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INTRODUÇÃO
FLUÊNCIA/DISFLUÊNCIA E A GAGUEIRA
A fluência, a qual é - segundo Hedge - usualmente definida pela sua negativa (apud
SCARPA, 2014) e como o oposto da disfluência, é sempre exaltada pela sua fluidez e suposta
falta de marcas. A fluência é tida como o ideal, o objetivo a ser atingido por todos os falantes
da língua e, principalmente, por aqueles com distúrbios de linguagem. Essa ideia acerca do
que é a fluência é prejudicial não só para sujeitos com distúrbios específicos de linguagem,
mas também para aqueles ditos fluentes que tendem a se cobrar por uma execução “perfeita”
da fala, o que além de ser impraticável, exclui o caráter espontâneo e automático da fala
fluente. Uma fala verdadeiramente fluente é aquela marcada não por sua falta de disfluências,
mas sim a que é focada no sentido e não na forma das palavras (Friedman, 2004). As
disfluências permitem maior fluidez para um texto (SCARPA, 2014), as hesitações e as
auto-correções são necessárias para uma melhor compreensão do que está sendo dito. Nas
palavras de Friedman (2015), fluência é a habilidade para manter o fluxo contínuo da fala,
sendo que algumas quebras e interrupções do discurso também são constituintes da fluência.
Com isso, é possível inferir que a disfluência e a fluência são faces da mesma moeda
(SCARPA, 2014) e que a disfluência, independentemente de como se manifesta (hesitação,
revisão, interjeição, repetição de segmentos), ou de sua duração, é parte integrante da
fluência (FRIEDMAN, 2015). Nesse sentido, é errôneo afirmar que a gagueira é uma
condição semelhante à disfluência. Os momentos da fala, durante a aquisição da linguagem
oral, em que as crianças apresentam disfluências partem de um processo natural, no qual os
sujeitos estão se apropriando da linguagem. Em contrapartida, a gagueira pode se manifestar
justamente a partir da má interpretação dessas disfluências por parte das figuras parentais ou
de autoridade presentes na vida dessa criança. Ou seja, ao ser rotulada como “gaga” e ser
constantemente julgada devido à sua fala, a qual não se encontra de acordo com o que esses
adultos acreditam ser o correto, a criança internaliza que é uma má falante e pode manifestar
a gagueira.
Segundo Pereira (apud Góes, 2012), as crianças ajustam seus recursos interativos de
acordo com o interlocutor a quem estão se referindo. Dessa forma, pode-se afirmar que ao ser
julgada pela sua fala disfluente em seu processo de aquisição da linguagem e repreendida
pela sua “gagueira”, a criança pode desenvolver o distúrbio de fato e passar a criar estratégias
para combatê-lo e evitar possíveis comentários negativos acerca de sua fala gaguejante. Para
Van Riper,
as estratégias são fruto de experiências passadas, que embora sejam
dirigidas para evitar a gagueira, continuam a gerá-la, referindo que os
problemas emocionais existentes são decorrências bastante justificáveis
diante das circunstâncias que envolvem a manifestação.
(FRIEDMAN, 1986 apud VAN RIPER, 1973 p. 12)
Em outras palavras, a criança, a qual passa a focar na forma do que está sendo dito e não no
sentido de suas palavras, a fim de evitar a gagueira, acaba entrando num ciclo vicioso, no
qual em sua busca por estratégias que atenuem seu distúrbio de fala, acaba por manifestá-lo
com mais intensidade. Segundo Friedman (1986, p. 126), a base desta lógica de buscar
técnicas para regular a própria fala “é a união paradoxal das ideias “devo falar bem” - “sou
mau falante”; ou “não devo gaguejar” - “sou gago”.”. Isso pode ser exemplificado pelos
dados encontrados por Dehqan et al. (2008) em seu estudo sobre a relação entre a gravidade
da gagueira das crianças e a velocidade de fala das suas mães. Foi observado por eles que
quanto mais as crianças gaguejavam, mais aceleradas e nervosas suas mães ficavam, o que
fazia com que elas aumentassem a velocidade de suas falas, causando discursos ainda mais
gaguejantes e lentos por parte de seus filhos. Dessa forma, fica claro que a figura parental e
como ela reage, em um primeiro momento, às disfluências e, posteriormente, à gagueira,
influenciam a fala do sujeito que gagueja.
METODOLOGIA
A pesquisa é de caráter qualitativo, tendo em vista que o propósito dela é a análise das
estratégias utilizadas por sujeitos com gagueira; e o estudo, transversal, pois não foi feita uma
análise contínua do processo fonoaudiológico dos sujeitos dos vídeos utilizados. A seleção do
corpus documental foi feita através do Google Acadêmico, do Scielo e de sites que tratam
especificamente do tema, como o portal do Instituto Brasileiro da Fluência e o site “Gagueira
e Subjetividade”. A coleta dos dados foi realizada no Youtube e os critérios utilizados para a
seleção desse material foram os seguintes: vídeos curtos para que a análise não se tornasse
exaustiva; vídeos em que os sujeitos estivessem sendo entrevistados por algum profissional,
pois essas produções exigem que as pessoas ou seus responsáveis autorizem a gravação e
divulgação - essa foi a forma considerada mais ética para fazer essa coleta; vídeos em que os
sujeitos encontravam-se em situações comunicacionais diferentes, para que pudessem ser
apresentadas as divergências entre cada um dos discursos e, por último, a busca estava
centrada em vídeos em que as pessoas utilizavam estratégias para a atenuação da gagueira de
forma explícita para que ficasse mais claro para quem lesse as transcrições em que momentos
essas técnicas foram utilizadas. As transcrições dessas produções vocais e das reações e ações
produzidas por esses sujeitos foram feitas com a utilização de critérios estabelecidos por mim
a partir da utilização de ferramentas disponíveis no meio digital. Além disso, essas passagens
foram analisadas com o suporte das abordagens teóricas utilizadas neste trabalho: o modelo
dialético-histórico e a Análise do Discurso.
Nesta seção do trabalho, analisarei as estratégias utilizadas por dois sujeitos com
gagueira para conter seu distúrbio. A seguir, estão dispostas as transcrições dos momentos
que utilizei de cada vídeo. Para melhor compreensão, foram utilizadas as ferramentas da
plataforma para sinalizar alguns pontos importantes: em itálico e entre “underlines” estão
descritas a ação que estava sendo realizada pelo sujeito e/ou seu estado no momento; em
negrito sua fala; as passagens sublinhadas são as disfluências; a gagueira foi sinalizada com a
utilização do “underline” entre as letras, para indicar que houve ali uma ruptura da fala.
No primeiro caso, uma criança de aproximadamente 7 anos está em uma consulta com
sua fonoaudióloga, discutindo a estratégia conhecida como “freeze and fix” ou, em tradução
literal, “congela e conserta”. “F” se refere à profissional e “C”, ao paciente.
F: Tell me what on Earth is a freeze and fix, again. Pretend I don’t know what it is.
C: _a criança abre sua boca e fica com os lábios separados enquanto tenta produzir o som; é
possível perceber a força que ela está fazendo para realizar a ação_ A freeze ahn a freeze
and fix eh, eh, hm _ pausa para respirar e reestruturar seu pensamento_ is what I just did!
_dá uma risada, demonstrando estar relaxado e feliz_ Freezing and fixing i_s when you
stutter, y_o _ nova pausa para respirar _ you stop and take a breath out then and then
you start off (t)_s (t)_s _nova pausa_ slowly.
Apesar da criança ter pausado sua fala em 3 momentos num período de 1 minuto, sua
fala apresenta poucas disfluências e todas elas serviram para que ela ganhasse um pouco de
tempo para manter a fluidez do texto e ela gaguejou poucas vezes e, quando isso acontecia,
recorria à técnica do “congela e conserta”. Entretanto, o mais interessante nesse trecho não é
o que está aparente e sim o que não é perceptível em uma primeira análise; essa criança não
permitiu que sua gagueira a impedisse de responder à sua fonoaudióloga. Com os recursos
que ela tinha ao seu dispor, ela conseguiu concluir seu pensamento e não se mostrou
desestimulada a conversar com a profissional.
Ainda que a estratégia utilizada pela criança seja conhecida até por pessoas que não tem
conhecimentos fonoaudiológicos expressivos - um bom exemplo disso são os pais que desde
a infância da criança com gagueira repetem para ela “respire antes de falar” - ela se mostrou
efetiva para essa criança, pois ela a desenvolveu de um jeito não-coercitivo. Isso comprova
como cada sujeito com gagueira é único e que não é possível desenvolver métodos definitivos
e imutáveis para transformar todas as pessoas com gagueira em “gagos-fluentes”, como foi
sugerido por Van Riper e outros pesquisadores de base comportamentalista. Isso se deve ao
fato de que cada sujeito com gagueira carrega sua própria história com o distúrbio e para
ajudá-lo a se comunicar de forma mais fluida, o dever dos profissionais é compreender o
processo que levou essa pessoa a desenvolver a gagueira e entender que, para além de um
distúrbio físico, a gagueira faz com que as pessoas formem uma imagem mental de si mesmas
de “mau-falantes”, ou seja, para auxiliar esses sujeitos, deve-se trabalhar o aspecto
psicológico e identitário deles, não só replicar estratégias cristalizadas, pois sozinhas elas não
auxiliam verdadeiramente as pessoas com gagueira.
Para além disso, a forma como as estratégias são apresentadas ou desenvolvidas pela
pessoa que gagueja é um ponto-chave para compreender se ela é nociva ou auxiliadora no
processo desse sujeito. Nesse caso, a criança, a qual estava em um ambiente em que se sentia
segura para falar e não era repreendida pela sua forma de fazê-lo, desenvolveu junto com a
sua terapeuta uma estratégia que auxilia a fluidez de sua fala e permite que ela gagueje
menos. Ou seja, nesse espaço discursivo, a criança não se sentia intimidada pelo interlocutor
e não atribuía a essa pessoa a condição de julgadora de sua fala. Em outras palavras, não
antecipou a reação negativa do receptor de sua fala. Em decorrência disso, ela conseguiu
concluir seu pensamento de forma satisfatória e com o auxílio de uma estratégia que se
mostrou, sim, proveitosa.
Em um segundo caso, analisei a fala de um adolescente por volta de seus 16 anos, o
qual também se consulta com a fonoaudióloga do caso citado anteriormente, Chamonix
Sikora. Serão utilizados dois trechos da conversa entre eles, o primeiro encontra-se entre o
período de 0:33 - 0:43; o segundo, entre 2:52 e 3:06. Nesse caso, não foram transcritas as
perguntas da fonoaudióloga, apenas partes das respostas do adolescente, o qual será
identificado como A1, no caso da primeira fala, e como A2 em um segundo momento.
A1: Well, for me, I actually dah find it th_the hardest to/to do it when I’m talking to
someone I’d say d_d_d_directly.
A2: _o sujeito encontra-se um pouco agitado, é possível perceber que ele está ansioso_
Hmmm, for me, I would say it’s most be-ne-ficial when like I would say because aah
when I’m talking to my _pausa_ friends aah they have a lot more _pausa_ patience for
me because they/they know that I_I stutter so they/so they say to me “oh it’s fine”...
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na busca por uma melhor compreensão das estratégias utilizadas por pessoas com
gagueira e sua validade em relação à atenuação do distúrbio, foram discutidos outros aspectos
importantes e, comumente, ignorados que têm relação com a gagueira. A partir do que foi
analisado à luz do modelo dialético-histórico e da Análise do Discurso, pôde-se chegar à
conclusão de que essas estratégias só serão proveitosas para o sujeito que gagueja caso sejam
desenvolvidas em um ambiente saudável e se possível com o acompanhamento
fonoaudiológico. Caso contrário, essas técnicas funcionam apenas como um instrumento de
defesa da criança que foi exposta a situações comunicacionais paradoxais (FRIEDMAN,
1986, 2004), nas quais ela encontra-se perdida entre a vontade e o medo de falar.
Nesse sentido, pode-se retomar Orlandi (1987) e comentar como as relações de força
entre os sujeitos com gagueira - especialmente aqueles que são crianças - e os seus pais e as
figuras de autoridade em sua vida podem intensificar ou amenizar o distúrbio durante a
primeira infância. Ao confundir as disfluências das crianças com um distúrbio de linguagem e
atribuir a elas a identidade de uma pessoa “gaga”, estigmatizando essa pessoa que ainda não
está totalmente formada e, para a qual, a fala tem um “sentido prático e social” (FRIEDMAN,
1986), esses adultos estão rejeitando a forma de linguagem dessa criança e fazendo com que
ela não se desenvolva corretamente, tendo em vista que
A fala adequada se desenvolve em um contexto onde as relações de
comunicação preservam a espontaneidade e reforçam a capacidade; quando
estas impõem restrições à forma espontânea manifestada, reforçam a
incapacidade e acabarão prejudicando o seu desenvolvimento natural.
(FRIEDMAN, 1986, p. 17)
Ou seja, a manifestação da gagueira e sua intensificação em situações em que a pessoa
encontra-se mais ansiosa tem muito mais a ver com a forma como os pais lidaram com as
disfluências características do período da aquisição da linguagem oral e como eles lidam com
a gagueira propriamente dita após a infância. No artigo, isso pôde ser exemplificado a partir
do estudo de Dehqan et al. (2008), no qual os pesquisadores demonstraram como o ritmo de
fala das mães influencia na gravidade da gagueira de seus filhos.
Dessa forma, pode-se afirmar que, apesar da aparência da gagueira ser comum a todos
que a tem, a manifestação dela pode ocorrer por diversos fatores, sendo um deles a falta de
tato das figuras parentais ao lidarem com as disfluências das crianças. Além disso, ficou claro
que a utilização de estratégias - dependendo de como sejam desenvolvidas - podem, sim, ser
benéficas para os sujeitos que gaguejam.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS