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DOI: 10.33242/rbdc.2020.04.

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RESENHA À OBRA FUNDAMENTOS DE


DIREITO CIVIL – RESPONSABILIDADE CIVIL,
DE TEPEDINO, GUSTAVO; TERRA, ALINE
DE MIRANDA VALVERDE; GUEDES, GISELA
SAMPAIO DA CRUZ. RIO DE JANEIRO:
FORENSE, 2020. V. 4

Judith Martins-Costa
Foi Professora de Direito Civil na Faculdade de Direito da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul entre 1992 e 2010. É Livre-Docente e Doutora em Direito pela
Universidade de São Paulo. Presidente do Instituto de Estudos Culturalistas – IEC.
Membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas. Membro da Societé de Legislation
Comparée e da Association Internationale de Sciences Juridiques. Advogada e
sócia fundadora de Judith Martins-Costa Advogados. Parecerista e Árbitra.

Num ensaio justamente célebre –1 por sua profundidade e pelas reflexões


que suscita – Michel Villey, filósofo do direito, apontou ao seu desconforto a cada
vez que ouvia discorrer sobre o tema da responsabilidade. Sua malaise, confessa-
va então, advinha da polissemia da palavra “responsável”, consequência de sua
evolução, o que o levou a discernir, nos arcanos da história, as distintas e acu-
muladas camadas de estruturas semânticas diversas – e, mesmo, dos distintos
sistemas de pensamento – que, no mencionado texto, se dispôs a clarear.
Primeiramente, diz Villey, havia a garantia: um dano sendo causado, bus-
cava-se quem deveria por ele responder. O sponsor era um devedor, o responsor
sendo quem dava a caução pela dívida alheia. A palavra responder, diz ainda,
implicava, na origem, a ideia de haver uma garantia (e um garante) pelo curso dos
acontecimentos. No direito romano, o Leitmotiv do regime de reparação não é a
culpa, mas uma defesa da justa reparação entre os bens: suum cuique tribuere.
Justiça corretiva, portanto. Em vão se buscará no latim de então as palavras “res-
ponsável” ou “responsabilidade”. Apenas na Idade Média essas palavras serão

1
VILLEY, Michel. Esquisse historique sur le mot responsable. In: BOULET-SAUTEL et alii. La Responsabilité
à travers les Âges. Paris: Economica 1989. p. 75-88.

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criadas sobre a voz passiva do verbo responder. O novo adjetivo – responsável –


se amarra ao sujeito ao qual incumbe ativamente dar uma resposta a uma situação
de desequilíbrio resultante de um dano.
Apenas quando, em seguimento à destruição da cultura romana, no séc. V
d.C., a literatura religiosa passa a dominar a cena, a palavra “responsável” é cap-
turada e revestida por um sentido subjetivado e moral: responsável é o culpado.
Transplantada ao terreno laico, a ideia remanesce: responsável é quem agiu cul-
posamente contra alguém. O direito civil, no jusracionalismo, é o prolongamento
da moral. Assim a responsabilidade civil, como instituto jurídico, ingressa nos
primeiros códigos civis. Por muito tempo se pensará não haver responsabilidade
se não houver culpa,2 como quisera Domat, um dos cérebros por detrás do Code
Civil francês de 1804, paradigma dos códigos civis modernos.
Duzentos anos se passaram e as transformações, desde então, foram imen-
sas e multicausais: determinadas lesões passaram a ser percebidas socialmente
como danos, no sentido jurídico do termo, isto é, lesões a interesses juridicamen-
te tutelados, como, exemplificativamente, as lesões a bens jurídicos integrantes
da esfera da personalidade humana; as formas de produção econômica típicas da
sociedade massificada ensejaram a entrada, nos domínios da responsabilidade
civil, dos danos de massa que, para além de violarem o patrimônio ou a esfera
da personalidade de um grande número de pessoas, “surgem como um fator de
desestabilização da sociedade”,3 pois a confrontam com técnicas cada vez mais
hostis à segurança, tornando-nos a todos pessoas fundamentalmente vulnerá-
veis. E foram imensas também porque a responsabilidade passa por um lento,
mas inexorável, processo de de-subjetivação. Sua função volta a se aproximar
daquela que os romanos lhe haviam atribuído, um sentido objetivado. Hoje em dia,
a responsabilidade civil configura um dos mecanismos de garantia da distribuição
dos riscos sociais, ao lado de outros, como, exemplificativamente, o seguro, os
mecanismos de indenização coletiva (e.g., fundos públicos ou privados visando ao
ressarcimento de vítimas de certos riscos sociais), ou as obrigações de segurança
coladas a certos tipos contratuais.4
É preciso identificar, no entanto, o que torna peculiar o instituto da respon-
sabilidade civil em face dos demais mecanismos de atribuição e distribuição dos
riscos decorrentes do fato de vivermos em sociedade. E o seu traço característico

2
JOURDAIN, Patrice. Les principes de la responsabilité civile. 5. ed. Paris. Dalloz, 2000. p. 9
3
Assim, GUÉGAN-LÉCUYER, Anne. Dommages de masse et responsabilité civile. Paris: LGDJ, 2006. p. 3.
4
Especificamente acerca da obrigação de segurança no contrato de transporte, vide CORREA, André
Rodrigues. Solidariedade e responsabilidade. O tratamento jurídico dos efeitos da criminalidade violenta
no transporte público de pessoas no Brasil. São Paulo: Saraiva – DireitoGV, 2009.

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em face desses outros institutos jurídicos está em que, pelo efeito da responsabi-
lidade, se estabelece um laço de atribuição (lien de rattachement) entre o evento
danoso, produzido por pessoa ou coisa, e alguém – o imputado como responsável
pela atividade exercida.5
A partir desse núcleo funcional básico, torna-se possível identificar a res-
ponsabilidade civil, tarefa necessária, pois a malaise com o tema, detectada por
Villey, pode ser gerada não apenas pela polissemia da expressão, atestada his-
toricamente, mas, igualmente, pela cacofonia – revelada pelo exame de nossas
doutrina e jurisprudência – que está a cercar os termos indicadores de seus pres-
supostos e dos seus mais comuns fatores de imputação, como expressei em
texto recente.6
É, por isto, extremamente bem-vindo o livro que estou a prefaciar. Não bas-
tasse a autoridade de seus autores, por todos justamente reconhecida, o livro,
integrante de obra mais vasta e abrangente de todas as searas do direito civil,7
capitaneada pelo brilho e a extraordinária energia intelectual de Gustavo Tepedino,
torna simples sem simplificar (o que é notável virtude) um dos mais complexos e
fascinantes institutos da dogmática jurídica, apanhando-o em suas transformações.
Nesta obra, começam seus autores – o maestro Tepedino, de tão funda con-
tribuição ao direito civil brasileiro,8 Gisela Sampaio da Cruz Guedes, que nos deu
já duas incontornáveis monografias em tema de responsabilidade civil,9 e Aline de
Miranda Valverde Terra, cuja contribuição ao direito das obrigações se faz crescen-
te –10 por destacar a função, os fundamentos e os elementos da responsabilidade
civil. Enfrentam a questão da summa divisio entre responsabilidade contratual

5
JOURDAIN, Patrice. Du critère de la responsabilité civile. In: FABRE-MAGNAN, Muriel; GHESTIN, Jacques;
JOURDAIN, Patrice; BORGHETTI, Jean-Sébastien (Org.). Liber Amicorum. Études offertes à Geneviève Viney.
Paris: LGDJ, 2008. p. 553-562.
6
Refiro-me a MARTINS-COSTA, Judith. A linguagem da responsabilidade civil. In: BIANCHI, Jose Flávio et alii.
Jurisdição e direito privado. Estudos em homenagem aos 20 anos da Ministra Nancy Andrighi no STJ. São
Paulo: Thompson Reuters – Revista dos Tribunais, 2020. p. 389-418.
7
TEPEDINO, Gustavo et alii. Fundamentos do direito civil. Rio de Janeiro: GEN-Forense, 2020. Coleção
Tepedino.
8
Exemplificativamente: TEPEDINO, Gustavo. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República.
Rio de Janeiro: Renovar, 2004-2014. 4 v.; TEPEDINO, Gustavo. Soluções práticas de direito. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2012. 3 v.; TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar,
1999-2009. 3 v., tendo sido coordenador, ainda, de quase meia centena de obras jurídicas.
9
Refiro-me a GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Lucros cessantes: do bom senso ao postulado normativo
da razoabilidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012; e GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. O problema
do nexo causal na responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, além da coordenação de outras
obras, entre as quais destaco – em coautoria com Aline de Miranda Valverde Terra – o recente: GUEDES,
Gisela Sampaio da Cruz; TERRA, Aline de Miranda Valverde. Inexecução das obrigações. Pressupostos,
evolução e remédios. Rio de Janeiro: Processo, 2020. v. I.
10
Entre outras obras, destaco TERRA, Aline de Miranda Valverde. Cláusula resolutiva expressa. Belo Horizonte:
Fórum, 2017; e TERRA, Aline de Miranda Valverde. Inadimplemento anterior ao termo. Rio de Janeiro:
Renovar, 2009.

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e extracontratual, seguindo, com destaque, pelo dano, sem temor de adentrar


nos “novos danos”, assim os gerados por novas tecnologias e novas percepções
sociais. Enfocam com precisão a sempre muito complexa questão do nexo causal,
requisito inafastável da responsabilidade civil, e prosseguem pelos fatores de
imputação (culpa e risco), ingressando, então, nas grandes espécies: tem-se,
então, o estudo da responsabilidade pela perda de uma chance; por fato de ter-
ceiro; fato da coisa; a responsabilidade do Estado; a dos profissionais liberais; do
transportador; das peculiaridades que o instituto recebe no âmbito das relações
de consumo; na esfera de proteção advinda da Lei Geral de Proteção de Dados. E,
finalmente, cuidam das excludentes de ilicitude; das cláusulas limitativas do dever
de indenizar; repercussões da responsabilidade criminal na responsabilidade civil;
e o seguro de responsabilidade civil.
A apresentação é marcada pelo didatismo: há, nas margens, “glosas” ou
referências que auxiliam a localizar o tema desenvolvido na página em questão e,
ao final de cada capítulo, há um problema prático a solver – problemas só aparen-
temente singelos – mas que envolvem um profundo estudo, uma reflexão acurada
e articulada para temas que vão para além do campo da responsabilidade civil.
Exemplifiquemos com o último, que apresenta a questão de saber se a víti-
ma do dano, estando vinculada por contrato de seguro de responsabilidade civil a
uma entidade seguradora, pode acionar diretamente a seguradora a fim de obter
a indenização devida. Várias teses já foram escritas sobre o problema da chama-
da indenização direta do segurado,11 várias teorias conferem suportes teóricos a
uma ou a outra resposta, elementos processuais se mesclam ao direito material
invocável, técnicas diversas ditam os modos como a vítima será satisfeita, Código
Civil e Código de Defesa do Consumidor apresentam distintas construções acerca
desse ponto, e a jurisprudência, embora o importante passo da Súmula nº 529
(que aceita o acionamento direto desde que condicionado à citação do segurado
para vir integrar a lide, via ação direta condicionada), ainda se debate com a
possibilidade do acionamento via ação direta autônoma. Não basta, pois, proferir
meros “sim” ou “não” para chegar à resposta correta a tão (aparentemente) sin-
gelo enunciado, o que atesta a profunda utilidade da obra que estou a resenhar.
Em outro exemplo, quando questionam, ao final do capítulo acerca do regime
da responsabilidade na recente Lei Geral de Proteção de Dados, se o da respon-
sabilidade subjetiva (informada pela culpa como fator de imputação de responsa-
bilidade), se o da responsabilidade objetiva (informada pelo risco como fator de

11
Na doutrina brasileira recente vide: MELO, Gustavo de Medeiros. Ação direta da vítima no seguro de
responsabilidade civil. São Paulo: Contracorrente, 2016.

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imputação), levam o leitor a refletir não apenas sobre os regimes da responsa-


bilidade civil. A resposta correta demandará investigar questões de metodologia
da ciência do direito, a saber: regra especial afasta a geral? E se afasta, em qual
extensão?
Outros vários exemplos poderiam ser apontados, mas creio que os até aqui
destacados dão um testemunho do entrelaçamento sistemático a que a obra con-
duz. Pela exposição teórica seguida por um questionamento de ordem prática,
seus autores logram demonstrar que o direito é ciência prática, é dizer: é ciência e
é também prática, as elucubrações teóricas ensejadas pelo sistema estando sem-
pre polarizadas pelo problema ao qual se deve responder, à situação de vida que é
necessário resolver de forma racionalmente ordenada (por isto sendo o direito um
ordenamento) por meio de categorias e institutos previamente existentes.
Só nos resta, pois, aplaudir a obra e seus autores que continuam a colaborar
com a incessante e necessária tarefa de construção do direito privado.

Canela, agosto de 2020.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2018 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

TEPEDINO, Gustavo; TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio


da Cruz. Fundamentos de direito civil – Responsabilidade civil. Rio de Janeiro:
Forense, 2020. v. 4. Resenha de: MARTINS-COSTA, Judith. Revista Brasileira
de Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, v. 26, p. 263-267, out./dez. 2020.

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