
salazarista. Os pressupostos políticos e ideoló­ nal do professorado, a mudança do papel do
gicos, implicados nas categorias do feminino professor, a diminuição da qualidade de ensino.
daquele período, não são discutidos quando a Seguidamente, salientou-se a ausência, nestas
análise refere as questões da feminização do perspectivas, de uma teoria da construção do
ensinar. Também ai não se encontra um con­ "gênero· que pudesse explicar a acentuação,
fronto nas formas de construção da família em relação ao contexto republicano, da "disfun­
patriarcal,tanto no período da República como cionalidade· das professoras, para no período
no do Estado Novo. A continuidade das estrutu­ do Estado Novo se inverter o processo e apare­
ras patriarcais na sociedade portuguesa, entre cer clara a sua "funcionalidade·. A forma como
os dois períodos, não fica pois identificada no as atividades das mulheres foram construídas
quadro das relações de poder entre elementos nos dois períodos em torno da esfera domés­
femininos e masculinos e na atribuição e res­ tica como específicas da sua atividade, deslegi­
ponsabilização exclusiva das mulheres pela timando-Ihes assim a ocupação do espaço
esfera doméstica, enquanto o espaço público é público, pode ser relacionada com a concentra­
construído como adequado e exclusivo (quase) ção das professoras no espaço da sala de aula,
da participação masculina 15. e não tanto na comunidade local.

É possivelmente na ausência de uma aná­ A pesquisa que temos vindo a realizar,


lise em que a existência de relações patriarcais recorrendo a Histórias de Vidas de professoras
seja tomada em consideração (tanto na esfera que ensinaram no período final da República,
da família, como da economia ou do Estado) indicam como a sua atividade se dirige para a
que a "funcionalidade· das mulheres professo­ sala de aula, na transmissão de saberes especi­
ras no Estado Novo e a sua ·disfuncionalidade" ficos (aprender a ler, escrever e contar) e na
no regime republicano são projetadas como interiorização de valores, atitudes e orientações
formas de perspectivar as suas atividades. No que permitam às crianças integrar-se na ordem
período republicano - caracterizado por um social existente.
"positivismo racionalista .. [em que] política e
Como uma das professoras refere, quando
cultura viva tendiam a ser mundos à parte"
alude ao seu trabalho num bairro urbano degra­
(Maria Belo et aJ., 1987:274) - as mulheres não
dado
encontraram condições sustentadas para o
reconhecimento de alguns dos direitos que
aquilo é fome, peste e guerra, aquela gente
reivindicavam mais insistentemente, embora o
precisa muito, muito, muito de educação, princi­
movimento republicano tenha fornecido, entre
palmente de educação. Mais de educação do
1907 e 1913, condições para sua expressão e que até de instrução, e eu aproveitava todos os
mobilização, em torno da igualdade na família, ensejos para lhes dar um caminho bom...é disso
da independência econômica, do divórcio, do que precisam.
direito de voto (idem: 263)18. No entanto, a
partir de 1913, na altura em que a República E quando refere o trabalho em aldeias
tira o direito de voto às mulheres: "onde os ambientes familiares são muito atrasa­
dos", o trabalho da escola é analisado pelo seu
a visibilidade de participação das mulheres na caráter árduo, não só porque a criança vem
vida poiftica vai-se sumindo, ao ponto de nada para a escola sem preparação para a recepção
ou quase nada se encontrar na documentação da do "código elaborado" da escola, ao mesmo
época Umitam a sua atividade pública aos
tempo que teme o confronto com uma escola
aspectos educativos ou assistenciais e mesmo ar

49
norrnativizadora ("vêem o professor ou a profes­ tura de classes. explicitando-o através do
sora como uma pessoa inimiga, quando a conceito de "trabalhadores semi autonomos"".
criança prevarica, dizem-lhe deixa estar que
vais para escola e lá a senhora professora faz­ Ao mesmo tempo, a representação coletiva
te as caridades"), como também o trabalho de sua atividade principal como mulher acentua
"civilizacional" da escola se estende a áreas a sua responsabilização pelos filhos, com quem
como a das regras de higiene ou de alimenta­ deambula de aldeia em aldeia A sua vida é
ção. É sobretudo o "choque cultural" da escola representada como "vida de ciganos", pela
em meio rural que é particularmente enfatizado. constante mudança de local, em condições
É a partir do trabalho pedagógico realizado na dificeis do ponto de vista econômico e social, e
sala de aula que se procura vir a contribuir para sempre acompanhada dos filhos, referidos
mudanças futuras no meio envolvente. freqüentes vezes como objeto das suas preocu­
pações primeiras. Para uma destas professoras,
o trabalho da professora para a comunida­ é em termos dos filhos que traça o percurso da
de só é concebido de outra forma como res­ sua vida profissional: começa a dar aulas
posta a solicitações especificas a alguém que quando os filhos entram na escola primária,
possui um capital cultural escasso na aldeia para ser sua professora; deixa de ensinar
(onde apenas duas pessoas sabem ler), mas quando o último filho termina a 48 classe; só
não como dinamização da vida local: volta ao ensino quando necessita de acudir
economicamente ao filho mais velho, para que
contavam comigo para tudo, naquele ano... era ele possa terminar os estudos universitários, e
preciso um atestado, era eu quem redigia o então manter-se-á no ensino até se reformar.
atestado e depois o da junta lá o assinava, era Uma outra professora conta como a sua filha,
preciso qualquer escrita que fosse e iam ter com entre os primeiros meses e a idade de freqüen­
a professora, era sempre, a senhora faz isto? faz
tar a escola, se encontra sempre na sala onde
aquilo? sim senhora, faço.
dá aulas, dormindo ou brincando sossegada­
A vida local é referida pelos seus níveis de mente, acompanhada de uma rapariga da
subsistência muito baixos, baseada em ativida­ aldeia que cuida dela
des agrícolas e de pastaríeia, não se anotando
rituais simbólicos significativos; naqueles que Esta breve incursão através de Histórias de
são nomeados (como o da matança do porco) Vida de professoras que exerceram a sua
a professora não está presente, pela interioriza­ atividade no período final da República e na
ção da necessidade de se distanciar da vida transição para o Estado Novo, ilustra não só a
local:
ambigüidade do estatuto profissional do profes­
sorado primário de então, mas sobretudo a
a gente tem de manter uma certa posição, tinha forma como a responsabilização feminina pela
de me conservar no lugar que devia ocupar. esfera doméstica, num contexto geral de rela­
ções de poder patriarcais, conduziu as mulhe­
o assédio de pedidos, por parte dos habi­ res professoras a representar a sua atividade
tantes da aldeia, de serviços e também de profissional particularmente ligada à sala de
dádivas (broa, lenha, carne de porco) levam-na aula e resguardada de um envolvimento com a
a representar a sua forma de estar na aldeia comunidade circundante.
resguardada pela escola e pelos saberes que
aquela prestigia e legitimaANóvoa (1989:32) A femlnlzaçio do ensinar: teorias explicativas
refere-se a esta questão, quando sublinha que
o estatuto dos professores tem sempre o Até aqui, confrontaram-se representaçOes e
estado "impregnado de um 'entre dois':i.e. não perspectivas sobre a trantormação do ensino
são burgueses, mas também não são povo; numa ocupação crescentemente feminizada e
não devem ser pobres, mas também não con­ as implicações desta mudança A questão de
vém que sejam ricos; não se devem misturar fundo ainda não confrontada é a tentativa de
com o povo, mas também não se devem afas­ compreender o que explica que, do ponto de
tar demasiado". É precisamente esta ambigui­ vista sociológico, tenha ocorrido esta mudança
dada do estatuto dos professores e de outros na profissão de ensino.
empregados no setor do Estado que E.O.Wright
(1978) relaciona com a sua situação na estru- A feminização do ensino constitui um pro-

50
bIema sociológico que tem vindo a ser estuda­ Intensa, deve-se, na opinIAo desta investigado­
do em países do "centro", como a Inglaterra ou ra, ao fato de terem sido estabelecidas restri­
os Estados Unidos. ções à entrada das mulheres no ensino, basea­
das em políticas em que se deu preferência aos
o estudo, realizado em Inglaterra por Miriarn elementos masculinos por questões de controle
David(1980), aponta para atuação de forças emocional (receio de promiscuidade e de
ideológicas, num contexto em que a economia ultrapassagem de regras morais locais), como
pôs limites ao fornecimento de mâo-dEH>bra no final do séc. XIX, ou, na altura da Grande
para o mercado de trabalho educacional. Depressão, por falta de emprego para os
Refere-se concretamente à ideologia do "mater­ elementos masculinos, a quem se atribula o
nalismo", que apresenta o ensinar como carac­ papel de ganha-pão familiar.
terfstico e específico do "gênero" feminino.
Trata-se de tornar como modelo as atitudes da Uma explicação diferente é adiantada por
mãe para com os filhos para ser seguido pelas Richardson e Hatcher (1983), ao relacionarem
professoras na sua relação com os alunos na a feminizaçAo crescente do ensino com o
sala ele aula E dai a construção de uma repre­ lançamento, por parte do Estado, do processo
sentação do ensinar como caracteristicamente de escolarização de massas. O que sustentam
feminina Escola e famma, nesta perspectiva, é que, desde que a escolaridade se tomou
funcionariam corno um "par": através do Estado, obrigatória, o Estado defrontou-se com custos
o ambiente familiar é recriado na escola, sobre­ crescentes e elevados, do ponto ele vista ec0-
tudo pelo emprego das mulheres como profes­ nômico, para a poder levar a cabo, ao mesmo
soras, de quem se espera que tenham atitudes tempo que se tomava mais extensiva - consti­
maternais com as crianças. Além disso, a tuindo assim um constrangimento econômico
própria organização social do saber que a forte. Uma das fontes de redução dos gastos
escola estabelece ensina as raparigas a ocupa­ poderia estar no preenchimento ele lugares de
rem lugares na esfera doméstica como objetivo ensino. A tendência estatal terá sido a de evitar
central das suas vidas. aumentos no financiamento à educação, à
medida que a rede escolar crescia, recorrendo
A análise proposta por Caroline Steadman­ à mão-de-obra feminina que tinha poucas
(1985) permite especificar mais claramente o oportunidades de trabalho abertas, podendo
conteúdo deste "matemalismo": o ensinar teria constituir uma fraca força negociai.
sido construído através ele formas de relação
próprias do modelo maternal; ass im, as profes­ O caso inglês parece poder ilustrar esta
soras deveriam desenvolver na sua atividade análise, até porque os salários das professoras
"as aptidões das boas mães", dando corpo à atingiam apenas 2/3 do valor dos salários dos
imagem froebeliana de que o professor ideal seus colegas masculinos, situação que perdu­
das crianças é a "mAe tomada consciente". O rou até a década de 1950 quando obtiveram a
sistema inglês teria adotado nas escolas públi­ iguaJdade salarial, depois de períodos de lutas,
cas uma "ideologia oficial" acerca do modelo sobretudo nos anos 1920 e 1930, percorridos
ideal de professor, cuja inspiração se basearia por períodos ele "crise financeira" do Estado, em
na observação do tipo de relação mantido entre que os salários, particularmente os das profes­
mãe e filhos e tê-Io-ia expandido, através do soras, foram objeto de reduções (Oram, 1987:-
sistema público de massas, de manuais e 276-7). Recorrer à mão-de-obra feminina repre­
compêndios, e da formação inicial e em serviço sentava, visivelmente, reduzir os custos da
de professores (Steadman, 1985:158)(19). escolarização.

Em países como a Austrália, a explicação Mesmo no caso português, em que as


não seria muito diferente. O estudo de Noeline mulheres professoras tinham já salários iguais
Williamson(1983) explica a forte feminização do aos dos colegas masculinos desde o final do
ensino desde o século XIX pelo fato ele haver séc. XIX (Nóvoa, 1987:596)20, o recurso à mão­
poucas oportunidades abertas às mulheres e de-obra feminina contribuiu, ele uma outra
pela existência de outros processos ideológi­ forma, para que os gastos com a educação não
cos, que têm a ver com a construção das suas aumentassem signifICativamente: perante uma
Identidades e dos papéis que lhe são atribuídos força de trabalho crescentemente feminina, sem
socialmente. Se essa feminização não é mais grande força negociai pela sua situação no

51
contexto das relaçOes sociais de poder, foi em relação às suas coIOnias e um pais periférico
possivel ao Estado manter os niveis salariais do em relação aos centros de acumulação capitalis­
professorado muito baixos, enquanto a rede ta Entre umas e outras desempenhou o papel de
correia de transmissão, um dos papéis tfpicos
escolar crescia
dos Estados semlperiféricos (Santos, 1985:870).
A.Nóvoa (1989:20) faz notar que, a partir de
B. Souza Santos (idem:872) assinala, no
meados do séc.XIX,
entanto, que o conceito de semiperiferia nunca
foi trabalhado mais aprofundadamente por
se assiste a uma autêntica 'explosão' da rede
Wallerstein, de forma a que pudesse ter consis­
escolar primária, provocada por uma maior
procura social de educação e por uma melhor tência teórica e ser referenciado a um conjunto
capacidade de resposta Institucional das autorida­ de condições sociais, políticas, econômicas,
1
des estat� . culturais, que caracterizam a formação social
portuguesa na sua especificidade em relação
Trata-se de um crescimento que pode ser aos países do centro e da periferia, e não
demonstrado pelo número crescente de profes­ apenas com caráter descritivo, como surge na
sores, formulação citada

verificando-se quase uma duplicação dos efetivos Não é objetivo deste artigo procurar discutir
docentes em cada vinte e cinco anos (Nó­ a 'materialidade social' do conceito de semipe­
voa,1989:22). rifaria aplicado a Portugal, no contexto das
relações mundiais, nas décadas de 1920 e
A esta interferência de Nóvoa pode acres­ 1930, mas apenas, ao relacionar feminização da
centar-se uma outra, aqui visivelmente impor­ profissão de ensino e processo de escolariza­
tante para o que se tem vindo a discutir: é que ção de massas, anotar (ainda que no enqua­
este aumento é muito mais expressivo em dramento de uma primeira abordagem) alguns
relação aos efetivos femininos, que começam aspectos específicos à formação social portu­
por aumentar dez vezes mais, e depois tripli­
guesa, quanto a esta articulação.
cam nos mesmos períodos de tempo que este
autor identifica(22). Parece pois poder apontar­ É, precisamente, em relação ao processo
se para o estabelecer de uma relação entre de escolarização de massas que pode ser
feminização do ensino e a expansão da escola­ sublinhada uma das especificidades de Portu­
rização de massas, na forma como o Estado
gal em relação aos países do 'centro'. A contri­
recorreu a uma força de trabalho com menores buição de Ramirez e Boli(1987) mostra como
possibilidades de encontrar áreas de trabalho
este processo diferencia, entre os séc. XVIII e
disponiveis. XIX, potências mundiais, como a Inglaterra e a
França, de outros países com menor poder e
Para além das condições econômicas, influência no sistema interestadual, no que diz
como Richardson e Hactcher salientam, a respeito à precocidade do seu lançamento: são
feminização de áreas do trabalho sofreu tam­ estes últimos que mais cedo a ele recorrem, em
bém os condicionamentos herdados da estrutu­ momentos de crise social, econômica ou políti­
ras e padrões do trabalho pré-industrial, o que ca, permitindo realizar a construção da nação,
terá contribuído para que as mulheres tendes­ de acordo com um modelo crescentemente
sem a situar-se em atividades mais relaciona­
pressuposto do que constitui uma 'sociedade
das com as que desenvolviam na esfera do­ nacional':
méstica até então.
o sistema interestadual evoluiu de uma coleção
A femlnlzação do ensino na periferia dispersa de monarquias centralizadoras, que
abraçaram ideologias baseadas no direito divino,
Portugal tem sido caracterizado, de acordo para um conjunto de Estados-Nação aHamente
com a perspectiva de I. Wallerstein (1984), pela Interdependentes que Invocaram a 'nação' como
posição de semiperiferia que ocupa no sistema Justificação para a ação do Estado.(...)Transfor­
mundial: mar as massas em cidadãos nacionais tornou-se
uma caracterlstica padronizada no processo de
construção da nação, orquestrado pelo Estado;
durante o longo perfodo colonial, e sobretudo a
utilizar o sistema de escola de massas estatal
partir do séc. XVIII, Portugal foi um pafs central
para atingir este objetivo polftico tornou-se um

52
modus operandl aceite vulgarmente (Ramirez e um mosaICo ele situações diversas, tanto do
Bo/l,1987:13). ponto ele vista geo-econOmlco, como do dos
modos ele produzir, articuladas entre si de manei­
Portugal, tal como outros Estados europeus ra complexa.
menos poderosos, foi um país precoce no
lançamento da escolaridade incrementada e Um numeroso campesinato pobre (sobretu­
sustentada pelo Estado, a ela recorrendo, em do nos distritos do centro e norte litoral), fre­
momentos de crise e de necessidade de afirmar qaentemente em formas de produzir pré-capita­
uma identidade nacional: 1759 e 1n2 marcam listas, e recorrendo à emigração corno forma de
dois momentos importantes na intervenção do escapar à proletarização, e, a sul, um extenso
Estado no lançamento de escolas estatais, proletariado, vivendo em condições de difícil
depois da expulsão dos jesuítas, que até aí subsistência, constituem os setores mais signifi­
tinham controlado muito da educação do país cativos que habitam os campos portugueses. O
(tal como na Áustria, onde o mesmo tipo de setor industrial, por sua vez, é constituído por
medidas foi tomado, depois da expulsão dos um "agregado de produções heter6clitas",
jesuítas). Num outro momento, depois da podendo dizer-se que não apresenta "uma
guerra civil entre Miguelistas e Liberais (1828- verdadeira infra-estrutura industrial", desenvol­
1834), o Estado estabelece o princípio da vendo-se sobretudo em torno de duas indús­
obrigatoriedade escolar, em 1835. São estes trias principais (têxtil algodoeira e conservas de
dois exemplos que tornam explícita a diferença peixe), viáveis somente porque os custos da
de um século e a intervenção do Estado na reprodução da sua força de trabalho são supor­
educação em Portugal e essa mesma interven­ tados pelo trabalho familiar aldeão (no caso da
ção nos países do "centro". têxtiQ ou piscatório (quanto às conservas)(Me­
deiros, 1978:105).
E se, entre os países do centro e países
como Portugal, o recurso a uma mão de obra Apenas o setor de serviços, particularmente
feminina na expansão da escola de massas no que diz respeito às profissões liberais e aos
pode ser considerada (recorrendo a um concei­ funcionários públicos, entre a 2'l metade do
to de Ramirez e Boli, 1987) uma "similaridade séc.XIX e a década de vinte, se terá desenvolvi­
transnacional", é no entanto necessário especifi­ do "consideravelmente, aproximando Lisboa e
car com mais atenção as condições sociais, Porto das cidades européias", embora estas
políticas e culturais em que este processo situações não passassem de "enclaves moder­
decorre em Portugal. nos num universo arcaico" (Mónica, 19n:72)23.

No início da República, em 1911, as mulhe­ É neste contexto que se encontra, como já


res professoras são já 54% e, em 1926, são se assinalou, uma estratificação acentuada, não
67%, e isto passa-se num país como Portugal, só em termos de classe social mas também de
situado na semiperiferia do sistema mundial, "gênero". Quanto a esta última, as condições
marcado por processos de forte estratificação, iniciais possibilitadas pelo 5 de outubro de 191D
tanto nas divisões de "gênero" como nas de na expressão e sustentação de reivindicações
classe social, com uma economia ruralista, para uma maior igualdade entre homens e
assente em grande parte em estruturas pré­ mulheres parecem já não existir na década de
capitalistas, e apresentando elevadas taxas de 1920: se o direito ao divórcio foi obtido, a
analfabetismo. Que tensões terá levantado, igualdade da mulher na família perante a lei é
dentro de um sistema de relações patriarcais ainda um objetivo longínquo, e o direito ao voto
como este, o recurso a urna mão-de-obra foi retirado. As desigualdades de acesso ao
crescentemente feminina no processo de ex­ ensino são mais notórias em relação às rapari­
pansão de escolarização de massas? gas do que aos rapazes e a co-educação
parece só ser realizada de forma global na
Ainda nos anos trinta, Portugal tinha 80% Escola-Oficina n° 1, uma escola que deve a sua
da sua população (de 7 milhões de habitantes) aparição a uma estratégia "substitucionista"
a habitar no espaço rural, caracterizando-se por (Archer, 1984) 24.
uma rígida hierarquia social, e a ausência de
processos de mobilidade entre grupos (Mónica, A feminização do ensino não pode ter
1987:7). Entre as duas guerras a sua economia deixado de levantar resistências num contexto
é, nas palavras de Medeiros (1978:288): social, econÔmico e cultural como este, de que

53
nos chegam alguns ecos, como o referido no ensinar como adequado para a ocupação de
inicio deste trabalho, e que seria necessário raparigas, é com uma efICácia própria, atingirá
explorar sistematicamente para melhor perceber números mais expressivos duas décadas mais
a sua dinâmica. O ensino não se terá feminiza­ tar�.
do mais porque foram tomadas medidas para
contrariar esse processo (como a existência de A concluir
vagas que só podiam ser ocupadas por ele­
mentos masculinos; ou, mais tarde, nos anos Pretendeu-se sobretudo enfatizar que a
trinta, com o impedimento do exercrcio de feminização do ensino (no setor primário)
cargos diretivos escolares pelas professoras). aparece nos países referidos ligada à extensão
da escolaridade obrigatória, como processo
Se compararmos o que se passava nos transnacional, no momento em que os Estados
países do "centro" quanto a este processo, tomam a seu cargo a expansão da escola de
verifica-se que, no final do séc.XIX, nos Estados massas. O recurso a uma mão-de-obra feminina
Unidos, as mulheres professoras constituem já parece ter permitido uma contenção nas despe­
63% da profissão, sendo mesmo já 90% nas sas estatais quando a rede escolar se está a
cidades (Grumet,1981:167). No contexto euro­ expandir. Há, no entanto, uma diferença assina­
peu, o caso inglês é também de forte feminiza­ lável entre Estados centrais e periféricos na
ção: entre o último quarto do séc.XIX e 1914, as Europa - o período posterior em que aqueles
professoras aumentam 862%, enquanto o intervêm no processo de expansão da escolari­
aumento correspondente masculino é apenas dade, enquanto os países periféricos a este
de 291%; e, em 1914, as mulheres professoras recorrem mais cedo. Num destes casos -
são já 75% na profISSão (David, 1980:129). portugal- (país onde se verificou uma interven­
ção precoce do Estado na educação pública,
Na situação de semiperiferização em que mas uma expansão tardia da escola de mas­
Portugal se encontrava, o Estado recorreu sas), a feminização do ensino realizou-se poste­
precocemente a uma intervenção na educação, riormente à dos países do "centro".
lançando as bases para uma escola de massas
que lhe. permitisse construir uma identidade Os problemas que o Estado encontrou no
nacional, como já atrás se assinalou. Mas, processo de expansão da escola de massas,
comparativamente a países do "centro" (embora na sua situação específica de semiperiferização,
tenhamos que ter em atenção que os dados podem-no ter impedido de recorrer mais cedo
estatrsticos referidos anteriormente dizem a uma força de trabalho feminina: os problemas
respeito a formações sociais muito diferentes e de legitimação que essa força de trabalho lhe
seja, pois, necessária alguma prudência ao poria podiam tornar-se incomportáveis para o
utilizar estes dados para deles extrair conclu­ processo de acumulação em curso no contexto
sões sobre processos complexos), essa inter­ específico português. Embora se possam
venção na educação não recorre cedo a uma observar, através dos exemplos anteriormente
mão-de-obra maioritariamente feminina: no final avançados, as resistências culturais que a
do séc.XIX (1899/90), as professoras constituem crescente concentração feminina nas atividades
37,2% da profissão docente (Nóvoa,1987:594). de ensinar levantou em certos setores, é neces­
Todavia, como se assinalou anteriormente, sário um trabalho aprofundado que, de forma
entre o último quarto do séc. XIX e 1910, a mais sistemática, identifique perspectivas ideo­
profissão de ensino está a feminizar-se a um lógicas que dão corpo a estas resistências, e
ritmo rápido, já que o aumento de mulheres que tornem mais visíveis os problemas de
professoras é de 584%, enquanto os homens legitimação que o Estado teria tido de enfrentar
professores crescem apenas de 131%, num se já em meados do séc.XIX (como nos países
contexto geral em que os efetivos docentes do "centro") a expansão da escola de massas
aumentam duas vezes mais(23O%). A feminiza­ se apoiasse numa mão-de-obra maioritariamen­
ção do ensino, i.e, a construção de imagens do te feminina28•

54
1. Cf.S.St08r e H.Araújo (1 986), em que se médias de variação das taxas de femlnlzação
procura analiSar a forma como as polfticas que sustentam também esta afirmação,
educativas, no pós 28 de maio de 1 926, concluindo: 'O Estado Novo corresponde
contribulram para a fOrmação de um Estado portanto a um perfodo em que não aumenta
autoritário e de ditadura, embora especifica­ e pelo contrário diminui sensivelmente o
mente no perfodo entre 1 926- 1 930 tenham ritmo da femlnlzação do professorado primá­
sido frequentemente desenvolvidas de forma rio'.
contraditória.
11. O conceito de patriarcado aqui subjacente, e
2. In República, 20 de julho de 1 932, clt in que surgirá ao longo deste artigo com algu­
Mónica, 1 9n:210. ma freqOêncIa, apresenta uma variedade de
formulaçOes, sendo por isso necessário
3. Uma posição diversa é formulada no campo explicitar em que sentido será utilizado.
educativo por educadores como Adolfo Uma, Procura expressar a situação de subordina­
que exprimiram pontos de vista diferentes, ção feminina no contexto das relaçOes de
como adiante se verá poder não só masculinas como capitalistas,
numa sociedade como a portuguesa, assina­
4. Cf. tb. Mónica, 1 9n, Bento, 1 978; Candeias, iando(aliás segundo a proposta de
1981; St08r e Araújo, 1987. Beechey,1987: 1 14) que, para melhor se
poder compreender essa situação, é funda­
5. No sentido de que as mulheres não eram mentai apreender as interiigaçOes entre o
seres capazes de iluminar suficientemente as Estado, o processo de trabalho e a familia e
consciências, de forma a que os apoios ao a forma como se desenvolvem à medida que
regime republicano se fortalecessem. a acumulação capitalista se processa.

6. Ao Inserir o conceito de 'gênero" temos 12. Sa/azarde Antonio Ferro, p.1 33, citado em
consciência do caráter polêmico que assume Mónica, 19n:275.
a sua Introdução na Irngua portuguesa,
tratando-se de um conceito que deve dema­ 13. A. O.Salazar, Como se levanta um Estado,
siado à sua origem anglo-saxOnIca, poden­ Usboa: Golden Books,1 9n, cito In Maria Belo
do a mensagem a transmitir perder em eficá­ et ai. 1987:266.
cia e impacto. No entanto, este conceito
permite distinguir o processo social, que 14. Decreto no 22 369 de Março 1 933, citado in
envolve a construção de identidades masculi­ A.Adão 1 984:159.
nas e femininas, do caráter biológico contido
no conceito de 'sexo". Não se está a negar 15. Maria Belo et. ai. (1987:264) dão sentido a
'o corpo como instância mediadora através este 'quase', quando afirmam que '(o Estado
do qual nós depuramos as experiências Novo) deu uma visibilidade social e poIftica
sociais'(Ferreira, 1988 : 1 04), mas a acentuar excepcional para época às mulheres', pela
uma explicação do social em que se torna concessão do voto limitado em 1934 (depois
visrvel a forma como processos sociais, de a República o ter retirado em 1913) e o
como um mercado de trabalho estratificado aparecimento de 3 candidatas a deputadas e
ou a Ideologia da domestlcidade, operam uma para a CAmara Corporativa, 1 934.
sobre o campo biológico humano.
16. Cf. tb. o artigo de Ellna Guimarães (1988).
7. Almeida Costa in M.Boubon, La situation
matérielle et mora/e de L 'instituteur dans le 17. Femando Catroga (1985:1 45) mostra como,
monde, Paris, Internationale das Travaileurs apesar das tomadas de posição e das pers­
de l'Enseignement,Abril,1 925,pp.57-63,cit.in pectivas transmitidas sobre as mudanças
Nóvoa(1987:595). operadas na República no campo das reia­
çOes conjugais, a produção legislativa repu­
8. Neste caso, a posição é da União do profes­ blicana neste campo pode ser vista mais
sorado Primário, cit.in Nóvoa (1 987). como de continuidade com o perfoclo final
da Monarquia e posteriormente com o do
9. Cf. MOnica, 19n; Bento,1 978; St08r, Salazarismo.
1 982;1986; Nóvoa.1987; St08re Araújo, 1 987.

10. Sérgio Grácio (1986:24) apresenta taxas

55
18. Cf. o l'lO88O trabalho em "Towarda an anaIy­ 1900, 1 670; 1919, 4902. Dados retirados de
sIs � social class and ideoIogles In contem­ Nóvoa (1989:21).
por8/Y Portuguesa teachers'(1982), em que
se discute a aplicação desta perspectiva no 23. Sobre o contexto social e polrtlco da Repúbl i­
contexto das relações educativas nas esc0- ca, cf. ainda o estudo de A.J.Telo (1980).
las portuguesas.
24. Estratégia substltuclonlsta na educação
19. O sociólogo da escola funcionaJlsta TaIcott refere-se ao desenvolvimento de atividades
Parsons(1959), partindo do pressuposto de escoiares por grupos populares e organiza­
que os papéis expressivos são especlficos dos, que procuram constltuf-Ias em alternati­
dos elementos do sexo feminino, sustentou va às atividades estatais, tanto no currrculo,
que as professoras representam uma conti­ como na pedagogia e na avaliaçâo.
nuidade do papel da mae; no entanto, como
profISSionais, permitem uma necessária 25. Taxa de feminlzação do Ensino: 1899-1900,
Introduç40 da criança na cultura unlversallsta 37,2%; 1 909-1 91 0,52,2% 1 925-1 926,
que a escola representa A femlnlzação do 66,5%;1940-1941 , 73,3% (75,3% Incluindo as
ensino primário na perspectiva de Parsons é regentes escolares). Dados de Nóvoa
funcional para a socialização das crianças na (1987:1 54).
sociedade contemporânea. Embora inspiran­
do as perspectivas acima referidas, esta 26. Acrescente-se no entanto que neste perfodo
concepção claramente delas se distingue emerge uma outra perspectiva que contra­
(entre outros aspectos) por se apoiar numa argumenta que as mulheres são os elemen­
separação, para dois sexos, entre papéis tos mais adequados para ensinar no espaço
instrumentais e expressivos. público, visto como extensão do trabalho
educativo realizado na esfera doméstica,
20. Fina d'Armada documenta a diferença salarial encontrando em D.António da Costa um dos
entre ordenados de professores e de profes­ seus representantes mais audlvels e influen­
soras em 1 870 (1984/24/2). tes (além de outros cargos que desempe­
nhou na esfera da educação, foi por breve
21. Apesar desta 'autêntica explosão escolar', no perfodo o primeiro ministro da Instruçâo do
finaldo séc. XIX, quase 80% da população Reino- 1870), perspectiva que em multo
portuguesa continua analfabeta .. contribuirá para transformar o ensinar numa
atividade feminlzada em condiçOes históricas
22. Mulheres Professoras: 1 854, 53; 1875, 519; especfficas.
* * *

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* * *

Este artigo foi publicado originaImerte na Revista Crftica de Ciências Sociais, (P0ftugaJ) ri' 29, fav. 1990.
Agradecemos II autora pela autorizaçao de sua publicação neste número.
* * *

Helena Costa G. Araújo é professora da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de


Porto, Portugal.

57
No princrpio era o Verbo, e o Verbo estava em que uma referência presente é também a
Deus e o Verbo era Deus... E o Verbo se fez carne divisão sexual de papéis. Compõe o perfil
e habitou entre nós (Jo, 1, 1).
masculino, é sua 'natural' atribuição, a ocupa­
ção desse espaço - o público - aqui represen­
relação da mulher com a palavra é coisa
A complexa passando por vários
tado pelo cargo. CHAUI (1986, p. 146) também
lugares - aponta essa ocorrência:
moralidade, erotismo, poder I não poder, falta
I excesso, controle I descontrole. A idéia de É posslvei observar, por exemplo, que, na maioria
que as mulheres falam demais está fortemente dos movimentos populares e sociais desenvolvi­
impregnada no imaginário social. Em torno dos nos últimos anos no Brasil, a participação
dessa idéia, várias imagens podem ser chama­ feminina é majoritária, ainda que as lideranças de
das à lembrança testemunhando essa associa­ muitos desses movimentos sejam exclusivamente
ção - faladeira, fofoqueira, mexeriqueira, candi­ masculinas (grifo meu).
nha, comadre, lavadeira, matraca, destramela­
da, língua de trapo, cacarejo. E ainda, a curiosi­ PITANGUY (1982, p. 65-66), discutindo as
dade, a incapacidade de guardar segredo, a relações entre a mulher, a natureza e a socie­
inconfiabilidade, o descontrole, a desocupação, dade, observa:
o ócio, a leviandade, o prazer, o gozo. A curio­
sidade matou um gato e fez Pandora abrir a ... no processo social de construção da Identidade
de gênero demarcam-se espaços - público e
caixa prejudicando toda a humanidade. Um
privado - 'próprlos a cada sexo: ao homem o
segredo jamais estará seguro se confiado a espaço externo, à mulher o espaço doméstico. (...)
uma mulher. A candinha gosta de falar de toda Tais espaços, demarcados a nlvel concreto, são
a gente, as comadres de se ocupar da vida sobretudo marcos da referência na representação
alheia, as mulheres gostam de falar. As mulhe­ simbólica do feminino e do masculino'. (...) Desta
res 'gozam' de falar? Imagens opostas a essas forma, os homens se definem fundamentalmente
- de silêncio e mudez - apareceram em minhas em termos de seus sucessos ou fracassos em
conversas com mulheres militantes em sindica­ Instituições sociais de caráter externo, público,
tos, partidos e movimentos. Os elementos enquanto o marco de referência das mulheres foge
comuns aos depoimentos dessas mulheres à articul8çAo formal da ordem social e se situa
foram o medo e a dificuldade em relação à basicamente na etapa de seu ciclo de vida e das
funções domésticas dar derivadas.
palavra, à argumentação, à fala competente.
Que medo é esse, ancestral, histórico, que
Esta noção está presente, ainda, no nível do
parece habitar a maioria de nós, mulheres?
senso comum, assim como, até bem recente­
mente, na legislação - a chefia da sociedade
... 0poder era muito da mulher, a grande força prá
negociar e organizar. Mas, quando fizeram a
conjugal era direito masculino, independente da
reunião, puseram um homem como presidente. E situação dos indivíduos, e à mulher, bem en­
eu ainda comentei 'que coisa, né? Fazem tudo e quadrada em seu papel de companheira, cabia
depois têm que pOr um homeml' E fazem com ajudar o homem.
coragem... Quer dizer, tinham todas as condições
... Que medo é esse ? De imediato pode-se perceber que são
palavras diferentes, aliás, são "falares' distintos.
Nessa fala, além do medo, pode-se pensar O que os distingue são os espaços aos quais

EDUCAÇÃO E REAUDADE, Porto Alegre, 16(2):59--66, jul/dez. 1990 59


estAo referidos e seu objeto. Um falar está escola, nos meios de comunicação, conforme
referenciado no mundo doméstico, nas miude­ pode ser visto em BELLOTTl (1970), BEAUVOIR
zas, no desimportante. O outro é mais que um (1980), ROSEMBERG (1975, 19n, 1985). Esse
falar, é uma fala pública, um discurso político, sexismo, presente na cultura e atribuído à
fala competente, assunto importante. E se socialização, enquanto instrumento na constru­
existem "ocupantes" legítimos dos espaços aos ção da subaltemidade feminina, aparece em
quais estas falas se remetem, mudar de posi­ vários depoimentos:
ção, ocupar outro espaço acarreta um certo
ônus. O sindicato e o partido político são identi­ Quer dizer, tem toda uma formação no campo,
ficados enquanto territórios masculinos, contra­ ainda muito forte, ele que a mulher tem a sua tarefa
riamente aos movimentos sociais que se situam especffica, que é cuidar da casa, dos filhos e tudo
num campo mais fluído - da reprodução da o mais. Já é uma batalhe prá gente romper com
essa tradição e, além do mais, no campo sindical
vida, da construção de novas identidades
existe este descaso em relação a incentivar a
sociais e podem melhor aceitar a presença da
participação da mulher...
mulher. Mas, ainda que a experiência de mili­
tância apresente especifICidades a partir do tipo (... ) A formação da gente é essa: a menina é criada
de organização em que ela se dê, alguns para casar. Os pais não têm tanta preocupação
elementos atravessam essas diferentes estrutu­ com os filhos, mas têm com as filhas. Então, li
ras e insistem em apontar para dificuldades educação é feita assim, e isto aijustifica realmente
comuns à prática das mulheres. como é inibida a participação das mulheres em
tudo, porque limita. A criação é totalmente diferen­
... eu ainda não tive essa coragem... te (grifo meu).

Coragem para encarar de frente a categoria, É interessante notar que este depoimento,
dirigir uma assembléia, falar. Medo/coragem. além de apontar a educação e a socialização
Novamente a referência ao medo, mesmo que como elementos fundamentais na construção
indireta (quem é corajoso não cede ao medo), dos gêneros, refere-se ainda a uma luta dura,
agora indicando uma direção, tentativa de porque travada contra o "inimigo interno". Essa
explicar, perceber a causa: "de não falar, de referência aparece, também, na fala de uma
falhar; de não estar preparada". Esse medo, outra mulher, sendo citada como fonte de
esse despreparo desdobra-se em insegurança. conflitos e desgastes:

É o tipo da coisa, nós, mulheres, não somos (...) e a gente achava que além de combater a
educadas para esse tipo de trabalho [sindicaij. De ideologia (machismo) nos homens, a gente tinha
repente, está ar, a mulher precisa assumir um que combater em si mesma, na ideologia que a
monte de coisas, e fica insegura, a gente é muito gente também tinha, certas frescuras, certas
Insegura. As mulheres aqui estão compondo a dependências, certas inseguranças. Quer dizer, o
direção e tudo, mas são muito inseguras. A gente feminino que a genta tinha dentro da gente tam­
faz um trabalho mais de bastidor. Mas tem que bém tinha que ser combatido. Isso era uma tragé­
ficar bem claro: não é que aqui esta oportunidade dia, porque você tinha de ficar 24 hs vigilante: em
não exista Ela existe e, às vezes, é até uma relação a você mesma, às pessoas em volta, na
exigência, mas eu tenho uma grande dificuldade relação com os homens que você transava, na
de expor para muitas pessoas. Eu tenho essa famOla Era um inferno (grifo meu).
deficiência, a outra diretora também... (grifo meu).
Referindo-se à necessidade de transformar a
Este depoimento é rico, porque alinhava situação da mulher, Emma Goldman alertava
alguns pontos presentes em outras falas. A para o fato de que não bastariam a emancipa­
sensação de despreparo surge associada a ção política e a igualdade econômica, se as
uma falha na educação, em seu sentido de mulheres não rompessem com a servidão
socialização, de preparação para a vida Per­ ideológica que a sociedade lhes impunha:
passa a idéia de que poderia ser diferente,
caso outras condições tivessem sido ofereci­ (...) é preciso que as mulheres aprendam a lição,
das. que compreendam que os limites para sua liberda­
de estão nas suas forças. Dar porque é muito mais
Muitas pesquisas analisando o sexismo na
importante começar em si própria, libertando-se do
educação confirmam a realidade da discrimina­
peso dos preconceitos e das normas seculares
ção. Ela acontece desde as formas mais sutis (LOBO, 1983, p. 40).
às mais óbvias. Está presente na família, na

60
E a vivência das limitações presentes na vida do viajante SAlNT-HILAlRE (1975), costume,
das mulheres nem sempre provoca reações aliás, que não foi prerrogativa somente nossa,
indignadas, ainda que sejam reconhecidas pois ainda vigora em determinadas culturas.
enquanto limites. Nova referência à educação: O termo suporte pode também ser entendido
como a base sobre a qual se erige o ediflCio. É,
Eu diria que são as injunções da vida da mulher. pois,trabalho da maior importância Do mesmo
É a mulher fora da polftica. Então, eu diria, são as modo, o que não está ao alcance dos olhos
Injunções da nossa vida que nos afastam da luta pode dar lugar a imagens de poder. O que me
(grifo meu). importa ressaltar não é a valoração pura e
simples de determinados atributos ou condi­
Mesmo que se possa discutir o poder atribuí­
ções, mas, sim, que as mesmas condições
do à educação, seja na reprodução da divisão
estão abertas a várias leituras. No caso do
sexual de papéis, seja na mudança nas con­
depoimento citado,a idéia que vem articulando
cepções de gênero, a referência a um poder e
o raciocínio é de deficiência, de carência Essa
à importância da educação atravessa os discur­
falta é sentida como pessoal, mas também
sos. A aparição tão freqüente desse imaginário
como coletiva: "eu tenho essa deficiência, a
sobre a educação pode estar relacionada ao
outra diretora também, e é o compartilhar de
lugar que esta ocupa na ideologia "liberal" das
uma mesma condição, no caso, a carência, que
elites brasileiras (Cf. ARROYO, 1987).
viabiliza o reconhecimento do outro como um
O depoimento sobre o medo permite ainda
igual.
perceber que a falta e o despreparo são senti­
dos e coletivizados em um plural que denota
uma identidade: nós, mulheres.
A fala(ação) feminina: o silêncio ruidoso

Mesmo compondo a direção somos inseguras.

Homens e mulheres sentem medo. O desafio


Surge, ainda, associado à noção de feminino
se coloca para ambos, porém não do mesmo
e de insegurança, um tipo de trabalho, uma
modo. Homens e mulheres, para além de sua
ação que se dá por trás ,nos bastidores. Esta
subjetividade, são treinados e socializados em
palavra, segundo a definição do dicionário de
direções distintas. Eles, para dar conta do
Aurélio Buarque, pode ser associada a suporte
recado, sem direito a reclamar. Elas, para se
(para bordar, para o cenário teatral) e também
sentirem incapazes antes de tentar, e com
ao encoberto, àquilo que não é visível, que não
direito ao choro. Para além da pobreza da
se acha ao alcance do público. Tanto a noção
caricatura, os relatos das mulheres e a insistên­
de suporte quanto a de invisibilidade estão
cia de trabalhos acadêmicos dizem das difICul­
associadas a um imaginário do feminino, e
dades que as mulheres têm para assumir
estreitamente vinculadas à vida das mulheres.
determinados lugares, sobretudo aqueles que
Suporte, sustentáculo da família, a m�l�er
se referem ao exercício explícito do comando e
convive com esses valores enquanto constitUin­
do poder e à fala pública:
tes do seu próprio ser. A maternidade, central
na definição do feminino, e, talvez mais propria­
mente, da mulher, aparece especialmente a
Se a gente pensar qual é o espaço da mulher em
eles relacionada (CF. NOVEUNO, 1988; PRA-
qualquer coisa, qualquer entidade, nós vamos
00,1979). Assim, aquela que é pensada como perceber que o espaço é muito pequeno. Na
o esteio de outrem não foi destinada a apare­ direção, nem falo, mas o espaço ffsiCO, de falar
cer. "Atrás de um grande homem há sempre (...) não é numérica a coisa, é mais fundo e não é
uma grande mulher", diz o dito popular. um problema do partido, do sindicato. É um
A invisibilidade, por sua vez, faz-se presente problema que está ar e só vai ser resolvido quando
na vida da mulher desde o seu órgão sexual - houver uma organização, uma consciência maior,
que é reentrância e não saliência - ao trabalho o feminismo avançar. (. . . ) Ou então, nós vamos
doméstico - filho, casa, etc.-, hoje quase sinôni­ chorar o resto da vida, não podermos ser candida­
tas, não ganharmos, não termos poder... (grifo
mo de trabalho invisível 01er LARGUíA & DU­
meu).
MOUUN, 1976; PITANGUY, 1982). A parte
interna das casas era, também, o espaço
destinado às mulheres nas Minas Gerais no A dificuldade de falar aparece em pratica­
início de nossa formação, conforme depoimento mente todos os depoimentos. As feministas,

61
pioneiras nessa afirmação, apresentaram-na c0- sexos, fala do sentimento periférico das mulhe­
mo argumentação para a formação de grupos res frente ao mundo e do sentimento de exte­
exclusivos de mulheres. E essa idéia, de algu­ rioridade frente à definição de sua própria
ma forma, tornou-se consenso. Não é fácil a história, e assim se refere à fala feminina:
aprendizagem da fala, o uso da palavra, princi­
palmente para as mulheres que, por definição, Esses fatores, como vimos, explicam a prolixidade
são destinadas à reclusão do espaço domésti­ feminina. O discurso é um protesto e uma forma
co, à discrição da vida no lar, à realização de atuação. A mulher apresenta, mais que uma
enquanto esposa e mãe, e estão geralmente biografia, um ·slstema de queixas' e uma Justificati­
va que, apesar de todas as aparências em contrá­
referidas ao cotidiano, não importa em que
rio, a Impede de se livrar da Injustiça de que
espaço atuem. A sua difICuldade em falar pode
objetivamente ela possa estar sendo vftima.
estar a isso relacionada. Isto é, elas falam do
cotidiano, do miúdo, do repetitivo, do banal: Em minha interpretação dessa análise, de
fato, a elaboração do discurso, a falação femini­
EntIo, eu vejo que existe uma dificuldade de a na, '0 rosário de lágrimas' funcionaria enquanto
mulher falar, a vida dela' um negócio tAocalado,
elemento paralisante de uma 'ação causadora
tio silencio&o, de repente pwtJcipar de uma
reunião que fosse só de mulheres significava que
de ruptura'.
ela abriria a boca. Perdia o medo, podia não ser
no primeiro, mas era no segundo, no terceiro dia. Que fala queremos, nós, mulheres? Que fala
Ela la vendo que todo mundo tinha o direito de é construída nos grupos, no movimento? A
falar, falar bobagem, besteira, coisa séria. Agora, conquista da palavra, a construção de uma fala
juntou mulher com homem, não sala nada (grifo própria, qual o significado disso? Sair do ruldo
meu). em direç� à fala. Tornar, na expressão de
PAOU (1985), a questão da mulher uma ques­
PAOU (1985, p. 66-67), analisando a reper­ tão política Ainda a mesma autora nos diz (p.
cussão do movimento feminista, toca nessa 67):
questão e nos dá algumas pistas para proble­
matizá-Ia: ... na medida em que se constitufam como sujeito
poIftico, as mulheres foram elaborando uma fala
... um dos pontos mais exaustivamente tocados própria sobre si mesmas, Identificando, polemlca­
pelo movimento é o da Invisibilidade da experiên­ mente, o que significa o feminino como Imagem,
cia real da mulher nas relações sociais, da opaci­ mas sobretudo como relações que se formam no
dade e da solidão da vida, da transfiguração de Interior de uma situação especifica de apressa0.
uma dinâmica própria em espaço préflxaclo, do
sufoco e do silêncio sem canais de expressão. (.. .) A fala e o poder ou o poder da fala, phalo?
O feminino constitufdo como InversAo da experiên­
cia real das mulheres, como dominação que as
A reflexão sobre o falar articula-se, quase
fazia silenciar... (grifo meu)
necessariamente, à idéia de poder. A minha
vivência como militante, assim como as leituras
É interessante notar que, ao mesmo tempo
feitas, indicavam ser esta uma questão crucial
em que as entrevistadas se referem à mudez
a ser enfrentada pelas mulheres. No espaço do
pelo medo à fala, e a autora citada se refere às
movimento de mulheres e outros movimentos
mulheres e ao silêncio, a imagem da mulher
sociais, este tema era motivo de algumas
sempre esteve associada a um falar demasiado,
difíceis discussões.
conforme dissemos anteriormente. Trata-se
Constava (e ainda consta) do ideário feminis­
portanto, de uma mudez e de um silêncio
ta, proposta organizativa que rompesse com a
ruidosos, uma vez que a fala feminina, no mais
estrutura vertical predominante nos partidos e
das vezes, é caracterizada como falação,tagare­
sindicatos, modelos aos quais essa proposta se
lice, lamúria, queixume, fofoca e mexerico.
contrapunha. Portanto, a palavra de ordem era:
Enfim, ruído esvaziado de conteúdo sério, fala
'organizações horizontais'. Com isso pensavam
desqualificada pelas próprias mulheres: 'con­
estar contornando este difícil problema Era a
versa de mulher" (com uma conotação de
utopia feminista (yer MALHEIROS, 1987; MI­
futilidade, tagarelice). Falação que substitui a
RANDA et a1ii, 1987). No nível dos demais
ação? RODRIGUES (1978, p.71), em estudo
grupos de mulheres, como em outros movimen­
sobre as condições de vida da classe operária
tos sociais, a forma de movimento em si signifi­
no País, analisando as diferenças entre os
cava, para os seus participantes, uma alterna-

62
tiva de organização que, referida ao comparti­ obstáculo para lMTl8 particlpaçAo mais ativa
lhar de carências comuns, abria espaço para a Quando considero que o exercfcio da liderança
igualdade, a comunidade de iguais. A idéia era implica falar diante de público numeroso, argu­
de participação direta, democracia das bases. mentar, discutir, polemizar, percebo que as
A despeito da consecução maior ou menor dificuldades aumentam. Uma relação fluente
deste objetivo, essa era a "idéia fundadora" fYer com a palavra pode transformar-se em elemen­
CARDOSO, 1983; DURHAM, 1984; SADER, to de poder. A consciência desse signifICado e
1988). No caso dos sindicatos, na esteira do de sua importància é salientada pelas mulheres
novo sindicalismo, cresceu a preocupação com em geral, como também a preocupação em
maior participação das bases. Já nos partidos, superar esses limites. As soluções buscadas
as estruturas são fortemente hierarquizadas, diferem, mas o mais interessante é que todas
exceção feita ao PT, cuja história é singular em passam por espaços de discussões exclusivos
nosso quadro partidário - seus membros ten­ de mulheres. Nos grupos só de mulheres, esse
tam criar instâncias participativas que incorpo­ argumento passa pela própria constituição do
rem grupos até então "sem lugar": mulheres e grupo. No caso dos sindicatos e partidos,
negros, geralmente. "soluções" como comissões, departamentos e
Essa digressão serve para situar o panorama setores são tentados.
onde vou discutir as questões de poder, rela­
cionando-as com a participação das mulheres. A partir disso ar, a gente começou e ficou mais
As dificuldades que apareceram em relação clara a dificuldade que a mulher tem de se expres­
ao uso da palavra já dão algumas pistas do sar. Porque no próprio congresso (teve um semi­
caminho por onde passa a relação entre mu­ nário primeiro, depois teve o congresso da Federa­
ção) ficou diffcil achar uma mulher para defender
lher, de um lado, e participação e poder, de
a tese sobre a mulher (na plenária). Então, a partir
outro:
disso, a gente está discutindo aqui no sindicato
como é que nós vamos trabalhar a nossa insegu­
Em termos de participação quantitativa no plenário rança. Nós vamos (as diretoras) formar um grupo,
da Assembléia, na maioria dos casos, nós somos buscar desafios, vamos, de repente, até Impor
majoritárias (categoria 80% feminina). Eu já fiz a mesmo. Nume assembléia, por exemplo, pra
estatfstica de tanto que me incomodava: inteNen­
montar uma mesa vai ter que ter alguém (mulher).
ção em assembléia em 15 ou 20 inteNençÕ9s, 2 Se, de repente, a reunião do colegiado está rolan­
ou 3, no máximo, são de mulheres. Numa assem­ do e tem pouca mulher falando, nós vamos ter
bléia em que somos predominância, numa catego­ queoo.
ria em que somos predominância, isto é claro
como água, nós não tivemos ainda, se eu quiser
Sem entrar no mérito da eficácia de tal
quantificar, nem 10% da palavra (grifo meu).
estratégia, não resta dúvida de que as mulhe­
res estão percebendo suas dificuldades,
E ainda:
lendo-as a partir da problemática de gênero, e
buscando superá-las. E se trata realmente de
Nós queremos ver se a mulher participa mais da
vida sindical, porque não existe participação das um grande desafio, pois o espaço da participa­
mulheres. É horrfvel, mas não existe. A uma as­ ção política é também altamente competitivo.
sembléia que a gente convoca vêm 600 homens e Exige arrojo. Essas características entram em
5 mulheres (Categoria majoritariamente masculina). conflito com o ideal de feminino presente na
nossa cultura:
ou:
Quando você consegue vencer todas as barreiras,
Os partidos, eles não conseguem absorver, não você concorreu ao espaço poIftlco, disputou, você
conseguem empolgar fora de épocas eleitorais ou também tem problemas. Porque, para você se
de grandes campanhas poIftlcas ( ) Eu acredito
00' Impor como liderança. como pessoa capaz de
que, até hoje, a existência do Departamento Femi­ dirigir é meio complicado, porque a disputa do
nino no Partido é porque a mulher não encontra espaço começa a acontecer. E os homens nAo
espaço na estrutura do partido ( ) No seu conjun­
00' estão acostumados nem vão dar isso de graça
to, os homens só homenageiam as mulheres, para nós. Mas não é fácil, muitas companheiras se
homenageiam a generosidade delas, o fato de perdem nesse processo. Não conseguem se
serem mão-de-obra gratuita impor, não conseguem romper isso e muitas vezes
manter a compreensão dos companheiros que
Os depoimentos reafirmam a dificuldade das também são direção e, às vezes, não entendem
mulheres com a palavra, reconhecendo-a como isso. Então, eu acho que continua sendo um

63
desafio. AJJ companheiras que estAo hoje nas cia de vida. Ai, PAOU (1985, p. 68-70) me ajuda
direções, (Isto) é uma conquista Não vem de nessa reflexão:
graça. Ninguém pense que vem de graça. porque
um dos argumentos é o seguinte: 'só por ser Grupos diversos, reunindo mulheres de várias
mulher não tem de ter competência'. E nós não
,
procedências, com histórias distintas, atuantes e
estamos preparadas para Isso, nós não tivemos não atuantes, profissionais, donas-de-casa, a
espaço para nós prepararmos. Você vê num questionBrBm e a exprimirem, com distintas formas
congresso desses ar, as delegaçOes, são de de consciência, suas próprias vidas e sua subaJ­
homens, entendeu? Então, como é que nós vamos tem/dade. (. ) Reconhecendo uma sujeição espa­
•.

crescer politicamente, se nós não participamos? cHica que pode projetar a vontade de romp&-/a.
Então, é desafio, eu acho que mais para nós, mu­ (... ) No terreno desse encontro entre poIftica e
lheres. cultura, parece fundar-se, enfim, uma identidade
própria, mediadora da afirmação de uma subjetivi­
É uma difícil aprendizagem. E, mais uma vez, dade poIftica: form&-se ai a experiência de um
a menção ao despreparo, à falta de um espaço sujeito nas formas históricas de seu tempo e de
para essa preparação. Esse espaço exigiria, seu lugar. Sujeito de uma opressão que se apre­
porém, algumas especificidades não encontra­ senta como uma infinita atribuição de diferenças e
véis ao nível formal da educação, ou em qual­ estigmas, mas também sujeito de uma vontade
quer organização: que pode apoderar-se dessa diferença como
critica. A identidade que sal dar é necessariamente
- por ser historicamente formada em uma sociada­
Não será brincando de democracia que o cidadão
aprenderá a construir a democracia, não será
de concreta - ambrgua e multifacetada: como
polftica, portanto, ela é uma prática que não supõe
desprezando o poder que se fortalecerá o povo
um sujeito único, mas sim comum e coletivo (grifo
para a conquista e o exercrcio do poder (ARROYO,
meu).
1987, p. 63).

No caso das mulheres, essa situação compli­ Através das análises dos depoimentos, pude
ca-se um pouco mais. A educação e a sociali­ perceber, em síntese, que, a despeito de onde
se dê essa prática - partido, sindicato ou movi­
zação femininas, a meu ver, prepara-as para o
altruísmo, para a prestação de serviços, para o mento - as mulheres experimentam dificuldades
consumo. Evitar o conflito e o confronto parece comuns, ainda que em graus diferenciados.
ser o lema da educação feminina Nunca se Assim, o medo e o sentimento de despreparo
preparar para o exercício do poder. Portanto, o frente ao desafio do exercício da liderança está
espaço requerido pelas mulheres traz uma presente em quase todas as falas. Esses senti­
exigência nova: a preparação para o exercício mentos ligam-se às dificuldades em relação ao
pleno de sua liberdade, de sua condição de uso da palavra pública, que, por sua vez, é
sujeito. atribuída a uma falha, a uma falta na
DURHAN (1984, p. 28), discutindo a relação educação/socialização. Elas sentem que não
movimentos sociais e cidadania, afirma: foram preparadas para ocupar tais espaços e
se imcumbir de tais atribuições. E não foram
No movimento as pessoas se conhecem, ampliam mesmo, conforme pode ser vísto na literatura
a sua sociabilidade, 'aprendem a falar', isto é a sobre o tema (BARROSO, 19n; BELLOrn,
formular questOes novas sobre sua experiência de 1970; MELLO, 1975; WHITAKER, 1989; CóSER,
vida Basicamente, elas tornam coletivas (e dessa 1987). Percebem, também, que esse desafio se
forma integram) as experiências individuais e dá diferentemente para seus companheiros
fragmentadas, encerradas nos limites da vida homens e que as dificuldades que enfrentam se
privada relacionam à sua condição de gênero. Isto é,
que por serem mulheres, outras foram as
Posto dessa forma, esse espaço parece "qualidades' e "atributos" desenvolvidos. O seu
cumprir, em parte, as exigências formuladas
despreparo significa mais precisamente preparo
pelas mulheres, mas posso focalizar um pouco
para outra coisa Assim, assumir um lugar de
mais o olhar, para pensar na possibilidade de comando e de liderança implica sair dos basti­
um espaço que, oferecendo as condições dores a, pode significar, usurpar um lugar,
necessárias, possibilite, ainda, uma discussão
transgredir uma 'ordem' (culturaQ, perder a
feita a partir da condição de gênero: mulheres
identidade, correr o risco de poder?
reunidas para discutir, a partir dessa ótica, a
É interessante acentuar que as estratégias
sua inserção no mundo, para aprender a falar,
pensadas para superar tais limites passam
a formular questões novas sobre sua experiên-

64
sempre pela reunião em grupos exclusivos de Pareceu-me uma fala esvaziada pela própria
mulheres, com o objetivo de elaborar e coletivi­ enunciante que ao repetir-se indefinidamente­
zar essas experiências, contorná-Ias buscando ·cuidado crianças'· - deixava de ser ouvida
ultrapassá-Ias. Nessa trajetória, enfrentam a A perguntação do óbvio me fez pensar sobre
concorrência e a competição, presentes na as razões, o que explicava que as mulheres
prática política e especialmente difíceis para perguntassem tanto coisas para as quais já
elas. É também nesse processo que muitas conheciam a resposta Mais do que uma res­
descobrem as especificidades da prática polí­ posta, pareciam buscar uma confirmação. De
tica no feminino e o desafio aí presente. Nesse quê? Dessa maneira, elas se colocam, freqüen­
percurso, vão conformando novas concepções, temente, no lugar de quem não sabe
novas visões de mundo e de sua inserção nele, dirigindo-se àquele que sabe. Há uma espécie
assim como vão ampliando sua condição de de infantilização por parte das mulheres. Por
sujeito, afirmando-se como sujeito de direitos, quê?
com todas as contradições e ambigüidades que Colocar-se no lugar de quem não sabe é
isto significa também uma prática comum, entre mulheres,
A análise desenvolvida deteve-se principal­ no mercado amoroso. Possivelmente, trata-se
mente nas questões atinentes à prática política, de uma estratégia eficaz de conquista, uma vez
insuficiente, portanto, para a compreensão de que não ameaça aquele que pensa saber.
questão tão complexa. Mas, já com a atenção Não há resposta, não há certezas, somente
desperta - ouvido atento, olhar esperto - indagações pelas quais gostaria que os leitores
pus-me a observar ao redor. Cenas cotidianas (de ambos os sexos) se sentissem estimulados
envolvendo mulheres passaram a ter outro e dispostos a participar desse esforço de
significado. Um certo olhar e uma outra escuta compreensão de uma importante questão ainda
iam sendo produzidos. Algumas idéias e inda­ pouco explorada. Além da inquietação intelectu­
gações foram surgindo. Observando cenas de al, o desejo que possamos, nós mulheres, sair
famílias na praia, percebi que as mulheres - do scrip� dar uma outra fala, subverter a cena,
mães - têm uma fala tão excessiva, tão repetiti­ enfim.
va que ineficaz, inaudível, puro ruído.

***

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***

Este taxlo é baseado na dissertação de mestrado da autora, Do rufdo à fala análise da experiência de
-

participaçAo poIItica das mulheres em Minas Gerais, da década de 75-85, em partidos, sindicatos a movimentos
sociais de mulheres; apresanIada ao Curso de Mestrado em EducaçAo da Faculdade de Educação da UFMG, em
21/8/1989.

Silvana Maria Leal Cóser é participante do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher - UFMG e do Grupo
de Estudos sobre História da Educação da Mulher da FAE/UFMG.

66
objetivo deste ensaio é levantar questões vivência empírica do feminismo. Duas autoras
O te6rico-metodol6gicas em torno da questão que apontam corretamente para este problema
do feminismo, e mais especificamente da histó­ são Sally-Alexander e Barbara Taylor:
ria feminista Em primeiro lugar é preciso lem­
brar as ambigüidades que envolvem este tema Nós, como historiadoras feministas, compartilha­
que, como acontece com outras esferas do mos (...) o desejo de que se investigue mais as
conhecimento, envolve um duplo sentido: o vidas e as experiências das mulheres. Mas isto não
pode substituir uma teoria da opressão das mulhe­
objeto em si (o seu acontecer dinâmico) e a
res. A história só responde às perguntas que lhe
área do conhecimento que se prop6eestudá-lo.
fazemos; sem um marco para estas perguntas, nos
O feminismo, desde suas origens, contém este
debateremos em um tumulto de "fatos' dissociados
duplo caráter: de um movimento histórico e e contraditórios4•
teórico, que produz ação e reflexão, embora,
como admitem alguns autores, a ação tenha Tais preocupações com o campo de abran­
estado à frente da reflexão. 1 gência não somente empírico mas intelectual
Inicialmente é preciso definir o campo, ou da história feminista também está presente nas
antes, o enfoque, sobre o qual incidirão as reflexões de autoras francesas (Michelle Perrot,
questões aqui tratadas. Neste sentido adoto a por exemplo) que sintetizaram na Introdução de
distinção proposta por Ana Davin entre história Les cahiers du GRIF (número 37/38), sob o
feminista e história das mulheres que, como título Sexes et savoir, algumas das preocupa­
veremos mais adiante, é um tema recorrente na ções/pretensões mais comuns a todos os que
literatura recente sobre esta questão. Esta lidam com o tema, corno as discussões em
autora, que trabalha com a intersecção feminis­ torno do conceito de gênero, a discussão entre
mO/história do trabalho, resume assim o proble­ o particular e o universal no tocante a elabora­
ma: ção feminista e assim por diante. Considerando
a relevância deste texto optei por transcrever
a história do trabalho se define basicamente em alguns de seus trechos mais significativos:
termos de sua temática (mas) (...) a história femi­
nista não se define assim. A história será feminista
Qual é (...) o critério que permite qualificar uma
segundo o enfoque que se aplique ao trabalho que
pesquisa feminista? É a gradeS de leitura que se
está fazendo. Pode-se ser uma historiadora femi­
aplica e produz um campo de saber, e ao limite de
nista sem ocupar-se principalmente das mulheres
todo saber (... ) tem por parâmetro a noção de
e assa é ( ...) a distinção entre história feminista e
gênero (... ) a diferença de sexos, mas uma diferen­
história das mulheres.2
ça que inclui a assimetria dos diferentes e sua
articulação em termos de poder.
Tal história feminista que se busca construir
é uma tendência marginal frente às grandes Na medida em que ela (a noção de gênero) se
escolas de pensamento, e tem-se defrontado revela como um útil instrumento simbólico, visa no
com problemas no seu próprio front, a saber, futuro a desligar -se de suas origens e a ter valor
uma incapacidade ou negação sistemática à não para qualquer mulher ou unicamente para
teorização que assume aspectos os mais mulheres mas sim para toda a comunidade cientlfi­
variados como, por exemplo, a recusa aos ca. As pesquisas feministas são um princrpio de
conceitos de patriarcado ou gêner03 apontados verdade. Elaboram uma leitura de mundo generali­
zável.
como camisa de força ou "desvio" do que é a

EDUCAÇÃO E REALIDADE, Porto Alegre, 16(2):67-79, jul/dez. 1990 67


Assim, as pesquisas feministas produzem efeitos de Lucretia Mott e Elizabeth Cady Stanton e
sobre todo o campo do saber (e não somente o que tomou como modelo (com uma ponta de
campo delimitado pelo objeto mulher) ( . ) Se nós
. .
ironia, a meu ver) a Declaração de Independên­
temos que o campo do saber é um campo cons­ cia dos EUA8•
trufdo, e se ele até aqui foi construfdo Ignorando o
gênero (a diferença de sexos), vale dizer, do ponto
É interessante notar que Seneca Falls surgiu,
de vista de um sexo, as pesquisas feministas
tendem a lhe reconstruir a partir desta 'contra-cor­
nas palavras de Peter Gay, como "resposta
rente's. retardada a um insulto profundo e gratuíto",
qual seja: a limitação à participação das mulhe­
Porque, por exemplo, a periodização da história ou res da delegação norte americana (entre elas
a determinação e hierarquia das formas literárias Lucretia Mott e Elizabeth Cady Stanton) na
não são, sem dúvida, a mesma segundo o ponto Convenção Mundial contra a Escravidão (que
de vista dos autores privilegiados, mesmo se sua ocorrera em Londres, alguns anos antes, 1840)
validade pode e deve ser reconhecida por todos. que lhes retirou o direito a voz e voto colocan­
O primeiro passo é de fazer reconhecer a sexuali­
do-as na posição de meras observadoras. A
zação do saber (lá onde este tem sido assimilado
percepção desta incoerência e discriminação
ao universaQ, estando entendido que a elucidação
viria a constituir as bases para o primeiro
de seus pressupostos não arruina mas consolida
uma reflexão dentro dos seus limites (...) visiveis.
movimento mundial de mulheres organizadas10.
A grade de leitura da diferença de sexos em
termos de gênero é geradora de saberes originais, A Declaração de Seneca Falls, em que pese
ela produz efeitos que não vêm somente se somar sua inspiração liberal que reivindica a igualda­
como um capitulo complementar do saber consti­ de de direitos para as mulheres com base nas
tufdo (...) Seus efeitos são mais ou menos impor­ leis de Deus e da natureza, entre estes o "sag­
tantes segundo os domfnios abordados, cada qual rado direito do votO"11 tem em seu preâmbulo
exigindo procedimentos especfficos: uma hipótese um artigo particularmente interessante que
de leitura é tributária dos campos aos quais ela se
afirma:
aplica7•

A história da humanidade é a história das repetidas


humilhações e usurpações por parte do homem
A partir destas considerações básicas é
com respeito à mulher, e cujo objetivo direto é o
possível interrogar a história "geral" de um estabelecimento de uma tirania absoluta sobre
ponto de vista previamente demarcado, espe­ ela12•
rando que a resultante não seja a "simples
soma" mas um encontro mutuamente enrique­ Neste artigo não podemos deixar de notar a
cedor. semelhança com o célebre enunciado que dá
início ao Manifesto do Partido Comunista de
Fazer uma análise do que é o movimento Marx e Engels (coincidentemente do mesmo
feminista é sempre e essencialmente falar de ano - 1848 da Convenção de Seneca Falls)
-

um movimento prático, militante, mas também que declara que toda a história da humanidade
de um movimento teórico que, a depender do é a história da luta de classes, e a tentativa de
contexto histórico e da matriz8 dominante no romper com este domínio. Embora sem ter sido
movimento, dos interesses concretos envolvi­ influenciado pelo Manifesto tanto pela composi­
dos, realizou inúmeras aproximações e afasta­ ção da Convenção quanto pelo caráter geral de
mentos com as principais correntes de pensa­ sua Declaração, não deixa de ser relevante que
mento teórico tais como o liberalismo, o marxis­ esta tentativa de refletir sobre a situação de
mo e a psicanálise. A relação intelectual estabe­ opressão da mulher na história, expressa na
lecida com estas correntes de pensamento não Declaração de Seneca Falls, antecipe em mais
foi de modo algum estável e reflete a perma­ de um século a elaboração de uma das mais
nente busca de uma identidade própria do importantes tendências do movimento feminista,
feminismo, sem cair na armadilha do confortável o feminismo radical, que, oriundo em grande
gueto com o qual, por vezes, se lhe acenou. parte do feminismo socialista, rompeu com este
O marco reconhecido de inauguração "for­ e a tradição marxista ao colocar no lugar da
mai" do feminismo é um exemplo. Trata-se da classe a luta entre os sexos, sendo que estes
Convenção de Seneca Falls, de 1848, N. V., que chegam mesmo a assumir o estatuto da classe
aprovou o documento conhecido como "Decla­ no pensamento marxista
ração de Seneca Falls", resultado do trabalho Mas embora 1848 seja o marco da organiza-

68
ção do movimento feminista, ele não pode ser para os operários) chegando a episódios dra­
tomado isoladamente, uma vez que foi precedi­ máticos como a greve de Chicago de 1857 em
do por inúmeras outras organizações. Estas, que mais de uma centena de operárias foram
embora atomizadas, como por exemplo os mortas e que deu origem ao dia internacional
clubes de mulheres republicanas na Revolução da mulher. Enfrentam ainda a oposição dos
Francesa que lutaram decididamente ao lado sindicatos masculinos que lhes são fechados e
da Revolução, tiveram um papel relevante e opõem-se decididamente ao trabalho das
frequentemente omitido, bem como elaborações mulheres como forma de assegurar empregos
sobre a questão da igualdade da mulher que e salários.
pontilhavam em publicações feministas desde Esta posição conservadora por parte do
o século XVIII. Apesar da importância destas operariado contra o trabalho feminino que se
formas de luta e expressão das mulheres em expressava, entre outros, por meio de greves
séculos anteriores, através das quais se chegou contra a contratação de mulheres1!! teve reper­
amargamente à conclusão da necessidade de cussão também entre os teóricos do socialismo,
autonomia do moviment013, o século XIX consti­ como Proudhon, que afirmava taxativamente
tuiu um terreno especialmente fértil para a "dona-de-casa ou prostituta". Teve respa/do
análise histórica do movimento feminista, ou também na postura ambígua dos fundadores
análise feminista da história, que pretendemos do socialismo 'cientifico' e da Internacional
realizar. Comunista, Marx e Engels.
e século XIX é um período onde as contradi­ Em que pese algumas tentativas contempo­
ções e ambigüidades que caracterizam o râneas de minorar-lhes a responsabilidade pelo
movimento histórico e a natureza humana disprivilegiamento do papel social e das lutas
apresentam-se aos olhos do historiador com da mulher, não podemos nos furtar a um balan­
rara clareza. e período que ficou conhecido ço crítico da sua atuação. Este 'ajuste de
como sinônimo de repressão sexual, a era contas' envolve teóricos de peso como perry
vitoriana, foi também o que provavelmente mais Anderson que, em A crise da crise do marxis­
falou em sexo, fazendo-o objeto de inúmeros mo, sustenta a meu ver uma posição delicada
discursos14. A dupla moral, apontada e criticada e questionável, segundo a qual embora a crise
pelas feministas desde o século XVII, segue seu do marxismo contenha elementos teóricos,
livre curso e se apoia em fundamentos "cientlfi­ lacunas e incompreensões, esta teria caráter
COSi como a oposição de naturezas sexuais predominantemente político, como a burocrati­
radicalmente contrárias entre homens e mulhe­ zação e falência dos modelos revolucionários
res. Agudiza-se a polêmica quanto ao estabele­ do /este e de uma tendência à estagnação
cimento da imagem da mulher que oscila devida exatamente ao caráter hegemõnico do
durante todo o século entre os extremos de marxismo no interior do movimento socialista.
anjo a demônio. Entre a Maria pura e santa e a Um dos exemplos utilizados por Anderson para
Eva lasciva e corrompedora. ilustrar este quadro é exatamente a questão do
e século XIX é também um período pleno de movimento de mulheres:
disputas trabalhistas inter-classes e de disputas
acirradas no interior do próprio movimento Em primeiro lugar, e mais óbvio, a sistematicidade
operário. Este, que surge com uma intensidade do marxismo como teoria compreensiva da socie­
renovada, acha-se dividido não só entre várias dade tem sido questionada pelo surgimento do
movimento de mulheres, que desenvolve discursos
facções, mas também entre questões coloca­
sobre a famOia e a sexualidade que escapam, em
das pela modernidade e velhas tradições cultu­
grande medida, a todo seu escopo tradicional.
rais. Exemplar desta situação é o conflito entre
homens e mulheres da classe operária As A literatura clássica do marxismo contém, natural­
mulheres, que já estavam participando crescen­ mente, um capftulo memorável dedicado a estas
temente do mercado de trabalho desde a questões, no trabalho do último Engels, mas desde
Revolução Industrial, no século XIX vão ser entao nunca foi consolidado dentro de uma preo­
responsabilizadas por ocuparem lugares na cupação contrnua e central, deslizando numa
indústria e pela crise de desemprego que afeta negligência e adiamento endêmicos18.
predominantemente os trabalhadores homens.
e trabalho luta contra o capital, mas luta A primeira ressalva que cabe fazer é quanto
dividido. As trabalhadoras lutam contra os a questão do "surgimento do movimento de
absurdos salários (de 1/2 a 1/3 do que é pago mulheres" que, pelo tratamento dado pelo autor
(que no seu prefácio nos esclarece que discuti-

69
rá a crise do marxismo no quadro deste século, Assim, busquei exatamente o entranhamento
das décadas de 60 e 70 mais especificamente), com algumas destas contradições e omissões"
sugere uma tendência recente em termos presentes nos clássicos e que constituem a
históricos, faz pensar, pela especificidade do base das (ijref\exões posteriores. Este, a meu
período que discute, no boom que se dá em ver, é o procedimento mais adequado quando
termos de feminismo exatamente neste período se pretende uma reflexão que aponte para os
(décadas de 60 e 70) onde temos o surgimento aspectos falhos constitutivos de uma teoria (a
do feminismo radical e o eixo de discussão crise de pressupostos filosóficos de que fala
passa a se centrar em questões de sexualidade Adelmo Genro Filh01� e não apenas os atenu­
(é a época de disseminação da pílula anticon­ antes histórlco-políticos de seu desdobramento.
cepcionaO e psicologia feminina Ao afirmar que Esta concepção baseia-se também em parte no
o marxismo (o marxismo contemporâneo, se alerta metodológico de um ferrenho mas lúcido
supõe, do qual o autor está tratando) "tem sido crítico do marxismo, KarI Popper, que aponta
questionado pelo surgimento do movimento de para a necessidade de, ao abordar criticamente
mulheres", nos leva a pensar em dois movimen­ determinada teoria,buscar-se aquilo que é o
tos temporalmente distintos: uma teoria já seu ponto mais forte e não o que é circunstan­
sistematizada que passa contemporaneamente cial. Neste sentido, considerando que o que há
a ser "questionada" pelo surgimento de algo de mais forte (e, muitas vezes, "sagrado") em
novo. diversas áreas do conhecimento é justamente
Tal, no entanto, não se verifica, uma vez que o que se refere aos princípios básicos e a seus
o movimento de mulheres, movimento feminista enunciadores (a "herança clássica"), penso que
em seu sentido organizativo, já ocupava um é aí que devemos centrar nossa atenção.
lugar histórico desde meados do século XIX, Vejamos então o que o próprio Engels diz a
para não falar de tentativas anteriores, sendo respeito da questão de que nos ocupamos. Em
portanto contemporâneo da constituição do primeiro lugar, não há exatamente um "capítulo
marxismo enquanto movimento teórico e políti­ memorável" sobre a questão. O que há são
co. O próprio marco do feminismo organizado referências mais ou menos esparsas que deno­
(a Convenção de Seneca Falls), como já assi­ tam com nitidez o grau de importância com que
nalamos, coincide com a publicação do Mani­ o tema da mulher era encarado. Do ponto de
festo do Partido Comunista, que é, por sua vez, vista que me proponho desenvolver a elucida­
um dos marcos constituintes da interpretação ção das contradições que perpassam o século
marxista da história Além disso, o interior XIX e seus teóricos mais importantes é particu­
mesmo do movimento socialista e marxista larmente merecedor de nota as passagens que
contou com várias feministas (como Flora fazem referência ao polêmico tema da relação
Tristan, Clara Zetkin) que, já no século XIX, mulher/mercado de trabalho.
refletiam sobre questões como "a família e a
sexualidade" e debatiam a 'questão da mulher' Sobre a relação família/trabalho industrial:
como algo que exigia uma certa especificidade,
embora não tenham tido nem receptividade o caráter particular do predomfnio do homem
nem sucesso na tentativa. sobre a mulher na famRia moderna, assim como a
Um segundo aspecto é quanto a "literatura necessidade e o modo de estabelecer uma igual­
clássica do marxismo" e seu "memorável capítu­ dade social efetiva entre ambos não se manifestará
com toda a nitidez senão quando homem e mulher
lo dedicado a estas questões" (p.1 02). É inte­
tiverem, por lei, direitos absolutamente iguais.
ressante que P.Anderson embora fazendo uma
Então é que se há de ver que a libertação da
ressalva para "as contradições e omissões
mulher exige como primeira condição a reincorpo­
daquela herança" (p.1 03), além de não apresen­ ração de todo o sexo feminino à indústria social o
tar nenhuma pista quanto ao seu conteúdo, que, por sua vez requer a supressão da famRia
opõe a esta herança clássica a "negligência e individual unidade econômica da sociedade18•
adiamento" posteriores como algo que, parece, Em muitos casos a famflia não fica totalmente
ocorre sem que se saiba exatamente porque. desagregada com o trabalho da mulher, mas fica
Do meu ponto de vista é esta conexão que se completamente desordenada É a mulher que
precisa buscar sob pena de cair-se na dicoto­ alimenta a famflia, é o homem que fica em casa,
cuida das crianças, limpa os quartos e prepara a
mia gasta entre os feitos memoráveis dos
comida Este caso é muito freqüente. S6 em
fundadores e o desleixo dos continuadores,
Manchester podemos contar várias centenas
como se um nada tivesse a ver com o outro.
destes homens, condenados aos trabalhos domés-

70
ticos. Pode-se imaginar facilmente a legitima e as exigências dos movimentos sociais ao qual
indignação entre os operários devido a estas está vinculado.
alterações de toda a vicia familiar, pois as outras Entender estas contradições no marco do
condições sociais se mantém inalteráveis19•
seu referencial histórico concreto é, a meu ver,
As mulheres solteiras que cresceram nas fábricas
a melhor forma de, a partir do seu levantamento
não têm melhor sorte que as casadas. Diga-se de
e análise, tentar superá-Ias. A inflexão adotada
passagem que uma menina que trabalha na fábrica
desde a idade dos nove anos não tem possibilida­ por P. Anderson imputa a maior cota de res­
des de se familiarizar com os trabalhos domésticos ponsabilidade quanto à incompreensão da
e dar que as operárias de fábricas sejam neste importância do papel da mulher na sociedade
domfnio completamente incapazes de se tornarem para os continuadores do marxismo, sem fazer
boas donas de casa20• a crítica necessária dos clássicos. Esta ênfase
no "elo mais fraco" recai usualmente (com
Conseqüências morais do trabalho na fábri­ acerto ou não) sobre os "continuadores", sobre
ca: aqueles passíveis de serem encarados como
"meros intérpretes da verdade" (ao contrário
Mas isto não é nada. As conseqüências morais do dos "fundadores"), obscurecendo uma respon­
trabalho das mulheres nas fábricas ainda são bem sabilidade que não pode ser desvinculada da
piores. A reunião de pessoas dos dois sexos e de
tradição da qual são tributários.
todas as idades na mesma oficina, a inevitável
Esta tem sido, a meu ver, a forma predomi­
promiscuidade que dar resulta, o amontoamento
nante com que os indivíduos se relacionam
num espaço reduzido de pessoas que não tiveram
nem formação moral nem intelectual não são de com as teorias (e não só com a marxista),
efeito favorável no desenvolvimento do caráter talvez por supor que apenas "entre iguais" a
feminino21• discordância e a crítica são possíveis, mas que
alguns "lugares santos" devam ser preserva­
Uma testemunha de Leicester disse que preferia d0s23 sob pena de excomunhão, de não ser
ver a sua filha mendigar do que deixá-Ia ir para a reconhecido ou não reconhecer-se mais como
fábrica, que a fábrica é um verdadeiro inferno, que fazendo parte de determinado movimento. Esta
a maior parte das mulheres da vida estão naquela atitude bitolada, marcada pela falta de ousadia
situação, devido à sua permanência na fábrica. (...)
teórica tem sido um dos componentes da crise
Uma outra em Manchester não tem nenhum
do marxismo e da estagnação mesmo em que
escrúpulo em afirmar que 3/4 das jovens operárias
este se encontra Isto não se aplica, evidente­
de fábrica dos 14 aos 20 anos já não são vir­
gens22• mente, a Anderson que, além de reconhecer
limitações na elaboração clássica do marxismo,
Por este apanhado do capítulo memorável de aponta para a necessidade de renová-lo com
Engels sobre a questão da mulher é possível base em outros estudos e preocupações.
perceber algumas de suas flagrantes contradi­ Contudo, penso que é necessário ir além de
ções e, através delas, deduzir o porquê (ao aludir a "contradições e omissões" na obra dos
menos em parte) da posterior "negligência e clássicos e sim cavar o mais fundo possível
adiamento endêmicos" com que o tema da numa tentativa de, inclusive, superá-Ias. Assim
mulher foi tratado no interior do pensamento estaremos fazendo justiça a grandeza destes
marxista A preocupação com a moral como autores dentro dos limites do que é humano e
algo que faz da mulher seu objeto privilegiado, não como quem lida com deuses míticos. E é
senão exclusivo, a forma dúplice com que o este elemento profundamente humano, essen­
trabalho doméstico é encarado - como uma cialmente contraditório, que busco entender.
"condenação" para os homens, que contra ele No caso dos autores em questão (e mais
legitimamente se revoltam, e como uma obriga­ especificamente em Engels) ambos exprimem
ção para as mulheres, que o trabalho da fábrica a dificuldade em manter a coerência, por um
impede que sejam "boas donas-cle-casa" - a lado com as lutas concretas que estavam
contradição cristalina que há entre pregar "a vivendo no interior do movimento operário,
reincorporação de todo o sexo feminino à confrontando-se com problemas graves como
indústria social" e ao mesmo tempo lamentar os o alto grau de desemprego da mão-de-obra
seus efeitos são apenas alguns exemplos da masculina e algumas vezes assumindo mesmo
tensão que há entre o pensador fruto do seu a sua lógica; e por outro lado como teóricos
tempo mas que também lhe é superior e que que extrapolam seu próprio tempo e percebem
se debate entre um projeto de sociedade futura a necessidade de libertação da humanidade

71
como um todo, acima do caráter corporativo caráter.
das lutas imediatas. O Engels que teme ante a Esta crença num ethos igualitário que subjaz
inversão e a desordem da famRia operária pelo aos textos de Marx e Engels já foi firmemente
ingresso da mulher na indústria é o mesmo que refutada com base em pesquisas antropológi­
defende a sua entrada como forma de realizar cas que constataram a desigualdade sexual em
a efetiva libertação das mulheres e que final­ sociedades tribais (sem classes), como de­
mente nos brinda com uma bela reflexão que monstram Joan Bamberger e Karen Sacks2!5,
em nada fica a dever ao feminismo de seu esta última com a ressalva de que, embora tal
tempo: modelo igualitário não tenha sustentação, o
surgimento da propriedade privada e da socie­
Temos que reconhecer que uma inversão tão dade de classes de fato agrava e amplia as
completa da situação social dos dois sexos tem restrições anteriormente impostas às mulheres.
que ser devida ao fato de suas relações serem Neste ponto, penso existir um paradoxo
falseadas desde o inIcio. Se o domlnio da mulher interessante, qual seja: de que a visão estrita­
sobre o homem que o sistema industrial engen­
mente materialista de Engels faz com que ele
drou fatalmente é desumano, o domlnio do homem
adote uma concepção idealista (no sentido lato)
sobre a mulher tal como existia antes também o é
necessariamente24•
de ser humano. Para tornar mais claro este
(aparente) paradoxo, traçarei um paralelo com
Mesmo aqui não é possível separar o joio do outro teórico - Freud - que começa sua obra
trigo. Embora seja gratificante encontrar em por volta de fins do século XIX, e que tem
Engels a noção de que a dominação do interesse especial para o presente estudo. No
homem sobre a mulher não é um fato natural caso de Freud, a análise parte do papel da
ou biológico (como alguns de seus contempo­ sexualidade para o ser humano, descrito como
râneos defendiam), é preciso notar em que um animal complexo, com desejos e sentimen­
consistia esta dominação para ele, ou seja: a tos contraditórios e que começa a humanizar-se
preponderância econômica. Isto é evidenciado (socializar-se) a partir das redes de relações e
pelo fato dele chegar àquela conclusão exata­ interditos que unem a questão da sexualidade
mente como parte da constatação de que "o com o poder, a sobrevivência material e a
sistema industrial engendrou" o "domínio da questão da consciência que daí surge, ao
mulher sobre o homem". Este é apenas um mesmo tempo que reestrutura estas relações.
pequeno exemplo da tensão economicista que Coincidentemente Freud se utiliza de um autor
caracteriza o pensamento dos fundadores do que tem também papel destacado no trabalho
marxismo. Marx, embora não dedique-se com a de Engels - Morgan - embora dando-lhe uso
mesma atenção que Engels ao tema da mulher, bem diferenciado. Engels e Freud parecem de
estava de acordo com ele, como temos notícia acordo quanto a um ponto, assim sintetizado
pelo Manifesto de 1 848, de que as causas da por Engels:
opressão da mulher são de ordem estritamente
material, tanto que, cessando estas - com o fim Para sair da animalidade, para realizar o maior
progresso que a natureza conhece, era preciso
do capitalismo - a igualdade seria restaurada
mais um elemento: substituir a falta de poder
entre os sexos.
defensivo do homem isolado pela união de forças
Esta tensão reducionista, que é um dos eixos
e pela ação comum26•
da crise do marxismo (e não apenas uma
limitação), pode ser observada mais detalhada­ O problema é que Engels não nos fornece
mente, no tocante à questão da mulher, em A nenhuma pista de como e porque se dá esta
origem da 'aroflia, da propriedade privada e do mudança que, aparentemente, foi realizada pela
Estado, na sua postulação de uma sociedade pura teleologia da necessidade, uma lógica
igualitária antes do advento das classes e que circular. Argumenta ele, de acordo com a noção
pressupõe urna natureza humana essencial­ do ethos igualitário, que:
mente positiva, corrompida pelo surgimento da
propriedade privada E mesmo o surgimento a tolerância recIproca entre os machos adultos e a
desta não se deve, exatamente, a uma intenção ausência de ciúmes constituiram a primeira condi­
humana malévola - a ganância, por exemplo - ção para que se pudessem formar estes grupos
mas sim a um mecanismo puramente econômi­ numerosos e estáveis, em cujo seio, unicamente,
co (o surgimento do excedente devido à podia operar-se a transformação do animal em
técnica na produção comunaQ que lhe altera o homem (00') não existiam os limites proibitivos

72
vigentes hoje ou numa época anterior para estas É Fraud, O pesquisador dos fenômenos
relaçOes. Já vimos calrem as barreiras dos ciúmes. psíquicos (e como tal erroneamente classifICado
Se algo pode ser estabelecido irrefutavelmente, foi de idealista) que, ao buscar uma explicaçAo
que o ciúme é um sentimento que se desenvolveu
hist6rico-antropológica para estes, nos fornece­
mais tarde. O mesmo acontece com a Idéia do
rá maiores elementos de análise. Sua visão de
Incesto21.
ser humano é, ironicamente, mais pessimista e
também mais realista que a de Engels.
Para Freud, por sua vez, o que Engels apre­
senta corno elementos posteriores ao processo
Os desejos sexuais não unem os homens, mas os
de humanização (o ciúme e o incesto) estão
dividem. Embora os Irmao se tivessem reunido em
precisamente na raiz do processo humanizador.
grupo para derrotar o pai, todos eram rivais uns
Partindo dos trabalhos de Morgan e Frazer, dos outros em relação às mulheres. cada um
entre outros, Freud construiu um belíssimo quereria, corno o pai, ter todas as mulheres para
ensaio antropológico-psicanalítico (Totem e S/. A nova organizaçao terminaria numa luta de
Tabu, de 1913) que, sem a pretensão da irrefu­ todos contra todos, pois nenhum deles tinha força
tabilidade, nos oferece uma versão bem mais tao predominante a ponto de ser capaz de assumir
plausível do processo humanizador, sem o o lugar do pai com êxito. Assim, os irmaos não
traço idealizante de Engels. Partindo da tiveram outra alternativa, se queriam viver juntos
descrição da horda primeva (presumida por talvez somente depois de terem passado por
muitas crises perigosas do que instituir a lei contra
Morgan mas não verificada nas sociedades
o incesto, pela qual todos de igual modo renuncia­
humanas conhecidas), onde um macho podero­
vam às mulheres que desejavam e que tinham
so reinava absoluto detendo para si a posse
sido o motivo principal para se livrarem do pafO
das fêmeas e expulsando os filhos homens, (grifos meus).
Freud nos relata os primórdios da civilização da
seguinte maneira: Esta explicação proposta por Freud se asse­
melha, com vantagem, àquela proposta por
Certo dia, os Irmãos que tinham sido expulsos Hobbes, um dos mais importantes teóricos do
retornaram juntos, mataram e devoraram o pai, just-naturalismo que descreve o "estado de
colocando assim um fim à horda patriarcal. Uni­
natureza" como a guerra de todos contra todos
dos, tiveram a coragem de fazê-lo e foram bem
e afirma: o homem é o lobo do homem - e do
sucedidos no que lhes teria sido impossfvel fazer
Individualmente (.. ) O violento pai primevo fora
.
qual só e possível sair mediante um pacto onde
sem dúvida o temido e invejado modelo de cada cada um - pelo temor dos demais - renuncia a
um do grupo de Irmaos, e, pelo ato de devorá-lo, uma parcela de poder em função do estabeleci­
realizavam a Identificação com ele, cada um deles mento da esfera social. A explicação de Freud
adquirindo uma parte de sua força. A refeição se assemelha a de Hobbes mas, a meu ver, é
totêmica, que é talvez o mais antigo festival da superior a deste na medida em que atribui uma
humanidade, seria assim uma repetição e uma razão a esta luta dos homens contra os h0-
comemoração deste ato memorável e criminoso, mens, e o objeto em tomo do qual eles se
que foi o começo de tantas coisas: da organizaçao
estruturam em sociedade: a proibição do inces­
social, das restrições morais e da religiao28 (grifos
to como a primeira lei (tabu) e a exogamia
meus).
como a primeira instituição sociaf1•
Nesta descrição reside a importância especí­
A antropofagia, este fenômeno pouco conhe­
fica de Freud para nossa análise. Se é correto
cido e instigante, e sua substituiçAo pelos
o modelo por ele proposto, é também poss(vel
rituais totêmicos - o Totem (anima0 encarado
adequar a este uma hipótese sobre o polêmico
como o ancestral comum - é trazida assim para
e irrespondido problema da origem da opres­
um patamar compreensível. Engels o menciona,
são da mulher. Problema ao qual estão ligadas
mas como algo que não merece importância,
as explicações recorrentes e justificadoras
novamente em função da preponderância da
desta situação de opressão através da história
lógica economicista que perpassa o seu raciocí­
Uma destas "constantes históricas" (se é que
nio. Umita-se a registrar:
podemos chamá-Ia assim) em termos explicati­
Em todo o caso, nesta fase (fase média da barbá­
vos é a que apresenta as mulheres substanti­
ria) desaparece pouco a pouco a antropofagia, que vadas enquanto "a Mulher" mítica como aque­
não sobrevive senao como um rito religioso ou les seres através dos quais o pecado/o mal
como um sortilégio, o que dá no mesmo28• entra no mundo.
Não é gratuíto que duas das imagens de

73
mulher que têm mantido sua força inalterada livrarem do pai" (p.172) - este pai "invejado e
através do tempo tenham sido justamente as temido" (p.170) -, atribuíam a elas o poder
figuras míticas de Eva e Pandora que, em desagregador que até hoje é um dos "atributos
síntese, poderiam ser resumidas em um mesmo femininos" universalmente reconhecido. Talvez
enunciado: como um ser movido pela curiosida­ tenha origem aí o mito recorrente da mulher
de (vontade de saber) e que, valendo-se de como causadora de todos os males (a ameaça
seus atributos sexuais, desafIa o(s) Deus(es) e do fim da sociedade arduamente conquistada)
induz o primeiro homem ao pecado. Do oriente e da divisão entre os homens. A forma de
ao ocidente e ao longo dos séculos (sob cultu­ pensar que embasa esta lógica corresponde o
ras que muitas vezes não têm praticamente conceito de alienação tal como concebido por
nada em comum entre sQ as mulheres têm sido Adelmo Genro FO, qual seja: atribuir a outrém
vistas como uma ameaça e um castigo. O fato seus próprios atos, não se identificando neles32•
de que na China antiga as crianças do sexo Freud nos fala de processo semelhante
feminino eram mortas ou entregues à própria referindo-se à relação dos filhos com o pai
sorte (fenômeno que, ao que parece, não é um assasis nado: por encararem-no de forma ambi­
fato Isolado) não pode continuar sendo visto valente (temor e inveja), recusam-se a aceitar
com indiferença ou então atribuído a um Iogos plenamente o seu ato e tendem a mistificá-lo,
econômico todo poderoso que impelia os atribuindo ao pai a culpa que leva à sua morte33;
camponeses a matar suas filhas pequenas por isto a refeição totêmica dá início à religião
unicamente pelo cálculo de que a vida de uma e à moral. A grande lacuna no panorama traça­
mulher valia menos do que ela poderia pagar do por Freud é exatamente quanto a questão
com seu trabalho. De alguma forma e por da mulher (que ele honestamente admite tra­
razões que, penso, ainda não foram discutidas tar-se para ele de um "continente obscuro")
suficIentemente, nascer mulher era algo consi­ que, no relato da refeição totêmica e as dispu­
derado uma maldição, não só para a infeliz tas que ela envolve, aparece de forma passiva,
criatura mas também para seus pais e, em como um ser sem vontade, simples objeto de
alguns casos, para toda a comunidade. disputa e desejo.
Este é um aspecto que nenhuma teoria Mas partindo de um referencial que encare a
econômica, por si SÓ, é capaz de resolver. Por questão de forma diferente, que reconheça nas
isto a necessidade de recorrermos a Freud, mulheres seres ativos que constr6em, tanto
mesmo reconhecendo ser este um autor tam­ quanto os homens, a sua própria essência,
bém marcado pelos limites do seu tempo, no chegaremos necessariamente a conclusões
tocante à questão da mulher; tanto que estas diferentes. O exemplo mais aproximado do que
ocupam um espaço mínimo na sua descrição penso ser a participação da mulher nos eventos
do banquete totêmico a partir do qual se institu­ do mundo primitivo que dão origem à socieda­
iria a ordem humana Contudo, a partir de uma de tribal e que são representados/relembrados
perspectiva feminista de análise, é possível nos festivais totêmicos, vem de uma fonte
fazer uma releitura crítica deste e encontrar aí literária, mas que, devido a sua base documen­
indícios que fundamentem uma hipótese acerca tai e etnológica não deve, de modo algum, ser
da questão da origem da opressão da mulher, desprezada Falo da tetralogia de Marion Zimer
ou ao menos quanto aos temores e noções que Bradley: As brumas de Avalon, editadas no
a fundamentam. Compartilhando com Freud a Brasil pela Imago, a mesma editora das obras
noção de que "os desejos sexuais nao unem os completas de Freud. Nesta obra podemos
homens, mas os dividem" (p.172) penso que a buscar o nexo que falta para a explicação de
Instituição do tabu do incesto - norma sem a Freud para a refeição totêmica: a intervenção
qual a vida em comunidade seria impossível, das mulheres como co-partícipes. Nos "festivais
uma vez que permaneceria a divisão entre os de Beltame" - reprodução singular dos festivais
homens, a disputa pelas mulheres constituiria totêmicos - as mulheres estão presentes não
um elemento de permanente instabilidade somente como o prêmio para o vencedor do
dentro das tribos - é algo por demais importan­ torneio (a caça, então permitida, do animal
te para não deixar vestígios traumáticos: a totêmico), mas também como artífices do
tensão permanente da volta à situação anterior. mesmo. É uma mulher - a deusa caçadora -
Assim, os homens primitivos, ao mesmo tempo que define as normas do jogo e mesmo quem
que "renunciavam às mulheres que desejavam deve morrer. É dela a máxima: "o que será do
e que tinham sido o motivo principal para se gamo pai quando o gamo jovem cresce", que

74
poderia, talvez, ser ass inada por Fraud. Vemos mulheres que lidam com as funções reproduti­
assim a mulher, nem anjo nem demônio, como vas e da sexualidade (parteiras), e que, em
um dos elementos vitais na disputa de poder, função disto, detém considerável dose de
que nas sociedades primitivas aparece indisso­ influência em suas aldeias. A eliminação das
ciado das questões sexuais e religiosas . bruxas/parteiras e do saber específico que
Destas sociedades, em que embora a mulher detinham (técnicas abortivas, de anticoncepção
não tenha a supremacia detém uma cota de e outras) vai a par com o processo de regula­
influência considerável, surgiram os mitos de mentação da medicina, que se inicia em 1509
uma sociedade comandada por mulheres, que com as leis européias que proibem o exercfcio
em todos os relatos é cruel e ca6tica34• Sobre da medicina para aqueles que não tivessem
estes relatos, como bem assinala Joan Bamber­ diploma universitário, e cujo alvo preferencial
ger, o importante (assim como no Totem e Tabu evidentemente eram as mulheres, proibidas de
de Freu<f5) não é esquadrinhar a veracidade cursar as universidades.
empírica dos eventos relatados, mas sim a sua O segundo exemplo é precisamente o século
força mítica, o seu significado simbólico e as XIX que, não podendo mais dispensar o amplo
razões que levaram a sua constituição38• O emprego da mão-de-obra feminina (que é
importante, como diria Foucault, são os efeitos amplamente marginalizada nos séculos XVI e
de verdade que produz. Efeitos nada desprezí­ XVII onde o fenômeno do enclausuramento -
veis: que melhor maneira de submeter determi­ fechamento do mercado de trabalho às mulhe­
nado segmento social do que fazê-Io pensar res e a sua 'clausura' no lar e/ou mosteiros -
com os olhos do outro, ver-se a si próprio como deve ser entendido complementarmente à caça
o fator de desagregação do grupo, como um às bruxas, embora não seja abordadado desta
perigo para si próprio e para os outros e por­ forma nas análises de que tenho conhecimen­
tanto como algo que deve ser controlado, to), vai utilizá-Ia "domesticada", sem nenhum
vigiado, ter limitado o seu espaço na vida saber próprio (processo que atinge o conjunto
pública, perder enfim o estatuto de maioridade? da classe trabalhadora) e, mais interessante,
Esta, a meu ver, tem sido a trajetória de domi­ domesticada também enquanto representação
nação e opressão das mulheres. no imaginário social. Aquilo que denominei
Neste histórico de dominação há um elemen­ neutralização (em oposição à punição, como
to que não podemos perder de vista, que serve reações diversas ao elemento medo/culpa das
quase como que um fio condutor, do qual mulheres) se processa no século XIX significati­
podemos encontrar sinais em diferentes cir­ vamente através da dessexualização das mu­
cunstâncias históricas: o medo das mulheres e lheres. Esta, a meu ver, foi a forma encontrada
a culpa que se atribui a elas pelo mal que vem para "exorcizar" o medo e permitir o pleno
ao mundo. Há uma lógica de retroalimentação: ingresso das mulheres na força de trabalho. A
as mulheres são vistas como responsáveis pela neutralização se processará pela negação da
desagregação (real ou potencial) da ordem sexualidade feminina (algo em que o século XIX
social, daí decorre a sua culpa perante o corpo diverge de todos os anteriores, que sempre
social e também o medo que inspiram, por isso , representaram a mulher como um ser altamente
como seres temíveis e culpáveis devem ser sexuado, por isto mesmo mais temível e, no
punidas, vigiadas e neutralizadas. Podemos caso das bruxas, prestativo ao demônio), pela
encontrar estas várias reações em momentos reiterada negação de direitos (o direito de voto,
históricos distintos, de acordo com as condi­ por exemplo, perseguido em vão - fora raras
ções concretas envolvidas e o imaginário social excessOes - pelas mulheres durante todo o
que as representa Como exemplos de situa­ século XIX) e pela limitação e controle do saber,
ções que reagiram de formas opostas a este que começa a ser rompida em parte pelo
elemento - a tensão medo/culpa das mulheres acesso das mulheres às universidades, após
- que defini como fio condutor da análise, muitas lutas e polêmicas.
podemos citar o fenômeno da caça às bruxas Em estudo que estou desenvolvendo, este
que tem seu auge nos séculos XVI e XVII e que processo pode ser analisado de modo mais
tem entre os seus determinantes o medo das claro. Parti da seguinte questão: por que, a
mulheres, medo este que evidencia com partir de meados do século XIX, as mulheres,
clareza a articulação poder/saber/sexualidade gradualmente, a princípio, passam a substituir
e que reage através da exacerbação do aspec­ os homens nas funções do magistério primário?
to punitivo. As bruxas são majoritariamente É preciso esclarecer inicialmente que esta não

75
é uma questão nova. Mas em geral as aborda­ um tratamento mais detalhado, embora vá
gens sobre o tema se dão de forma excludente, afirmar posteriormente que o acesso das mu­
ora enfocando unicamente os interesses ec0nô­ lheres ao ensino superior foi sua maior conquis­
micos em jogo, ora enfocando-o em termos de ta naquele século. Este autor nos dá uma
um genérico direito das mulheres à educação. contribuição fundamental ao retratar o panora­
Tais abordagens estão aqui reunidas corno os ma mental do século XIX, particularmente no
diversos fios de uma mesma meada, os quais que toca à questão da discussão acerca da
o pesquisador vai não apenas deslindando mas mulher. O século XIX caracteriza-se por uma
também tecendo, e, ao fazê-Io, dando-lhe nova particularidade no tocante a questão de como
forma. a mulher era vista e representada socialmente.
Os dois 'fios' principais dos quais parti são, Petar Gay nos descreve os termos deste deba­
por um lado, a realidade econômica propria­ te embora sem enfatizar suficientemente a
mente dita, o contexto educacional do século dimensão da sua novidade em termos históri­
XIX, que, ao expandir a educação ao conjunto cos. No século XIX, nos informa Peter Gay, há
da sociedade (corno resultado de pressões de uma polêmica acerca da natureza da mulher.
amplos segmentos sociais e em parte como Existem dois grande 'partidos': os que afirmam
necessidade do próprio sistema capitalista em que a mulher é um ser lascivo, pecaminoso,
desenvolvimento), depara-se com a necessida­ sexualmente excitável, mais sujeita às "fraque­
de de reduzir os seus "custos", que, ao que zas da carne" e de caráter instável (e nisso
tudo indica, é um dos fatores que vai abrir as estão de acordo com toda a tradição milenar de
portas do magistério à população feminina E, representação do "eterno feminino"). E há outro
por outro, a "ideologia da época", o imaginário 'partido', que se opõe a este e ganha força à
social deste período e as representações por medida que o século avança até apresentar-se,
vezes conflitantes acerca da "natureza" femini­ ao final deste, como francamente majoritário.
na Eram estes os partidários da "pureza" das
Entre estes dois grandes "blocos" existem mulheres,afirmando serem estas angelicais ou
alguns diferentes matizes que, embora centran­ simplesmente frígidas (conforme quem enuncia,
do a análise prioritariamente sobre um destes médicos ou pedagogos), tendo como denomi­
focos, faz referência ao(s) outro(s). Tal é o caso nador comum a visão de que a sua sexualidade
de M. Apple, que trata da questão do ponto de é não só passiva na forma como neutra no
vista das relações de poder na escola e de conteúdo, ou seja, não apresenta desejo em si,
como estas são afetadas pela automação e a apenas molda-se aos desejos de outros; noção
burocratização de tarefas. Este autor, que não que, deste modo, rompe com a tradição milenar
realiza um estudo exclusivamente econômico, já apresentada
chama atenção para a questão de gênero em Este quadro de disputa, por si só bastante
que se insere a discussão do magistério, setor interessante , tomar-se-á mais elucidativo se
predominantemente feminino. Falta, entretanto, inserido dentro do contexto histórico mais
um enfoque que problematize esta questão, a amplo. Esta polêmica que P.Gay debate no
começar pelo conceito de gênero, que, em que espaço específico do século XIX (e na verdade
pese ser um instrumento de análise bastante ali se dá, num sentido restrito) poderia ser
útil, corre o risco de tomar-se uma 'bengala', ou também encarada como a polêmica entre o
seja, um conceito que explica tudo e libera os século XIX (a visão oficial que prevaleceu, até
que o empregam de realizar uma discussão Freud, que é a da mulher pura/frígida) com
mais sistemática (que envolva o próprio concei­ todo o restante da história da humanidade. Isto
to) e que desvende as múltiplas determinações porque, ao longo da história, as mulheres foram
que compõe esta temática encaradas como seres lascivos, pervertidos,
Outro autor importante é Peter Gay, que tem curiosos: aqueles através dos quais o mal e o
o mérito de, ao fazer a intersecção história/psi­ pecado entram no mundo. Já foi mencionado
canálise, captar um universo mais rico do que aqui o papel importante cumprido pelo fator
o habitualmente trabalhado. A sua interpretação medo e toda a mitologia de representação do
quanto ao amplo ingresso das mulheres no feminino, cujos expoentes são as figuras míticas
sistema educacional que se verifica no século de Eva e Pandora Pode-se-ia contudo objetar
XIX (ele trata do ponto de vista do acesso ao que o culto de Maria e das santas já afirmava,
ensino superior e não enfatiza a sua entrada no em tempos remotos, um ideal de pureza/virtude
magistério) é algo que não recebe na sua obra, apenas 'atualizado' pelo discurso médico do

76
século XIX com a sua apologia ascética da çãoIfeminilização) se dê predominantemente
frigidez femina Penso que isto porém não nas séries iniciais, onde as mulheres são as
invalida a hipótese que defendo (da novidade principais fornecedoras de mão-de-obra e que
sem precedentes deste discurso ascético do constitui-se, até hoje, como um gueto de baixos
século XIX), uma vez que estas mulheres san­ salários e má qualificação, onde os aspectos
tas/assexuadas eram deslocadas para fora e cognitivos disputam com os afetivos, constituin­
para cima da sociedade e das mulheres do seu do uma esfera híbrida de socialização, que
tempo. A pregação moralista e o culto mariano confunde público e privado ao fazer da escola
claramente afirmavam um ideal de mulher "o segundo lar" e da professora a substituta da
considerado superior e especial, um exemplo mãe: a "tia".
para o qual as mulheres 'históricas' deveriam Relevante também é o fato que, a par do
alçar os olhos e tratar de imitar. Sinal claro de processo de infantilização/desexualização da
que para os seus contemporâneos elas não imagem da mulher, e em especial da professo­
partilhavam deste ideal, pois do contrário não ra, encontramos todo um esforço normativo no
haveria a necessidade de exortação. sentido de assegurar a identidade entre o
Esta transformação do imaginário social não modelo ideal e os sujeitos singulares (esforço
pode, como frisei anteriormente, ser remetida que seria supérfluo se a realidade histórica e os
diretamente a uma interpretação meramente seus sujeitos não fossem intrinsecamente
econômica, embora seja enriquecida se coteja­ contraditórios e obedecessem mecanicamente
da com esta Mas por hora, dentro dos limites aos modelos prescritos). Exemplar disto é um
deste artigo, é suficiente registrar este abismo documento que, embora date de 1923, sintetiza
que há entre uma concepção inédita de repre­ as preocupações subjacentes ao esforço as­
sentação do feminino, que surge e se torna cético do século XIX. Parafraseando Maquiavel
dominante no século XIX e que contraria tudo poderíamos dizer que a idéia (o consenso) sem
o que até então era consenso a respeito das a norma é nula Vejamos então este contrato de
mulheres em geral. O porquê desta mudança é 1923 de uma escola norte-americana (cujo
algo para o que não temos resposta Ainda que resgate devemos a M.Apple):
a mudança de imagem da mulher, e suas
posslveis causas, seja algo que mereça um Este é um contrato entre MIss ,
estudo especifico, nem por isso deve ser deixa­ professora e o Conselho de Educação da Escola
da de lado como um dos elementos fundamen­ ___, por meio do qual MIss ___ compro-
tais para a compreensão do ingresso das mete-se a lecionar por um penodo de oito meses,
começando em primeiro de setembro de 1923. O
mulheres no magistério laico e institucionalizado
Conselho de Educação compromete-se a pagar a
do século XIX, que pré-configura o moderno
Miss a quantia de $75 mensais.
sistema educacionaf'7. MIss___ compromete-se a:
Trata-se de, diante da pergunta: por que o 1 - Não contrair matrimônio. Este contrato imedia­
magistério foi aberto às mulheres a ponto de tamente perderá a validade se a professora contrair
chegar a ser encarado como sua opção prefe­ matrimOnio.
rencial (depois da escolha da maternidade, 2 - Não estar acompanhada de homens.
'naturalmente'); lembrar que esta mudança 3 - Não disperdiçar tempo em SOIVeterias.
radical no pensamento médio a respeito da 4 - Não se ausentar da cidade sem permissão do
mulher (a passagem de demônio/sexuado a presidente do Conselho de Curadores.
5 - Não fumar. Este contrato imediatamente
anjo/assexuado) que se dá no século XIX é
perderá a validade se a professora for encontrada
pr&-condiçfJo para a abertura da educaçfJo aos
fumando.
seus cuidados. Como seria posslvel a concep­
6 - Não beber cerveja, vinho ou whiskey. Este
ção anterior de que crianças 'puras e inocentes' contrato perderá a validade se a professora for
(uma construção que também tem história, encontrada bebendo cerveja, vinho ou whiskey.
como demonstrou Phillipe Ariàs) tivessem sua 7 - Não viajar em vagões ou automóveis acom­
educação entregue a seres lascivos e portado­ panhada de qualquer outro homem a não ser seu
res do estigma de toda a perversão do ser pai ou Irmão.
humano? Era necessário que houvesse uma 8 - Não trajar roupas de cores brilhantes.
adequação e até mesmo uma identidade entre 9 - Não tingir seus cabelos.
os elementos (professora/alunos) envolvidos 10 - Vestir no mrnlmo duas anáguas.
11 - Não trajar vestidos de mais de duas polega­
neste processo. Penso não ser mera coincidên­
das acima dos tornozelos.
cia o fato de que esta identidade (infantiliza-
12 - Conservar a escola limpa:

n
a) varrendo a sala de aula no mfnlmo uma vez Para finalizar, penso que o esforço intelectual
ao dia; que constitui o principio do saber - distingüir
b) esfregando o chão com sabão e água no entre essência e aparência, como sublinhou
mfnimo uma vez por semana; Marx - deve ser o motor contínuo da investiga­
c) limpando o quadro-negro no mfnlmo uma
ção a respeito das "questões da mulher", atual­
vez ao dia;
mente em voga Não como mero escrutinar de
d) acendendo o fogo da lareira às 7hOO pará
formas ou fórmulas usadas e reiteradas para a
que a sala esteja aquecida às ShOO, quando as
crianças chegarem; sua opressão, mas uma análise que, embora
13 - Não usar pó facial, máscara ou pintar os partindo de hipóteses mais ou menos estrutura­
láblos38• das, abre-se para o novo, para o inesperado,
para um descortinar histórico onde não há
Através deste contrato (do qual a maioria das mocinhos e bandidos. Trata-se de, à complexi­
cláusulas nos remete a um modelo semelhante dade do real, constituir um "excedente de
às normas monásticas), podemos perceber o consciência" (nas palavras de Adelmo Genro
quanto os esforços de um século de limpeza da Filho) de modo a evitar as simplificações genéri­
mácula que paira sobre a imagem da mulher cas e os particularismos estéreis. E trata-se,
ainda lidam, contraditoriamente, com os vestígi­ sobretudo, de afirmar uma reflexão ousada e
os deste estigma; de modo que o acesso das não dogmática que se proponha a vasculhar a
mulheres ao magistério, ainda que permitido, caixa de Pandora (este complexo de mitos e
tem que ser revestido de cuidados adicionais representações milenares mas ainda atuais)
que garantam a confirmação do ideal de recato com todos os seus riscos, inclusive o de ver­
e recolhimento publicamente aceito. mo-nos refletidos nela.

* * *

Notas e Referências Bibliográficas

1. Ver MICHEl, Andree. O feminismo: uma abor­ 6. Contra-corrente substitui o original refoulli:
dagem histórica. Zahar, AJ, 1982. p.61 . remar contra a maré.

2. DAVIN, Ana Feminismo e historia dei trabajo. 7. Trechos extrafdos da Introdução de Las
In: SAMUEl, R. Historia popular e teoria socia­ cahiers du grifo Éditions Tierce, Printemps 88,
lista. Critica/Grljalbo. Barcelona, 1984.p.267 n.37/38. p.6 e 7.
(com tradução livre, como as demais citaçOes
deste ensaio). 8. Já que não se pode falar em um único femi­
nismo, mas em várias correntes dentro deste,
3. Para uma análise detalhada do conceito de tais como: liberal, socialista e radical; para
gênero, sugiro os trabalhos de Joan SCOTT: citar só os mais importantes.
Genre, une categoria utile d'analise historique.
In: Las Cahiers du GRIF, Éditions Tierce, 9. Ver Antologia deI feminismo. Introducción y
Printemps 88, n.37/38 e Marta LAMAS, La comentários por Amalia Martin-Gamero. Alian­
Antropologia Feminista y la Categoria 'Gêne­ za Editorial, Madrid, 1975, p.51 e sego
ro'. In: Nueva Antropologia, v. VIII, no 30,
México, 1986. 10. GAY, P. A educação dos sentidos: a experIên­
cia burguesa da rainha Vitória a Freud. Cla.
das Letras, SP, 1988. p. 142.
4. TAYLOR 9 ALEXANDER. En defensa dei
'patriarcado". In: SAMUEl,R. op.cit. p.259.
11. Antologia deI feminismo. op.cit.p.52 e 56.

5. O termo 'grade' (grille, em francês no origina0 12. Antologia deI feminismo. op.cit. p.53.
talvez possa ser melhor compreendido por
analogia com o conceito de 'matril disciplinar", 13. Novamente a Revolução Francesa é o exem­
utilizado por Thomas Kuhn no posfácio de A plo mais acabado da 'traição às mulheres' que
astrutura das Revoluções Cientificas. SP, haviam lutado em suas fileiras, ao negar-lhes
Perspectiva p.226. o direito de reunião, de associação e voto.
(ver MICHEl,A. op.cit p.47).

78
Esta atitude ambivaJente por parte dos revolu- LAMPHER,L (OI'g). A mulher, a cultura e a
clonárlos com relação à mulher foi brilhante- e Terra, AJ, 1979.
sociedade. paz
mente captada por Olympe de Gouges, partici-
pante ativa da Revolução, que na sua Declara- 26. ENGELS, F. A origem da faml/ia ... op. clt.
ção dos Direitos da Mulher afirma: p.30.
"A mulher tem o direito de subir ao cadafalso;
deve também ter o direito de subir à tribuna." 'O. ENGELS, F. A origem da famllia ... op. clt. p.
MICHEL,A. op.clt.,p.46. 31 .

14. FOUCAULT, M. História da sexualidade: a 28. FREUD, S. Totem e Tabu. Obras Completas,
vontade de saber. v.l. Graal, AJ,1985. p.41 e v.XIII, ed. Standard, Imago, AJ, S/d, p. 1 70.
47.
29. ENGELS, F. A origem da faml/la .. , op.clt. p.24.
1 5. MICHEL, A. op.clt., p.57.
30. FREUD, S. Totem e Tabu. op. clt. p.172.
1 6. ANDERSON, P. A crise da crise do msne/smo.
Brasiliense, SP, 1984. p. 102/103. 31. FREUD, S. Totem e Tabu. op. clt. p.132/133.

1 7. GENRO, A. F. Filosofia e práxis revolucionária: 32. GENRO, A. F. Introdução à crftlca do dogma-


Marx, Engels, Bloch e Korsch. Cadernos de tismo. op. clt. , p.81 . FREUD, S. Totem e tabu.
Formação Marxista, v.lI. Brasil Debates, SP, op.clt. p.184/185.
1 988 . p.8 e 9.
34. ver: BAMBERGER, J. op.clt. p.247/248.
1 8. ENGELS, F. A origem da faml/ia, da proprieda-
de privada e do Estado. KarI Marx e Friedrich 35. FREUD, S. op. clt. p. 1 88 e seguintes.
Engels, obras escolhidas, Alfa-Omega, SP, S/d
p. 61 . 36. BAMBERGER, J. op.clt., p.237/238.

1 9. ENGELS, F. A situação da classe trabalhadora 37. Uma vez que, nos mosteiros, em todos os
naInglaterra. Global, SP, 1985, p.1 67. tempos foram mulheres que realizaram a
educação de meninas e de outras mulheres;
20. ENGELS, F. A situação... , op. clt. p. 1 69. este caso, contudo, foge à problemática pro-
posta, urna vez que pelo seu caráter especr-
21 . ENGELS, F. A situação ... , op. clt. p.1 70. fico - religiosas tratando de uma educação
acima de tudo moral e religiosa - enquadra-se
22. ENGELS, F. A situação. . . , op. clt. p. 171 . num modelo de representação radicalmente
distinto do consensualmente aceito no tocante
23. A "Santlsslrna Trindade": Marx, Engels e Lênin, à questAo da mulher, pelo Ideal de santidade
nas palavras de Adelmo Genro Filho. Introdu- que Implicava Contudo, mesmo este refúgio
çAo à critica do dogmatismo. In: Teoria e de castidade nAo foi Isento à maldição que
polltlca. ano 1 , n.1 , Brasil Debates, SP, 1980. acompanha a mulher e a sexualidade feminina,
p.94. como parecem demonstrar as crises de pos-
sessOes em conventos, onde a demonologia
24. ENGELS, F. A situação... , op.clt., p.169. persistiu por mais tempo. A este respeito ver
PALAU, Jean. A feitiçaria. Zahar, AJ, 1 988. p.
25. BAMBERGER, J. O mito do matriarcado: 72.
porque os homens dominavam nas socieda-
des primitivas. SACKS,K Engels revisltado: a 38. APPLE,M. Are teachers losing control of thelr
mulher, a organização da produção e a pro- skill and currlculum? In: Journa/ of Currlculum
prledade privada In : ZIMBAUST,R. e Studies. v.XVIII, n.l, 1 986, p.1n.

* * *

Cybele Crossetlt de Almeida é mestranda no Curso de Pós-GraduaçAo em EducaçAo da Universidade Federal


do Rio Grande do Sul.

79
ornar-se mulher. Expressão celebrizada por sujeito através de seus efeitos.
T Simone de Beauvoir e tomada como estan­ E é Freud que formula o problema da identifi­
darte para as mulheres, em sua luta de um se cação sexual. Um passeio pelos seus textos faz
fazer no mundo. O discurso feminista, na tenta­ surgir a idéia fundamental de que a diferença
tiva de conquistar um lugar determinado para a não é de anatomia, mas sim de sexos, "esse
mulher na cultura, lança mão desse estandarte, termo designado aqui para além da materialida­
muitas vezes reduzido a uma forma de aprendi­ de da carne, o órgão enquanto aprisionado na
zagem, ou reflexo de uma certa educação. O dialética do desejo e, dessa forma, "interpreta­
"tornar-se" ar se assemelha a um fenômeno de do" pelo significante. Dar se afirmar ser o sexo
imitação imaginária, que diz respeito à aparên­ uma metáfora, da ordem do simbólico."'
cia, à reprodução de códigos e clichês. A entrada do sujeito na ordem simbólica, em
A Psicanálise vai se ocupar de uma outra desarmonia com a natureza, portanto, é paga
instância, que se situa para além das formas com uma perda, uma falta que põe o sujeito a
bem definidas de apresentação. desejar. À Psicanálise interessa por onde passa
É a fala o material que permite a atuação da o desejo e aí, como bem se vê, nem sempre o
Psicanálise, enquanto um corpo de conheci­ desejo coincide com o bem do sujeito... Assim,
mento que diz da constituição do sujeito huma­ afirma-se um mal-estar, sem complementarieda­
no. Fala que atravessa a história oficial, pública de.
e se aloja na esfera do privado. São confidên­ O Édipo é a operação proposta por Freud
cias e artimanhas, não apreensfveis numa para ilustrar essa entrada do sujeito na ordem
leitura preocupada apenas com os fatos men­ simbólica - rompimento com a natureza, inser­
suráveis. ção na cultura: a tragédia humana. O sujeito é
Destrinchar os efeitos do inapreensfvel desse sexuado/seccionado.
sujeito/mulher através de sua fala é o mote Tanto o menino como a menina têm como
deste trabalho. Como pensar a história além da primeiro objeto de amor a Mãe. O desejo da
história oficial? O que seria a história do priva­ mãe, em seu duplo sentido, é que irá possibili­
do, onde não se conta com registros escritos, tar a operação edrpica pois a lei de interdição
documentos, mas com uma tradição na trans­ do incesto faz a separaçao criança-mãe.
missão? Tradição não sem contradição, com Essa operação se dá de forma assimétrica
traição - efeitos do invisfvel que coloca em no menino e na menina O menino deverá
circulação algo da verdade. Material disperso renunciar à mãe e identificar-se ao pai, buscan­
que passa pelas brechas, impresso, no livro de do aí o traço que o faz homem. O pênis é
receitas caseiras, o que não tem receitas, "que presença que mostra uma certeza imaginária
dá dentro da gente; mas não devia", desvia... de unidade e potência A ameaça de perdê-lo
Para se falar de mulher, é inevitável retornar põe o menino nessa renúncia. Já não se pode
a Freud. Freud, que, inventando a Psicanálise, dizer o mesmo da menina
produziu uma reviravolta no mundo do pensa­ A menina, da mesma forma, deve renunciar
mento filosófico e da ciência. Ao proferir ser o à mãe, porém, a dificuldade do tornar-se mulher
sujeito humano descentrado, dividido, marcado resulta da impossibilidade de identificação
por uma falta fundamental que pressupõe a feminina, pois ali onde algo não presente se
emergência da linguagem, Freud engendrou o encontra, resta um vão, uma pergunta: o que é
conceito de Inconsciente que determina o
- uma mulher? Busca então identificação ao pai,

EDUCAÇÃO E REALIDADE, Porto Alegre, 16(2):81-84, jul/dez. 1990 81


mas ar fica um resto, não simbolizável, sem ocupa um lugar via de regra associado ao
nomeação, que escapa à representação e poder, traduzido pela prática pública, pelo
portanto à ordem fálica O processo é mais número que o representa na história oficial. O
complicado, pois, mesmo submetida à lei fálica feminino está ar excluido. E é esse excluído que
- falo enquanto falta - a menina não se encon­ traz a novidade. É possível pensar uma inser­
tra num traço de identificação propriamente ção política que não se direcione apenas para
feminino, pois não há representação do femini­ o número e o direito constituído?
no no inconsciente. Pensar o feminino é rastrear seus efeitos de
Portanto é a mulher "não-toda", vale dizer, verdade. Badiou define assim o acontecimento:
não toda submetida à função fálica E se um "Eu chamo acontecimento aquilo que na qualifi­
diz não a essa função, não é mais possível cação do regime do UM deixa um resto, des­
universalizá-Ia funcionando este regime (. .) O acontecimento
.

É assim que a expressão "tornar-se mulher" é assim, produto de uma interpretação.04


é captada em sua dimensão de um mais além As feministas tentam resgatar um lugar para
da representação. Há um indizível nesse pro­ a mulher na história oficial. Também historiado­
cesso, resto sem nome, buraco, fenda res, como informa Michele PerrOCS estão interes­
A inauguração freudiana permite um destrin­ sados pela noção de gênero e, ao mesmo
char desse indizível nas entrelinhas do texto, tempo, pela vida privada, para tentar estabele­
nas escapadas da forma, no desfuncionamento cer uma certa realidade concreta, jurídica,
da unidade. social e cotidiana através de documentos de
A cllnica psicanalítica é um lugar privilegiado que dispõe o historiador. Seriam tentativas de
para esse trabalho. A fala de analisandas, a conter a falta real, defeito constitutivo do fato
todo momento denuncia essa busca: estrutural; colonização desse resíduo não repre­
sentável, onde tem lugar o gozo, lugar de não
Me procuro nos espelhos das ruas, nas vitrines, à ordem. Exatamente no que tem de incômodo,
tento me ver em todo lugar. o feminino, ao longo da história,vem recebendo
explicações, desde o pior horror ao mais puro
Quando alguém me diz: 'eu sou assim', tento
fascínio:
dizer: eu também. Mas logo me decepciono. Sei
que não sou toda assim. Não sou inteira
"desde sempre, em toda parte, tem-se medo do
feminino, do mistério da fecundidade e da materni­
Mulher é desdobrável. Eu sou.2
dade, fonte de tabus, ritos e temores. Mal magnlfi­
co, prazer funesto, venenosa e enganadora, a
Por não ser simbolizável, esse resto, o pro­ mulher é acusada de trazer sobre a terra o pecado,
priamente feminino, não pode ser nomeado. a Infelicidade e a morte. Terror de sua fisiologia
Mas certamente produz efeitos. O tornar-se cfclica, lunática e de suas secreçOes sangrentas e
mulher implicaria estar às voltas com esse do Ifquido amlótlco, úmida e cheia de odores, ser
indizível, para além da busca de imagens em impuro, para sempre manchada (...). Perigosa
espelhos e vitrines. portadora de todos os males: Eva a Pandora;
devoradora dos filhos paridos de sua carne;
Tenho que inaugurar pra mim um jeito novo. Eu Medéia e Amazona; vagina denteada ou cheia de
falo muito, eu sei disso, mas é que ainda não serpentes, o que Freud chamou de medo de
encontrei a minha forma3 castração e que em todas as culturas é assi m
representado. Fonte de vida, fertilidade sagrada,
A fala de analisandas e a poesia se encon­ mas também noturnas entranhas. Essa noite na
qual o homem se sente ameaçado de submergir e
tram em algum momento. A criação, invenção
que é o avesso da fecundidade, o apavora; o
incessante. A peleja do cotidiano sem história,
medo ancestral do segundo sexo (...) Deusa da
onde as marcas se dão na sucessão de afaze­
sabedoria e da caça, Imaculada Conceição e
res iguais. A procura de um lugar fixo e se encarnação de satã (...) Capitu (...) Diadorin. .e
descobrindo desdobráve!...
E como se insere a mulher nesse mundo, Trata-se então de lidar com esse incômodo
nessa história, no fazer humano? histórico, essa inquietação. Ultrapassar o fato e
A sociedade patriarcal, desde os primórdios ir de encontro à lei que se esconde no fato e
de uma certa organização do capitalismo, é produz efeitos de verdade.
regida sob o domínio do masculino, o regime Quando o movimento de mulheres é só
do UM, denegação da diferença O homem movimento, sem pretensões de organização,

82
quando as mulheres saem às ruas e gritam: toma um outro sentido, não mais visando um
'Queremos nossos direitos', este enunciado tem ideal, mas o real, fora das representações.
então um efeito de interpretação. O que não Essa impossibilidade de generalizações tem
existe passa a existir. Neste momento não suas vantagens. Se o mundo não é só ordena­
estão em jogo os resultados legais que even­ do através do falo, do UM, do Todo, isso impli­
tualmente possam surgir, pois este tipo de ca dizer que algo escapa. Não há uma única
ganho seria apenas mais um ítem numa legisla­ verdade, uma única forma de lidar com a falta
ção. O interessante para o momento, é a possi­ que pressupõe o desejo. Seja qual for a forma
bilidade da novidade, 'o mal-estar na cultura' do vaso, é em torno do vazio que ele é constru­
provocado por este enunciado, sem nenhuma ído. O feminino fura a certeza e separa o UM. O
intenção programática ou partidária. Desconcer­ furo faz diferença
tante, desorganizador, é nesta irrepresentabili­ E o traço ? Traço de lápis de olho, cor do
dade que consistirá o político deste enunciado. batom, buracos da renda A mulher contornan­
O mesmo encontramos em artigo de Maria dei do esse furo incessantemente. Daquilo que não
Carmen Feij60: se diz, só resta falar ('Eu falo muito, eu sei, mas
é que ainda não encontrei minha forma').
'As Mães da Praça de Maio, quando começam a
sair às ruas não têm nada a perder (...) de modo A falação das mulheres •••

que aparecem em grupo, anonimamente dentro de


um grupo, ou aparecem também definidas por
As marcas no corpo, as reparações plásticas,
uma conduta absolutamente arrojada, heróica (...)
os cortes. Corpo que recebe e perde, sêmen e
ainda no marco dessa relação de tensão, a contr­
sangue. O feminino resiste surpreendendo,
nua presença das mulheres na cena polftica tem
resultados Inesperados, resultados não mensurá­
sempre. Ainda bem. Já disseram que fazer
veis em termos de acesso ao poder (...).,
7 existir o que não existe é ARTE.

No texto, a autora se ressente da incapacida­ Não me importa a palavra, esta corriqueira


Quero é o esplêndido caos de onde emerge a
de das mulheres de se organizarem adequada­
sintaxe
mente a uma institucionalidade política funda­
Os sftios escuros onde nasce o 'de' o 'aliás', o 'o'
da na lógica masculina do poder. Reclama, na O 'porém' e o 'que', esta incompreensfvel
verdade, para as mulheres, um tipo de organi­ Muleta que me apóia.
zação onde pudessem exercer o poder como Quem entender a linguagem entende Deus
um homem, colocando o masculino com o ideal Cujo filho é verbo. Morre quem entender.
a ser alcançado. Uma vez alcançado, estariam A palavra é disfarce de uma coisa mais grave
suturadas as brechas que essa manifestação surda-muda,
teria provocado e nos defrontaríamos novamen­ Foi Inventada para ser calada
te com a harmonia de um todo. No entanto, se Em momentos de graça, infrenqüentrssimos,
Se poderá apanhá-Ia: um peixe vivo com a mão
nos deixarmos surpreender por estes resulta­
Puro susto e terror.8
dos 'inesperados', 'não mensuráveis', o político

***

Notas

1. ANDRÉ, S. O que quer uma mulher? Ed. Jorge 5. Revista Les Cahiers du Griff. Le genre de I'histoire.
Zahar, Rio de Janeiro, 1987. n" 37/38, Paris, 1988.

2. PRADO, A. Bagagem. Rio de Janeiro, Ed. Nova 6. CHAUr, M. Sobre o Medo. In: _. Os Sentidos da
Fronteira, 1976. Paixão. Rio de Janeiro, Cia das Letras, 1987.

3. . Solte os cachorros. Rio de Janeiro, Ed. 7. FEIJ60, M.C. Alguns Problemas dos Movimentos
Nova Fronteira, 1981. de Mulheres no Processo de Transição Democráti­
ca. Revista de Ciências Sociais. Porto Alegre,
4. BADIOU, A. Peut-on pensar la politique? Paris, 12.:153-162, 1987.
Seuil, 1985. Fragmento. Trad. Revista Reverso,
n"21. Crrculo Pslcanalftico de Minas Gerais, Belo 8. PRADO, A. Antes do Nome. In: _.O Pelicano. Rio
Horizonte, 1987. de Janeiro, Ed. Paz e Terra, 1987.

83
Este taxlo cortou com a participaçAo da psicanalista Ana LúcIa l.utIherbach RodrIgues, parceira em trabalhos
prévios sobre o tema.

***

MONICA ALMEIDA BEUSáRlO é psicanalista e Interlocutora do Grupo de Estudos da História da Educação da


Mulher - Belo Horizonte, MG.

84
Escopo e objeto genealogia retroage à redefinição de um campo
conceitual que podemos ver sendo desenvolvi­
mbora as definições do patriarcado sejam, do em Wollstonecraft (1792) e Sade (1791) e
E com freqüência, bastante estreitas, a gama que alcança um ponto de crise e transição em
de questões abordadas na literatura é ampla. MiII (1869).
Elas incluem: as origens da subordinação das Esta redefinição consistiu na transmutação
mulheres, as práticas culturais que a sustentam, de um antigo argumento moral a respeito dos
a divisão sexual do trabalho, a formação da direitos e deveres recíprocos de homens,
personalidade e das motivações, a política da mulheres, e Deus. Primeiramente, Deus foi
escolha do objeto sexual, o papel do corpo nas eliminado pelo racionalismo iluminista, depois a
relações sociais, as estratégias dos movimentos moralidade convencional foi contestada pela
de resistência, as condições para uma supera­ política revolucionária, e então a convenção foi
ção da dominação masculina. corroída pela aplicação de critérios utilitários
Não penso que haja uma fórmula que englo­ que não encontrava base alguma para "a
be tudo isto, definindo assim o escopo de uma sujeição das mulheres". Quando MiII escreveu:
teoria do patriarcado. Aquelas abstrações
especulativas que parecem fazer isso ("a dialéti­ Sejam quais forem as condiçOes e sejam quais
ca do sexo", "relações de reprodução") constitu­ forem os limites pelos quais os homens são
em antes slogans para uma forma particular de admitidos ao voto, não existe a menor justificati­
va para neles não Incluir as mulheres
teorizar o assunto que definições do que está
(1869:488),
sendo teorizado. Não que haja uma clara
distinção entre o método de uma teoria e a
a dupla negativa assinalava uma virada decisiva
natureza de seu objeto. Mas acho que é neces­
em termos de argumento. A suposição era
sário reconhecer que a "teoria do patriarcado"
agora em favor da igualdade, e a ideologia
está longe de ser um sistema lógico bem
patriarcal respondeu com crescente atitude de
estruturado. Ela é, em vez disso, uma rede de
defesa Deste período em diante na tradição
insights e argumentos a respeito de relações
intelectual européia, a análise progressista
entre várias coisas (p. ex., a relevância da
inclinou-se na direção de perguntar -se por que
estrutura da família para a reprodução do
uma subordinação injustificada ocorria, como
capitalismo, da produção da masculinidade
era sustentada, e como seria a vida sem ela.
para a estrutura da família). Seu escopo, a
Não que o argumento moral tivesse desapareci­
qualquer momento dado, é definido pela exten­
do, ou mesmo declinado. Ninguém podia deixar
são dessa rede de argumentos.
de entender a paixão moral de Ibsen (1879) ou
E isto corresponde à sua história. A análise
Goldman (1972), ou o movimento sufragista em
contemporânea do patriarcado não foi estabele­
geral. Mas isto deixou de ser o problema cen­
cida por um grande espirro que tenha revelado
trai e definidor. O ponto crítico do pensamento
um novo objeto de conhecimento. Ela se de­
a respeito do patriarcado deslocava-se de
senvolveu, em vez disso, a partir de um com­
forma crescente para os debates em torno de
plexo movimento de pensamento, de uma luta
explicações, ao invés de se centrar em justifica­
para identificar padrões e conexões, para
tivas morais.
desenvolver formas de vê-los e para inventar E no tempo devido, na intel/igentsia liberal e
formas de falar a seu respeito. Sugiro que esta
socialista do início do século vinte, isto levou a

EDUCAÇÃO E REAUDADE, Porto Alegre, 16(2):85-93, jul/dez. 1990 85


uma segunda transformação do campo. WoIl­ Embora tivesse sido necessário um longo
stonecraft, MiII e teóricos socialistas iniciais tempo para que esses desenvolvimentos conflu­
como Owen e Engels, observaram como as fssem, eles estavam indo numa mesma direção.
consciências das mulheres (e dos homens) O foco do argumento a respeito do patriarcado
eram distorcidas por condições opressivas - na estava cada vez mais na constituição de suas
verdade, este é o centro dos argumentos de categorias, no processo histórico de produção
WoIlstonecraft. Mas existe pouca coisa em sua da divisão de gênero e nas características das
linha de pensamento que pudesse levá-los a pessoas envolvidas nisso. Essas linhas de
questionar como as categorias 'homens' e pensamento acabaram por se encontrar e
'mulheres' foram de fato constituIdas, como receberam sua clássica síntese no livro O
elas vieram a se tornar o que são. Muitos segundo sexo de Simone de Beauvoir (1949). E
argumentos em favor da igualdade política foi, sem dúvida, em resposta a este foco trans­
suprimiam esta questão ao pressupor a diferen­ formado que as ideologias patriarcais tomaram
ça sexual e ao destacar as virtudes que as cada vez mais a forma de um darwinismo
mulheres trariam para a vida pública; o radica­ degenerado, insistindo na determinação biológi­
lismo em favor dos direitos estava freqüente­ ca dos papéis masculinos e femininos, cujo
mente misturado com idéias francamente con­ objetivo é negar que haja qualquer coisa como
vencionais a respeito da "verdadeira feminilida­ uma produção social e histórica do gênero.
de' e do trabalho próprio de homens e mulhe­ Eu sugeriria que a atual literatura sobre o
res. patriarcado trabalha essencialmente dentro do
Essas idéias vieram a ser contestadas, a campo que descrevi. Nenhuma reconfiguração
partir de duas direções principais. Uma delas comparável do campo ocorreu recentemente.
foi constituída pelos desenvolvimentos nas Um sinal disto é a freqüência com que muitas
ciências. O trabalho de Darwin encontrou vezes o trabalho teórico toma a forma de 're­
explicações funcionais para a diferenciação descobertas' - de Freud, ou de Ellis, ou de
sexual, mas ao fazer isto tornou-as problemáti­ Kollontai. Entretanto, houve duas importantes
cas, isto é, passíveis de explicação. Não muito mudanças.
tempo depois, a sexologia humana mudou da A primeira é a ampliação da rede de argu­
'psicopatologia moral' de Kraft-Ebing (1886) e mentos para uma gama ampla de tópicos - por
seus seguidores, para a antropologia tolerante exemplo, a economia do trabalho doméstico, ou
das variações sexuais de Ellis (1897) e para a a política do cuidado de crianças. Às vezes,
caracterologia desenvolvimentista de Freud como o segundo exemplo mostra, isto se dá
(1905b). Os argumentos de Freud, especial­ sob pressão de desenvolvimentos na ideologia
mente, destruíram a noção de características patriarcal (neste caso, Bowlby, 1953, é o exem­
fIXas como definidoras dos sexos, ao mostrar plo mais notáveQ.
Corno seus padrões característicos de vínculo A segunda mudança é que o argumento
afetivo e estrutura de personalidade eram sobre a produção da sexualidade e do gênero
construídos na infância; através da doutrina da tem sido ligado, no contexto dos movimentos
bi-sexualidade; e ao insistir na generalização do de liberação sexual, com os aspectos práticos
conflito dentro da psique humana da mudança estrutural. Neste contexto, a teoria
As outras fontes de contestação, que vieram do patriarcado torna-se, centralmente, um
principalmente das socialistas feministas, con­ argumento a respeito das condições para
sistiram num repensar da divisão sexual do ultrapassá-lo. Daí a estruturação do debate
trabalho. E o reconhecimento crescente de teórico em torno de idéias estratégicas: óbvio
quão contingente, quão historicamente específi­ nos atuais debates dentro do movimento das
co, é a definição de quem faz o quê, e um mulheres, mas também ímplicito na distância
reconhecimento crescente da natureza opressi­ que se abriu entre o movimento de liberação
va da divisão do trabalho para as mulheres das mulheres e o dos homossexuais. Permane­
trabalhadoras era generalizado entre os socia­ ce uma questão aberta a de qual das atuais
listas do início do século vinte. Eles ganharam análises em disputa levará a uma reformulação
proeminênica nos debates a respeito da sociali­ geral do campo. Podemos, entretanto, conside­
zação do cuidado das crianças e do trabalho rá-Ias criticamente em termos da forma na qual
doméstico no período imediatamente após a elas moldam uma teoria do patriarcado.
revolução russa.

86
Forma homens, e foi mantida por uma combinação de
'suborno e intimidação'. Uma síntese ao longo
Nos anos 70 houve duas principais sínteses dessas linhas não precisa supor que a fraque­
do campo. Numa grande medida - embora não za, a vulnerabilidade, o parto e a lactação
completamente - elas correspondem à perspec­ signifiquem que as mulheres tenham sido
tiva do feminismo radical e à do feminismo sempre subordinadas aos homens - veja a
marxista. descrição que faz Davis (1971), por exemplo,
Na primeira, o poder dos homens sobre as de um matriarcado primordial. Nem precisa
mulheres é tomado como sendo uma estrutura supor que algum drama nas brumas da pré­
autônoma e fundamental das relações sociais. história tenha esculpido em pedra um script
Autônoma, no sentido de que não é derivada para o resto da história - como se (como Simo­
das exigências de qualquer outra estrutura; ne de Beauvoir especialmente supõe) as dife­
fundamental, no sentido de que é (ou expressa) renças biológicas fossem tais que produzissem
um princípio organizador que rege uma grande continuamente uma psicologia particular ou um
parte da vida social. (Em algumas análises, tal poder diferencial. O que ela deve postular é o
como na de Firestone (1972), é o princípio caráter específICO das relações de poder do
organizador mais básico e importante da vida patriarcado, o que a distingue de outras estru­
social; noutras, tal como na de Delphy (1977), turas de poder. É, portanto, compreensível que
admitem-se outras estruturas que coexistem em tais visões com freqüência venham juntas, com
igual importância). As categorias definidas por uma ênfase particular sobre a violência masculi­
esta estrutura são igualmente fundamentais e na contra as mulheres como uma questão
irredutíveis. É para enfatizar este ponto que as política crucial na mobilização contra o patriar­
feministas radicais têm falado das mulheres cado; e com uma ênfase na criação de recur­
como uma classe ou têm usado o termo 'classe sos políticos e culturais autônomos por parte
sexual'. das mulheres como uma estratégia de libera­
A primeira forma de uma teoria do patriarca­ ção.
do, portanto, é uma síntese em cima de princí­ Quero voltar a esta formulação geral do
pios que são capazes de levar, diretamente, a patriarcado mais adiante; aqui eu queria ape­
uma explicação de uma estrutura social com­ nas assinalar algumas dificuldades para efetuar
pleta. O princípio clássico deste tipo é a divisão uma síntese em cima dessas bases particula­
social do trabalho; e existem várias explicações res. Derivá-Ia de uma divisão sexual do trabalho
do patriarcado que usam isto como seu princí­ significa que existe uma dificuldade séria em
pio organizador. Assim, Delphy baseia uma integrar questões de sexualidade e de forma­
análise da posição das mulheres na forma pela ção pessoaJ - a não ser através de algum tipo
qual elas ganham seu pão diário. Ela vê o de funcionalismo. Por outro lado, derivar o
patriarcado como uma estrutura baseada no poder social a partir da diferenciaçao biológica
'modo familiar de produção', no qual o trabalho cria sérias dificuldades em explicar as relações
das mulheres é apropriado pelos homens, o de poder dentro de um dado sexo (p. ex., a
casamento funcionando basicamente como um opressão dos homossexuais), assim como em
contrato de trabalho. Numa boa parte da antro­ descrever e explicar a história das relações
pologia feminista a divisão sexual do trabalho entre eles.
tem sido também vista como central, embora A segunda síntese principal do campo vem
isto tenha se desenvolvido numa direção um de um ponto de partida bastante diferente. Ao
tanto diferente - por exemplo, ao deduzir a invés de ver o patriarcado como uma estrutura
exclusão das mulheres do poder político a partir para/ela, Igualmente completa e plenamente
da separação entre a esfera da economia análoga à da estrutura de classes, ela o vê
doméstica e a economia principal. como o local de tipos particulares de efeitos
De forma alternativa, a divisão sexual do dentro de uma totalidade social, e não realmen­
trabalho pode ser tratada como secundária; na te análoga à estrutura de classes, de nenhuma
verdade, como uma conseqüência de um poder forma
diferencial cujas raízes estão na diferenciação De longe, a forma mais comum deste argu­
biológica. MUI argumentava, de forma bastante mento na literatura recente, derivado do marxis­
viva, que a sujeição das mulheres baseia-se na mo estruturalista, vê a família (ou a sexualidade
força, que começou porque as mulheres são ao e as relações de gênero em geral) como o local
mesmo tempo mais fracas e valiosas para os da reprodução das relações de produção.

87
Estas são tomadas como sendo as formas tamente, é óbvio, urna hierarquia sexual e
fundamentais de definição do modo de produ­ opressão. É ao tentar preencher esta lacuna
ção que caracteriza urna época histórica ou que a teoria da reprodução marxista-feminista
uma sociedade particular. Mas elas não poderi­ enreda-se a si própria em nós extraordinários,
am existir sem serem reproduzidas, e o desem­ tentando extrair princípios explicativos de
penho dessa tarefa (arriscaria eu dizer "fun­ Lacan, de Lévi-Strauss, da semiótica... com,
ção"?) é o principal determinante da opressão tanto quanto eu possa ver, um completo insu­
das mulheres. cesso.
Há uma boa quantidade de análises basea­ 3}A teoria da reprodução em geral é ahist6-
das nesta linha de pensamento, as quais se rica e funcionalista; ela se escora num essen­
tornaram mais populares após o segundo livro cialismo indefensável numa teoria de classe; ela
de Mitchell (1975) e dos inebriantes destilados elide a questão histórica chave sobre se as
da antropologia de Meillassoux (1975). Não há tentativas de reprodução terão realmente êxito.
nenhum sentido em catalogar aqui as variações 4} Ela produz uma teoria do patriarcado que
- outra vez, Beechey realizou um trabalho se baseia numa periodização de classe da
bastante útil - embora eu queira destacar dois história (pois isto é o que subjaz ao conceito de
aspectos do argumento que avança alguma "modo de produção"), que suprime a possibili­
coisa em termos de explicar porque um ele­ dade de investigar o patriarcado como tendo
mento tão ossificado da teoria estruturaI/funcio­ origem com uma nova periodização da história
nai tornou-se tão popular entre socialistas. Por da própria produção.
um lado, a "reprodução" pode ser vista como a Estas objeções parecem-me decisivas; e se
tarefa de criar crianças para ocupar lugares na é este o caso, a forma de explicar o patriarcado
produção e de fazer o serviço de manutenção que tem sido a parte central do feminismo
do trabalhador extenuado no fim do dia A marxista em recentes anos deve ser abandona­
teoria da reprodução deu, assim, aos intelectu­ da Além disso, estas objeções, ou algo pareci­
ais uma linguagem para algumas das caracte­ do com elas, parecem ser aplicáveis a qualquer
rísticas muito familiares das vidas das mulheres tentativa de teorizar o patriarcado que tenha
da classe operária e uma forma de argumentar este tipo de lógica, que veja o patriarcado
porque elas deviam ser feministas. como a cozinha onde tipos particulares de
De forma alternativa, a "reprodução" pode ser efeitos, exigidos por um sistema social, são
vista como uma questão de cultura e psicologia preparados. Estamos, assim, de volta a um
- moldando as pessoas para preencher os modelo de estruturas-paralelas? Sim, embora
postos em que se necessitam delas no sistema de forma cautelosa. A respeito desta questão,
de produção, mantendo em boa forma o supre­ parece-me que as feministas radicais foram as
mo princípio social da hierarquia e da subordi­ primeiras que primeiro perceberam onde real­
nação (p. ex., Campioni, 1976). E isto se liga a mente estava o problema Entretanto, já desta­
temas familiares na crítica socialista com rela­ quei algumas dificuldades existentes nas formu­
ção à distorção da cultura para satisfazer as lações típicas desta posição.
necessidades do capitalismo. Quando Tolson Elas parecem vir basicamente de um excesso
(1977), por exemplo, descreve uma conexão de centralismo teórico - da tentativa de organi­
entre a produção da competividade masculina zar o campo inteiro em torno de um princípio
e as exigências funcionais do capitalismo, o regente. E acho que elas podem ser superadas
material pode ser novo, mas a forma do argu­ por uma abordagem que Mitchell adota em seu
mento é bastante familiar para os socialistas. primeiro livro (1971) e abandona no segundo.
Nesta altura eu gostaria de apresentar, Em Woman's Estate, ela esboça um modelo do
bastante despojadamente, algumas objeções patriarcado em que a situação das mulheres
gerais, a esta forma de teorizar o patriarcado. em qualquer época particular é definida pela
1)Ela trata o patriarcado como uma estrutura intersecção e pela interação de quatro diferen­
truncada, seja como não fazendo parte da tes estruturas (produção, reprodução, sexuali­
esfera de produção de forma alguma, ou como dade, e socialização das crianças), cada uma
confinada a tipos muito limitados de produção das quais tem sua própria trajetória histórica e
(p. ex., Rubin, 1975, p. 167). Mas sabemos que pode-se mover em ritmos diferentes. Embora o
existe uma estruturação patriarcal da produção. termo "estruturas" seja infeliz - o que Mitchell
2)As exigências da 'reprodução" são suficien­ tem realmente em mente aqui é algo como
temente materiais; mas elas não exigem absolu- 'práticas" - o ponto básico é extremamente

88
importante. Uma teoria do patriarcado não então considera as relações em que elas en­
exige uma relação "chave", "centrar, que organi­ tram.
ze todo o resto. Podemos conceber sua unida­ Há razOes pelas quais as categorias na
de como uma unidade composta, o produto análise do patriarcado são ainda tipicamente
(flutuante) da história de muitos processos, que expressas numa forma que tem sido completa­
sempre mostram alguma incoerência, algumas mente desacreditada na análise de classe. A
contradições. mais destacada delas é que as categorias
Mas, como alguns críticos da noção paralela principais, "homens" e "mulheres", não são
de "autonomia relativa" na teoria de classe têm apenas categorias históricas, sociais, mas são
perguntado, o que é que há de "relativo" na também biológicas. Não importa quão escrupu­
autonomia? O que nos dá o direito de falar de losamente nós distingamos, corno o faz Oaldey
uma unidade, uma coerência, um sistema e, (1972), entre sexo biológico e gênero social- e
portanto, de "patriarcado", de alguma forma? a distinção é necessária, como sabemos da
Posso pensar em duas maneiras de responder experiência de hermafroditas, transsexuais e
isto, embora não saiba qual preferir (se é que crianças que receberam o rótulo "errado" no
prefiro alguma). Uma é fazer o que Rubin faz nascimento (Stolleer, 1968, 1976) - permanece
em seu excelente ensaio "The traffic in women"; o fato de que as categorias principais querem
definir uma zona, uma região, um tópico para o se referir a ambos. Como o ataúde de Maomé,
que ela chama de "sistema sexo/gênero', e elas pairam entre a terra da biologia e o céu da
insistir em que a forma particular assumida história, não morando em nenhum deles porque
pelas relações nesta zona é altamente variável cidadão de ambos; e a pressão de cada domí­
enquanto a definição da própria zona permane­ nio apaga as marcas próprias do outro. Assim,
ce constante. A outra (que está bastante mais obtemos o conjunto notavelmente simplificado
de acordo com as idéias do resto deste artigo) de categorias que passam por moeda corrente
consiste em argumentar que existe de fato uma nas discussões teóricas do patriarcado.
unidade, mas não é uma unidade lógica, de Eu argumentaria que as categorias do patri­
definição. É uma unidade historicamente produ­ arcado não existem antes como entidades
zida; e parte da dinâmica que nós estamos lógicas, para depois entrar em tipos particulares
estudando é a luta para impor vários tipos de de relações (tais como relações de poder).
ordem e de unidade nas relações sociais. Antes, na medida em que são categorias s0-
Assim, por exemplo, a família nuclear com o pai ciais, elas são produzidas como participantes
dominante pode não ser realmente o padrão de em relações de dominação e exclusão, com a
relações que faz surgir todas as outras, mas natureza e a "localização" das fronteiras entre
ainda assim é o padrão que grupos poderosos elas sendo definidas pela luta social. E elas não
estão tentando impor, com o resultado que são nunca categorias logicamente simples,
outras relações organizam-se pela, e em torno homogêneas.
da, luta para impô-Ia e para resisti-Ia Boa parte da literatura reconhece este ponto
formalmente, por exemplo distinguindo a posi­
Categorias e sua produção ção das mulheres da classe operária daquela
das mulheres da classe média; mas não vai
Seja lá como este ponto for resolvido, a além do categoricalismo ao considerá-Ia, mera­
abordagem descortinada por Mitchell em Wo­ mente fazendo uma classificação cruzada entre
man's Estate parece nos comprometer com uma categorias de gênero e classe. (folson, 19n, é
visão diferente da comum, das categorias um exemplo particularmente claro no caso da
sociais do patriarcado. Os principais represen­ masculinidade). Millet (1969) foi mais além, em
tantes das duas abordagens esboçadas na sua definição do patriarcado como um sistema
última seção parecem-me mostrar, numa medi­ em que o homem domina a mulher e o homem
da bastante grande, características que na mais velho domina o mais jovem, introduzindo
análise de classe têm sido chamadas de "cate­ assim a noção de uma relação histórica dentro
goricalismo". Elas tratam uma estrutura social da categoria gênero. Penso que devemos levar
como um conjunto de categorias discretas, esta idéia mais além outra vez - muito mais
cada uma com "fronteiras" lógicas, e definindo além. Como regra geral, devemos esperar
atributos que tornam cada uma (para os pro­ descobrir as categorias definidas pelo patriarca­
pósitos da análise) logicamente homogêneas. do como sendo uma massa em agitação de
A análise primeiro as define logicamente, e diferenciações internas, complexidades, e

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contradições; como tendo estruturas de poder algum sentido, elas sao simultaneamente s0-
tanto dentro delas quanto entre elas; e como ciais e biológicas. A evidência para a qual
sendo redefinidas não apenas por lutas entre apelamos para provar o caráter social do gêne­
agrupamentos importantes, mas pelo equilíbrio ro - tal como o berdache entre os ameríndios e
mutante de forças dentro delas. as trajetórias transsexuais nas sociedades
Isto deve ser assim, se vemos estas categori­ ocidentais é evidência de que a entrada nas
-

as como realmente socialmente produzidas, e categorias é negociável e não completamente


se recusamos fugir para um ou outro da cente­ determinada pela anatomia Não é evidência de
na de mitos em competição a respeito da que as categorias em si mesmas sejam indefini­
origem para explicá-Ias. A análise de sua pro­ damente maleáveis. Na verdade, isto pode ser
dução social é (pode somente ser) a história de lido como uma forte evidência da rigidez das
um conjunto contínuo de práticas, nas quais categorias, mesmo frente à violação francamen­
distinções são feitas e sustentadas, o poder te grosseira Pois o que, digamos, um trans­
exercido, e as pessoas formadas. Não existe sexual masculino tipicamente quer, é ser uma
nenhuma forma pela qual essas práticas pos­ mulher, não redefinir ou afrouxar a categoria
sam prosseguir num isolamento antisséptico "homem".
daquelas que produzem as categorias de Temos, portanto, que considerar a relação da
outras estruturas, tal como a classe. Pelo con­ biologia com a história antes que possamos
trário, sabemos que elas reagem juntas nos satisfatoriamente captar a natureza das catego­
mínimos detalhes da vida pessoal. As experiên­ rias numa teoria do patriarcado. Está claro, no
cias e situações reais são condensações des­ mínimo, que elas são de um tipo diferente das
sas reações. No mínimo, a produção das cate­ categorias produzidas nas dinâmicas de classe;
gorias do patriarcado deve mostrar turbulências e que elas constituem uma importante qualifica­
resultantes da interação com outras dinâmicas ção com respeito à posição esboçada no final
sociais. da seção anterior.
Mas mais que isto: existem conflito, incoerên­
cia, contradição dentro dos processos que Hlstorlcldade
contraem as próprias categorias de gênero. Por
exemplo, a criação e a imposição de uma forma Não se trata apenas das categorias. Muitos
hegemõnica da masculinidade como a definição dos processos em questão também não pare­
social de "homem" exige a repressão de outras cem ser formuláveis em termos de prática
tendências psico-sexuais nos homens hiper­ social: menstruação, dar à luz e cuidar das
masculinos, cria tensões entre o grande núme­ crianças, lactação, vínculo sexual, excitação,
ro de homens que não pode atingir isto, e clímax sexual, e assim por diante. Faz parte do
ativamente oprime os homossexuais e os senso comum ver esses processos como não­
efeminados. Nada disto é obtido tranqüilamen­ sociais, pré-sociais, ou anti-sociais; e há certa­
te. A própria tentativa para transmitir a masculi­ mente algo a ser dito em favor do senso c0-
nidade hegemõnica dentro de uma família mum.
dominada por um pai "machão" pode levar os Não obstante, os processos sexuais não
meninos a táticas de resistência que vão desde escapam à história Não temos aqui um paraíso
tomarem-se mimados chorões até marginais num mundo terreno, não mais que na família
drogados. A masculinidade não cai dos céus; Para dar apenas alguns dos exemplos nos
ela é construída por práticas masculinizantes, quais a sexualidade é social: escolha-do-objeto,
que estão sujeitas a provocar resistência, que socialmente modelada numa grande medida,
podem dar errado, e que são sempre incertas principalmente na definição de quem nllo está
quanto a seu resultado. É por isto, afinal, que disponível como um objeto; excitação, tal como
se tem que pôr tanto esforço nelas. vemos nas convenções sociais da sedução; a
Agora, tudo isto é esplendidamente análogo técnica da copulação (Greer, 1971); o período
às formulações de Thompson (1968) sobre gasto com um parceiro; fantasias durante o
classe. Vemos as relações do patriarcado como intercurso. Similarmente não seria difícil listar
relações históricas, construídas pelas, e nas, uma centena de formas pelas quais os proces­
práticas sociais, com as categorias fazendo-se sos corporais e sociais estão implicados um
a si próprias tanto quanto elas são feitas... Mas com o outro na formação da masculinidade e
resta um fato inquietante. Aquelas categorias, da feminilidade no processo de crescimento.
"homens" e "mulheres", �o transhistóricas em Não que isto seja peculiar ao patriarcado. Os

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processos de classe também envolvem o corpo nestas categorias não é simétrica
sob formas fundamentais. Na questão mais A historicidade acarreta um processo históri­
fundamental de todas: suas chances de sobre­ co, uma dinâmica social. A biologia entra na
viver ao nascimento e aos traumas associados constituição das principais categorias do patri­
são distintamente melhores se lhe ocorreu ter arcado; mas elas entram numa dinâmica social.
"escolhido" pais ricos. Existe algo como uma dinâmica biológica, isto
Sartre (1976) oferece uma formulação geral é, evolução orgânica Mas o ritmo das transfor­
da relação entre o processo corporal e o social mações históricas é imensamente maior que
através do trabalho. Num meio de escassez, o aquela, e domina seus efeitos. Mesmo os
trabalho é a forma de prática social que deter­ limites biológicos, que acionam a resposta
mina a forma da história; ele também envolve o ecológica a partir do crescimento populacional
corpo da forma mais direta No trabalho, usa­ e da industrialização, produzem essencialmente
mos o corpo como uma coisa sobre a qual agir efeitos sociais (isto é, sobre os seres humanos).
no mundo das coisas. Este ponto é importante De forma geral, portanto, temos uma dinâmica
para Sartre, dada sua tentativa de separar os social que incorpora, usa, e transforma a dife­
níveis da prática social de forma a resgatar a renciação biológica Isto não produzirá o tipo
idéia da transformação revolucionária do domí­ de mudança exponencial e o padrão de trans­
nio do mecanismo econômico. formação experimentado nas relaçOes de
Podemos perceber por que ele faz isto. classe, porque a mesma diferenciação biológica
Ainda assim, parece-me que qualquer doutrina é produzida de novo em cada geração. Mas
que se limite à interação do corporal e do social justamente por isto, o "material" biológico en­
com as formas mais baixas ou mais simples ou contra não um mundo natural constante, mas
menos conscientes de prática, ou que adiciona as situações humanas novas produzidas a
o social ao ffsico, está seriamente equivocada partir da rodada anterior de encontros. Assim,
Por duas razOes. As construçOes sociais com­ a mudança histórica no patriarcado é não
plexas, tais como a masculinidade hegemônica, apenas possível, mas inevitável. E não há
estão literalmente corporificadas no processo nenhuma razão para duvidar que ela tenha uma
de formação pessoal. E práticas sociais com­ dinâmica inteligível.
plexas e altamente conscientes, tais como as Mas o que ela é? Esta, acho, é uma das
lutas de liberação, têm uma dimensão corporal. lacunas mais sérias na atual análise do patriar­
As pessoas realmente sentem de forma diferen­ cado. Algumas das coisas que nos são apre­
te, têm uma sensibilidade intensificada e uma sentadas, como a "dialética do sexo" de Firesto­
maior energia, no auge de uma greve importan­ ne, não são absolutamente dinâmicas - são,
te ou num movimento de resistência Numa antes, substitutivos obsoletos. Outras buscam
revolução a abertura das "portas da percepção" a dinâmica fundamental do patriarcado em
toma-se uma experiência de massa relaçOes de classe - um hábito não restrito aos
Eu argumentaria, portanto, que a tentati­ dogmáticos para os quais a luta de classe é
va de cortar a biologia da história só pode ter não apenas o motor da história, mas também
êxito ao custo de empobrecer a história A seu sistema de câmbio, embreagem e direção
história envolve o corpo em todos os seus e até seu sistema de som. Mesmo Reiter
momentos como um participante ativo, interati­ (1977), que é quem mais claramente formula a
vo. Não se trata apenas de que a biologia questão da dinâmica histórica do patriarcado,
humana estabelece parâmetros dentro do qual periodiza-o ao longo de coordenadas de classe
a história se move (por exemplo, que nós não ao identificar como pontos principais de transi­
podemos nos comunicar pelo olfato, ou que ção: (a)a criação das estruturas do estado, (b)o
sejamos capazes de reproduzir a uma certa advento do capitalismo industrial.
proporção). Na verdade, a biologia é uma Isto não serve. As transiçOes no patriarcado
história, de um certo tipo; e se seguimos Tei­ das quais temos o conhecimento mais comple­
Ihard de Chardin (1959) ou Childe (1954, p. 7), to não mantêm uma relação com mudanças na
a história forma uma unidade contínua, através estrutura de classes que fizesse sentido periodi­
de transformaçOes qualitativas, com a evolução zar uma através da outra Uma teoria do patriar­
orgânica Isto talvez tome um pouco menos cado não deve ganhar sua inteligibilidade
paradoxal a idéia de categorias que são tanto histórica de nenhum outro lugar que não seja
biológicas quanto sociais. Mas há mais do que ele mesmo, que não sejam suas próprias
isto. A participação da biologia e da história transformaçOes.

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Isto nos direciona, como uma questão estra­ ao poder, as contradições na formação da
tégica, para as tendências de crise dentro do pessoa, as transformações da produção, etc.,
patriarcado que levem à mutação estrutural. Por interagem. Sobre a estrutura desta dinâmica,
"tendências de crise", quero dizer não apenas ninguém, tanto quanto eu saiba, realizou ainda
quaisquer mudanças ou incoerências - pode­ qualquer trabalho.
mos supô-Ias serem crônicas - mas especifICa­ Isto me leva, finalmente, a um problema a
mente aquelas que implicam a estrutura-do­ respeito da liberação. Se Sartre está correto
todo, os efeitos de composição já menciona­ quanto ao fato de que a inteligibilidade de um
dos. Por exemplo, as mudanças nos símbolos processo histórico reside em sua natureza
de masculinidade e as práticas coletivas dos dialética, na conexão da análise com o projeto
adolescentes ligadas à masculinidade hegem6- da transcendência; e se uma parte significativa
nica tradicional assinalam uma mudança signifi­ da dinâmica do patriarcado diz respeito à
cativa, uma recomposição, mas nenhuma formação de pessoas; então, qual é o significa­
tendência de crise (veja Game e Pringle, 1979). do da "transcendência" aqui - qual é o sentido
Mas a mudança na relação entre a heteros­ da "liberação"?
sexualidade hegemÕnica e a homossexualidade A ênfase de Marcuse (1972) sobre o caráter
marginalizada corporificada na emergência da revolucionário da noção de perversidade poIi­
liberação gay sem dúvida o era O fato de que morta de Freud (um conceito de liberação
este primeiro ímpeto da liberação gay tenha-se perversamente projetado para trás, em direção
perdido constitui uma advertência de que as à criança não-formada) é uma coisa fascinante;
"tendências de crise" não são tendências me­ mas isto não significa a transcendência da
cânicas que se desenvolvem a si próprias de forma em direção à falta-de-forma? E nós
forma inevitável. Elas são contestáveis, deslocá­ sabemos que o prazer sexual depende não do
veis, decomponíveis. A única suposição que alívio sem-forma, mas da dialética erótica entre
tem que ser feita a respeito delas é que elas refreamento e liberdade. Não estou seguro de
não são reversíveis. A estrutura não pode que quero me desfazer de minhas neuroses; ou
reverter ao status quo ante, ela tem de lidar daí de que seria uma pessoa melhor, mais livre,
por diante com um nível mais alto de tensão, sem minha armadura de compulsões, medos,
incoerência, ou de problemas de outros tipos. fetiches, fixações, proibições e entusiasmos.
Pode haver uma formulação geral da dinâmi­ Posso mesmo nem ser em absoluto uma pes­
ca histórica no patriarcado? Claramente há um soa Por outro lado, sei que alguma coisa disso
jogo de poder e resistência: não apenas no atua como um habitus, para usar um termo de
conflito entre grupos, mas também no processo Bourdieu, que gera práticas opressivas ou
de formação pessoal, na medida em que esta potencialmente opressivas. E sei que a liberda­
é também a natureza geral da repressão. Mas de ou é um fato social, ou não é nada
como os efeitos da repressão nos fazem lem­ De alguma forma o conceito de liberação
brar, há também uma produção ocorrendo aqui deve estar corporificado em práticas que atuem
- a produção de um tipo particular de pessoa - através das estruturas da pessoa, em direção à
e grande parte daquela não pode ser inscrita abolição das relações de opressão e explora­
na rubrica do poder. O problema é o mesmo ção entre pessoas. E é aí que o feminismo
que aquele sobre a forma de uma teoria do socialista, e o socialismo influenciado pelo
patriarcado: não há nenhum "centro" que forne­ feminismo, têm que trabalhar. Eles foram atro­
ça uma chave para o processo inteiro. A dinâ­ pelados pelo trator estruturalista dez anos atrás.
mica do patriarcado deve ser entendida como É hora de se pôr em movimento outra vez.
uma dinâmica composta, na qual a resistência
* * *

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***

Este artigo constitui o CapiluIo 4 do livro de R. W. ConneI, Which way i8 up? Essays on c/ass. sex anel cuItunJ,
publicado por George AIIen & Unwin (Sydney, Austrália), 1983. Ele é aqui publicado por especial gentileza do autor
8 daquela editora, aos quais agradecemos a autorização e a dispensa de pagamento de direitos autorais.

***

Tradução de Tomaz Tadeu da Silva

***

Robert W. Connel é professor de sociologia na MacOuarie University, Sidney, New South Wales 2109, Austrália.

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