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MAUS - TRATOS E TORTURA

ROGÉRIO TADEU ROMANO

Procurador Regional da República aposentado

O antigo direito Romano não conheceu qualquer limitação ao poder do pater


famílias, que se exercia não apenas para fins disciplinares, mas ainda com relação a certos
crimes privados. Tal poder se exercia até a morte do membro da família. A isso se acrescia o
reconhecimento de um poder disciplinar aos educadores e aos maridos.

Na idade média, foi admitido o poder de infligir castigos corporais, salvo em


caso de lesões corporais graves e morte.

O Código Sardo de 1859, que foi um dos primeiros a configurar como infração
penal os maus-tratos, considerava tal ilícito como contravenção.

O Código Penal de 1830 não previa o caso de castigos excessivos e,


expressamente, afirmava ser justificável o crime quando consistisse em castigos moderados
dos pais aos filhos, dos senhores aos escravos e dos mestres aos discípulos. A matéria não
constou do Código Penal de 1890.

Veio o Código Penal de 1940 que disciplinou, no artigo 136, casos de excessos
nos meios de correção e disciplina, como também qualquer outra espécie de maus-tratos,
infligidos a pessoa que o agente tenha sob sua guarda, vigilância ou autoridade, para o fim de
educação, ensino, tratamento ou custódia, hipóteses essas que já estavam previstas no Código
de Menores(artigo 137 a 140) e introduzidas na Consolidação das Leis Penais de 1932(artigo
292, incisos VI a X), como crimes autônomos, envolvendo castigos imoderados, maus-tratos
habituais, privação de alimentos ou dos cuidados, excesso de trabalho.

Assim se lê no artigo 136 do CP:

Art. 136 - Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância,
para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou
cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer
abusando de meios de correção ou disciplina:

Pena - detenção, de dois meses a um ano, ou multa.

§ 1º - Se do fato resulta lesão corporal de natureza grave:

Pena - reclusão, de um a quatro anos.

§ 2º - Se resulta a morte:

Pena - reclusão, de quatro a doze anos.


§ 3º - Aumenta-se a pena de um terço, se o crime é praticado contra pessoa menor de 14
(catorze) anos. (Incluído pela Lei nº 8.069, de 1990)

Ensinou Nelson Hungria(Código penal comentado, volume V, pág. 450) que


“educação compreende toda a atividade docente destinada a aperfeiçoar, sob o aspecto
intelectual, moral, técnico ou profissional, a capacidade individual. Ensino é tomado, aqui, no
sentido menos amplo que o de educação: é a administração de conhecimentos que devem
formar o fundo comum de cultura(ensino primário, ensino propedêutico). Tratamento abrange
não só o emprego de meios e cuidados no sentido da cura de moléstias, como o fato
continuado de prover a subsistência de uma pessoa. Finalmente, a custódia deve ser
entendida em sentido estrito: refere-se a detenção de uma pessoa para fim autoridade em lei.
Assim o crime em questão é praticável por pais, tutores, curadores, diretores de colégio ou de
institutos profissionais, professores, chefes de oficina ou contramestres, enfermeiros,
carcereiros etc”.

É crime de menor potencial ofensivo, com pena de detenção de dois meses a


um ano ou multa. Por sua vez, a superveniência de lesões graves ou de morte alteram a pena
para reclusão de um a quatro anos e, de quatro a doze anos, respectivamente. As lesões
corporais quando leves são absorvidas por aqueles(JTACrSP 54/289). Há causa de aumento de
pena, de 1/3, se o crime é praticado contra pessoa menor de 14(quatorze) anos.

É delito de ação múltipla, podendo realizar-se por mais de uma forma. Em


algumas delas será necessária a habitualidade,mas noutras o emprego habitual não é
requisito.

Trata-se de crime de perigo e o objeto da tutela é a vida e a incolumidade


pessoal. Repudia-se a violência física como meio pedagógico, segundo a correta lição de
Heleno Cláudio Fragoso(Lições de direito penal, parte especial – artigos 121 a 212 – 7ª edição,
pág. 166).

O sujeito ativo é quem tem a vítima sob sua guarda, vigilância ou autoridade,
para o fim de educação, ensino, tratamento ou custódia. Há a exigência de um vínculo
obrigacional entre o agente e a vítima, importando o crime em violação de um dever
preexistente. Do contrário, não havendo essa especial obrigação jurídica, o crime será o do
artigo 132 do CP. Sendo assim é crime de mão própria.

O sujeito passivo é o menor de 18 anos e ainda qualquer pessoa submetida à


guarda, vigilância ou autoridade de outra, para fins de educação, ensino etc.

Como crime de perigo pode ser cometido através das seguintes modalidades:

a) Privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis;


b) Sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado;
c) Abusando dos meios de correção e disciplina.

Na primeira modalidade o crime é omissivo.


O abuso dos meios de correção ou indisciplina é o emprego de castigos
corporais imoderados, com propósitos coercitivos ou disciplinares.

É possível a tentativa nas modalidades comissivas. Mas tal entendimento não é


pacífico. Disse Magalhães Noronha que Impugnam-na, dentre outros, Manzini e Maggiore.
Mas admitem-na, Manfredini. Nesse ponto, Magalhães Noronha(obra citada, pág. 112),
entende que, tratando-se de crime de perigo, na modalidade de omissão, é difícil caracterizar-
se a tentativa, máxime quando se exigir a habitualidade. Já na forma comissiva não parece
impossível a tentativa.

É salutar a lição de Magalhães Noronha(Direito Penal, 12ª edição, págs. 110 e


111) quando diz:

“Por privação de alimentos não há que se há de entender a supressão total,


que seria antes meio de homicídio, mas a insuficiência, carência ou falta,
molesta á saúde do ofendido. Mesmo como castigo disciplinar nos presídios –
ao contrário do que outrora acontecia – tal não é admitido, pois a isso se
impõe o artigo 32 do Código. A privação de cuidados diz respeito às cautelas
necessárias à vida e à higidez da pessoa, v.g, o pai que, por sovinice, não desse
cama ao filho, tolerando que ele dormisse no chão duro e frio. Como é notório,
nestas duas primeiras modalidades, o crime é omissivo.

A terceira forma do elemento material é a sujeição a trabalho excessivo ou


inadequado. O primeiro é o que produz fadiga além do normal ou natural.
Deve ser relacionado à vítima: o que não será excessivo para um musculoso
estivador, poderá esgotar, em pouco, a pessoa débil e franzina.

Trabalho inadequado é o impróprio, inconveniente ou discorde. É o que não se


coaduna com o sujeito passivo. Ainda aqui a consideração deste é indeclinável.
Tanto isso é exato que todos sabemos das restrições impostas ao trabalho dos
menores de 18 e maiores de 14 anos(Decs. Nº 1.801, de 11 – 8 - 1917, e
22.042, de 3 – 11 – 1932; Código de Menores, artigos 101 a 125, e outras leis).

Constitui ainda maus tratos o abuso de meios de correção e disciplina. Abuso é


uso ilegítimo, é mau emprego, é excesso de uso. Ao contrário das hipóteses
precedentes, em que o agente pode proceder por impaciência, grosseria etc, o
fim agora é lícito – corrigir e disciplinar -, porém, o autor excede-se nos meios
empregados. Tal excesso pode consistir em violência física, diversa da vis
tolerada pelo escopo disciplinar(advirta-se, entretanto, que os castigos
corporais estão, hoje, quase abolidos, sendo inadmissíveis na disciplina
escolar), ou em violência moral, de que são exemplos as ameaças, as
intimidações, o impedimento do sono, a coação a fadigas excessivas(para nós,
antes, violência física, estes dois últimos meios), o terror, a coação a visões
terrificas ou repugnantes etc, sempre se tendo em conta a idade ou outras
condições pessoais do sujeito passivo”.
Disse ainda Magalhães Noronha(obra citada, pág. 111) que, no abuso, o meio
deve ser lícito, mas torna-se ilegítimo pela intensidade ou qualquer outra circunstância.

O elemento subjetivo do tipo é o dolo de perigo, a vontade livre e consciente


de expor a perigo a vida ou a saúde da vítima, através de maus-tratos(dolo direto), ou a
aceitação do risco de exposição a perigo (dolo eventual).

A jurisprudência já entendeu que é lícito ao pai punir o filho e os limites do


poder de corrigir são elásticos(RT 567/334). Entendeu-se ainda que o castigo físico imposto
pelo pai a filho menor, com moderação, adequação às circunstâncias e com finalidade
pedagógica não configura o ilícito(RJTDACRIM 11/127). Ainda se entendeu que se configura o
crime nos casos de surra(RT 426/406, 651/329), espancamento(JTACrSP 61/240, 49/394),
paulada, no uso de chicote, no colocar ou fazer colocar formigas sobre o corpo do aluno, a
título de castigo. Nas escolas não se admitem castigos corporais(RT 376/248).

Consuma-se o crime de maus-tratos com a ação ou omissão – isolada ou


habitual, previstos em lei, que venha acarretar perigo para a vida ou a saúde do sujeito
passivo. Como tal é desnecessário o dano.

Há maus-tratos e não sequestro se a finalidade do encerramento foi corretiva,


ainda quando ocorra o excesso(RT 547/378). Sendo o abuso de autoridade elemento
integrante do tipo, não se aplica a circunstância agravante prevista no artigo 61, II, f, do CP(RT
546/332).

Se a vítima é criança(com idade até 12 anos) ou adolescente(até 18 anos), os


maus tratos podem configurar o crime de tortura, que era antes previsto no artigo 233 da Lei
8.069, de 13 de julho de 1990(Estatuto da Criança e do Adolescente) e agora definido no artigo
1º , II, da Lei9.455, de 7 de abril de 1997.

A propósito foi sancionada a chamada “Lei da Palmada”, que recebeu o nome


de Lei menino Bernardo, onde se proíbem os castigos físicos para crianças e adolescentes. A
Lei prescreve que as crianças e adolescentes têm o direito de ser educados sem castigo físico
que provoque dor ou lesão, nem tratamento cruel ou degradante, que ocorre quando o pai
ameaça o filho. A mensagem trazida pela lei é de que os pais devem criar os filhos com
conversa e paciência e que um comportamento agressivo traz consequências. As denúncias
devem ser levadas aos conselhos tutelares, que vão decidir que medidas devem ser aplicadas e
dependendo do caso, os pais podem ser obrigados a fazer tratamento psicológico, cursos ou
simplesmente vão receber uma advertência. Mas não é dever do Conselho dizer como os pais
devem educar o seu filho, mas pontuá-la na proteção da criança.

Por sua vez, os maus-tratos à pessoa idosa, que venham a consistir na sua
submissão a condições desumanas ou degradantes ou a trabalho excessivo ou inadequado, ou,
ainda na privação de alimentos ou cuidados indispensáveis, a que estava o agente obrigado a
prestar, está tipificado no artigo 99 da Lei 10.741, de 1º de outubro de 2003(Estatuto do
Idoso),em que se cominam penas idênticas para as mesmas formas qualificadas previstas no
artigo 136, § § 1º e 2º. Tem-se desta forma crimes qualificados por resultado. Assim se
entendeu que “se o menor vítima estava sob os cuidados e guarda da acusada, que a ela
infligia constantes maus-tratos, provocando-lhe a morte, o delito a ser cogitado, na espécie é o
do artigo 136, § 2º, e não o do artigo 129, § 3º, ambas do CP”.

O crime de maus-tratos está disciplinado no artigo 134 do Anteprojeto do


Código Penal, quando se diz: “Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade,
guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custodia, quer privando-a
de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou
inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina”. A pena é de prisão de um a
cinco anos. Se do fato decorrer lesão corporal grave, em qualquer grau, aplicam-se também as
penas de lesão. Se resulta morte, aplicam-se também as penas de homicídio.

Distingue-se o crime de maus-tratos do crime de tortura.

A propósito, tem-se a jurisprudência a seguir:

"TORTURA E MAUS TRATOS – CRIANÇA – DISTINÇÃO


"A distinção entre os crimes de maus tratos e de tortura deve ser
encontrada não só no resultado provocado na vítima, como no
elemento volitivo do agente; assim se abusa do direito de corrigir
para fins de educação, ensino, tratamento e custódia, haverá maus
tratos, ao passo que caracterizará tortura quando a conduta é
praticada como forma de castigo pessoal, objetivando fazer sofrer,
por prazer, por ódio ou qualquer outro sentimento vil.
"Carateriza tortura a conduta do agente que, tendo criança sob sua
guarda, a pretexto de corrigi-la, submete-a de forma contínua e
reiterada, a maus tratos físicos e morais, causando-lhe intenso e
angustiante sofrimento físico e mental" (Ap. Crim. n. 98.014413-2, de
São José do Cedro, rel. Des. Nilton Macedo Machado).
"APELAÇÃO CRIME. TORTURA. VÍTIMA CRIANÇA SOB PODER E
AUTORIDADE DO PAI. PEDIDO DE DESCLASSIFICAÇÃO PARA O CRIME
DE MAUS TRATOS. IMPOSSIBILIDADE. UMA VEZ FARTAMENTE
DEMONSTRADO NOS AUTOS QUE O AGENTE CAUSOU PROFUNDO
SOFRIMENTO FÍSICO E PSÍQUICO NA VÍTIMA, NA MEDIDA EM QUE AS
LESÕES APRESENTADAS PELO MENOR, DESCRITAS NO AUTO DE
EXAME DE CORPO DE DELITO, BEM COMO VISUALIZADAS
PARCIALMENTE NAS FOTOGRAFIAS, IMPOSSÍVEL PREVALECER A TESE
DE QUE HOUVE APENAS EXCESSO NOS ATOS DE CORREÇÃO E
EDUCAÇÃO. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA CONDENATÓRIA DE
PRIMEIRA INSTÂNCIA. NEGARAM PROVIMENTO AO APELO DA
DEFESA" (TJRS – Ap. Crim. n. 70008848517 – rel. Des. Marcel Esquivel
Hoppe – j. 15.9.2004).

"DESCLASSIFICAÇÃO DO DELITO DE TORTURA PARA O DE MAUS-


TRATOS - IMPOSSIBILIDADE.
Demonstrado nos autos que o agente causou profundo sofrimento
físico ou psíquico na vítima, na medida em que a espancava
reiteradamente, não há como prevalecer a tese de que houve apenas
excesso nos atos de correção e educação, restando inviável o pedido
de desclassificação da tortura para o crime de maus-tratos" (Ap.
Crim. n. 2003.022881-0, de São José do Cedro, rel. Des. José Carlos
Carstens Köhler).

O que distingue os maus-tratos do crime de tortura é principalmente o


propósito do agente. Nos maus-tratos o objetivo é a simples correção ou a disciplina. Na
tortura é o castigo pessoal ou a medida de caráter preventivo. O intenso sofrimento da vítima,
físico ou mental, caracteriza tortura quando imposto como castigo pessoal.

O crime de tortura se encontra balizado pela Lei 9.455/97, que teve como
ponto de partida os termos da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, ficando a
tortura no processo de progressiva incorporação no Ordenamento Jurídico Internacional. Isto
se vê no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1976, que foi ratificado pelo Brasil,
em 1992, onde se lê, no artigo 7º, que “ninguém será submetido a tortura, nem a penas ou
tratamentos crueis, desumanos ou degradantes. Será proibido,sobretudo, submeter uma
pessoa sem seu livre consentimento , a experiências médicas e científicas”.

Em 1975 foi elaborado texto constante da Declaração sobre a proteção de


todas as pessoas contra tortura e outros tratamentos crueis, desumanos e degradantes.

A Assembleia-Geral da ONU adotou a Convenção contra a tortura e outros


tratamentos ou penas crueis, desumanos ou degradantes(1984) e foi ratificada pelo Brasil no
ano de 1989 e por mais de aproximadamente 123 países.

Tem-se o conceito de tortura:

Art. 1º - O termo tortura designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos
ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira
pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha
cometido ou seja suspeita de ter cometido: de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras
pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais
dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de
funções públicas, ou por sua instigação ou como o seu consentimento ou aquiescência.

A Lei 9.455/97, primeira norma nacional que traz definição do que seja crime
de tortura, dita:

Art. 1º. Constitui crime de tortura:

I. constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento


físico e mental:
a. com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de
terceira pessoa;
b. para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;
c. em razão de discriminação racial ou religiosa;
II. submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou
grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo
pessoal ou medida de caráter preventivo.
§ 1º. Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a
sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não
resultante de medida legal.

§ 2º. Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou
apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos.

Por sua vez, o crime de tortura-castigo está elencado no artigo 1º, inciso II da
Lei 9.455/97, onde se diz: “Submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com
emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de
aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo”. Não são todas as pessoas que
podem praticar tortura, mas somente quem tem alguém, sob sua guarda, poder ou
autoridade, e emprega contra essa pessoa violência ou grave ameaça, causando intenso
sofrimento físico ou mental, com o objetivo de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter
preventivo. Assim a intensidade do sofrimento irá definir o crime de tortura.

Mário Coimbra(Tratamento do injusto penal da tortura, 2002, pág. 186)


ensinou com relação ao crime de tortura-castigo que, no tocante à quarta modalidade de
tortura, inserida no art. 1º, inciso II, da lei em exame, o núcleo reitor do tipo está representado
pelo verbo submeter, que, no sentido do texto, denota a ação de sujeitar, de subjugar a vítima
a intenso sofrimento físico ou mental. Tal modalidade de tortura é conhecida por
punitiva/vingativa e intimidatória, por ser aplicada, com a finalidade de castigar a vítima ou
mesmo para prevenir a prática de eventual indisciplina, nos casos em que o torturador detém
a sua guarda ou tenha, sobre ela, poder ou autoridade”.

Necessário para se caracterizar o crime de tortura: o meio


empregado(violência ou grave ameaça), as consequências sofridas pela
vítima(constrangimento e o sofrimento físico/mental) e a finalidade pretendida.

Na lição abalizada de Luciano Maia(Tortura no Brasil: a banalidade do mal) há


várias condutas que podem tipificar o delito de tortura. Nenhuma delas é exclusiva de agente
púbico. Disse ele: “ A lei brasileira, contrariamente às convenções internacionais, optou por
criminalizar a tortura como tal, deixando de lado a tendência consolidada nas Nações Unidas, e
mesmo no âmbito da Organização dos Estados Americanos, de relacioná-la a agentes do
Estado.

Fala-se em sofrimento físico ou mental. Ainda nos diz Luciano Maia(obra


citada) que “enquanto não parece haver dúvida quanto ao que significa sofrimento físico, o
mesmo não se dá quando se refere a sofrimento mental. McGoldrick critica o Comitê de
Direitos Humanos da ONU que, examinando casos de violação ao artigo 7º do Pacto dos
Direitos Civis e Políticos, não se revelou capaz de definir sofrimento mental ou psicológico,
muito menos de apontá-lo como forma de tortura.

Disse ainda Luciano Maia: “Alcança várias situações reclamadas no âmbito


internacional como necessárias de serem incluídas no rol de condutas que significam tortura,
tais como violência doméstica contra crianças, em que os agressores são indivíduos destituídos
de poder do Estado, mas imbuídos da autoridade paterna. Alcançará maridos, namorados,
amantes, que, através da força física e econômica, submetem suas mulheres ou companheiras
a intenso sofrimento físico ou mental? Terão eles guarda, poder ou autoridade sobre suas
mulheres, companheiras ou amantes, para que possa se configurar tortura a violência
praticada?

Creio que a resposta deve ser afirmativa. Com Lisa Kois, também considero
possível afirmar que essas formas de violência contra a mulher resultam de um contexto de
construção patriarcal da sexualidade feminina, e "conquanto a violência perpetrada contra as
mulheres em casa não seja inteiramente análoga com a tortura oficial de mulheres, inobstante
isso ela existe em um mesmo continuum de violência contra a mulher como um instrumento
poderoso em sistemas que mantêm a mulher oprimida e lhes nega seus direito de plena
participação em suas sociedades. As técnicas empregadas na perpetração de tortura oficial e
de tortura doméstica são análogas, assim como o são os objetivos".

Com relação ao crime previsto no 1º, §1º, da Lei nº 9.455/97, que se trata de
forma de tortura, afigura-se o exemplo da aplicação de “corretivo”, ao detento. No caso, como
ensinam Sheila Bierrenbach e Marcellus Polatri Lima(Comentários à lei de tortura – Aspectos
penais e processuais penais – 2006, pág. 70), Guilherme de Souza Nucci(Leis penais e
processuais penais comentadas, 2008, pág. 1.093) e ainda Antônio Lopes Monteiro(Crimes
hediondos, 2008, pág. 98), basta, para a configuração do crime, o dolo de praticar a conduta
descrita no tipo objetivo. Neste aspecto a ausência do especial fim de agir nesta modalidade
de tortura diferencia-se das demais previstas no texto legal que, por outro lado, exigem sua
presença. Nas formas de tortura, descritas no artigo 1º, incisos I e II, somente se perfazem se
tiver agido o agente imbuído por uma finalidade específica. No caso do inciso I, para “obter
informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa; provocar ação ou
omissão de natureza criminosa e por motivo de descriminação racial ou religiosa”. Já no caso
do inciso II, no intuito de “aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo”, se a
vítima se encontra presa não se exige o especial fim de agir na conduta do agente. A esse
respeito, é mister a leitura do voto-vista do Ministro Félix Fischer, no Recurso Especial 856.706
– AC.

A teor do artigo 5º, XLIII, da Constituição Federal a tortura é crime inafiançável


e insuscetível de graça ou anistia.

Trata-se de crime próprio em que o sujeito ativo é quem detém autoridade,


guarda ou poder sobre a vítima. O sujeito passivo é quem estiver sob essa relação que deve ser
de dependência, não necessariamente no exercício de uma função pública. Tem-se a lição de
José Ribeiro Borges(Tortura: aspectos históricos e jurídicos: o crime de tortura na legislação
brasileira – análise da lei nº 9.455/97, 2004, pág. 178) de que “é punição, penalidade,
provocação com objetivo de correção ou emenda. Não precisa ser lesivo à pessoa no sentido
de causar-lhe lesões, muito menos revestir-se de natureza cruel”. A medida de caráter
preventivo, como disse ainda João Ribeiro Borges, “não obstante o caráter vago do termo
pode ser entendida como expediente de que se valha para coibir a prática de ações
consideradas danosas sob o ponto de vista penal, ligando-se assim a ideia de prevenção
criminal”.

Consuma-se o crime de perigo quando a vítima é submetida ao intenso


sofrimento, podendo falar-se em tentativa.

Os crimes de lesões corporais leves, constrangimento ilegal e ameaça são


absorvidos pelo crime de tortura.
A teor do artigo 1º, § 5º, da Lei nº 9.455/97, a condenação acarretará a perda
do cargo, função ou emprego público e a interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da
pena aplicada. Pode-se entender, a teor do artigo 92, I, do Código Penal que os efeitos
extrapenais da condenação passada em julgado são específicos e não automáticos. Só se
aplicam a certas hipóteses de determinados crimes e dependem de a sentença condenatória
tê-los motivadamente declarado, de modo a deixar claras a necessidade e a adequação ao
condenado. No entanto, com relação ao crime de tortura, o Superior Tribunal de Justiça, do
que se lê do julgamento do HC 92.247 – DF, Relatora Ministra Laurita Vaz, ao contrário do
disposto no artigo 92, I, do Código Penal, que exige sejam externados os motivos para a
decretação da perda do cargo, função ou emprego público, a Lei nº 9.455/97, em seu artigo 1º,
§ 5º, prevê como efeito extrapenal automático e obrigatório da sentença condenatória, a
referida penalidade de perda de cargo, função ou emprego público. À propósito se tem o
entendimento de Fernando Capez(Curso de direito penal, Legislação penal especial, volume IV,
2006, pág. 676 e 677) quando disse que: “De acordo com o artigo 92 do Código Penal, são
efeitos da condenação a perda do cargo, função pública ou mandato eletivo nos crimes
praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública,
quando a pena aplicada for superior a 4 anos, qualquer que seja o crime praticado(redação
determinada pela Lei nº 9.268/96). Dependem de o juiz declará-los expressa e motivadamente
na sentença(CP, art. 92, parágrafo único). No entanto, para os crimes de tortura há o
regramento específico no art. 1º, § 5º, da Lei nº 9.455/97, o qual dispõe que ‘a condenação
acarretará a perda do cargo, função ou emprego e a interdição para seu exercício pelo prazo
do dobro da pena aplicada’. Dessa forma, trata-se de efeito extrapenal secundário genérico e
automático, o qual, ao contrário do art. 92 do CP, independerá de expressa motivação na
sentença. Haverá, assim, automaticamente, a perda do cargo, função ou emprego e a
interdição para o seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada. Vejam que a Lei nº
9.455/97 não impôs para a perda do cargo, função ou emprego público qualquer limite de
pena, diferentemente do art. 92 do CP”.

Ora, como consignado pelo Ministro Joaquim Barbosa, no julgamento do AI


769.637 AgR/MG, o crime de tortura é delito comum, sendo-lhe inaplicável o disposto no
artigo 125, § 4º, da Constituição, que determina que compete à Justiça Militar estadual
processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações
judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima
for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos
oficiais e da graduação das praças. Decidiu-se ainda que, no caso da Lei nº 9.455/97, “a sanção
de perda do cargo é acessória e automática”, como se lê do precedente no HC 92.181/MG,
Relator Ministro Joaquim Barbosa, julgamento de 3 de junho de 2008.

Outro aspecto a ser levado em conta diz respeito a aplicação do artigo 2º da


Lei nº 9.455/97, em que se lê: “O disposto nesta Lei aplica-se ainda quando o crime não tenha
sido cometido em território nacional, sendo a vítima brasileira ou encontrando-se o agente em
local sob jurisdição brasileira”. É sabido que o Código Penal acolhe como princípio geral o da
territorialidade, pelo qual a lei penal brasileira é aplicada em nosso território,
independentemente da nacionalidade do autor e da vítima do delito. Tal regra não é aplicada
de modo absoluto, pois são previstas exceções à partir das ressalvas do artigo 5º do Código
Penal. Por sua vez, o artigo 7º do Código Penal prevê casos especiais de extraterritorialidade,
pela aplicação de outros princípios, como os da defesa, da nacionalidade, da justiça universal e
da representação. O caso do artigo 2º da Lei nº 9.455/97 é emblemático. Sabido é que são
diversos os casos de tortura, que foram executados nos chamados “anos de chumbo”,
envolvendo mais de um País. Aplica-se a lei brasileira de tortura, ainda quando o crime não
tenha sido cometido em território nacional, sendo a vítima brasileira ou encontrando-se o
agente em local sob jurisdição brasileira. A primeira parte(crime de tortura praticado no
estrangeiro sendo a vítima brasileira) se refere a uma hipótese de extraterritorialidade
incondicionada(que não depende de requisitos), que se distancia da extraterritorialidade
condicionada(quando se subordina a certas condições ou pressupostos). Já a segunda
parte(crime de tortura praticado no estrangeiro encontrando-se o agente em local sob
jurisdição brasileira) é caso de extraterritorialidade condicionada, situação prevista em duas
Convenções sobre tortura: Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas crueis,
desumanos ou degradantes(artigo 12) e a Convenção interamericana para prevenir e punir a
tortura(artigo 5º), quando se condiciona que a lei será aplicada caso não haja extradição.

O crime de tortura está disciplinado no artigo 468 do Anteprojeto do Código


Penal.

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