Você está na página 1de 12

Sentidos e significados do corpo

ARTIGO DE REFLEXÃO / REFLEXION ARTICLE

Sentidos e significados do corpo: uma breve


contribuição ao tema
Senses and meanings of the body: a brief contribution to the theme

Resumo
Nara Sudo 1
Madel Therezinha Luz 2 O corpo é considerado objeto privilegiado das ciências biológi-
cas e das ciências humanas; nele estão expressas as conexões
1
Nutricionista, Professora do Curso de entre as ordens biológicas, sociais e culturais das sociedades oci-
Nutrição do Centro Universitário Metodista dentais ao longo do tempo. Assim, o presente estudo teve por
IPA. intento propor uma breve reflexão acerca desse objeto de análi-
2
Socióloga e Filósofa. Professora Titular
aposentada do Instituto de Medicina Social, se, dos sentidos e significados a ele atribuídos da Idade Média
da Universidade do Estado do Rio de até o século XX, através de revisão bibliográfica. Delimitamos
Janeiro. como eixos norteadores para o estudo algumas questões para
investigação, como identificar em que momento corpo e alma se
Correspondência / Correspondence separam, dando lugar a uma noção de corpo centrada na função
Nara Sudo de promoção social que pode trazer um retorno ao indivíduo
Av. Getúlio Vargas, 1196/605 – Menino que o tem; como surge a noção do corpo enquanto um “corpo-
Deus consumidor”, “corpo-aparência” para atender às normas vigen-
90150-004 – Porto Alegre, RS, Brasil
E-mail: narasudo@hotmail.com tes da atualidade, pautadas pelo saber da biomedicina, principal-
mente pelo paradigma clássico/moderno, biomecânico. Senti-
dos e significados acerca de um corpo socialmente aceito passa-
ram por variações históricas até chegarmos nesta situação de
que somos herdeiros. Deste modo, destaca-se nas análises uma
percepção hegemônica de corpo pautada acima de tudo por um
“ter saúde”, ou seja, belo, esbelto, ágil, magro e musculoso. As-
sim, corpos ou em última instância indivíduos que transgridem
essas regras legitimadas, sobretudo pelo discurso científico, são
classificados como doentes e desviantes na cultura ocidental.

Palavras-chave: Corpo Humano. História. Cultura. Saúde.

C ERES ; 2010; 5(2); 101-112 101


CERES : NUTRIÇÃO & SAÚDE

Abstract
The human body is considered a privileged object of biological
sciences and the humanities; it expresses the connections between
biological, social and cultural orders of Western societies over
time. Thus, this study aims to propose a brief reflection about
this object, of its meanings and senses from the Middle Ages to
the 20th century, through literature review. We defined as
guidelines for this study some researchissues such as identifying
at what point the body and soul are separated and give rise to a
notion of body focused on promoting social function that can
bring a return to the individual who owns it, as there is the notion
of body as a “body-consumer,” “body-appearance” to meet
cuurente standards, based onthe biomedical knowledge, especially
the classic / modern biomechanical paradigm. Senses and
meanings about a socially acceptable body have undergone
historical changes until we get in this situation that we inherited,
so this analysis highlights a hegemonic perception of body ruled
above all by “being healthy”, ie, to be beautiful , slender, agile,
lean and muscular. Thus, bodies or individuals that violate such
rules, especially by the scientific discourse, are classified as sick
and deviant in Western culture.

Key words: Human Body. History. Culture. Health

Introdução A partir de uma revisão bibliográfica,


buscamos construir uma breve reflexão –
Corpo é uma palavra polissêmica, cons- entendemos ser breve, por não pretender-
titui-se em objeto da história, das ciências mos esgotar aqui o tema – acerca do cor-
biológicas e humanas, privilegiado pela po ao longo da história, dos valores e sen-
possibilidade de se estudar as conexões tidos a ele atribuídos desde a Idade Média
entre as ordens biológicas, sociais e cultu- até o século XX.
rais. Para Sant’Anna (1995), o corpo é con-
O recorte de tempo foi definido por nos
siderado um resultado provisório das con-
permitir entender como se operam na
vergências entre técnica e sociedade, sen-
atualidade a construção social, os signifi-
timentos e objetos. Ele pertenceria menos
cados, sentidos e imagens acerca de uma
à natureza do que à história; nele estão
noção hegemônica de corpo que deve ser
registrados códigos e leis de cada cultura,
compreendida em um universo de signi-
soluções e interações entre os avanços cien-
ficações que se desenrolam no interior de
tíficos e tecnológicos.

102 C ERES ; 2010; 5(2); 101-112


Sentidos e significados do corpo

nossa cultura ocidental. Conforme salien- debate acerca deste objeto que é cada vez
ta Sahlins (1997), na cultura há modos de mais alvo de intervenções centradas em
ordenação do real que se manifestam atra- discursos científicos que expõem sujeitos
vés de valores e significados que escapam a técnicas e intervenções biomédicas em
às propriedades biológicas ou físicas, sen- nome do “ter saúde”.
do algo unicamente humano.
Em consequência, vê-se estabelecer um
As diversas transformações de que a si- cerco aos chamados corpos doentes que se
tuação da posição ocupada pelo corpo é sobressaem a este supostamente ideal,
herdeira foi um dos eixos norteadores para como ocorre, por exemplo, com o corpo
a revisão bibliográfica sobre o tema. Vale gordo, ou em última instância, com o ser
destacar que a construção de imagens que gordo (SUDO; LUZ, 2007).
realizamos do corpo não são estáticas e são
A estudante pré-vestibular Raissa Maria Ribeiro
influenciadas por representações e signi-
Dias, 19, preferia morrer a engordar.! “Por mim,
ficados que se alteram no processo histó-
tudo bem se morresse, desde que parecesse a Barbie
rico-social (MAIA, 2009).
no caixão”.1
Neste sentido, buscou-se privilegiar
também algumas questões para a investi- Sentidos e significados do corpo
gação, como identificar em que momento
corpo e alma se separam, dando lugar a Se no início o corpo era uma imagem
uma noção de corpo centrada na função divina, templo a ser reverenciado, ao
de promoção social que pode trazer um agredir o corpo o indivíduo estava na
retorno ao indivíduo que o tem; como verdade agredindo a Deus em sua obra
surge historicamente a noção do corpo maior. Com a revolução iluminista, tor-
enquanto um “corpo-consumidor”, corpo- nou-se vigente a postura científica e me-
aparência, no qual este deve expressar, tódica que pressupõe a desmontagem do
acima de tudo, saúde, para atender às nor- corpo em partes, para a compreensão do
mas vigentes da sociedade contemporânea todo (COLI, 2003).
pautadas pelo saber da biomedicina, prin-
Na Idade Média, corpo e alma não eram
cipalmente pelo paradigma clássico/mo-
dissociados, pois não tinham sentido se
derno e biomecânico.
pensados de maneira individual. Este exis-
Para a revisão bibliográfica, foram con- tia dentro de um corpo social, expansivo
sultados livros e periódicos sobre o tema. e aberto “aos sentidos próprios e alheios”
Com isso pretendemos contribuir para um (RODRIGUES, 2001). Nesse período, a

1
“Jovem queria ser a Barbie, mesmo no caixão”. Folhaonline. 19/11/2006. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/
folha/cotidiano/ult95u128392.shtml

C ERES ; 2010; 5(2); 101-112 103


CERES : NUTRIÇÃO & SAÚDE

representação do corpo não se detinha como o “proprietário da natureza”, carac-


propriamente na realidade deste, mas na terizando-se em um antropocentrismo prá-
sua acomodação dentro de proporções fi- tico e colonizador (ibid.).
gurativas e simbólicas.
Corpo, tempo, espaço e natureza são
O corpo era portador da alegoria do dessacralizados, convertidos em coisa hu-
Divino e caminho para seu conhecimento mana. Passa-se a ter uma nova visão do
servia para conduzir o homem da ordem homem sobre si mesmo e sobre a nature-
terrena para a ordem celeste. Era impreg- za que o cerca. Os velhos hábitos do pen-
nado pela visão teocêntrica; os gestos e samento medieval são destituídos de sen-
movimentos dos corpos expressavam as tidos, dando lugar a novas interpretações
afecções da alma. Havia uma concepção do corpo, com o avanço de dados empí-
hierárquica do Universo, que deixou de ricos obtidos pela ciência, como a anato-
ocupar um lugar central com o advento mia e as teorias científicas. É nesse con-
da ciência (BRANDÃO, 2003). texto que ocorre uma mudança da con-
cepção de corpo na medicina (BRAN-
Na Europa do século XVI, a relação
DÃO, 2003). Este é transformado em um
do indivíduo com o corpo foi caracteriza-
da por um certo puritanismo e vergonha artefato, uma máquina cuja compreensão
em relação a sua aparência e sexualidade. e funcionamento passam a ser explicados
O corpo era mais roliço, de ancas largas e também pelos processos mecânicos, físi-
seios grandes, opondo-se ao ideal femini- cos e químicos, totalmente objetivos, não
no da época medieval, caracterizado por mais dependendo do movimento do Cos-
um corpo estreito de ancas e de seios pe- mos, e destituído de uma identidade pró-
quenos (GRIECO, 1991). pria. Com a prática da anatomia e das
teorias científicas, o corpo dissecado tor-
É também no século XVI que se cons- na-se objeto de intensas experiências. Ele
titui a racionalidade científica moderna, deixa de ser habitado por uma alma divi-
contemporânea do Renascimento, época na, para ser substituído pela natureza,
descrita por Luz (1988) como um período objeto da medicina moderna no Renasci-
de modificação de costumes e de ideias, e mento (ibid.).
de momentos inaugurais, seja na criação
filosófica, científica ou tecnológica, que se Em relação à constituição física, durante
irradiam para todo o Velho Mundo. Há os séculos XVI e XVII, a gordura, enquanto
uma ruptura entre “ordem humana” e alimento e constituinte do corpo, era perce-
“ordem natural”. Separam-se Deus, ho- bida como algo saudável, símbolo de fartura,
mem e natureza. Ao homem cabe o direi- uma característica atribuída aos ricos, enquan-
to a se apropriar do espólio do “reino na- to a magreza, ao contrário, era um sinal de
tural”, legado da Idade Média. Com o an- falta de saúde, de pouca beleza e principal-
tropocentrismo, o homem é encarado mente sinal de pobreza (GRIECO, 1991).

104 C ERES ; 2010; 5(2); 101-112


Sentidos e significados do corpo

No século XVIII, a visão de máquina e apenas um corpo destituído de alma, dis-


o entendimento de seus mecanismos in- posto para a ciência ou para a arte. É ain-
ternos conquistam uma complexidade até da na passagem destes dois séculos que a
então desconhecidas. O corpo deve ser antropometria tem sua origem, como nos
educado fisicamente, já que não é mais lembram Urla e Swedlund (2000). Esta se
considerado dependente dos deuses ou das legitima enquanto uma técnica da ciência
forças externas. Com a ascensão da bur- que se ocupa com as medidas dos corpos,
guesia europeia, há uma alteração das con- pretendendo medir, comparar e interpre-
cepções de saúde e aparência física, segun- tar a variabilidade em diferentes partes do
do as quais fibras musculares moles e frá- corpo humano, como a craniometria e a
geis passaram a ser interpretadas como falta anatomia comparada. A antropometria
de rigidez do caráter. “Agora, a educação considerava o corpo como um espelho de
dos futuros cidadãos deve passar, automa- características morais, raciais e sexuais.
ticamente, pela educação de seus corpos,
O que se pretendia, através de méto-
em particular, a dirigida aos movimentos
dos que elaborassem a medida de um cor-
musculares” (SANT’ ANNA, 2001, p. 107).
po tomado como padrão, a partir de da-
Como nos conta a autora, para se mol- dos coletados com as técnicas elaboradas
dar o corpo, atribuindo-lhe a postura reta por áreas como a antropologia física, ana-
que passa a ser tão desejada no final do tomistas e médicos, era estabelecer medi-
século XVIII, novas pedagogias escolares das para todo o corpo que possibilitariam
foram utilizadas. Espartilhos e instrumen- uma comparação sistemática entre as dife-
tos ortopédicos que faziam uma pressão no rentes raças, nacionalidades e sexos. À
corpo, e que durante o século XVII fo- antropometria era creditado o poder de
ram valorizados, são encarados como obs- determinar cientificamente as diferenças
táculos aos movimentos sadios dos corpos, entre o normal e o desviante.
não há mais um corpo passivo. A ginásti-
Nota-se que, de todas as tentativas de
ca agora é capaz de educar suas posturas e
padronização do corpo médio, nenhuma
seus gestos, educando o corpo e a alma. É
foi tão bem-sucedida como as tabelas de
também naquela época que ocorre uma
peso e estatura, desenvolvidas nos Estados
mudança do padrão de estética física, pa-
Unidos, para os exames médicos de segu-
ralelamente a uma mudança nos hábitos
ro-saúde. Empresas como a Metropolitan Life,
alimentares.
baseadas em dados coletados com pessoas
Na transição do século XVIII para o de faculdades, do exército e das prisões,
XIX, surge uma nova configuração do estabeleceram medidas consideradas pa-
humano. O olhar do homem sobre o ho- drão para a relação entre a estatura de um
mem não é mais sobre si, mas sobre um indivíduo e o peso “ideal” que ele deveria
objeto de si. O seu corpo se evidencia, é ter (URLA; SWEDLUND, 2000).

C ERES ; 2010; 5(2); 101-112 105


CERES : NUTRIÇÃO & SAÚDE

Em 1835, Quetelet desenvolve uma ta- No século XIX, com as revoluções in-
bela científica denominada Índice de Massa dustriais, os corpos foram submetidos a
Corporal (IMC) 2 ou Índice de Quetelet, um ritmo uniforme; aprendemos a con-
sendo apontado como um dos pioneiros trolar o ritmo do corpo: sono, fome, ca-
da formulação das tabelas de referência. rências afetivas e sexuais estão submetidas
O conceito de “homem médio” instaura- às conveniências do tempo social. Não há
se como avaliação científica da população mais lugar para a contemplação, sendo
(BRAY, 1997). E até hoje, o IMC é utiliza- necessário otimizar os momentos vazios,
do para estabelecer cientificamente se um transformá-los em trabalho ou em consu-
indivíduo está com excesso de peso ou não mos de lazer. Baniu-se da vida o vazio tão
– ou seja, se está dentro dos padrões ado- essencial para as experiências criativas ou
tados pelas biociências como saudável. Com para se conhecer o prazer de estar só
isso, o IMC passa a ser um indicador an- (COLI, 2003).
tropométrico comumente usado em pes-
Se, no século XVIII, a degenerescên-
quisas científicas na área da saúde, por ser
cia era vinculada aos climas, às estações
considerado um indicador de adiposida-
do ano, aos códigos de honra no século
de corporal que permite associar a possí-
XIX, ela é associada às experiências con-
vel presença de riscos de doenças em um
sideradas ociosas, com o vício e a fra-
indivíduo, como as chamadas complica-
queza das vontades, estando ligada a re-
ções metabólicas, (VASQUES et al., 2010).
ceios econômicos e políticos, relaciona-
Portanto, o que começou como um guia dos à necessidade de disciplina dos tra-
de medidas estatísticas, logo se transfor- balhadores e do lucro industrial, inte-
mou em uma tabela para determinar o grando uma cruzada higienista, segun-
peso ideal de cada sujeito. O corpo “nor- do a qual a degenerescência racial deve-
mal”, salientam Urla e Swedlund (2000), ria ser extirpada.
foi definido pela antropometria como um
Sant’Anna (2001) nos permite conhe-
tipo ideal de corpo com um caráter de
cer que, no século XVIII, a educação físi-
opressão, trazendo um “poder normaliza-
ca enquanto saber disciplinador já funcio-
dor”, determinando e enquadrando como
nava como um meio capaz de promover a
as pessoas devem perceber os seus corpos.
educação moral e a ordem social, porém
E, assim, ainda hoje os bebês são medi-
foi só a partir do século XIX que esta se
dos, pesados e comparados com um pa-
constituiu enquanto um poder legitima-
drão desde que nascem.
dor de intervenção sobre os corpos. A gi-

2
Para o cálculo do Índice de Massa Corporal – IMC, divide-se o peso em quilogramas pela estatura em metros
quadrados. O IMC é um indicador utilizado sobretudo quando o objetivo é avaliar o estado nutricional do
indivíduo.

106 C ERES ; 2010; 5(2); 101-112


Sentidos e significados do corpo

nástica, 3 durante este período, se afirma Apesar de seus métodos ainda estarem
como modelo técnico do corpo, por ensi- fortemente relacionados a vínculos mili-
nar-lhe as técnicas de rigidez de posturas. tares, “estará cada vez mais próxima de
De acordo com a autora, a ginástica, ao cientistas, médicos higienistas e laborató-
ser incorporada pelo saber científico e rios de pesquisa. Seu caráter higiênico
pragmático do século XIX, transformou- larga-se e imprime-se, então, uma outra
se em um meio de se combater a degene- estética, a estética da retidão” (SOARES,
rescência, já que proporcionava uma eco- 2001, p. 58).
nomia energética, tornando-se uma forma
O modo correto de executar o movi-
de educação e adequação dos movimentos
mento humano – na vida cotidiana ou em
dos indivíduos.
situações como nas ginásticas, jogos etc.,
As morfologias julgadas fracas, indiscipli- explicado pela ciência experimental, é
nadas e desviantes deviam ser corrigidas, atra- agregado à constituição de formas de po-
vés dos exercícios, tema central para higie- der que incidem sobre o corpo e seus ges-
nistas e eugenistas. “A eugenia aparece como tos, que deveriam ser contidos, estando
instância legitimadora de práticas sociais, em jogo os sentidos de quem o executa e
empenhando-se em classificar como normais de quem observa a gestualidade. Entram
ou desviantes, relativamente à beleza, certas em cena maneiras científicas e técnicas
categorias sociais” (DEPPE, 2001, p. 19). dirigidas à educação dos corpos; estes de-
vem ser civilizados, úteis e higiênicos
Soares (2001) nos mostra que, a partir
(ibid.). É nesta época que surgem a associ-
da divulgação da obra “Nouveau Manuel
ação entre doença, boa educação, boa hi-
d´education Physique, Gymnastique et
giene e educação física que duram até os
morale”, de Amoros, em 1838, uma pai-
dias atuais.
xão pela cultura do corpo é criada e se
consolida enquanto um critério de apren- “A musculação pode ser tida como uma
dizagem coletiva de exercício, onde a ima- das melhores opções em todos os aspec-
gem se impõe como parte das explicações tos, desde prevenção de patologias, ganho
e dos discursos sobre o movimento huma- de massa muscular, tratamento de enfer-
no, que passa a ser também objeto do co- midades, e, claro, redução da gordura
nhecimento científico. corporal, explica Paulo Gentil”. 4

3
Esta teve sua origem no universo circense. No século XIII, por exemplo, o acrobata tinha no seu corpo e gestos
o espetáculo, e via sua profissão ser classificada como ilícita, de característica inútil em que a utilidade da força
física não indicava o uso das ações requeridas pelo poder científico da época (SOARES, 2001).
4
“Ganhar massa muscular não é só aumentar volume dos músculos”. Uol Ciência e Saúde, em 29/9/2010, Acesso em
02/10/2010. Disponível em: http://noticias.uol.com.br/ultnot/cienciaesaude/ultimas-noticias/2010/09/29/ganhar-
massa-muscular-nao-e-so-aumentar-volume-dos-musculos.jhtm

C ERES ; 2010; 5(2); 101-112 107


CERES : NUTRIÇÃO & SAÚDE

Se na Idade Média cristã, o manto da no. Saem as cintas e corpetes, entram em


castidade devia cobrir as vergonhas, na cena calcinhas e sutiãs. As roupas encur-
corte dos séculos XVII e XVIII, os artifí- tam-se, as pernas são valorizadas pelas
cios como perucas, jóias etc. eram sinais meias e o uso de tecidos mais macios pos-
de aristocracia e riqueza, devendo ser ex- sibilitava entrever, de maneira discreta, as
postos. O século XIX trouxe uma nova linhas do corpo (VINCENT, 1987).
veste burguesa, com a “estetização artifici-
A entrada da fotografia será determi-
al” que deveria recair no corpo dos indi-
nante para a consolidação da estética do
víduos (TUCHERMAN, 1999). corpo, que até então estava restrita à pin-
A utopia do corpo, em que a perfeição tura e à escultura. Vemos surgir e tomar
se perfila no horizonte como meta, ocorre força, em relação ao corpo masculino, o
entre os séculos XIX e XX. A ciência é o body building. Este termo é usado para de-
instrumento por excelência para atingi-la. signar a construção da massa muscular
A busca pela perfeição corpórea, não desligada da ideia de força e de saúde, atra-
como projeto de harmonia mas como ple- vés do uso de pesos e exercícios com má-
nitude do ser, incide sobre a crítica da quinas. A ideia é de uma construção da
própria ideia de perfeição. Ela contém em “perfectibilidade” ligada à noção de uma
si um caráter exclusivo, tirânico e em evi- construção do corpo – o body building
dência que bastaria a si própria. Seria o (GÓES, 1999).
projeto de utopia nazista, no qual iria im- Na década de 40, a perfeição corporal
perar a eliminação do imperfeito pelo per- se alastrou com a instituição do concurso
feito (COLI, 2003). “Mister America” e a partir daí se espalhou
No começo do século XX, o estatuto do para o mundo. Nos finais da década de
corpo continuava a depender do meio so- 60, surgiu o concurso Mr. Olympia, com
cial. Os trabalhadores valorizavam a força repercussões nos heróis de cinema, filmes
física, o vigor e a resistência. A burguesia épicos de gladiadores foram os maiores
mantinha uma atitude mais estética, por- exemplos. Vê-se tomar forma o herói –
tanto, a aparência física tinha uma repre- ausente na vida real, passa a existir no pla-
sentação social importante, porém não se no virtual (ibid.).
mostrava o corpo. No entreguerra (1918- Para Góes, somente uma cultura per-
1938), o início da exposição do corpo re- meada pela disciplina e o prazer ao mes-
presenta para a burguesia uma época de mo tempo, sendo pautada pelo individua-
liberação do corpo onde é travada uma lismo, narcisismo, pela sociedade de con-
outra relação entre o físico e o vestuário. sumo, por uma busca de prazer ilimitado
Não há mais lugar para roupas que escon- e visando a uma promoção social e suces-
dam os corpos. A mudança é ainda mais so a todo custo, substituindo valores mo-
enfatizada em relação ao vestuário femini- rais tradicionais de outrora, fez surgir

108 C ERES ; 2010; 5(2); 101-112


Sentidos e significados do corpo

como uma de suas expressões mais con- como uma mudança na base ética da bele-
tundentes, o body building. za, agora qualquer um pode ser belo, é a
ligação cada vez maior entre autoestima e
Para o autor, essa hipervalorização da
aparência. É nesse contexto que a cirurgia
construção corporal, seja pela musculação,
plástica alcança cada vez mais aceitação, a
por intervenções de cirurgias estéticas, pela
identidade estaria expressa no corpo físi-
cosmetologia, dietas e práticas de exercí-
co.
cios, faz surgir a ideia de que o corpo ago-
ra é factível de intervenções sem limites. Segundo o presidente da Sociedade
A busca tão presente nas sociedades oci- Brasileira de Cirurgia Plástica, Sebastião
dentais por uma imagem exterior ideal fez Nelson Edy Guerra, as técnicas de próte-
surgir a noção de que o corpo agora é ses de glúteo estão consolidadas e permi-
“maleável”, que pode expressar uma ideia tem a obtenção de nádegas muito bonitas,
de perfeição, negando “a particularidade embora o pós-operatório não seja um dos
do corpo de cada um”. mais simples. 5

As brasileiras cada vez mais pagam para Agora, a aparência física passa a depen-
ter seios e nádegas maiores, além de cin- der integralmente do corpo, sendo neces-
sário um cuidado específico em relação a
turas e quadris esculpidos pela lipo, na
ela. A dietética começa a despontar como
busca do que consideram o corpo (curvi-
um elemento-chave para se obter ou man-
línio) perfeito. 5
ter a forma desejada. Muitos alimentos fo-
No período após a Segunda Guerra ram abolidos dos cardápios por estarem
Mundial, livre das influências de médicos, associados não mais ao prazer ou à boa mesa,
moralistas e de reformadores públicos, a mais aos males de saúde e da forma física.
beleza alcança um status de autonomia. Ao açúcar ficam atribuídas a obesidade,
Nessa época, a cultura americana começa a diabete, a hipertensão, doenças cardiovas-
a exercer influência crescente entre os bra- culares, cáries. Em contraposição, as car-
sileiros, em parte mediada pelos filmes nes grelhadas, saladas, legumes, frutas fres-
norte-americanos e das revistas, com suas cas e laticínios eram vivamente recomen-
estrelas e suas receitas de beleza. dados Os produtos dietéticos representam
Com os novos profissionais de beleza, o principal aliado nesse esforço para a ma-
houve uma ênfase no discurso de uma nutenção de uma forma física esguia e sem
aquisição da beleza, agora, ao alcance de barriga. Era necessário estar atendo aos si-
todos. É o que Edmonds (2003) considera nais do corpo. Para o homem, ter barriga

5
“Pela cirurgia plástica brasileiras buscam seios e nádegas maiores”. Jornal O Globo, 15/08/2010. Disponível em
http://oglobo.globo.com/vivermelhor/mulher/mat/2010/08/15/pela-cirurgia-plastica-brasileiras-buscam-seiosna-
degas-maiores-917398162.asp

C ERES ; 2010; 5(2); 101-112 109


CERES : NUTRIÇÃO & SAÚDE

há muito já não era mais encarado como presença da moda representando, em re-
um sinal de respeitabilidade, e sim uma lação às mulheres, papel definitivo na for-
mostra visível de desleixo, uma ameaça: ser mulação de uma imagem ideal de corpo,
obeso era um pavor (VINCENT, 1987). que foram divulgadas amplamente pela
mídia, desde o início desse período (PE-
Com base nessa visão, é o fator comer-
REGRINO, 1991).
cial, mais do que o higienista, o responsá-
vel pela divulgação de novos hábitos do A preocupação em se trabalhar o cor-
corpo. Na metade da década de 60, os há- po associada a uma inquietação crescente
bitos como “asseio, dietética e a cultura com a saúde, o bem-estar e a beleza físi-
física” generalizam-se. Deve-se manter a ca, atinge zonas até então inimagináveis:
beleza e a juventude a qualquer preço. as do supostamente reprimido. A partir
Sendo assim, a indústria de cosméticos dos anos 60, o corpo se torna uma espé-
ocupa também um lugar de destaque, cie de melhor parte do indivíduo, a mar-
principalmente por ter a seu lado o apa- ca principal de sua subjetividade
rente rigor científico ao “feitiço” da pro- (SANT’ANNA, 2001).
paganda. A velhice deixa de ser uma vir-
Devem-se vencer as tentações em nome
tude, dentro de um contexto onde a nor-
de possuir um corpo saudável, conforme
ma social dita a aparência esperada: a jo-
demonstraram Sudo e Luz (2007). E, para
vem – numa comunhão entre personali-
isso, são evocados o discurso da ciência e
dade e corpo e ser, o que é se confunde
o saber da biomedicina, e sua legitimação,
com o permanecer (PROST, 1987).
para impor ao indivíduo um corpo tido
Especialmente entre as mulheres, a como saudável e natural e, para aqueles
magreza torna-se um ideal que passa a ser que escapam a tal ordem, resta uma esco-
representado e glorificado como um sinal lha permeada pela culpa.
externo de sucesso. As mulheres, em todo
Entramos no século XXI, com as re-
o mundo ocidental, passam a ter obsessão
miniscências do século passado, em que o
por uma imagem corporal esbelta.
corpo esbelto é entendido e veiculado
O corpo é estereotipado associado a como o padrão de corpo ideal, por expres-
uma imagem de beleza; um valor ineren- sar saúde – é o “século da saúde”.
te ao feminino; magra, branca e de classe
Presenciamos, na cultura ocidental,
média. Em contrapartida, corpos gordos,
uma noção hegemônica que ainda circun-
de cor e pretos se transformam em estereó-
da o objeto corpo pautada pela existência
tipos negativos a serem evitados (HIGON-
do paradigma clássico/moderno, biomecâ-
NET, 1991).
nico que confere valor à ciência e à bio-
Outro fator que deve ser apontado para medicina com suas “concepções hegemô-
a construção do chamado corpo ideal é a nicas dos saberes fragmentários e espe-

110 C ERES ; 2010; 5(2); 101-112


Sentidos e significados do corpo

cializados das disciplinas que operam com latura”, é um “corpo mercadoria”, um


a cisão natureza/cultura, objeto e sujeito, “corpo-aparência”, um “corpo-ferramen-
mente e corpo. Orienta a racionalidade ta”, um “corpo-consumidor”, um corpo
médica calcada na contraposição de nor- com função de promoção social que pode
malidade e patologia...” (CARVALHO; trazer um retorno, um corpo que acima
LUZ, 2009, p. 317). de tudo deve expressar o “ter saúde” (RO-
DRIGUES, 2001).
Considerações finais Portanto, a ideia de oposição entre
norma e desvio, aqui expressa entre nor-
Como salientou Luz (2003), vivemos na
malidade e patologia legitimadas pelas
cultura ocidental uma construção do real
técnicas e por descobertas das biociênci-
pautada por leis de uma economia capita-
as, ainda pauta os sentidos atribuídos ao
lista globalizada com uma valorização cres-
corpo, seus valores e significados. Seria
cente do individualismo, consumismo e a
preciso ter um corpo construído social-
busca desenfreada pelo imediato.
mente; um corpo esbelto, magro, com
Com isso, reflexos são percebidos nos curvas, com músculos em evidência, se-
valores atribuídos ao corpo; este deve ser ria uma luta simbólica contra um estig-
ágil, belo, jovem, magro, com o músculo ma imposto aqueles que não se enqua-
em evidência. O corpo é agora pautado dram nas leis vigentes na sociedade con-
no individualismo, “contido pela muscu- temporânea.

Referências
BRANDÃO, Carlos Antônio Leite. O Corpo do ciência manipula o corpo. São Paulo: Companhia
renascimento. In: NOVAES, Adauto (org.). O das letras, 2003. 396 p. 299-315.
Homem-máquina: a ciência manipula o corpo. São
DEPPE, Lara Cristina Lourenço. A (efi)ciência da
Paulo: Companhia das letras, 2003. 392 p. 275-297.
beleza: análise da presença do discurso científico na
BRAY, George A. Historical framework for the revista Nova. 115 f. Dissertação (Mestrado em Saúde
development of ideas about obesity. In: BRAY, Coletiva) - Instituto de Medicina Social,
George A.; BOUCHARD, Claude (orgs.). Handbook Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ,
of obesity. New York: Marcel Dekker, 1997. 700 p. 1- Rio de Janeiro, 2001.
29.
EDMONDS, Alexander. No universo da beleza:
CARVALHO, Maria Cláudia da Veiga Soares; LUZ, notas de campo sobre a cirurgia plástica no Rio de
Madel Therezinha. Práticas de saúde, sentidos e Janeiro. In: GOLDENBERG, Mirian. (Org.). Nu
significados construídos: instrumentos teóricos para & Vestido: dez antropólogos revelam a cultura do
sua interpretação. Rev. Interface., v. 13, n. 29, p. 313- corpo carioca. Rio de Janeiro: Record, 2002. 416 p.
326. Abr/jun, 2009. 189-261.
COLI, Jorge. O sonho de Frankenstein. In: GÓES, Fred. Do body building ao body
NOVAES, Adauto (Org.). O Homem-máquina: a modification - paraíso ou perdição? In: VILLAÇA,

C ERES ; 2010; 5(2); 101-112 111


CERES : NUTRIÇÃO & SAÚDE

Nisia; GÓES, Fred.; KASOVSKI, Ester. (Org.). Que RUBIO, Katia. (Org.). Educação física e ciências
corpo é esse? Novas perspectivas. Rio de Janeiro: humanas. São Paulo: Hucitec, 2001. 170 p. 105-114
Mauad, 1999. p. 33-41.
______.Cuidados de si e embelezameno feminino:
GRIECO, S. F. M. O Corpo, aparência e sexualidade. fragmentos para uma história do corpo no Brasil. In:
In: DUBY, Georges; FARGE, Arlette; DAVIS SANT´ANNA, Denise Bernuzzi (Org.). Políticas do corpo.
Natalie Zemon (Org.). História das mulheres, v.3: do São Paulo: Estação Liberdade, 1995. 192 p. 121-140.
renascimento à Idade Moderna. São Paulo:
SOARES, Carmem Lúcia. Imagens da retidão: a
Afrontamento, 1991. 610 p. 71-120.
ginástica e a educação do corpo. In: CARVALHO, Yara
HIGONNET, Anne. Mulheres, imagens e Maria de; RUBIO, Katia. (Org.). Educação física e ciências
representações. In: DUBY, Georges; PERROT, humanas. São Paulo: Hucitec, 2001. 170 p. 53-74.
Michelle; THEBAUD, Françoise (Org.). História das
SUDO, Nara; LUZ, Madel Therezinha. O gordo
mulher es, v.5: o século XX. São Paulo:
em pauta: representações do ser gordo em revistas
Afrontamento, 1991. 700 p. 403-434.
semanais. Rev. C. S. Col., v. 12, n. 4, p. 1033-1040.
LUZ, Madel Therezinha. Natural Racional Social. Rio jul/ago, 2007.
de Janeiro: UFRJ, 1988. 152 p.
URLA, Jacqueline; SWEDLUND, Alan. C. The
______. Novos saberes e práticas em saúde coletiva: anthropometry of barbie: unsetting ideals of the
estudos sobre racionalidades médicas e atividades feminine body in popular culture. In:
corporais. São Paulo: Hucitec, 2003. 174 p. SCHIEBINGER, Londa (Org.). Feminism & the body.
MAIA, Ana Cláudia Bortolozzi. A importância das New York: Oxford University Press, 2000. p. 397-428.
relações familiares para a sexualidade e a autoestima de TUCHERMAN, Ieda. de. A construção dos
pessoas com deficiência física. 2009. 10 p. Disponível monstros e as raças fabulosas. In: VILLAÇA, Nisia;
em: http://www.psicologia.com.pt/artigos/ GÓES, Fred.; KASOVSKI, E. (Org.). Que corpo é
textos/A0515.pdf Acesso em: 29 set.2010. esse? Novas perspectivas. Rio de Janeiro: Mauad,
PEREGRINO, Nadja. O Cruzeiro: a revolução da 1999. p. 146-158.
fotorreportagem. Rio de Janeiro: Dazibao, 1991. 109 p. VASQUES, Ana Carolina Junqueria; PRIORE,
PROST, Antoine. Fronteiras e espaços do privado. Sílvia Eloiza; ROSADO, Frandsen Paez de
In: DUBY, Georges; ARIES, Philppe (Org.). História Lima; FRANCESCHINI, Sylvia do Carmo
da vida privada, v. 5: da 1ª guerra a nossos dias. São Castro. Utilização de medidas antropométricas
Paulo: Companhia das letras, 1987. 656 p. 13-154. para a avaliação do acúmulo de gordura visceral.
Rev. Nutr., v. 23, n. 1, p. 107-118. jan-fev, 2010.
RODRIGUES, José Carlos. O corpo na história. Rio
VAZ, Paulo. Corpo e risco. In VILLAÇA, N.;
de Janeiro: Fiocruz, 2001. 197 p.
GÓES, Fred.; KASOVSKI, Ester. (Org.). Que corpo
SAHLINS, Marshall. O “pessimismo sentimental” é esse? Novas perspectivas. Rio de Janeiro: Mauad,
e a experiência etnográfica: por que a cultura não é 1999. p. 159-175.
um “objeto” em via de extinção (parte I). Rev. Mana,
VINCENT, Gérard. Uma história do segredo? In:
v. 3, n. 1. p. 41 – 73. 1997.
DUBY, Georges; ARIES, Philppe (orgs.). História da
SANT´ANNA, Denise Bernuzzi. Educação física e vida privada, v. 5: da 1ª guerra a nossos dias. São Paulo:
história. In: CARVALHO, Yara Maria de. de; Companhia das Letras, 1987. 656 p. 155-390.

Recebido em: 04/10/2010


Aprovado em: 13/11/2010

112 C ERES ; 2010; 5(2); 101-112

Você também pode gostar