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Análise
Semicondutores
põem Taiwan no
meio de uma luta
de titãs
P14 a 17
AUGUSTO BRÁZIO
Galiza e Portugal
A raia voltou
a experimentar
o que significa
uma fronteira
P4 a 9
2 • Público • Domingo, 5 de Dezembro de 2021
4 10 14
Reportagem Entrevista Margaret MacMillan Análise Taiwan
Índice Quando fecharam a fronteira,
foi como se lhes tivessem
A instabilidade actual
“faz lembrar a realidade anterior
Luta de titãs nas cadeias
de abastecimento de
fechado a janela de casa à I Guerra Mundial” semicondutores
N
os últimos anos, a nos- estar, material ou emocional, sejam
sa realidade foi sendo garantidos. Muita da nossa energia
maquilhada com lin- vai para a tentativa de neutralizar,
guagem motivacional até onde isso é possível — porque não
de segunda. Antes da existe vida sem ausência total de ris-
pandemia já era as- cos — tudo o que possa ameaçar esse
sim. Agora é quase pornográÆco. Há equilíbrio que almejamos. Não era
dias, ao ver um vídeo de um daque- preciso a pandemia ter vindo acen-
les gurus que nos querem transfor- tuar essa realidade, mas resulta in-
mar em líderes de qualquer coisa, compreensível que estigmatizemos
com uma linguagem da gestão, Æquei quem procura algum tipo de segu-
atónito. Pensava que a coisa se havia rança no meio de um mar de impre-
atenuado no actual contexto, mas visibilidade e de impotência. O não
não. De duas em duas frases, lá surgia saber o que vai acontecer amanhã,
o é preciso “pensar fora da caixa” ou do ponto de vista económico ou
o “sair da zona de conforto.” mental, é o quotidiano de muita gen-
Uma zona de conforto remete para te. O sentimento de insegurança está
um ecossistema que cada um vai lá, alojado, há muito tempo. Dito isto,
construindo com os seus recursos ter iniciativa e ideias próprias é ne-
para superar problemas materiais ou cessário. Mas é a partir de uma es-
afectivos básicos. Parece uma aspi- trutura mínima de conÆança que se
ração essencial que, infelizmente, atravessam tormentas como uma
está longe de ser cumprida por uma pandemia, ou que se pode arriscar,
boa parte dos cidadãos. Como é evi- como é desejável, seja no amor, ou
dente, só pode querer sair da tal zona no campo proÆssional.
quem nela já está. A maioria queria Não é verdade que tendamos à in-
aceder-lhe, mas muitos estão longe acção quando as questões de estabi-
de o conseguir. lidade pessoal são satisfeitas. Os iti-
É por isso estranho que tal zona nerários estão longe de serem linea-
raramente seja referida em termos res: são cheios de paradoxos. A seguir
elogiosos. É quase sempre lugar a Ansiamos por certezas, mas sentimos
abandonar. Espaço de conformismo. necessidade de saber mais. Explora- Anúncio do vencedor do Prémio Leya
Algo que impede o desenvolvimento. mos para além do que percebemos.
Um cenário de auto-satisfação. De Testamos as nossas capacidades. Ex-
resistência à mudança. Neste tipo de trapolamos a partir da nossa expe- Depois de dois anos de no espaço da lusofonia por uma
retórica, mais não se faz do que mas- riência para novos cenários e outras interrupção (em 2019, por “falta entidade privada”. O brasileiro
carar a realidade, forma de norma- pessoas. Descobrimos, criamos, in- de qualidade” dos originais; em Murilo de Carvalho, com O
lizar diÆculdades económicas ou teragimos. Procuramos reconheci- 2020, por causa da pandemia), o Rastro do Jaguar, foi o primeiro
emocionais, em novas tendências, mento, identidade social ou afecto, Prémio Leya voltará a ser vencedor, em 2008, tendo sido
onde as contingências passam a ser mas também sentirmo-nos bem con- atribuído em 2021, mas com um distinguidos, desde então, seis
vistas como opções. São termos uti- nosco próprios, para nos desaÆar- valor pecuniário reduzido a autores portugueses, dois
lizados para os mais diversos soÆs- mos, recriarmos e desenvolvermos, metade (50 mil euros). O brasileiros e um moçambicano.
mas, como esse de transformar po- dessa forma (quem sabe?) iluminan- anúncio do vencedor será feito O anúncio do Prémio Leya surge
breza, provisório ou precariedade do o mundo. E isso só é possível com no dia 7, terça-feira. Em Janeiro, num momento em que a
em Çexibilidade ou cenoura para alguma segurança. A incerteza não o grupo editorial líder de vendas liderança do grupo passa para a
mais competitividade, todos eles ediÆca. E a certeza, sem novidade, em Portugal anunciou o ex-deputada do CDS Ana Rita
apontando para a ideia de que a ver- pode enfadar. A zona de conforto regresso do prémio depois da Bessa e em que, segundo o
dadeira existência começa onde ter- devia ser o lugar de todos, não para suspensão provocada pela jornal espanhol Expasión, a
mina a zona de conforto, visto aqui dela sairmos em debandada, como “gravíssima crise” pandémica. editora procura um comprador.
como lugar de resistência ao capital. nos dizem, mas porque é esse chão Apesar da redução do valor À semelhança das outras
Daí os estigmas. Se nos cingirmos às
deÆnições mais canónicas, a zona de
que poderá criar espaço para ousar-
mos ir muito mais além.
O regresso de pecuniário, a editora sublinhava
que este continuava a ser “o
edições, o júri do galardão foi
presidido pelo antigo deputado
conforto está ligada à construção de
espaços de equilíbrio em que o bem- Jornalista
um prémio galardão literário de valor mais
elevado instituído e sustentado
socialista e escritor Manuel
Alegre. S.B.G.
Público • Domingo, 5 de Dezembro de 2021 • 3
Ficha técnica
22 23
Estar bem Obituário Virgil Abloh
Os dez mandamentos O criador que mudou a moda Director Manuel Carvalho
Directora de Arte Sónia Matos
das birras de luxo (pelo menos em 3%) Editor Sérgio B. Gomes
Designers Marco Ferreira e Sandra
Silva Email sgomes@publico.pt
C
omecei a trabalhar no dos doentes da nossa UCI entrou exames complementares de mais básicos dos trabalhadores e
Hospital do Espírito em paragem cardiorrespiratória. Tanto faz diagnóstico. Entretanto, há um com nomeações para cargos de
Santo de Évora no dia Com a engrenagem bem oleada, não é resposta computador que bloqueia, um cheÆa e gestão impossíveis de
9 de Novembro de agimos rapidamente: as duas programa que vai abaixo, entender por qualquer mortal.
2009. Felizmente enfermeiras da unidade, o Carmen Garcia computadores a menos para o No meu caso posso dizer que
para mim, naquele cardiologista e a assistente número de proÆssionais por turno nunca vi aberto um concurso para
ano, a nota Ænal de licenciatura foi operacional. Mas estávamos em e, quando damos por isso, se nos enfermeiro responsável de serviço.
escolhida como critério de manobras de reanimação há pouco deixamos engolir, passamos Todos os que conheço foram
desempate para a colocação no mais de cinco minutos, quando um metade de um turno de oito horas nomeados que, no caso, é
serviço da nossa preferência. E se alarme começou a tocar de forma agarrados ao computador. O sinónimo de convidados. E quando
eu tinha alguma certeza naquela incessante: havia outra paragem na doente devia ser mais importante? estes nomeados não confrontam
fase da minha vida é que, mais do enfermaria. Pois devia. Mas então… Em 2015 quem os nomeou por medo de
que tudo, queria trabalhar na área A partir daí foi uma loucura que mudei de serviço, num salto de três perder o lugar, as equipas Æcam
da cardiologia. ainda hoje não sei descrever e, pisos, da unidade coronária para a sozinhas. As equipas que todos os
No ano anterior, o serviço de honestamente, nem acho que unidade de cuidados intensivos dias dão no duro, as formiguinhas,
cardiologia tinha sido a casa do valha a pena para o efeito desta polivalente. E se desta vez a cola que impede o colapso do
meu pai durante mais de um mês e crónica. Porque aquilo que encontrei uma chefe com as SNS. Completamente sozinhas.
eu soube, em cada visita, que era importa referir é que saí do prioridades no lugar, também
D
ali que queria trabalhar um dia. Foi hospital já passava das duas da encontrei todo um novo mundo de epois da minha
um amor construído de gratidão e manhã, cansada, cheia de fome, diÆculdades — porque fui mãe. saída do SNS ainda
de reconhecimento. E durante seis mas com o sentimento de missão E o SNS, lamento, não é para voltei, em regime de
anos praticamente vivi naquele cumprida. Mal sabia eu que no dia mães — porque as mães do SNS não prestação de
serviço. Era uma miúda quando lá seguinte seria confrontada pela trabalham das 9h às 17h e porque serviços, no Ænal de
cheguei e como sempre me recusei cheÆa, muito aborrecida, porque ninguém ainda percebeu que é 2020. O caos
a trabalhar em duplo pude no tal turno fatídico ninguém tinha importante que as instituições provocado pela covid-19 não
dedicar-me por completo àquele
serviço de paredes azuis que, no
validado informaticamente as
intervenções dos planos de O SNS, não é tenham creches que se adaptem
aos horários dos funcionários. E
permitiu que me mantivesse
afastada. Não porque ache que
quinto piso do hospital, tinha uma
vista privilegiada para a sé da
cuidados. Num turno onde
ninguém comeu e onde uma para mães, não falo de creches gratuitas, falo
de creches pagas como as que
deva alguma coisa a um SNS que
me maltratou — mas porque um
cidade. Mas, sabem, mesmo para
uma miúda que não tinha muito
equipa desfalcada reanimou dois
doentes; num turno de, repito, três porque as mães pagamos cá fora, mas que se
adaptem aos nossos horários,
enfermeiro não vira as costas às
pessoas. E sei que voltarei sempre
mais que fazer na vida, às tantas o enfermeiras para 24 doentes, seis porque sem esta opção, e muitas que for necessário, mas não com
cansaço começou a dar sinal. Um deles de cuidados intensivos. do SNS não vezes sem suporte familiar, a única vínculos deÆnitivos. Não enquanto
dia dei por mim com cerca de 40 solução que nos resta é pedir o paradigma não mudar. Não
trabalham das
N
feriados por gozar, com mais horas o momento em que horário Æxo no turno da manhã enquanto não se perceber que a
acumuladas do que aquelas de que fui confrontada com (8h-16h30). E esse horário Æxo grande mais-valia do SNS são os
gosto de me lembrar e com
responsabilidades que me faziam
o porquê de não ter
“dado os cliques”,
9h às 17h e causa duas coisas: desconforto e
mau ambiente nas equipas, porque
seus proÆssionais. Não enquanto
não existirem perspectivas de
acumular mais e mais trabalho só
por amor à camisola.
perdi a paciência
com o serviço pela
porque para alguns só fazerem manhãs há
outros que só fazem tardes e noites
carreira. Neste momento trabalho
a recibos verdes numa situação
Uma tarde, estava eu como
responsável de turno, e foi
primeira vez em quase seis anos.
Porque, caramba, mal estamos
ninguém ainda e com salários ainda mais baixos
do que o habitual. Pois, porque um
mais precária, mas que me permite
ser mãe dos meus dois Ælhos. Não
necessário transferir com urgência
um dos nossos doentes para um
quando quem manda está mais
preocupado com cliques em
percebeu que é enfermeiro que não faça turnos
nem Æns-de-semana (dias em que
tenho subsídio de férias ou Natal,
mas posso acompanhar o meu
hospital de Lisboa. Éramos quatro
enfermeiras no turno, estando
programas informáticos lentos e
repetitivos do que com os
importante que as creches normais estão fechadas)
não chega a trazer mil euros para
Ælho surdo à terapia. Nunca mais
estive em pânico sem saber onde
duas alocadas à unidade de
cuidados intensivos e duas à
cuidados prestados aos doentes e
com o bem-estar das suas equipas. as instituições casa. O meu último ordenado
enquanto enfermeira do SNS, 11
deixá-los por trabalhar ao
Æm-de-semana. Trago para casa,
enfermaria. Excluída a hipótese de
alguém vir de fora para
Ninguém que trabalhe fora de
unidades de cuidados de saúde tenham creches anos depois de lá ter chegado, foi
de cerca de 960 euros.
ainda assim, mais do que os 960
euros que recebia no Æm da minha
acompanhar o transporte, a tarefa
calhou a uma das colegas da
imagina a quantidade de serviço
informático e profundamente que se adaptem E é assim que vamos. Com
vencimentos vergonhosos, com
carreira no sector público. E não,
não me sinto em dívida para com o
enfermaria, pelo que Æcámos três
enfermeiras para 24 doentes, seis
burocrático que os proÆssionais
destas unidades realizam todos os aos horários dezenas de horas a mais e feriados
inÆnitos por gozar, com
SNS — porque sei, com toda a
certeza do mundo, que durante 11
deles de cuidados intensivos. dias. E depois há um programa administrações que não entendem anos lá deixei tudo o que tinha e
Só que essa tarde estava
destinada a servir de corolário das
para registos, outro para pedir
dietas, outro para validar
dos que os seus proÆssionais também
são pais e mães, com atropelos e
cada bocadinho de mim.
leis de Murphy e perto das 19h um terapêutica e outro para aceder a funcionários desrespeito contínuo pelos direitos Enfermeira
4 • Público • Domingo, 5 de Dezembro de 2021
Quando
fecharam a
fronteira, foi
como se lhes
tivessem fechado
a janela de casa
Reportagem Os habitantes da raia voltaram a conhecer o que signiÄcava
a fronteira com a pandemia. Presos a regras legislativas diferentes em
Portugal e Espanha e a uma dependência social e económica comum,
os trabalhadores transfronteiriços temem pelo dia em que lhes voltem a
erguer barreiras de cimento em passagens que, para eles, são hoje mais
uma rua no seu quotidiano
Por Ruben Martins, Elena Martín, Pablo Santiago e Sofía Caamaño Deus
Público • Domingo, 5 de Dezembro de 2021 • 5
AUGUSTO BRÁZIO
Tourém
Quando as
máquinas
ergueram
muros de
cimento, a
população
procurou
alternativas
para cruzar a
fronteira. Uns
voltaram aos
antigos
caminhos do
contrabando,
outros
desencanta-
ram passagens
criativas para
fugir aos
controlos:
“Passar esta
gente era um
bem social”.
Ao lado,
imagem de
Augusto
Brázio, que
percorreu toda
a raia durante
o primeiro
fecho de
fronteiras, em
2020
A
confusão voltou à raia na medidas adicionais de controlo nas deveriam ter restrições adicionais na Esta é a terceira vez em menos de dois
última semana, com a fronteiras terrestres: “A realidade exige a mobilidade, mas, entre o deve e o haver, anos que se impõem restrições à mobilidade
ameaça de novo fecho de adopção imediata de medidas preventivas, milhares de pessoas que passam a fronteira na fronteira entre Portugal e Espanha, e será
fronteiras. A de modo a tentar evitar o agravamento da para trabalhar Æcaram assustadas com os assim, pelo menos, até 9 de Janeiro de 2022.
comunicação do situação epidemiológica”, ditou a resolução eventuais regressos dos controlos. AÆnal, Ninguém sabe ao certo quantos são
Governo português, do Conselho de Ministros que gerou mais caiu a exigência de teste para os os transfronteiriços. A falta de um estatuto
longe de ser clara, dúvidas do que certezas. transfronteiriços, para estes basta o oÆcial há muito prometido empurra estes
suscitou dúvidas entre De forma unilateral, por parte de Portugal certiÆcado de vacinação, e os controlos trabalhadores para um limbo administrativo
quem tem nos seus planos atravessar a falou-se na exigência de testes a todos os que serão aleatórios. Mas, nesta terça-feira, a em que qualquer passo do seu quotidiano é
fronteira. E a dúvida gera desinformação cruzassem as fronteiras nacionais e o poucas horas dos controlos voltarem à raia, condicionado pela burocracia de ter dois
dos dois lados da fronteira. Até agora, o próprio Governo de Espanha acabou por soube-se que o certiÆcado não basta para países desarticulados: da matrícula do carro
certiÆcado de vacinação era garantia de recomendar que não se atravessasse a quem vem de fora da União Europeia ou está com que circulam ao pedido de um subsídio
mobilidade dentro do espaço da União fronteira sem um teste negativo, causando num país com risco vermelho ou de desemprego.
Europeia, mas a propagação da variante cancelamentos nos restaurantes e hotéis vermelho-escuro. Espanha estava a laranja,
Ómicron e a precaução para que não se portugueses. mas, com o crescente aumento de casos, a
O padeiro que mudou de rota
repita um cenário de hospitais cheios no Bruxelas chegou a avisar Lisboa que os situação pode alterar-se e obrigar à
pós-Natal levaram a que fossem ponderadas detentores de certiÆcado de vacinação não realização de testes para cruzar a raia. Vamos a um exemplo na raia c
6 • Público • Domingo, 5 de Dezembro de 2021
transmontana de como as decisões tomadas porque tinha de dar uma volta maior quando Viver na raia A raia é muito diversa ao longo dos seus
nas capitais ibéricas podem causar grandes a sua vida estava, desde sempre, ligada ao Tourém perdeu um em cada quatro 1214 quilómetros, mas são poucos os
transtornos quando o legislador não que se passava no outro lado e até o habitantes na última década. Já só quilómetros onde há uma grande dinâmica
equaciona todas as consequências do que transporte que leva os miúdos à escola, em existem 112 pessoas na freguesia (em de fronteira. De Caminha a Vila Real de
legisla: em Tourém (Montalegre), o fecho de Montalegre, costuma seguir caminho pela cima). A esplanada do Centro Social de Santo António há lugar ao rio, ao casario
fronteiras deu caso de polícia. Os padeiros Galiza, em vez de optar pela sinuosa estrada Vilarelho da Raia é agora ponto de branco, às vilas abaluartadas, às aldeias sem
galegos que por lá abasteciam a população portuguesa. Entre a passagem legal na encontro de antigos contrabandistas gente, ao montado e à serra. Há eurocidades
viram-se bloqueados pelas barreiras de fronteira de Chaves-Verín, a mais de 70 (ao centro), sempre disponíveis a — que já são sete — mas também há lugares
cimento que se ergueram onde antes nem se quilómetros de automóvel para cada lado, partilhar memórias. Carlos Teixeira e que, como se diz em castelhano, passam os
dava conta de que se mudava de país. Era ou a travessia num qualquer caminho Sandra, profissionais de saúde do lar da dias “de espaldas”, sem uma estrada, ponte,
Ænal de Janeiro de 2021 e o enclave de secundário nos arrabaldes da aldeia, houve Mezquita (à direita) ou transporte que as ligue ou qualquer
Portugal que entra terra adentro da Galiza quem não tivesse outra alternativa senão relação institucional que as aproxime. O
Æcava de novo isolado, à boleia da subida fugir à lei para poder ir trabalhar ou voltar a principal problema de despovoamento
exponencial dos casos da covid-19. A ver parte da família. começa quando a raia deixa de ter o rio
pandemia empurrou um país de novo para Foram dias de angústia: “Iam levá-los à Minho como companhia e entra serra
casa e ergueu de novo muros nas fronteiras, fronteira e depois, do lado de lá, havia quem adentro — chamam-lhe raia seca.
menos de sete meses depois do último fecho. estivesse de carro à espera para os passar”, Os anos de contrabando acabaram com a
Habituada a ser ponto de passagem entre diz Regina, dona do único comércio que abolição das fronteiras na era Schengen, já
Portugal e a Galiza, Tourém tornou-se o Æm ainda abre portas no largo principal de em meados dos anos 1990, e ninguém estava
de uma estrada sem saída. Tourém e que acumula na aldeia as funções preparado para que os controlos voltassem.
Não é que o isolamento não fosse comum de posto dos correios, supermercado e uma Com a ameaça do ainda desconhecido
numa aldeia de Montalegre habituada ao espécie de “loja dos 300” dos tempos coronavírus, em Março de 2020 o
sazonal rigor dos Invernos, mas, no meio de
uma pandemia e com regras deÆnidas a
modernos. Tirando esta loja, na freguesia já
só restam os cafés. A Península Ibérica primeiro-ministro, António Costa, anunciava
um pacote de medidas a que se somava a
partir de um gabinete de Lisboa, não
percebeu a gente raiana porque tinha de
Ali, com quase 90% de clientela
espanhola, os dias não foram fáceis para deveria estar mais reposição do controlo nas fronteiras
terrestres com Espanha: “Vamos manter a
Æcar sem pão. A solução teve de vir da liberdade de circulação de mercadorias,
freguesia portuguesa mais próxima: Pitões
viver do pouco negócio que sobrou. O
rombo que já tinha sentido em 2020, quando unida para ser garantir os direitos dos trabalhadores
das Júnias. Conta a população que, apesar de a fronteira fechou pela primeira vez, transfronteiriços, mas restringir a circulação
não compensar ao padeiro a sinuosa viagem,
teve de ser a GNR a “obrigar” o carro do
agravou-se com a chegada de um novo
Inverno que afastou quem, por turismo ou
mais forte na para efeitos de turismo ou de lazer”.
No início, não houve protestos, apesar de
padeiro português a percorrer a
ziguezagueante estrada que nos
necessidade, tinha em conta uma passagem
pela aldeia. Tourém é exemplo de um lugar
Europa, mas só estar autorizada a passagem em nove
pontos da fronteira. O medo fechou as
Invernos congela, refém do seu traçado a
1200 metros de altitude, em pleno Parque
que não vive sem os que passam para o outro
lado da raia.
quando há o pessoas em casa e justiÆcava a atitude radical
por parte dos dois governos. Até esse dia,
Nacional da Peneda-Gerês.
De 31 de Janeiro a 1 de Maio, passaram 90
mínimo problema tinham-se contado pelos dedos de uma mão
as vezes que os controlos voltaram à raia:
Uma raia seca de gente
dias. Abertas as fronteiras e levantadas as
grades, Tourém voltou a fazer parte do A fronteira mais despovoada da Europa não
cada um olha para Euro 2004, Cimeira da NATO em Lisboa e
visita do Papa Francisco a Fátima. Mas
roteiro dos padeiros galegos, mas nem de
todos. Dos três que por lá passavam, apenas
tem guerra nem crises migratórias e os anos
do contrabando já são só memórias na
o seu umbigo. Só naquele mês de Março ninguém sabia
quanto tempo levaria até que as fronteiras se
um regressou à distribuição de pão aos 112
vizinhos da freguesia. Com cada vez menos
cabeça dos mais velhos. Aqui, a população
decresce todos os anos. Mostram-nos os
lutam juntos para abrissem de novo. E muito menos se
adivinhava que voltariam a fechar menos de
pessoas, a volta do padeiro cada vez
compensa menos.
dados do último recenseamento que uma
em cada quatro pessoas saiu de Tourém ou conseguir fundos sete meses depois.
Foi por isso com pompa que rei de
Mas, por muitas barreiras que se
colocassem, há quem tenha regressado a
morreu nesta última década. Resta a alegria
do regresso dos que emigraram em grande europeus Espanha e Presidente da República de
Portugal se uniram aos chefes de Governo
uma espécie de amostra dos tempos do
contrabando. A aldeia não compreendia
parte para terras de França e que voltam
quando o calor de Agosto se faz sentir. Puri Regueiro dos dois países, numa cerimónia conjunta
entre Elvas e Badajoz que assinalou a
Público • Domingo, 5 de Dezembro de 2021 • 7
FOTOGRAFIAS: PABLOSTIAGO
PAULO PIMENTA
para as compras das pessoas que vinham do
outro lado em busca de preços mais baixos
ou de produtos diferentes — certo é que os
produtos há muito deixaram de ser
diferentes para despertar outro tipo de
curiosidades. “Daqui a dez ou 15 anos, a
gente desaparece daqui, se não houver como
Æxá-la...”, vaticina.
Na estrada de Chaves para Verín a vida
faz-se à volta dos que estão de passagem. É
por ali que Æcam as aldeias de Vilarelho da
Raia, portuguesa, e Rabal, galega, onde a
linha de fronteira é pouco mais do que uma
diferença na cor do alcatrão da estrada.
Carlos Silva tem visto as ruas de Vilarelho a
Æcarem sem ninguém. A aldeia foi sempre “o
Æm da linha”, a última antes da Galiza, por
isso “fervilhava de gente”. “Éramos
auto-suÆcientes”, porque “tudo aqui
explorava o campo e vendiam o que se
produzia”, mas “agora já só há um
agricultor”: trocaram “a enxada pelo sofá,
agarram-se à caneta para pedir subsídios e à
televisão para descansar”.
A esplanada do centro social local é agora
ponto de encontro de antigos
contrabandistas, onde as memórias se
partilham enquanto se dá o gosto ao dedo
em mais uma partida de dominó. “Agora há
os intercâmbios institucionais, mas antes os
intercâmbios eram naturais e muito mais
intensos: havia mais casamentos com
galegas, os homens jogavam à bola pelas
equipas de lá e iam ao médico a Verín.
Parece ilógico, mas o contrabando unia a
gente”, desabafa Carlos Silva. PABLOSTIAGO
Diz ter conhecido pessoas que foram duas Mas a realidade institucional é criticada por
vezes na vida a Chaves, porque “para elas 15 quem viu a fronteira fechar e não teve
quilómetros era muito”. Muito “mais do que respostas por parte de quem os devia
as estradas”, o “conceito de distância está na defender: “A Península Ibérica devia estar
cabeça”. Quando, nas aldeias “tradicionais”, mais unida para ser mais forte na Europa,
se “tem tudo”, não se vai buscar nada fora: mas quando há o mínimo problema cada um
“Essas pessoas nunca precisaram de sair olha para o seu umbigo. Só lutam juntos para
daqui e agora também não o querem fazer”. conseguir fundos europeus”, diz Puri
Carlos diz sentir que a democracia os Regueiro, que representa os negócios que se
abandonou, “porque os votos estão no instalaram em Feces de Abaixo, “com os pés
litoral”. na Galiza, mas de olhos postos em Portugal”.
É por isso que, para a população local com “Pedem ajudas à Europa em nosso nome, e
a experiência do contrabando ainda depois estamos aqui numa terra de ninguém
presente, o fecho de fronteiras foi escutado em que nem sabemos o que eles [na
em surdina: “A guarda [polícia] nunca eurocidade] estão a fazer”, desabafa.
conseguiu descobrir os caminhos por onde Durante os fechos da fronteira que foram
as pessoas passavam; se fecham um, a gente “como cortar uma parte de ti, porque é
vai pelo outro”. Há na fronteira uma inexistente a vida num lado sem o outro”, os
constante procura dos produtos mais comerciantes organizaram manifestações
baratos de um lado e de outro, preços que para pedir uma rápida reabertura: “Só
chegam à quase metade quando falamos de queríamos trabalhar, nada mais.” Um fecho
uma garrafa de gás comprada em Espanha que foi ainda mais incompreendido na
quando comparada com uma botija do lado segunda vez que a raia se voltou a fechar, no
português. Com tal diferença, o risco início de 2021: “A fronteira somos nós e
compensava para quem chegava a conhecer fomos nós os mais castigados pelo fecho.”
melhor o terreno do que a própria polícia. Portugal chegavam aqui e os guardas Futuro difícil Da parte da eurocidade, responde-nos
A poucas centenas de metros dali, Javier mandavam-nos voltar para trás, passar essa No topo, placa em Tourém indica a Nídia Ferreira da Cunha, técnica de
Suárez, galego, tem o seu bar na antiga casa gente era um bem social, havia pessoas que rota do contrabando. Em cima, comunicação e informação, que reconhece o
onde viveu. Chamou-lhe Terra Coutada, em só podiam vir a casa uma vez ao ano.” As Amaro Gonçalves. O dono da problema: “De um ponto de vista genérico,
homenagem à obra do seu tio, Antonio passagens, ilegais, estavam longe de ser Taberna Ribeira D’Anta, em Moimenta entendemos que os Governos tinham de
Fernández Pérez, que relata a história socialmente reprovadas pela população da da Raia, antevê um futuro difícil para actuar — há uma situação de saúde pública
pessoal de quem esteve anos no exílio na raia. uma região sem capacidade de fixar e isso está acima de tudo — mas, na prática,
Argentina, durante a ditadura franquista, e As portas do bar já abriram sem grandes população a especiÆcidade do terreno não estava
não podia voltar à terra natal para ver a sua restrições, mas Javier não se esquece de adequada às leis que são impostas.” Nídia
mãe. O bar havia sido também a antiga apontar o dedo a quem deÆniu as regras reconhece que faltou “um bocadinho de
residência de Fernández Pérez. durante os meses mais críticos da pandemia: sensibilidade a quem impõe restrições”.
A casa de Javier tem um quintal que “Não estamos a 200 quilómetros da Na tentativa de criar pontes institucionais, Agora, o medo de ver as fronteiras
termina pouco antes de onde começa fronteira, estamos a 200 metros e vivemos entre Chaves e Verín criou-se uma fechadas outra vez é grande e ninguém quer
Portugal. “Para nós, fechar a fronteira foi uns dos outros.” ExempliÆca: na fronteira eurocidade, em 2007. Na prática, passou a que se cometam os mesmos erros.
como fechar a janela da nossa casa. Fazemos “estamos a viver com três regras diferentes”: haver uma agenda comum, uma aposta
uma vida em comum e de repente foi a ruína as do Governo de Espanha, as de Portugal e conjunta na promoção turística, Esta reportagem, uma colaboração entre
total para nós e para eles...”, desabafa. as da Xunta (Governo regional) da Galiza. candidaturas a fundos comunitários e uma o P2 e a Xarda, da Galiza, faz parte da
Houve dias de fronteira fechada em que se “Queremos uma legislação igual para todos. sede, na antiga alfândega de Feces de série “Fim de Linha”, que foi apoiada
recordaram rotas de outros tempos: As regras de Madrid não valem para aqui Abaixo, que voltou a ser casa da pelo programa de bolsas da
“Emigrantes que vinham de França para porque lá nem há fronteira.” Guardia Civil quando os controlos voltaram. NewsSpectrum
Público • Domingo, 5 de Dezembro de 2021 • 9
A
s paragens de autocarro de estações da zona raiana sem serviço. Por Eva, a outra sócia do negócio, explica que hipótese”.
adornam os caminhos das ali já só circulam comboios de longo curso até abrirem a loja, a sua mãe ia fazer as Em Feces de Abaixo vive Puri Regueiro,
aldeias que se espalham com A Gudiña a ser a única paragem até compras a Verín apenas uma vez por mês. que é a representante dos comerciantes da
ao longo da raia seca, a Ourense. A justiÆcação para que não se Estavam a 12 quilómetros e uns 18 minutos aldeia. No seu supermercado de fronteira
fronteira interior que criem mais linhas de transporte regular de distância. “Há aldeias em que já só restam consegue-se ver, no edifício da antiga
separa a Galiza e o Norte nesta região está na escassez de utilizadores. uns seis ou sete moradores e onde não há alfândega espanhola, as instalações da
de Portugal. Há maiores e Uma das alternativas que está a começar a nenhum tipo de estabelecimento onde fazer Eurocidade Chaves-Verín. “Cheguei a ver o
mais pequenas, de ser implementada em alguns concelhos é o compras”, explicam. A carrinha da Despensa autocarro da Eurocidade passar, mas era
diferentes cores e em diferentes estados de sistema de transporte público por pedido, do Bubal desloca-se pelas curvas sinuosas utilizado sobretudo para as rotas termais.
conservação. Apesar disso, desde a que só funciona se houver passageiros pelo meio da serra. Em algumas aldeias, Aqui há muita gente que nem sabia da sua
localidade de A Mezquita até ao Lindoso interessados, ainda que dentro de um como Guimarei, as pessoas da aldeia já estão existência”, diz Puri, que pede “um
todas partilham uma mesma característica: horário Æxo estabelecido. É esta rigidez que fora da casa à espera que passe a mercearia transporte público e regular que ligue
ninguém espera pelo autocarro nelas. deixa muitos sem um transporte útil para as sobre rodas. Chaves a Verín e que pare nas aldeias. São as
Ao perguntar a quem mora ao longo da suas rotinas. Para já, a Despensa do Bubal só viaja entre pequenas aldeias que mais precisam disso:
raia como consegue chegar ao médico ou ao vilas galegas. Hoje, numa Europa sem de uma rede de transporte comum”.
supermercado se não tem carro próprio, a fronteiras, não existe nenhum serviço de Os lugares da raia não são alheios ao
Despensa ambulante
resposta é quase sempre a mesma: “Só de transporte público transfronteiriço que ligue despovoamento crescente que assola o meio
táxi ou com algum familiar.” Normalmente a Esta situação não é exclusiva da Galiza e as localidades dos dois lados da raia, apesar rural da Galiza e Portugal. Se a falta de
resposta sai num tom aborrecido, resignado, repete-se do outro lado da raia. Em Pitões dos intercâmbios comerciais e pessoais entre serviços já agrava a vida destes lugares, a
como quem sabe que é impossível que seja das Júnias, pequena aldeia na serra do Gerês, galegos e portugueses que formam o situação piora quando falamos de vilas
de outra maneira. o cenário é igual: já só resta o táxi ou a ajuda dia-a-dia da raia. Em 2019, a Eurocidade interdependentes, entre as quais não existe
Num bar despido de clientes em Montes, da família para garantir a mobilidade quando Chaves-Verín implementou um serviço nenhum tipo de ligação de transporte
no concelho galego de Cualedro, Manuel não há autocarros escolares. O Inverno de ocasional de transporte que ligava as duas público. A forma como as concessões de
toma um café sem pressa e fala com Pitões agrava o isolamento, uma vila que vive cidades. “O autocarro funcionava nos dias de serviço público estão desenhadas e como
parcimónia sobre o périplo que tem que sobretudo do turismo e que se esvazia com a feira ou quando havia algum evento cultural estas são subsidiadas faz com que os
fazer de cada vez que precisa ir ao médico: chegada do frio. “Aqui quase toda a gente nestas cidades”, explica Nidia da Cunha, operadores terminem o serviço quando
quando há aulas, apanha o transporte que tem um carro, quem não tem pede aos Ælhos responsável de comunicação daquela atingem a fronteira, não continuando para o
também serve de autocarro escolar para as que os levem”, diz a presidente de junta, Eurocidade. Um ano depois, com a chegada outro lado da raia. Também não parece
crianças, ainda que os horários nem sempre Lúcia Jorge. Muitos destes lugares, de um da pandemia da covid-19, os serviços de haver vontade em articular os horários entre
lhe convenham, tornando longas as esperas. lado e do outro lado da raia, não contam transporte foram suspensos e continuam operadores para assegurar transbordos à
Durante as férias de Verão o transporte sequer com serviços mínimos como uma parados até hoje: “Existe uma linha de população. Isto não afecta só a povoação
escolar desaparece e a única opção de mercearia, deixando as populações serviço público que vai desde Chaves a envelhecida, mas também é impeditivo do
Manuel é pagar por um táxi. O pior são os dependentes de um carro para satisfazer as Vilarelho da Raia e termina na fronteira. regresso de novos habitantes. É o caso de
exames ou as consultas que não pode fazer necessidades mais básicas. Traçado o Quem quer vir a Feces [localidade Serxio María, estudante de Direito e natural
no hospital de Verín e que o obrigam a problema, duas vizinhas de Medeiros, no transfronteiriça do lado galego] consegue, do Couto Mixto, que reside entre Santiago de
deslocar-se a Ourense, a capital da província. concelho galego de Monterrei, decidiram mas quem precisa de ir a Verín já não tem Rubiás, Ourense, e Santiago de Compostela:
No Æm, sai cara a conta: “O táxi até lá anda apostar na solução investindo num novo “Gostava de viver aqui e, sobretudo, poder
por uns 90 ou 100 euros, ou mais...” serviço que, com a ajuda de uma carrinha, fazê-lo com dignidade, como qualquer
distribuem os produtos de supermercado habitante urbano...”
pelas aldeias das redondezas. “Os mais Ninguém Perto do Couto Mixto encontra-se
Transporte público a pedido?
idosos precisam disto, porque a maioria não Na Galiza e em Portugal repete-se Montalegre. Para Serxio, é fundamental
“O AVE [alta velocidade espanhola], o AVE... tem carro e vê-se na obrigação de pagar um o mesmo cenário: há muitas haver uma ligação entre as duas vilas: “É
aqui, quem é que vai utilizar o AVE? Os táxi”, explica Chus, uma das duas donas da paragens de autocarro, mas não preciso mais empenho por parte da Xunta e
serviços deste comboio de alta velocidade Despensa do Bubal. há ninguém à espera deles da União Europeia.”
estão pensados para as cidades grandes, PABLOSTIAGO
Uma das frases que mais se ouvem ao
para Madrid, Vigo e Pontevedra, mas não longo da raia quando se fala de transporte
para Mezquita ou para A Gudiña. O resultado público é que “as pessoas agora já estão
é que agora temos melhores combinações de acostumadas a utilizar o seu próprio carro”.
transporte para ir até Madrid do que para ir Rafael Pérez, autarca da Mezquita, diz que
a Ourense”, aÆrma Rafael Pérez Vázquez, isto aconteceu porque “os habitantes do
presidente da Câmara da Mezquita. A linha mundo rural chegaram a um ponto de
de alta velocidade que vai ligar A Gudiña, passividade e conformismo e, já não
nos arredores da Mezquita, a Ourense abre protestam, apanham um táxi”.
neste 21 de Dezembro. Para já, o preço do A presidente da junta de Pitões das Júnias
bilhete aumenta um euro para uma viagem reconhece que o problema da falta de
de 80 quilómetros: passa a custar, no transporte “é o que mais destruiu o meio
mínimo, 6,20 euros, só que os preços são rural”, e reÇecte sobre a perda de serviços:
dinâmicos como na aviação e o valor pode “Se calhar, nós temos parte da culpa, porque
disparar consoante a procura. O tempo deixámos que fosse passando o tempo e
encurta-se 27 minutos, passando o trajecto a acabámos por perder esse direito. A
realizar-se em 40 minutos. Na Mezquita, vila população também alguma culpa porque
com 1328 habitantes que Æca perto da usa pouco o transporte público”.
fronteira portuguesa e da leonesa, já existiu Ao longo da raia surge sempre a mesma
um serviço de comboio regional que ligava dúvida: são as pessoas que não querem usar
Ourense a Puebla de Sanabria. O serviço foi o transporte ou é a escassez de serviços que
suprimido em 2013, deixando uma dezena desabituou as pessoas?
10 • Público • Domingo, 5 de Dezembro de 2021
A instabilidade
actual “faz lembrar
a realidade anterior
à I Guerra Mundial”
Entrevista Margaret MacMillan Diz que a guerra “revela o que há de melhor
e pior” na nossa espécie. Em Guerra – Como Moldou a História da Humanidade,
a historiadora canadiana conta uma tragédia e uma epopeia profundamente humanas
Por Pedro Rios
D
iz que, ao Svetlana Alexievich: “A guerra continua Em termos de grandes conflitos, algo leva a que muitos Estados não funcionem
compreendermos a a ser, tal como sempre foi, um dos mudou com a II Guerra Mundial? As muito bem.
guerra, compreendemos principais mistérios da humanidade.” O bombas atómicas foram um final de Este ano, vimos os Estados Unidos
algo sobre sermos que a torna misteriosa? guerra tão destrutivo que, depois dele, retirarem-se do Afeganistão. A maioria
humanos. A canadiana Revela o que há de melhor e pior em nós. não poderia haver outro grande conflito? das tropas americanas também já deixou
Margaret MacMillan Pensemos nos horrores da guerra, no que a Quando se tornou possível, no início dos o Iraque. As intervenções militares que
dedicou uma carreira ao guerra fez a civis, a quem luta nelas, na anos 60, para os soviéticos, atingirem o tentam implantar democracias em
estudo dos conÇitos e destruição pura. Mas também revela coração da América e, para os americanos, territórios estrangeiros são um modelo
publicou vários livros — como A Guerra que altruísmo, a capacidade de as pessoas atingirem o coração da União Soviética, isso em crise?
Acabou com a Paz (2014), sobre a I Guerra fazerem coisas por outras ou trabalharem mostrou a esses poderes o que aconteceria Os que estavam a fazer essas guerras não
Mundial. A professora nas universidades de juntas. Que fenómeno é este? O que é que a se fossem para a guerra — chamaram-lhe tinham uma ideia clara do que seria uma
Oxford e Toronto tem um novo livro, Guerra nossa espécie tem que leva a que “destruição mútua assegurada”. Ajudou a vitória e mudavam constantemente os
— Como Moldou a História da Humanidade, continuemos a guerrear? Não acho que haja manter um equilíbrio de terror, que evitou a objectivos. Inicialmente, a NATO, sob
um compêndio das misérias e do fascínio apenas uma explicação nem acho que guerra, mas foi um equilíbrio inseguro — e liderança dos EUA, foi para o Afeganistão
que a mais organizada das actividades alguma vez vá haver. sabemos agora que [EUA e URSS] estiveram para se livrar dos taliban e para encontrar a
humanas provoca. E de como a guerra Um mundo sem guerra é um sonho? muito perto de usar essas armas. Desde 1945 Al-Qaeda. Era uma missão muito clara, mas
mudou as sociedades, às vezes para melhor. Bem, se é um sonho, é um sonho de que que não vemos uma grande guerra, com depois expandiu-se para construir uma
Escreveu vários livros sobre guerra. precisamos e que muitas pessoas tiveram ao excepção da guerra entre o Irão e o Iraque, democracia, direitos humanos,
Enquanto historiadora, o que a levou ao longo da história. Sempre houve em todas as nos anos 80, mas vemos muitas guerras civis infra-estrutura… São bons objectivos, mas
tema? sociedades e partes do mundo tentativas de e entre países. penso que não pensaram em como o iam
Não tenho a certeza sobre o que me levou a afastamento da guerra, de encontrar outras Escreve que é possível que agora haja fazer. A longo prazo, não apenas não
interessar pelo assunto. Interessei-me muito formas de resolver disputas. Por vezes, mais guerras civis. Porquê? atingiram os objectivos, que estavam sempre
pela história dos séculos XIX e XX e a guerra conseguimos: muitos países recorrem a No século XX, tivemos guerras civis, na a mudar, como a opinião pública se fartou —
é grande parte dessa história: guerras tribunais arbitrais para resolverem as suas Rússia e em Espanha, por exemplo, mas e não os posso culpar. E houve arrogância e
coloniais, guerras mundiais, a Guerra Fria. disputas em vez de se decidirem pela guerra. estamos a ver mais Estados falhados, o que ingenuidade: não se pode dizer a um país
Teve um enorme impacto na história e nas É também importante manter a esperança, ajuda a gerar guerras civis porque os fortes e “vais ser democrático”, não é magia, leva
sociedades. Talvez seja também porque porque as armas estão cada vez mais implacáveis podem dominar os mais fracos e muito tempo a construir uma democracia e
nasci no Æm da II Guerra Mundial. O meu pai mortíferas e a nossa capacidade de nos não existe uma autoridade central para lidar devíamos saber isso. Os EUA ainda são um
e os meus tios lutaram nessa guerra; os meus destruirmos a nós mesmos e ao nosso com isto. Porque é que os Estados falham? superpoder, mas será que vão tornar-se mais
avós estiveram na I Guerra Mundial. Em mundo é cada vez maior. Por isso, temos de Há um conjunto de razões: interferência isolacionistas? O que isso signiÆca para o
criança, brincávamos com peças velhas de continuar a pensar sobre como é que nos externa; por vezes, depois do colonialismo, mundo é algo sobre o qual vamos ter de
uniformes [militares]. podemos livrar dela [da guerra]. Mas, até os Estados foram montados dividindo pensar.
Abre o seu novo livro com uma frase de agora, o cenário não parece muito positivo. grupos étnicos. O legado do colonialismo A ordem global tornou-se c
Público • Domingo, 5 de Dezembro de 2021 • 11
multipolar, com a China e a Rússia a coisa com Estaline. Por vezes, quem está a
assumirem uma importância muito liderar, sobretudo se for uma nação
maior do que nos anos 1990, quando os poderosa, pode fazer uma enorme diferença.
EUA lideravam sozinhos. Este contexto Temos também de estar conscientes — e os
multipolar aumenta ou diminui a historiadores tendem a estar — dos acidentes
possibilidade de conflito? e das contingências. Concordo consigo no
Se fosse uma cientista política, diria talvez arquiduque. As forças estavam lá, as tensões
que o equilíbrio de poder, especialmente se estavam lá, mas o rastilho podia não ter sido
for multipolar, pode ser instável porque os acendido. Preocupo-me com o que pode
poderes podem mudar, aumentar ou acontecer em Taiwan. Há navios de guerra
diminuir, pode haver receios de se perder dos EUA lá e, claro, navios de guerra
um aliado. Mas, como historiadora, diria que chineses; aviões americanos e aviões
depende muito de circunstâncias chineses, que, por vezes, se aproximam uns
particulares. Se a Rússia fosse liderada por dos outros. Há regras de quão próximos Em guerra instante, tudo mudou. O que explicava
alguém disponível para trabalhar com outros podem chegar, mas e se alguém colide com Na página anterior, soldado alemão aquele optimismo?
poderes, em vez de agir de forma destrutiva, alguém? E se há um acidente? Já aconteceu, durante a I Guerra Mundial. À esq., Penso que na Europa olharam para o que
seria diferente. Se tivéssemos uma China na ilha de Hainan, foi um enorme incidente combatentes do Exército de Libertação tinha sido o século [XIX], o que aconteceu
menos insegura e mais preparada para diplomático [em 2001, um avião americano da Síria depois de uma batalha perto desde o Æm das guerras napoleónicas: um
trabalhar com outros poderes — coisa que chocou com um caça chinês quando de Al Janoudia, em Março de 2012. Em século extraordinário, com enormes
faz, de vez em quando —, poderia ser sobrevoavam o mar do Sul da China]. O que cima, soldados dos EUA no Iraque, em progressos em termos de economia, ciência,
diferente. Por isso, penso que depende acontece se alguém abate um avião, se Abril de 2003 tecnologia, com o espalhar da democracia,
muito da natureza da liderança em cada país alguém tem um acidente, se um navio se mais pessoas a votar, mais governos
e das relações entre eles. afunda, se se perderem vidas? Depois, empregos, com a deslocalização de constitucionais. Olharam para trás e
O problema é também que a União teremos as opiniões públicas dos dois lados a negócios). E estamos a ver algo parecido: em pensaram: “Fizemos um grande caminho,
Europeia parece mais dividida do que já foi: dizer que é preciso fazer algo. É isso que me alguns países há uma polarização política, somos uma civilização realmente diferente”.
o “Brexit” não ajudou; e agora há problemas preocupa. vemo-lo nos EUA. Antes da I Guerra Mundial Além disso, dominavam o mundo e
com os poderes do Leste — há uma crise real A máquina de guerra está pronta e não havia poderes que estavam preparados para achavam-se os melhores. E não tinha havido
com a Polónia e a Hungria. Como é que a pára de crescer. Em 2020, segundo o arriscar uma guerra para perturbar o muitas guerras, houve as guerras de
União Europeia lida com isso, ao mesmo Instituto Internacional de Investigação sistema. Isso é perigoso. uniÆcação da Alemanha e da Itália, mas
tempo que tenta projectar uma política para a Paz de Estocolmo, os gastos O que também havia antes da I Guerra foram muito curtas e produziram um
externa uniÆcada? Não é algo que tenha globais em defesa subiram para os 2 Mundial eram países com medo de perder os resultado. Por isso, pensaram que a guerra
conseguido fazer até agora. [Um mundo com biliões de dólares. Nem a pandemia os seus aliados. Às vezes, subestimamos quão era algo que já não faziam e de que não
mais ou menos conÇitos] dependerá muito travou... importante isso pode ser. A Alemanha estava precisavam.
do que acontece com intervenientes O problema com a corrida às armas é que se com muito medo de perder a Foi um “momento Fukuyama”, de “fim
individuais e do que acontecerá se tivermos está sempre preocupado com a possibilidade Áustria-Hungria porque não tinha mais da história”? Mostra como tudo é frágil.
uma nova Presidência Trump nos EUA. de Æcar para trás. Compram-se os caças mais ninguém e foi por isso que decidiu apoiá-la Penso que sim. É por isso que esse período é
Destaca também o papel dos líderes e recentes e descobre-se que vão Æcar contra a Sérvia, depois do assassinato [de tão importante, como aviso.
das contingências no curso da história. obsoletos porque vêm aí caças mais Francisco Fernando]. É o seu período favorito enquanto
Um acto isolado — como o assassinato do modernos. [A especialista norte-americana Penso que podemos estar a assistir a algo historiadora?
arquiduque austríaco Francisco em Defesa] Jessica T. Mathews escreveu que idêntico hoje: um mundo instável; reacções à Penso que sim, mas estou a passar à II
Fernando, que desencadeou a I Guerra isto é uma máquina em movimento globalização; países como a Rússia que, Guerra Mundial, o meu próximo livro será
Mundial — ou um acidente podem mudar perpétuo: os gastos sobem sempre e a apesar de eu pensar que não quer começar sobre ela. É também fascinante.
tudo. Temos visto uma guerra de Marinha, o Exército, a Força Aérea ou o uma guerra, estão preparados para Falou da polarização e a Rússia tentou
palavras entre China e EUA, a propósito Comando Espacial não aceitam cortes nos pressionar o máximo possível e causar fomentá-la nos EUA, interferindo nas
de Taiwan. Teme que um acontecimento seus orçamentos, estão sempre a competir problemas. Isso é sempre perigoso porque eleições de 2016, espalhando
localizado seja um rastilho de um entre si. Os EUA têm um novo míssil nuclear, nunca se sabe aonde vai levar. Temos a desinformação. Há paralelos históricos?
conflito militar? mais preciso. O que vai acontecer na Rússia e China, um pouco como a Alemanha antes da Claro. Foi sempre uma forma de enfraquecer
Há as grandes forças da história e, na China? Vão ter de desenvolver o mesmo. I Guerra Mundial, que sente que não foi o adversário, causando problemas. Por
claramente, coisas como a demograÆa e a Isto é preocupante. reconhecida como um poder regional e exemplo, antes da I Guerra Mundial, a
geograÆa importam, que recursos um país Tem dito que há paralelos entre a talvez global, consciente da sua própria Áustria-Hungria e a Rússia encorajavam
tem, que Forças Armadas tem, tudo isso situação actual e a que antecedeu a I dignidade. Nunca nada é igual na História, minorias do outro lado. Por exemplo, os
importa. Mas penso que, de tempos a Guerra Mundial. Quais? mas às vezes faz-me lembrar [a austríacos diziam aos ucranianos ocidentais,
tempos, e dependendo particularmente do Aconteceram algumas coisas antes da I realidade pré-I Guerra Mundial]. muitos deles católicos: “Vocês não
que controlam, um líder individual pode Guerra Mundial. Era um mundo muito No livro, fala de um certo optimismo nos pertencem à Rússia, maltratam-vos.” A
fazer a diferença. Hitler ascender ao poder globalizado, tão globalizado, à sua maneira, anos que antecederam a I Guerra Rússia fazia o mesmo. Com frequência, os
na Alemanha. Como era um país tão como o nosso, e havia uma resistência Mundial. Dizia-se que as civilizações poderes tentam usar divisões nas outras
poderoso, fez toda a diferença e como ele crescente a isso, logo, muita instabilidade ditas avançadas tinham aprendido a sociedades. Claro que os meios são muito
tinha tanto poder naquele país... A mesma interna (as pessoas estavam a perder os deixar a barbárie de lado. Mas, num diferentes agora. Antes da I Guerra Mundial,
Público • Domingo, 5 de Dezembro de 2021 • 13
não é violência aleatória: nela emprega-se as pessoas de estratos mais baixos da história da classe operária e outros grupos
violência, mas de forma muito controlada. sociedade foram mais bem remuneradas — negligenciados. A história das mulheres
Não acho que sejamos piores a guerrear os negócios dos ricos foram taxados e eles desenvolveu-se em resposta à primeira onda
agora. não podiam mudar os lucros para outro país de feminismo. A história afro-americana
Um autor que me impressionou muito foi ou escondê-los. E se quiser que as pessoas surgiu do movimento de direitos civis. Isto já
Richard Wrangham, que escreveu um livro trabalhem nas fábricas [envolvidas no acontecia e deve continuar. O que não gosto
chamado The Goodness Paradox [2019]. esforço de guerra] tem de lhes pagar melhor. é quando é unidimensional, quando toda a
Defende que nos domesticámos a nós E vários passos foram dados pelos governos história do passado é contada apenas como
mesmos. Tal como os lobos se tornaram cães de muitos países para garantir que o história do patriarcado branco ou da
por selecção artiÆcial, nós, racionamento funcionava para as pessoas opressão. Perdem-se as nuances e as
inconscientemente, seleccionámos as mais pobres (pensamos que o racionamento complicações da história.
pessoas com caracteres mais pacíÆcos e é haver menos comida, mas para muitas Temos de ser muito cuidadosos ao julgar
livrámo-nos dos mais violentos (foram pessoas signiÆcou, pela primeira vez na vida, as pessoas segundo os padrões do século
mortos ou executados, por exemplo). Somos que estavam a comer decentemente porque XXI, não devemos pegar numa característica
uma espécie mais gentil, mas isso tornou-nos tinham direito a uma porção de comida). Há e dizer que ela resume a pessoa. Há um
melhores na guerra porque somos muito um livro muito interessante de Walter debate no Reino Unido em torno de Winston
organizados. É o “paradoxo da bondade”: Scheidel, A Violência e a História da Churchill, que, em algumas áreas, tinha
enquanto espécie, à medida que nos Desigualdade [2018], no qual ele argumenta, visões repreensíveis (e as pessoas já achavam
tornamos mais pacíÆcos e bondosos, tal como Thomas Piketty, que as duas isso na altura, as suas ideias sobre a Índia já
tornamo-nos melhores na guerra. guerras mundiais ajudaram a comprimir os eram de extrema-direita). Mas dizer que isso
No livro, traça um retrato da guerra pólos [na escala de rendimentos] de muitas é tudo o que há para dizer sobre Churchill,
como uma actividade profundamente sociedades. Esse período de [maior] dizer que ele é apenas um imperialista
humana. A guerra feita por robôs igualdade durou cerca de 20 ou 30 anos racista, é perder de vista outros lados do seu
assassinos, guiados por inteligência após a [Segunda] Guerra [Mundial]. Hoje carácter e as outras coisas que fez. Outra
artificial, tem uma natureza diferente? estamos a ver o seu desmantelamento e o pessoa alvo de debate [no Reino Unido] é
Há dois perigos. Um: é possível que países crescimento da desigualdade nas William Gladstone, que se tornou um grande
com tecnologia avançada travem guerras sociedades. primeiro-ministro liberal, mas, enquanto
sem verem as consequências. Podemos ter Escreveu um livro chamado Uses and jovem, defendeu a escravidão num discurso
um homem sentado no Sudoeste americano Abuses of History (2008). Como vê as e tinha família com escravos. Porém, mudou
que pode matar alguém do outro lado do guerras culturais em torno da história? de ideias e entendeu que a escravidão era
mundo usando um drone assassino. O que é A história é sempre rever a nossa visão do uma coisa muito má. Temos de permitir às
que isso faz? Desligamo-nos, vemos aquilo passado. Quando as pessoas dizem “é altura pessoas que sejam complicadas e tenham
como um videojogo ou ainda nos mantemos de olhar para os oprimidos”, na verdade, já o visões diferentes em tempos diferentes e
conscientes das consequências do que fazemos há muito tempo. Lembro-me de, mudem de ideias. Não acho que o nosso
fazemos? A outra coisa é o uso de armas nos anos 1960, ir a seminários sobre a trabalho seja ter uma checklist de pessoas
autónomas, robôs assassinos. Em que boas e pessoas más do passado. Como
usavam-se coisas como jornais, livros e momento escapam de qualquer controlo historiadores, devemos ter em conta a
pregadores itinerantes; durante a guerra, humano? complexidade do passado.
deixavam-se cair folhetos a partir de aviões; Dou seminários em Washington a militares Não trocar uma narrativa simples por
na II Guerra Mundial, usou-se a rádio. Hoje, e houve um piloto que disse que estava a outra?
cada vez mais os países usam a Internet e as tornar-se obsoleto: a próxima geração de Sim.
redes sociais. aviões de combate, no Æm dos anos 2020, Mas há também quem idealize o passado.
A Rússia não é um país forte. Ocupa uma não terá pilotos, da mesma forma que os Vemo-lo no culto de personalidades
enorme massa de terra, mas, se olharmos
para a economia, a taxa de natalidade e os
navios não terão pessoas a bordo.
Talvez precisemos de uma nova
Não gosto da como Churchill, quase como
contraponto aos líderes actuais,
muitos problemas na Rússia, constatamos
que não é um poder muito grande. E tem
convenção de Genebra que regule essa
nova guerra. No livro, mostra como
história quando alegadamente vazios de gravitas, com
menos carisma e estatura moral. Não é
vizinhos... neste momento, a China é amiga,
mas quem sabe quanto tempo isso vai durar?
houve várias estratégias para o fazer. Os
gregos antigos tinham regras sobre é unidimensional, inevitável que assim seja quando os
políticos de hoje são muito mais
Os dois países têm uma relação muito
complexa, que pode piorar. Mas o que [a
quando um dos lados deveria admitir a
derrota, como se de um desporto se quando o passado escrutinados? Há menos espaço para
construir figuras míticas...
Rússia] pode fazer é usar as armas dos fracos
e pode sempre negar que o está a fazer. Putin
tratasse. A Igreja Católica medieval pedia
que não se lutasse nos dias sagrados. é contado apenas Há uma tendência para olhar para o passado
e achar que as coisas eram muito melhores,
diz: “Bot farms? Nunca ouvi falar de tal Estas convenções são uma forma de que eles eram gigantes e que agora só temos
coisa.” Mas elas não existiriam se ele ou
alguém do seu Governo não as aprovasse. E
“normalizar” o horror da guerra?
Porque parecem irracionais do ponto de
como história do pessoas pequenas. Temos de ter cuidado. Se
não fosse a II Guerra Mundial, Churchill seria
agora há os ciberataques com pedidos de
resgate. O sistema de saúde de uma das
vista estritamente militar...
Parecem irracionais, mas continuamos a
patriarcado branco lembrado como um político sem grande
sucesso. Percebo o que diz sobre o escrutínio
províncias do Canadá foi sequestrado por
um grupo que provavelmente está na Rússia,
tentar fazê-lo. Tentamos ter leis e
convenções. Como se pede um cessar-fogo?
ou da opressão dos políticos: agora é incessante, não podem
bocejar sem que alguém diga que parecem
a maioria [desses grupos] parece estar [na
Rússia]. Estas são versões modernas do que
Agitando uma bandeira branca. Como se
começa uma guerra? a? Costumava enviar-se
g
Margaret aborrecidos. Esta tendência recente, que
acho des
desprezível, de manifestantes irem a
sempre aconteceu, mesmo em tempos de
paz: usar propaganda e outros meios para
rmal. Mesmo quando os
uma declaração formal.
japoneses atacaram m Pearl Harbor,
MacMillan casa de lí
saúde e g
líderes políticos ou responsáveis de
gritarem à família, a crianças, e
perturbar o inimigo. endereçaram uma declaração aos EUA — fazerem ameaças... Porque é que alguém
No livro, parece discordar de Steven chegou lá um pouco o tarde, mas Æzeram-no. haveria de
d querer ir para a política? E talvez
Pinker, que defende que o mundo está em devemos tentar
Tolstoi disse que nem os públic
públicos sejam irrazoáveis: esperamos
cada vez mais pacífico... controlar a guerra porque ocultaremos a sua que os líd
líderes políticos sejam melhores do
Penso que o livro [de Pinker Os Anjos Bons da verdadeira natureza, a, o que é uma coisa má. que nós, Æcamos horrorizados se soubermos
Nossa Natureza] foi extremamente mos de continuar a tentar e
Não concordo: temos de um cacaso extraconjugal de um líder
estimulante. Ele está a falar de violência, mas a tentar limitar os danos da guerra para civis, político. Não temos os mesmos padrões para
penso que a guerra é outra coisa. A guerra porque são tantas vezes vítimas inocentes. nós mesm
mesmos.
não é o tipo de violência que costumamos gam da Etiópia... é
Os relatos que chegam E os líde
líderes do passado também tiveram
ver em sociedades em que há discussões em rendo o que está a
absolutamente horrendo falhas...
frente ao bar. Concordo com ele quando diz acontecer a civis. Sim. E há algo a dizer sobre as pessoas
que, de certa maneira, tornamo-nos mais dentifica várias
O seu novo livro identifica aprender
aprenderem com os seus próprios erros:
modernos, já não temos execuções públicas, ositivas das guerras.
consequências positivas Churchil
Churchill e Roosevelt tornaram-se líderes
temos várias proibições sobre eliminar vidas, Qual destacaria? melhores porque cometeram erros,
tornámo-nos menos violentos (não todas as Depende do país, mas o aumento da aceitaram
aceitaram-nos e aprenderam com eles. Não
sociedades, não acho que seja assim nos igualdade social. Emm alguns países, resultado se deve cculpar as pessoas por apenas uma
EUA). Mas a guerra é altamente organizada, egunda Guerras mundiais,
da Primeira e da Segunda coisa que Æzeram.
14 • Público • Domingo, 5 de Dezembro de 2021
1.
Taiwan, a ilha Formosa, é hoje único governo da China. Em simultâneo, salvaguardar a unidade nacional a todo o
um ponto crítico maior da retiraram o reconhecimento à República da custo.”
geopolítica do século XXI. A China (Taiwan). Com esta transformação,
centralidade que a questão Taiwan Æcou na situação paradoxal em que 5. Face a uma envolvente tão adversa e
ganhou na política mundial se encontra hoje, que será explicada com marcada, ao longo da história, por diversas
dos últimos tempos é algo mais detalhe em seguida. crises político-militares graves, é
relativamente novo, sendo surpreendente o enorme sucesso
uma consequência directa da 3. Ao contrário do que se poderia supor, o económico e tecnológico conseguido por
ascensão da China e da crescente apoio político-económico-militar dos EUA a Taiwan. Importa notar que estamos a falar
importância da Ásia-PacíÆco. Todavia, a Taiwan não terminou com o de um território que é cerca de 40% do
origem da questão é relativamente antiga, reconhecimento da República Popular da português — com aproximadamente 36 mil
datando do mundo do pós-Segunda Guerra China. Numa manobra diplomática feita km2 — densamente povoado, como é usual
Mundial. Nessa época, as forças comunistas gradualmente ao longo dos anos 1970 — nesta parte do mundo, tendo uma
de Mao Tsetung (Mao Zedong) venceram a iniciada com Richard Nixon e o seu população de cerca de 23,5 milhões de
guerra civil e fundaram a República Popular secretário de Estado, Henry Kissinger e que pessoas, ou seja, mais do dobro da
da China. Quanto ao governo do culminou com Jimmy Carter —, os portuguesa. Nesta altura será a 22.ª
Kuomintang (Partido Nacionalista Chinês) norte-americanos normalizaram a sua economia mundial. Todavia, mais
de Chiang Kai-shek, acabou por se ver relação política com a China (vista como um importante do que tudo isso, é o seu papel
forçado a retirar para a ilha de Taiwan em contrapeso estratégico útil da União na indústria de alta tecnologia e nas suas
Ænais de 1949. (Entre 1895 e 1945, Taiwan foi Soviética). No entanto, não deixaram de cadeias de abastecimento globais, tendo um
uma colónia do Japão.) Foi nesse contexto apoiar Taiwan, agora não como posicionamento crítico na economia high
que surgiram dois governos a disputar a representante legítimo do Estado chinês, tech, com fortes ligações às empresas
legitimidade, dividindo-se o mundo exterior mas numa fórmula mais ambígua em termos tecnológicas e da nova economia digital de
entre o reconhecimento do novo governo jurídicos e diplomáticos, como um território Mão-de-obra qualificada Silicon Valley, na Califórnia, EUA.
comunista em Pequim e o reconhecimento com direito a decidir o seu destino político e Ao lado, áreas de produção da United Em 2016, sob o actual governo de Tsai
do anterior que se refugiou em Taiwan. a defender-se. Microelectronics Corporation, em Ing-wen, Taiwan lançou um novo plano para
Inicialmente, o reconhecimento pendeu Assim, em 1982, sob o governo de Ronald Hsinchu, uma das mais importantes reforçar esse posicionamento tentando
para o lado de Chiang Kai-shek em Taipé, ou Reagan, os EUA reforçaram o apoio a empresas de circuitos integrados de transformar-se na “Silicon Valley da Ásia”
seja, para a República da China (Taiwan), Taiwan através daquilo que Æcou conhecido Taiwan, fundada em 1980. Desde o final do século XXI. Para uma ilha que nos anos
ocupando o seu governo o lugar da China como as “Seis Garantias”. Foram aí dos anos 1960 que o território aposta 1950 ainda era largamente agrícola e que
nas Nações Unidas, incluindo o de membro enunciadas várias directrizes para conduzir na formação de uma mão-de-obra nos anos 1960 tinha uma indústria
permanente do Conselho de Segurança. as relações com Taiwan comprometendo-se altamente qualificada nesta área. Em essencialmente têxtil, a transformação é
os norte-americanos a não praticar cima, Chiang Kai-shek, que se retirou notável. Como é habitual na Ásia (casos do
2. Nos anos 1970 ocorreu uma viragem quaisquer actos que fragilizassem, quer em para Taiwan em finais de 1949, depois Japão, Coreia do Sul ou Singapura, por
drástica a favor da República Popular da termos políticos, quer em termos de da derrota na guerra civil chinesa exemplo), o desenvolvimento da indústria
China e do Governo comunista de Pequim. segurança, a posição da ilha face à China, de electrónica de Taiwan foi largamente
Há dois momentos-chave nessa tais como: (i) estabelecer uma data para assente numa política industrial dirigista,
transformação que nos levam à situação acabar com as vendas de armas a Taiwan; Defesa Nacional da China numa Nova Era. inicialmente ligada à montagem de rádios e
político-jurídica actual, os quais importa (ii) alterar os termos da Lei de Relações de Nesse documento, no Capítulo I (Situação televisões para empresas japonesas que
aqui lembrar. O primeiro foi a Resolução n.º Taiwan; (iii) consultar previamente a China de Segurança Internacional), pode ler-se o exportavam para os EUA.
2758 da Assembleia Geral das Nações Unidas antes de tomar decisões sobre as vendas de seguinte: “As forças separatistas Ainda nos anos 1960, foi dado um passo
de 25 de Outubro de 1971. Através dela, a armamento dos EUA a Taiwan; (iv) efectuar ‘independentistas de Taiwan’ e as suas crucial para uma futura economia high tech,
República Popular da China e o seu governo mediação entre Taiwan e a China; (v) alterar acções continuam a ser a mais grave ameaça através da criação do laboratório de
obtiveram uma grande vitória, pois foram a sua posição sobre a soberania de Taiwan, imediata à paz e estabilidade no Estreito de semicondutores na Universidade Nacional
declarados como sendo o “único questão que seria decidida paciÆcamente Taiwan e a maior barreira que impede a Chiao Tung, o qual abriu caminho à
representante legítimo da China perante as pelos próprios chineses, não pressionando reuniÆcação pacíÆca do país.” formação de uma mão-de-obra altamente
Nações Unidas”. Ao mesmo tempo, na Taiwan a entrar em negociações com a Em seguida, no Capítulo II (A Política qualiÆcada. Assim, em Ænais da década, já a
mesma resolução determinava-se que China; (vi) reconhecer formalmente a Defensiva Nacional de Defesa da China na multinacional norte-americana Radio
deveriam, de imediato, ser removidos da soberania chinesa sobre Taiwan. Nova Era), aÆrma-se que “resolver a questão Corporation of America (RCA) instalava
ONU e de todos os organismos com ela de Taiwan e conseguir a reuniÆcação fábricas em Taiwan atraída pela qualidade e
relacionados “os representantes de Chiang 4. Se os norte-americanos assumiram completa do país é do interesse especialização da sua mão-de-obra e
Kai-shek dos cargos anteriormente um compromisso com o status de fundamental da nação chinesa e essencial salários relativamente baixos.
ocupados ilegalmente”. O segundo Taiwan após reconhecerem a China — para a realização do rejuvenescimento
momento, que acaba por ser também uma apenas deixando a porta aberta a um nacional. A China adere aos princípios da 6. Um outro marco fundamental da
consequência do anterior, ocorreu a 1 de hipotética integração voluntária da ilha —, ‘reuniÆcação pacíÆca’, e ‘um país, dois transformação de Taiwan foi a criação, em
Janeiro de 1979. Nessa altura, os EUA, com já para os chineses a recuperação de sistemas’ […]. Não fazemos qualquer Ænais dos anos 1980, sob impulso
Jimmy Carter no poder, reconheceram a Taiwan é central na sua política e promessa de renunciar ao uso da força, e governamental, da Taiwan Semiconductor
República Popular da China fundada em estratégia. É isso que ressalta também do reservamos a opção de tomar todas as Manufacturing Co. (TSMC). A empresa é
1949 por Mao Tsetung e estabeleceram importantíssimo lugar que a questão medidas necessárias. O [Exército chinês] irá hoje central nas cadeias de abastecimento
relações diplomáticas com esta, ocupa no último documento estratégico derrotar resolutamente qualquer pessoa globais de semicondutores da indústria
reconhecendo o governo de Pequim como o nacional publicado em 2019 sob o título A que tente separar Taiwan da China e electrónica e economia digital, como c
ãs nas cadeias de
semicondutores
16 • Público • Domingo, 5 de Dezembro de 2021
elevadíssima complexidade do comércio imagem mais precisa da sua real Um modelo comum, muito usado pelas
internacional contemporâneo. importância tecnológica e económica e empresas norte-americanas de Silicon
Como é explicado no GlobalValue como esta se poderá traduzir num poder Valley, é a fabless manufacturing
Chain-Development Report2019 da geopolítico, potencial ou efectivo. (manufactura integrada sem fábrica).
Organização Mundial do Comércio (p. 1), A indústria de semicondutores integra Assenta na concepção e subcontrata as
“mais de dois terços do comércio mundial diversas subtarefas que é necessário ter em restantes tarefas, habitualmente noutras
ocorrem através de cadeias de valor globais conta: a da concepção ou design, que partes do mundo (sobretudo Ásia).
(GVC), nas quais a produção atravessa pelo envolve as empresas que concebem É aqui que entra Taiwan e em particular o
menos uma fronteira, e tipicamente muitas circuitos integrados para desempenhar uma caso da já referida TSCM. Como a própria
fronteiras, antes da montagem Ænal. O determinada função; a do fabrico empresa explica, “foi pioneira no modelo de
fenomenal crescimento do comércio propriamente dito onde estes são negócios de fundição pura, concentrando-se
relacionado com o GVC traduziu-se num manufacturados Æsicamente (e cujas exclusivamente na fabricação dos produtos
crescimento económico signiÆcativo em empresas são designadas por fundições); a dos clientes. Ao optar por não projectar,
muitos países em todo o mundo nas últimas da montagem e teste onde é feita a fabricar ou comercializar nenhum produto
duas décadas, alimentado por reduções nos adequação do produto a um determinado semicondutor sob seu próprio nome, a
custos de transporte e comunicações. [...] fabricante para incorporar no seu empresa garante que nunca irá competir
Além disso, novos desenvolvimentos equipamento especíÆco (smartphone, directamente com seus clientes. Hoje, a
tecnológicos como a robótica, grandes televisão, automóvel, etc.). Por último, há TSMC é a maior fundição de
dados, e a Internet das Coisas (IoT) estão a ainda os fabricantes dos equipamentos e semicondutores do mundo, fabricando
começar a reformular e a transformar ainda maquinaria necessários para a produção e 10.761 produtos diferentes usando 272
mais as GVC”. montagem. tecnologias distintas para 499 clientes
Quer dizer, o comércio internacional Tecnologia e “uso da força” diferentes em 2019”. A título de exemplo, a
contemporâneo é largamente efectuado ao 10. Na maioria dos casos, as empresas No topo, placa de semicondutores na empresa norte-americana Apple representa
longo da cadeia de valor de um determinado operam apenas numa das áreas Semicom 2020, a segunda feira da mais de 20% da receita da TSMC.
bem, com múltiplas participações de anteriormente explicitadas, subcontratando especialidade mais importante do
empresas de diferentes países na mesma. as outras tarefas da cadeia de valor do mundo, que decorre em Taipé. Em 11. Estamos agora em condições de perceber
Implica uma nova divisão internacional do produto. A parte mais lucrativa é a da cima, Chiang Kai-shek, à dir., e Mao melhor a interligação entre a indústria de
trabalho que se afasta do modelo clássico, concepção ou design, superando Tsetung — a China reclama uma semicondutores e a geopolítica da questão
onde cada país se especializava na produção signiÆcativamente em retorno Ænanceiro a “reunificação pacífica” com a ilha, de Taiwan. A ilha tem uma posição crucial,
(integral) de um bem diferente. do fabrico propriamente dito e ainda mais a mas não descarta o “uso da força” especialmente, como foi notado, numa
parte da montagem — esta última é a menos tarefa especíÆca da cadeia de abastecimento
8. Estando o comércio e a economia global lucrativa e onde há maior competição global dos semicondutores que é da
de hoje largamente assentes em cadeias de internacional. fabricação (fundição). Ao mesmo tempo,
Público • Domingo, 5 de Dezembro de 2021 • 17
está a tentar reforçar o seu posicionamento ligados a esse sector empresarial e militar, incluindo a norte-americana e
na concepção (design) de semicondutores, tecnológico. Todavia, não é essa a realidade passaria a ter uma supremacia nas cadeias
através do plano Silicon Valley da Ásia, que que vivemos. Taiwan está actualmente no globais de abastecimento de
é a parte mais soÆsticada e também a mais meio de uma luta titânica pela supremacia semicondutores.
lucrativa da indústria de semicondutores. mundial entre os EUA e a China que, tudo De forma inversa, para os EUA, esse é um
Quanto aos EUA, mantêm uma larga indica, irá marcar o século XXI. cenário de pesadelo. Não só dariam sinais
supremacia nessa concepção — o que lhes Para a China, a ilha de Taiwan é uma de fraqueza político-militar aos seus aliados
dá uma vantagem tecnológica, económica e
também geopolítica substancial —, mas
Taiwan está “província rebelde” que, mais tarde ou mais
cedo, terá de voltar à pátria chinesa, não
na Ásia e resto do mundo, como perderiam
uma peça importante para manterem a
dependem, para terem o produto
intermédio ou Ænal para uso, do seu fabrico
actualmente descartando uso da força para esse efeito.
Aqui misturam-se sentimentos de orgulho
supremacia tecnológica. É necessário
lembrar aqui o elevadíssimo grau de
por empresas localizadas na Ásia, numa
parte substancial originárias de Taiwan (e,
no meio de uma nacional com as feridas da guerra civil
chinesa herdadas dos anos 1930 e 1940,
integração de Taiwan com o sector
tecnológico e a economia digital
desde logo, da referida TSCM), mas também
na Coreia do Sul e Japão. (Este último, tal luta titânica pela ainda não totalmente fechadas. Para além
do peso da histórica e do simbólico, há um
norte-americana.
No entanto, uma hipotética guerra seria
como a União Europeia, está a procurar
relançar a sua indústria nessa área.) supremacia enorme interesse económico da China face a
Taiwan.
desastrosa, não só pelas vítimas e destruição
material que causaria, como pelos
Por sua vez, a China e as suas empresas
estão sobretudo posicionadas nas tarefas de mundial entre Após a abertura económica chinesa no
início da década de 1980, os empresários da
tremendos efeitos que teria na economia
mundial. Nem a China, nem os EUA
montagem e dependem, assim, nos ilha, quer pela proximidade cultural, quer escapariam a uma desarticulação das
semicondutores que necessitam, quer de
Taiwan e outros (na parte de fabrico), quer
os EUA e a China pelos baixos custos, quer pelos incentivos
do Governo de Pequim, foram dos que mais
cadeias de abastecimento globais, que
paralisariam grande parte da actividade
dos EUA (na parte de concepção). Ao
mesmo tempo, a China está a tentar dar um
que, tudo indica, investiram na China continental. Por essa
via a China obteve, de forma directa ou
económica com consequências desastrosas
para ambos e o mundo.
salto tecnológico e implementou o
programa Made in China 2025, com
irá marcar indirecta, importantes investimentos e
transferências de tecnologia para o seu
Para além da necessária balança de
poderes na Ásia-PacíÆco, talvez este elevado
objectivos que incluem também aumentar
substancialmente a sua autonomia na
o século XXI desenvolvimento.
Podemos imaginar o trunfo
grau de integração económico-comercial seja
mesmo a chave da paz na questão de Taiwan.
indústria de semicondutores. José Pedro Teixeira económico-tecnológico-geopolítico que a
China terá se conseguir integrar (ou anexar) Investigador do IPRI-Nova —
12. Num mundo sem competição
geopolítica, tudo isto seriam apenas
Fernandes Taiwan, pela sua pressão político-militar ou
usando o seu soft power. Absorveria valiosa
Universidade Nova de Lisboa;
coordenador do Observatório do
aspectos relevantes para os que estão tecnologia de ponta de duplo uso, civil e Comércio Internacional do ISCET
18 • Público • Domingo, 5 de Dezembro de 2021
Semana de lazer
Por Sílvia Pereira
lazer@publico.pt
Humor P
PORTO Ferro Comedy Club
De 7 a 12 de Dezembro, às 18h30
D
Rir à grande e à portuguesa (p
(programa detalhado em
Apresenta-se como o “maior festival de stand-up comedy de sempre realizado w
www.facebook.com/
em Portugal” e a afirmação é para levar a sério: são 50 os humoristas que P
PortoComedyFest).
participam no Porto Comedy Fest. Eduardo Marques é o anfitrião e programador.or. B
Bilhetes a 10€ (2€ a 5€ para
À cabeça do cartaz vêm Joana Gama (na imagem), Luana do Bem, Daniel p
podcasts ao vivo)
o,
Carapeto, Salvador Martinha, Guilherme Duarte, André de Freitas, Pedro Durão,
Guilherme Fonseca, Pedro Sousa e Vasco Elvas. E, além das actuações, que se
o.
sucedem ao longo de cinco dias, há podcasts ao vivo, reservados para o último.
Dia de Äcar
QUALIDADE DO AR
SUDOKU © Alastair Chisholm 2008
www.indigopuzzles.com Portugal
Sagres 17º
Solução do problema 10.863 9º
16º Porto Muito Bom
13º Faro 16º
0,5m Coimbra Bom
Estar bem
GETTY IMAGES/ISTOCKPHOTO
Use a brincadeira
Se precisar de interromper a
birra, tente dizer alguma coisa en-
graçada ao seu Ælho ou fazer uma
careta. Uma criança muito desregu-
lada pode manter o seu sentimento
forte, mas não vai conseguir rir e
ter um acesso de raiva ao mesmo
tempo.
A sua presença
é muito importante
Nunca abandone uma criança no
momento de uma birra. Além de não
o ajudar a regular-se, vai dar-lhe uma
sensação de abandono terrível.
Evite fazer uma cena
Tente evitar fazer uma birra tam-
bém! Na maior parte dos casos, os
adultos são os responsáveis por pro-
longarem a birra. O seu córtex está
incapaz de responder, por isso os
“sermões” vão apenas contribuir
para manter a situação, são “mais
lenha para a fogueira”.
Prevenir
Para conseguir ajudar o seu Ælho a
desenvolver capacidades de regula-
ção, é importante passar tempo a
brincar com ele. Nessa brincadeira
deixe a criança liderar a escolha da
brincadeira e dê-lhe toda a atenção.
Ter esta experiência positiva consi-
go fornecer-lhe-á as bases para se
acalmar da próxima vez que Æcar
desregulada numa birra.
Atenção aos gatilhos
Esteja atenta às situações que ten-
dem a gerar uma birra, e esteja pre-
parada: se o seu Ælho Æca irritado
quando tem fome, tenha sempre
Obituário
CLAUDIO LAVENIA/GETTY IMAGES
O criador que
mudou a moda
de luxo (pelo
menos em 3%)
Nunca se intitulou designer, mas sim
“alguém que faz acontecer”. O director
criativo de moda masculina da Louis
Vuitton morreu aos 41 anos
Por Inês Duarte de Freitas
Foi a mãe que o ensinou a costurar “director criativo”, quando tentava
e nunca se auto-intitulou designer, lançar uma carreira a solo na
mas sim “maker” — alguém que faz música. Ambos partilhavam o
acontecer. Aos 40 anos, tornou-se sonho da moda e foi com o rapper
o homem negro mais poderoso que viu pela primeira vez a Semana
numa casa de moda de luxo, ao da Moda de Paris, onde se
somar vários cargos na LVMH. Nos apercebeu de que “a moda estava
últimos dias, tem sido descrito estagnada”, recordou numa
como “visionário”, “génio”, entrevista à revista GQ, em 2019.
“agitador” e “incrível” pelas mais “O streetwear não estava no radar
diversas personalidades do mundo de ninguém. Foi com isso em
da alta-costura. Virgil Abloh mente que desenvolvi as minhas
morreu aos 41 anos, no último ideias.” Virgil Abloh e Kanye West
domingo, depois de complicações eram inseparáveis e, em 2009,
provocadas por um cancro. O seu Æzeram um estágio na Fendi, com
legado continuará vivo nas Kim Jones. Nesse ano, pediu a
gerações vindouras, já que namorada de uma década em
contribuiu para mudar a face da casamento, Shannon Sundberg, por exemplo. A Oè-White foi primeiros negros na liderança de
moda, dizem os especialistas.
Mas antes do legado que o
hoje mãe dos seus dois Ælhos, Grey
e Lowe. A partir desta altura,
Virgil Abloh caminhando em direcção ao luxo.
Para assinalar os 20 anos da morte
uma casa de luxo francesa —
Olivier Rousteing estava na
criador deixou na moda, é
importante recuar ao início. Virgil
Abloh nasceu a 30 de Setembro de
começou a escalada de Virgil
Abloh: tornou-se director criativo
da Donda, a agência criativa de
1980-2021 da princesa Diana, apresentou a
colecção Natural Woman, onde o
combinado Ænal, usado pela
Balmain desde 2011. Virgil Abloh
dizia que criava para o seu “eu” de
17 anos, que vivia fascinado com as
1980, em Rockford, Illinois, EUA,
Ælho de Eunice e Nee Abloh,
Kanye West, onde desenhava capas
dos álbuns do artista e não só;
Criador supermodelo Naomi Campbell, era
um blazer inspirado no vestido que
grandes casas de luxo e os seus
logótipos. A crença reflectia-se no
imigrantes do Gana. O pai
trabalhava numa empresa de
criou a BenTrill, em 2012, um
colectivo de DJ e criativos, com os de moda a ex-mulher do príncipe Carlos
usou na noite em que o herdeiro
trabalho que fez na Louis Vuitton,
ainda que sempre se tivesse
pintura e a mãe era costureira — designers Heron Preston e do trono confessou o caso com afastado da abordagem redutora e
ofício que ensinaria ao Ælho. Na Matthew Williams; pouco depois, Camila Parker Bowles. Dedicava-se muitas vezes tentadora para
adolescência, imerso na cultura do nasceu a marca Pyrex Vision, indústria e a comunidade de tanto à moda feminina como marcas como a LV, de reinventar o
skate, do futebol e dos graffiti, inicialmente um projecto inspirado designers, que consideravam o seu masculina e, em Julho de 2017, na que já tinha sido feito. Usava e
desenhou as primeiras T-shirts. no desporto, mas que viria a trabalho uma cópia, por recorrer a Pitti Uomo, a feira de moda abusava das sobreposições, não só
Abloh não estudou Moda, mas sim tornar-se na Oè-White, marca referências de outros criadores. masculina de Florença, usou o de peças, mas também de
Engenharia Civil na Universidade criada em 2013 e onde começa a Mas Virgil Abloh tinha uma palco para apresentar uma referências culturais e os seus
de Winconsin-Madison. Depois, fez sua assinatura. E que assinatura é resposta à medida, que se tornaria colaboração com a artista Jenny desÆles sempre se distinguiram
um mestrado em Arquitectura. essa? Inicialmente, o mundo da na sua assinatura e num incentivo Holzer, onde nas peças estavam pela irreverência.
Durante os estudos já cultivava o moda categorizava a Oè-White aos jovens criadores — a “regra gravados excertos de poemas de Em 2019, afastou-se algum
espírito empreendedor: com o como uma marca de streetwear, dos 3%”. O conceito foi abordado refugiados da crise de imigração tempo da rotina de dividir o tempo
colega de quarto, Gabriel Stulman, mas Abloh dizia-se “inÇexível” pela primeira vez numa palestra internacional que então se vivia. entre Paris e Chicago. Sabe-se
organizava jantares para outros quanto a esse tema. À GQ, o em Harvard, em 2017, onde A abordagem de Virgil Abloh, agora que terá sido, nesse período,
estudantes e lançou-se como DJ. criador garantia que a marca era explorou a ideia de que se pode explicou em várias entrevistas, era diagnosticado com angiossarcoma
Por esta altura, dizia-se “muito “criação de designer”: “Tal como o pegar num design antigo e mudá-lo chegar primeiro ao consumidor, cardíaco, um tumor maligno raro
inspirado” pelo trabalho de Rem designer X, Y ou Z, onde, quando ligeiramente, classificando-o depois, por acréscimo, a indústria situado ao nível do coração.
Koolhaas, que, além de arquitecto, se diz o nome deles, passa estima e como algo de novo. “Desde que se da moda notá-lo-ia. Foi isso que Escolheu viver a doença de forma
também desenhou colecções para emoção.” Na altura, não existiam mude 3%, será um novo design”, terá acontecido, em 2018, quando privada e manteve sempre a vida
a Prada. Em 2002, aos 22 anos, marcas de luxo dedicadas a este dizia. O criador recorria muitas a Louis Vuitton o contratou para proÆssional activa.
conheceu alguém que viria a estilo de roupa e o afro-americano vezes às “aspas” para criar uma director criativo de moda Donatella Versace intitulou-o
moldar o seu futuro — orapper foi pioneiro nesse sentido. Esse novidade, ao adicionar uma masculina. Também aí foi “um criador de moda para os livros
Kanye West, que o contratou para trabalho gerou críticas entre a citação a uma peça já existente, “pioneiro”, tornando-se um dos de História”.
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