OBREIROS DA
VIDA ETERNA
Psicografada por:
FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER
2 – Francisco Cândido Xavier (pelo Espírito André Luiz)
Psicografado por:
Francisco Cândido Xavier
Versão digitalizada
© 2011 – Brasil
www.luzespirita.org.br
3 – OBREIROS DA VIDA ETERNA
OBREIROS DA
VIDA ETERNA
4º livro da coleção:
A VIDA NO MUNDO ESPIRITUAL
Ditada por:
ANDRÉ LUIZ
Psicografada por:
FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER
4 – Francisco Cândido Xavier (pelo Espírito André Luiz)
Coleção:
“A Vida no Mundo Espiritual”
01 – Nosso Lar
02 – Os Mensageiros
03 – Missionários da Luz
04 – Obreiros da Vida Eterna
05 – No Mundo Maior
06 – Libertação
07 – Entre a Terra e o Céu
08 – Nos Domínios da Mediunidade
09 – Ação e Reação
10 – Evolução em Dois Mundos
11 – Mecanismos da Mediunidade
12 – Sexo e Destino
13 – E a Vida Continua...
CONVITE:
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6 – Francisco Cândido Xavier (pelo Espírito André Luiz)
Índice
Rasgando véus
1
Convite ao bem
O alimento do amor,
A veste da sabedoria,
A alegria da paz,
A força da fé,
O influxo da coragem,
A graça da esperança,
O remédio retificador!...
Ó Senhor,
Inspiração de nossas vidas,
Mestre de nossos corações,
Refugio dos séculos terrestres!
Fase brilhar teus divinos lauréis
E teus eternos dons,
Na fronte lúcida dos bons
— Os teus servos fiéis!
2
No Santuário da Bênção
atentamente, e aduzi:
— Examinei alguns casos torturantes de obsessão e possessão que me
impressionaram, sobremaneira, pela quase completa ligação mental, entre os
verdugos e as vítimas.
Barcelos esboçou significativo gesto e acentuou:
— É a terrível história viva dos crimes cometidos, em movimentação
permanente, Os cúmplices e personagens desses dramas silenciosos e muita
vez ignorados por outros homens, antecedendo os comparsas no caminho da
morte, tornam, amedrontados, ao convívio dos seus, em face das sinistras
consequências com que se defrontam além do túmulo... Agarram-se
instintivamente à organização magnética dos companheiros encarnados ainda
na Crosta, viciando-lhes os centros de força, relaxando-lhes os nervos e
abreviando o processo de extinção do tônus vital, porque têm sede das mesmas
companhias junto às quais se lançaram em pleno abismo. Exibem sempre
quadros tristes e escuros, onde se destaca a piedade de muitas almas redimidas
que tornam do Alto em compassivos gestos de intercessão e socorro urgente.
Imprimiu às considerações ligeira pausa e prosseguiu:
— Entretanto, observo, na atualidade, especialmente outro campo
alusivo ao assunto. Antes de minha volta ao plano espiritual, faminto de novas
informações referentes ao psiquismo da personalidade humana, examinei,
atento, a doutrina de Freud. Impressionado com as variações psicológicas dos
caracteres juvenis, sob minha observação direta, e apaixonado pela solução dos
profundos enigmas que envolvem a criatura terrestre, encontrei na psicanálise
um mundo novo. Todavia, por mais que eu estudasse a prodigiosa coleção dos
efeitos, jamais alcancei a tranquilidade completa na investigação das causas, no
circulo dos fenômenos em exame. Discípulo espontâneo e distante do eminente
professor de Freiberg, somente aqui pude reconhecer os elos que lhe faltam ao
sistema de positivação das origens de psicoses e desequilíbrios diversos. Os
“complexos de inferioridade”, o “recalque”, a “libido”, as “emersões do
subconsciente” não constituem fatores adquiridos no curto espaço de uma
existência terrestre e, sim, característicos da personalidade egressa das
experiências passadas. A subconsciência é, de fato, o porão dilatado de nossas
lembranças, o repositório das emoções e desejos, Impulsos e tendências que
não se projetaram na tela das realizações imediatas; no entanto, estende-se
muito além da zona limitada de tempo em que se move um aparelho físico.
Representa a estratificação de todas as lutas com as aquisições mentais e
emotivas que lhes foram consequentes, depois da utilização de vários corpos.
Faltam, pois, às teorias de Segismundo Freud e seus continuadores a noção dos
princípios reencarnacionistas e o conhecimento da verdadeira localização dos
distúrbios nervosos, cujo inicio muito raramente se verifica no campo biológico
vulgar, mas quase que invariavelmente no corpo perispiritual preexistente,
portador de sérias perturbações congênitas, em virtude das deficiências de
natureza moral, cultivadas com desvairado apego, pelo reencarnante, nas
existências transcorridas. As psicoses do sexo, as tendências inatas à
delinquência, tão bem estudadas por Lombroso, os desejos extravagantes, a
24 – Francisco Cândido Xavier (pelo Espírito André Luiz)
3
O sublime visitante
próprio, comentou:
— Os adversários, quando bem compreendidos e recebidos
cristamente, constituem precioso auxílio em nossa jornada para a União Divina.
A síntese verbal condensava explicações, que somente seriam
razoáveis em compactos discursos.
A meu ver, não obstante a beleza e edificação do ensino recolhido, o
método não recomendava extensão de perguntas de nosso lado, mas o Irmão
Raimundo, do grupo socorrista dedicado à assistência aos loucos, tomou a
iniciativa e interrogou:
— Tolerante amigo, que fazer ante as dificuldades que me defrontam
nos serviços marginais da tarefa? Interessando a órbita de nossos deveres,
junto dos desequilibrados mentais da Crosta Terrestre, venho assistindo certo
agrupamento de irmãos encarnados que não estão interpretando as obrigações
evangélicas como deviam. Em verdade, convocam-nos à colaboração espiritual,
pronunciando belas palavras, mas no terreno prático se distanciam de todas as
atitudes verbais da crença consoladora. Estimam as discussões injuriosas,
fomentam o sectarismo, dão grande apreço ao individualismo inferior que
desconsidera o esforço alheio, por mais nobilitante que seja esse. Quase
sempre, entregam-se a rixas infindáveis e gastam o tempo estudando meios de
fazerem valer as limitações que lhes são próprias. Por mais que lhes ensinemos
a humildade, recorrendo, não a nós, mas ao exemplo eterno do Cristo, mais se
arvoram em críticos impiedosos, não apenas uns dos outros, e, sim, de setores e
situações, pessoas e coisas que lhes não dizem respeito, incentivando a malícia
e a discórdia, o ciúme e o desleixo espiritual. No entanto, reúnem-se
metodicamente e nos chamam à cooperação em seus trabalhos. Que fazer,
todavia, respeitável orientador, para que maiores perturbações não se
estabeleçam?
O mensageiro esperou que o consulente se desse por satisfeito em suas
indagações e, em seguida, muito calmo, repetiu a operação anterior, e tivemos,
ante os olhos, outro pergaminho, com a inscrição do versículo onze, do capítulo
seis, da primeira epístola do Apóstolo Paulo a Timóteo:
— “Mas tu, ó homem de Deus, foge destas coisas e segue a justiça, a
piedade, a fé, a caridade, a paciência, a mansidão”.
Permaneceu Raimundo na expectativa, figurando-se-nos não haver
interpretado a advertência, quanto devia, mas a explicação sintética do
visitante não se fez esperar:
— O discípulo que segue as virtudes do Mestre, aplicando-as a si
próprio, foge às inutilidades do plano exterior, acolhendo-se ao santuário de si
mesmo, e auxilia os nossos irmãos imprevidentes e perturbados, rixosos e
ingratos, sem contaminar-se.
Registrando as palavras sábias de Asclépios, Raimundo pareceu
acordar para a verdade e murmurou, com algum desapontamento:
— Aproveitarei a lição.
Novo silêncio verificou-se entre nós.
A Irmã Luciana, porém, que nos integrava o pequeno grupo, tomou a
33 – OBREIROS DA VIDA ETERNA
palavra e perguntou:
— Esclarecido mentor, esta é a primeira vez que vou à Crosta em tarefa
definida de socorro. Podereis fornecer-me, porventura, a orientação de que
necessito?
O emissário, que parecia trazer respostas bíblicas preparadas de
antemão, desdobrou nova folha e lemos, admirados, o versículo nove do
capítulo quatro da primeira epístola do Apóstolo da Gentilidade aos
tessalonicenses:
— “Quanto, porém, à caridade fraternal, não necessitais de que vos
escreva, visto que vós mesmos estais instruídos por Deus que vos ameis uns aos
outros.”
Algo confundida, Luciana observou, reverente:
— Compreendo, compreendo...
— O Evangelho aplicado — comentou o mensageiro, delicadamente —
ensina-nos a improvisar os recursos do bem, nas situações mais difíceis.
Fez-se, de novo, extrema quietude na câmara. Talvez pelo nosso
péssimo hábito de longas conversações sem proveito, adquirido na Crosta
Planetária, não encontrávamos grande encanto naquelas respostas francas e
diretas, sem qualquer lisonja ao nosso personalismo dominante.
Rolavam instantes pesados, quando observamos a gentileza e a
sensibilidade do diretor do Santuário da Bênção. Notando que Semprônia,
Raimundo e Luciana eram alvos de nossa indiscreta curiosidade, Cornélio
inquiriu de Asclépios, como se fora mero aprendiz:
— Que fazer para conservar alegria no trabalho, perseverança no bem,
devotamento à verdade?
O mensageiro contemplou-o, num sorriso de aprovação e simpatia,
identificando-lhe o ato de amor fraternal, e descerrou novo pergaminho, em
que se lia o versículo dezesseis do capítulo cinco da primeira carta de Paulo aos
tessalonicenses:
— “Regozijai-vos sempre”.
Em seguida, falou, jovial:
— A confiança no Poder Divino é a base do júbilo cristão, que jamais
deveremos perder.
O Instrutor Cornélio meditou alguns momentos e rogou, humilde:
— Ensina-nos sempre, venerável irmão!...
Decorreram minutos sem que os demais utilizassem a palavra. Fazendo
menção de despedir-se, o sublime visitante comentou, afável:
— À medida que nos integramos nas próprias responsabilidades,
compreendemos que a sugestão direta nas dificuldades e realizações do
caminho deve ser procurada com o Supremo Orientador da Terra. Cada
Espírito, herdeiro e filho do Pai Altíssimo, é um mundo por si, com as suas leis e
características próprias. Apenas o Mestre tem bastante poder para traçar
diretrizes individuais aos discípulos.
Logo após, abençoou-nos, carinhoso, desejando-nos bom ânimo.
Reconfortados e felizes, vimos o mensageiro afastar-se, deixando-nos
34 – Francisco Cândido Xavier (pelo Espírito André Luiz)
4
A casa transitória
prece.
Interessado, por minha vez, nos trabalhos médicos do instituto,
indaguei quanto à possibilidade de encontrar algum colega que me fornecesse
novos elementos educativos.
Expondo ao prestativo assessor meus desejos, respondeu-me sem
hesitar:
— Já sei o que pretende. No momento, temos em casa o Irmão Gotuzo,
cujas informações talvez lhe satisfaçam a curiosidade.
45 – OBREIROS DA VIDA ETERNA
5
Irmão Gotuzo
admirado.
— Sim, aproveitando-se o período de repouso, em esferas mais altas, ao
contato de experiências e estudos que enriqueçam o espírito do missionário e
beneficiem as obras gerais da instituição, com vistas ao futuro. Estou informado
de que Zenóbia e Galba dirigem esta casa, há precisamente vinte anos
consecutivos, ora um, ora outro. Administradores diversos, no entanto, têm
passado por aqui, demandando outros rumos, no plano de elevação... De
quando em quando, voltam a visitar-nos, ministrando sagrados incentivos à
comunidade de trabalhadores do bem.
— E você? — interroguei, talvez Indiscreto — onde passa os recreios e
entretenimentos?
— De conformidade com os estatutos que nos regem, possuo também
minhas horas de repouso. Todavia — e a sua voz tocou-se de velada tristeza —
ainda não posso fruí-las em esfera mais alta. Desfruto-as nos campos da Crosta,
respirando o ar puro e tonificante dos pomares e jardins silvestres. O oxigênio,
por lá, é mais leve que o absorvido por nós, nestes círculos abafados de
transição, onde há que lidar com os resíduos do pensamento humano. As
árvores e as águas, as flores e os frutos da Natureza terrestre, indenes das
emanações empestadas de multidões ignorantes e caprichosas, permanecem
repletos de substâncias divinas para quantos de nós que começam a viver
efetivamente em espírito. As cidades humanas são imensos e benditos cadinhos
de purificação das almas encarnadas, onde se forja o progresso real da
Humanidade, mas o campo simples e acolhedor é sempre a estação direta das
bênçãos de Deus, garantindo as bases da manutenção coletiva. Não é
estranhável, portanto, que aí recolhamos grandes colheitas de energias de paz
restauradora.
Conhecia, de sobra, a propriedade de seus argumentos, rememorando
experiências anteriores que me diziam respeito; contudo, objetei, com
sinceridade:
— Lastimo, porém, que você ainda não tenha podido visitar regiões
mais elevadas. Descobriria continentes de radiosas surpresas, revigorando, com
eficiência, o estimulo e a esperança.
— Prometem-me, para breve, semelhante júbilo — acentuou
resignadamente.
— Ouça, meu amigo — perguntei com afetuoso interesse —, qual a
razão do adiamento? Poderia, por minha vez, interpor minha influência
humilde no assunto?
O companheiro, que se caracterizara por sadio otimismo desde a
primeira palavra, deixou transparecer inquietante emoção. Fisionomia
transtornada, seus olhos móveis e brilhantes nevoaram-se de pranto,
dificilmente contido, e, fixando-os talvez no quadro interior das próprias
reminiscências, Gotuzo explicou-se, com inflexão de amargura:
— Trago, ainda, a mente e o coração presos ao ninho doméstico que
perdi com o corpo carnal. Readaptei-me ao trabalho e, por isso, venho sendo
aproveitado, de algum modo, em atividades úteis; entretanto, ainda não me
49 – OBREIROS DA VIDA ETERNA
6
Dentro da noite
não consegue ver. Não posso identificar-me perante ele, a fim de não lhe
prejudicar o trabalho de redenção, mas espero que, nesta noite, muito
possamos fazer em seu favor, com os valores da prece, aguardando, ainda, que
os informes, detalhados e instrutivos, a serem prestados pela clarividência de
Luciana, lhe possam elevar o tônus vibratório, e, ocorrendo isso, como espero
em Nosso Senhor, chamarei mentalmente a nossa irmã Ernestina, que lhe foi
mãe dedicada e compassiva, com o fim de o recolher e conduzir à Crosta para as
providências cabíveis. Estou convencida de que, podendo ver a genitora,
Domênico se transformará em breves dias, preparando-se para a reencarnação
próxima, com o valor desejado.
Indicando determinado ponto da paisagem, informou:
— Em vista do serviço a realizar, recomendei que dois auxiliares o
trouxessem a local adequado, onde possamos orar livremente e auxiliá-lo com
as nossas palavras, sem interferências estranhas.
Em seguida, rogou, comovidamente:
— E agora que iniciaremos o trabalho de tanta significação para
minh’alma, insisto para que me perdoem o caráter pessoal da tarefa. É que a
oportunidade de nos reunirmos, cinco irmãos tão bem sintonizados, não é
bastante comum e, em vista da providência assinalada para amanhã, sinto que
não devo adiá-la, porquanto a desintegração de resíduos inferiores pelo fogo
etérico se faz acompanhar de muita renovação nestes sítios. Poderíamos, desse
modo, Ernestina, Domênico e eu perder sagrado ensejo, de repetição
problemática.
Calou-se, de súbito, a orientadora, conservando-se na atitude de quem
medita, em silêncio, de coração voltado para o Todo-Poderoso.
Decorridos alguns momentos, prosseguiu, acentuando:
— Estejam certos de que serão meus credores para sempre.
Tendo-se em conta a elevada posição da diretora da Casa Planetária,
comovia-nos semelhante demonstração de humildade. Constrangidos quase,
diante de seu exemplo cristão, seguimo-la a pequena eminência do solo,
vagamente iluminada, onde dois companheiros velavam diante de alguém
estendido em decúbito dorsal. A mentora benevolente dispensou ambos os
auxiliares, recomendando-lhes integrar a comissão de serviço, que se postura
distante. Em seguida, Zenóbia aproximou-se, maternalmente, e, deixando-nos
surpresos, sentou-se na erva rasteira, colocando a cabeça do infeliz no regaço
carinhoso.
Aquele homem, trajando burel esfarrapado e negro, exibia horripilante
faces. Não obstante a sombra, viam-se-lhe os traços fisionômicos, que
inspiravam compaixão. Cabelos em desalinho, olhos fundos na caverna das
órbitas, boca e nariz tumefactos em horrível máscara de ódio e indiferença,
dava ele a impressão de celerado comum, que só a enfermidade conseguira
imobilizar para a prestação de contas com a justiça. Não acusou emoção alguma
ao contato daquele colo amoroso e nem se apercebeu de nossa presença amiga.
De olhar parado no espaço, num misto de desespero e zombaria, semelhava-se
a uma estátua de insensibilidade, vestida de farrapos hediondos.
60 – Francisco Cândido Xavier (pelo Espírito André Luiz)
7
Leitura mental
— Eis-me aqui.
— Doente e cansado aos teus pés,
— Doente e cansado aos teus pés,
— Compadece-te de mim, bem-amado pastor, de mim, ovelha
desgarrada de teu rebanho... Ofuscou-me o brilho falso da vaidade humana, a
ilusão terrestre embotou-me o raciocínio, o egoísmo enrijeceu-me o coração e
caí no precipício da ignorância, como leproso do sentimento. Tenho chorado e
sofrido amargamente, Senhor, minha defecção espiritual. Mas eu sei que és o
Divino Médico, dedicado aos infelizes e transviados do caminho... Por piedade,
livra-me da prisão de mim mesmo, liberta-me do mal resultante de minhas
próprias ações, faze que meus olhos se abram à luz divina! Nutre-me com a tua
verdade soberana, ampara-me a esperança de regeneração! Senhor, dá-me
forças para ressarcir todas as dívidas, curar todas as chagas, corrigir todos os
erros que se acham vivos dentro de mim... Perdoa-me, concedendo-me recursos
para o resgate, não me deixes entregue aos resquícios das paixões que eu
mesmo criei impensadamente, favorecendo-me com as tuas repreensões
silenciosas nas situações disciplinares e, sobretudo, Benfeitor Sublime, retribui
aos teus servos que me auxiliam, nesta hora, conferindo-lhes renovadas
bênçãos de energia e paz, a fim de que auxiliem a outros corações tão
extenuados e caídos quanto o meu! Jesus, confiaremos em tua compaixão para
sempre! Assim seja!
Domênico repetira a oração, frase por frase, qual menino dócil e
interessado em aprender a lição. Ao que deduzimos, a rogativa fizera-lhe
profundo bem. Abraçou-se a Ernestina, mais calmo, e, enquanto a diretora da
Casa Transitória lhe seguia os mínimos gestos, sem que ele lhe percebesse a
presença, perguntou, de improviso:
— Minha mãe, já que a tua ternura veio ao meu encontro no círculo das
trevas, dize-me: onde está Zenóbia? Ter-me-ia abandonado para sempre?
Fundamente surpreendido, notei que a indagação era feita com
Inflexão dorida de saudade e desencanto.
— Certamente, meu filho — apressou-se Ernestina em responder —,
nossa amiga acompanha-te de esfera superior, implorando a Jesus te abençoe
os propósitos de redenção.
— Oh! — tornou ele, triste — se a existência humana nos houvesse
unido, outro teria sido meu destino. Ela, porém, desposou outro homem quando
era maior minha confiança no futuro, compelindo-me ao celibato sacerdotal,
que se fez seguir de tão deploráveis consequências para mim. Se houvéssemos
organizado o ninho doméstico, não me faltaria a confiança em Deus, teria sido
talvez pai generoso e meus filhos ser-me-iam sagrada coroa de
responsabilidade e alegria. Zenóbia, minha mãe, era a lente milagrosa através
da qual eu sabia ver o mundo noutro prisma. Em companhia dela, teria
adquirido o dom de ver as oportunidades divinas que me cercaram o coração.
Todavia, quando a sorte ma arrebatou, esvaiu-se-me todo o sonho de
construção equilibrada na Terra... Dominado pela dor de perdê-la, acreditei que
a Religião me ofereceria refúgio inexpugnável contra as tentações. Que terrível
74 – Francisco Cândido Xavier (pelo Espírito André Luiz)
8
Treva e sofrimento
frases angustiosas que nos cortavam a alma. Outras, porém, faziam-se ouvir,
diferentes: vociferavam blasfêmias, ironias, condenações.
Recomendou Zenóbia, por necessário ao êxito de nossos trabalhos, nos
congregássemos todos em grupo exclusivo, de modo a infundir respeito e temor
nas perigosas entidades que ali se misturavam aos infelizes, acrescentando:
— Os adeptos da revolta e do desespero encontram-se igualmente aqui,
compelindo-nos a severa atividade defensiva. São pobres desequilibrados que
tentam induzir todas as situações à desarmonia em que vivem.
Em seguida, solicitou ao padre Hipólito dirigisse apelo geral, em nome
do Senhor, às vítimas do infortúnio, para que considerassem a necessidade da
transformação íntima.
O ex-sacerdote abriu pequeno manual evangélico que carregava
consigo e leu, na relação do Apóstolo Lucas, a parábola do homem rico que se
vestia de púrpura, em regalada existência, enquanto o mendigo chaguento lhe
batia, debalde, à porta da sensibilidade. Pronunciou, alta e pausadamente, todos
os versículos, desde o número dezenove ao trinta e um, no capitulo dezesseis.
Logo após, enchendo o expressivo silêncio, destacou a sentença “Lembra-te de
que recebeste os teus bens em tua vida”, constante do versículo vinte e cinco, e
dispunha-se ao comentário, quando certos gritos blasfematórios chegaram até
nós, ameaçadores e sarcásticos:
— Fora! Fora! Abaixo as mentiras do altar!
— Ataquemos de vez o padre!
— Estamos bem, somos felizes! Não pedimos auxílio algum, não
precisamos de arengas!
— Temos aqui o nosso céu! Vão para os infernos!...
Os adversários gratuitos de nossa atuação não se limitaram ao vozerio
perturbador. Bolas de substância negra começaram a cair, ao nosso lado,
partindo de vários pontos do abismo de dor.
— As redes! — exclamou Zenóbia, dirigindo-se a alguns colaboradores
— Estendam as redes de defesa, isolando-nos o agrupamento.
As determinações foram cumpridas ràpidamente. Redes luminosas
desdobraram-se à nossa frente, material esse especializado para o momento,
em vista da sua elevada potência magnética, porque as bolas e setas, que nos
eram atiradas, detinham-se aí, paralisadas por misteriosa força.
A diretora da Casa Transitória, afeita a ocorrências iguais àquela,
fornecia-nos belo exemplo de firmeza e serenidade. Após organizar a defensiva,
fez sinal ao pregador para que falasse; e o padre Hipólito, sobrepondo-se aos
ruídos e insultos, iniciou o comentário com empolgante acento:
— Irmãos, que vos prepareis para a recepção da Luz Divina, é o nosso
desejo fraternal! Reúnem-se aqui várias centenas de infortunados
companheiros em precárias condições espirituais. De alma esfrangalhada pela
dor, vencidos de aflição, suportando inomináveis padecimentos, entregai-vos,
muita vez, ao desalento, à rebeldia e ao desespero. Perturbada e desditosa,
vossa mente não sabe senão fabricar pensamentos de angústia destruidora.
Alegais que as Forças Divinas vos esqueceram no vale fundo das trevas e, de
78 – Francisco Cândido Xavier (pelo Espírito André Luiz)
programa e também sabemos querer! Onde está o Deus que nos prometeram?
Têm, porventura, o mapa do céu? Nossos ídolos agora estão quebrados. Somos
filhos do desespero, tentando reorganizar a vida no deserto que nos defronta.
Voltaremos, acaso, à ingenuidade primitiva, a ponto de acreditar novamente em
mentiras religiosas? Em que remota região se compras a beneficência divina
que não se condói de nossas necessidades’? Declaram-se felizes e proclamam a
compaixão de um pai que não conhecemos. Viram-no alguma vez?
Fria gargalhada pontilhou suas últimas palavras. Revelando-se sob
forte impressão, o padre Hipólito respondeu:
— O conhecimento da Divindade e o roteiro celeste serão encontrados
dentro de nós mesmos. Por que audácia inominável cometeríamos o absurdo de
aguardar plena e pronta identificação da nossa natureza egressa da
irracionalidade, em dias tão curtos, com a sublime plenitude de Deus? Como
ombrear-se o batráquio com o Sol? Em verdade, as religiões antropomórficas
da Crosta envenenaram-nos a mente, instilando falsas concepções de Deus em
nossos raciocínios. Não podemos, todavia, culpá-las em sentido absoluto,
porquanto a estagnação espiritual caracterizava-nos a todos. Quando os
discípulos se integrarem efetivamente, de cérebro e coração renovado, no
Evangelho do Mestre, será impossível a negativa interferência sacerdotal. O
dogma, considerado imparcialmente, constitui desafio e castigo simultâneos.
Desafio à inteligência investigadora e construtiva, para que se dilate no mundo
a noção do Universo Infinito, e castigo às mentes ociosas que renunciam
levianamente ao dom de pensar e decidir por si mesmas as questões sagradas
do destino. Em toda parte encontraremos a Sabedoria Operante e Invisível do
Senhor, estendendo-se em todas as minúcias da Natureza. Calai, portanto, a
vaidade ferida e o orgulho humilhado que vos ditam observações ingratas e
criminosas! Detende-vos no santuário da consciência e não exigireis visões e
revelações que não conseguiríeis suportar. Tomados, pois, de compaixão pela
vossa rebeldia e infortúnio, rogamos ao Senhor abençoe a esperança de quantos
nos ouvem, famintos de suprema redenção, como nós, diante da grandeza
inapreciável da vida eterna!
Para outro público, as palavras do ex-sacerdote seriam vivas e
convincentes, mas as entidades endurecidas e perversas, para quem foram
proferidas, mostraram-se frias e insensíveis.
Fizeram-se ouvir outras vozes, em sinistro coro:
— Basta! Basta!
— Fora! Fora!...
Todavia, entre aqueles que nos seguiam atenciosamente o serviço,
contemplamos inúmeros rostos angustiados, revelando o pavor que os
companheiros lhes causavam. Aumentara-se-lhes o número. Verifiquei, porém,
que não havia ali uma só criança. Apenas adultos, jovens e velhos de todos os
aspectos. Notava-se que a dissertação de Hipólito lhes fizera enorme bem.
Muitos deles vertiam pranto copioso. Contudo, impropérios e maldições
cruzavam o espaço. Os malfeitores impenitentes não nos toleravam a presença
e cada qual era mais fértil nas ironias selecionadas, com o fim de despertar
83 – OBREIROS DA VIDA ETERNA
9
Louvor e gratidão
cura de desequilibrados mentais, longe dos círculos mais densos. Contudo, não
pretende ganhar o mais além? Admite, satisfeito, o cárcere do estacionamento,
malgrado o caráter do trabalho edificante? Não desejará libertar-se para
libertar, efetivamente, os prisioneiros da ignorância? Não demandará o plano
superior para ser mais útil aos que intentam galgar a escada reveladora da luz
imortal? Não falo a você, agora, dentro da afetuosa impertinência de mãe.
Nossos laços, presentemente, em relação ao passado, são muito diversos.
Somos, ambos, filhos do Pai Altíssimo, e creia que minha devoção por você não
é menor. Não o abandonarei às inclinações menos elevadas, não obstante
justificáveis na tabela das convenções puramente humanas. E, em razão disso,
venho ouvi-lo sobre os seus propósitos. Você tem cooperado, espontâneo e
assíduo, nas tarefas do bem. É um trabalhador com direito a descobrir os
próprios erros e a retificar o caminho que lhe compete. Ouça, porém, meu filho,
e compreenda-me: venho intercedendo, junto às autoridades que nos regem os
destinos, para que a sua consciência desperte para a divina luz. O grupo
doméstico, amado e inesquecível, espera por você na preparação da felicidade
porvindoura!...
As palavras pronunciadas exprimiam enorme bagagem de
considerações que ficariam por dizer. Cada conceito envolvia-se em
significativa onda de pensamentos, que evidenciavam, de modo indireto, os
sagrados fins da visita materna.
Após longa pausa, Letícia indagou delicadamente:
— Que responde, filho meu?
Fez-se comovedor silêncio; percebemos que Gotuzo chorava, entre a
respiração opressa e os soluços mal contidos. Ao termo de alguns instantes,
replicou, humilde:
— Minha mãe! Minha boa mãe! Estou pronto!...
A comunicante, cuja presença sentíamos sem ver, tornou, visivelmente
emocionada:
— Rendo graças ao Senhor pela sua compreensão. Sim, meu filho,
organizaremos todas as medidas indispensáveis. Voltará, em breve, ao
agrupamento familiar. Prepare-se, considerando a luta imprescindível à
iluminação. O instituto doméstico, legitimamente considerado, é celeiro de
supremos valores educativos para quantos procurem os interesses divinos,
acima das cogitações humanas. O lar terrestre é bendita forja de redenção.
Reencontrará as simpatias e antipatias de outro tempo, oferecendo
possibilidades felizes de reajustamento emocional. Recapitule mentalmente as
lições aprendidas, peça a inspiração de Jesus e disponha-se a partir, tranquilo.
Não desanime diante do serviço a fazer. Somos milhões de criaturas,
disputando o ensejo de santificar sentimentos. No passado, raras vezes
procedíamos em obediência aos ditames da Lei. Se exteriorizávamos estima,
perdíamo-nos em excessos de paixão, como perdulários do afeto; se
manifestávamos atitudes de corrigenda, cedíamos à cegueira do ódio, como
cultores do exclusivismo feroz. É mister regressar ao curso, para conquistar o
equilíbrio espiritual necessário à elevação.
97 – OBREIROS DA VIDA ETERNA
comovedoramente:
— Tenho medo de minha velha habitação! Ah! Por favor, enviados
divinos, não me deixeis voltar! Nunca! Nunca mais!...
Compreendendo que a nora, temporàriamente liberta do corpo,
entrava num domínio vibratório prejudicial à organização psíquica, em virtude
dos deveres que lhe cabiam na esfera carnal, Letícia considerou, retomando-a a
si:
— Ouça, filha: é preciso que você não se detenha por mais tempo. Não
pode permanecer entre nós, antes que os Eternos Desígnios se manifestem
nesse sentido. Volte, porém, ao lar distante, convencida de nossa afeição sem
mácula.
Nossa tranquilidade seguir-lhe-á os dias terrenos. Não lhe faltará
cooperação. Se não pode acompanhar o esposo querido, pela inoportunidade de
semelhante desejo, alegre-se e confie no Poder Divino, pois Gotuzo irá ao seu
encontro. Em breve, Marília, seus beijos orvalharão de amor e ventura um rosto
pequenino, que sintetizará, para as suas esperanças de avó, verdadeiro mundo
de felicidade redentora.
Emocionada pela alegria, interrogou a pobre alma:
— Gotuzo perdoou-me?
— Ele nunca sofreu ofensa alguma de seu coração dedicado —
adiantou-se Letícia, bondosa —, e lembrar-se-á sempre, com desvelo e ternura,
da companheira fiel que lhe amparou os filhinhos amados e lhe honrou o nome,
entre renúncias e sacrifícios ignorados.
— Oh! Oh! Que felicidade! — repetia a interlocutora, afogada em pranto
de júbilo e reconhecimento.
Afagando a fronte do filho, que também chorava sob forte emoção,
Letícia rogava-lhe:
— Diga-lhe, meu filho, quanto a amamos! Tranquilize-lhe a alma
sensível e afetuosa!
Tal como uma criança vencida, nosso irmão assegurou:
— Marília, nunca resgatarei minha dívida para com seu devotamento.
Regresse, confiante, enquanto preparo minha própria volta. Brevemente, com o
auxílio de Deus e de nossa abençoada mãe, estaremos, de novo, reunidos na
Terra! Peça energias para mim, em suas orações de serva incompreendida. Está
você em vias de terminar dolorosa prova de resgate, ao passo que vou
recomeçá-la. Sou eu, portanto, agora, quem suplica auxilio e proteção... Espere-
me! Não desfaleça! Aprenderemos a refundir sentimentos, purificar laços
afetivos, santificar impulsos e, sobretudo, abençoaremos quem nos feriu
aparentemente, amparando suposto inimigo, a fim de que nos convertamos em
sinceros irmãos uns dos outros...
Ambos choravam enternecedoramente. Em seguida, Letícia restituiu a
nora aos braços amigos da orientadora que a reconduziu de volta ao corpo
físico, no mesmo silêncio dentro do qual se mantivera até então.
A ex-genitora de Gotuzo recomendou-lhe que retomasse o primitivo
lugar e, recompondo o ambiente, solicitou õ concurso de Zenóbia para a futura
100 – Francisco Cândido Xavier (pelo Espírito André Luiz)
realização filial.
A Diretora da Casa, rememorando talvez o esforço que levara a efeito
naquela mesma noite, em benefício dum coração que lhe era particularmente
amado, acusava funda emoção.
— Gotuzo conta nesta instituição com amigos que lhe são infinitamente
reconhecidos — falou Zenóbia, sensibilizada. É companheiro a quem devemos
muito. Realizaremos, de bom grado, tudo quanto esteja ao nosso alcance para
que a experiência nova lhe seja portadora de luzes e bênçãos. A felicidade dele,
em outro setor, minha irmã, será igualmente a felicidade desta casa. Segui-lo-
emos na recapitulação terrestre, atenciosos e vigilantes, não por obséquio, mas
em obediência ao preito de gratidão de que somos devedores, pelos vários anos
em que cooperou conosco, devotada e assiduamente.
Letícia agradeceu e partiu, deixando-nos preciosos eflúvios de paz e
encantamento. Outro iluminado mentor da organização socorrista, identificado
por Luciana, então reintegrada na própria personalidade, ditou-nos, por ela,
algumas palavras de estimulo, elevadas e santas, endereçando-nos copiosa
chuva de raios luminosos através da tela das bênçãos, recomendando a Zenóbia
que encerrasse os serviços da prece, na paz do Senhor.
A diretora pronunciou enternecida oração de reconhecimento e júbilo,
encerrando a tarefa. Abraçando-nos, esclarecidos e satisfeitos pelo êxito da
hora, vimos que a Irmã Zenóbia encaminhou-se para Gotuzo, enlaçando-o
maternalmente:
— Oh! Minha venerável irmã! — disse ele, enternecido — como é
grande o prêmio da Misericórdia Divina!... Não mereço tanto! Auxilie-me a
agradecer a Deus!...
— Regozijemo-nos, Gotuzo! — respondeu a interlocutora — e
louvemos o Pai que tanto nos engrandece o esforço obscuro e pequenino! O
agraciado de hoje não foi apenas você. Também eu aumentei, de muito, meus
grandes débitos para com o Altíssimo!...
De voz quase embargada pela comoção, concluiu:
— Também eu recebi divina concessão nesta grande noite!
101 – OBREIROS DA VIDA ETERNA
10
Fogo purificador
11
Amigos novos
admiradores em nossa esfera de ação, pelo muito que vem fazendo na esfera do
Evangelho. Permanece, presentemente, em serviço nos círculos evangélicos
protestantes. Fez profissão de fé na Igreja Presbiteriana e, viúva desde cedo,
consagrou-se ao labor educativo, formando a infância e a juventude no ideal
cristão.
Mais uma vez, maravilhou-me a grandeza da fraternidade legítima,
imperante na vida superior. Não se buscava o rótulo das criaturas, não se
cogitava, em sentido particularista, de seus títulos religiosos ou sociais.
Procurava-se o coração fiel a Deus, ministrava-se amparo reconfortador, sem
qualquer preocupação exclusivista.
O Assistente Jerônimo aproximou-se dela, tocou-lhe a fronte com a
destra, e Albina, de semblante iluminado e feliz ao contato daquela mão
bondosa e acariciante, exclamou para uma das companheiras que a assistiam:
— Eunice, dá-me a Bíblia. Desejo meditar um pouco.
— Ó, mamãe! — respondeu-lhe a filha — Não será melhor descansar?
Graças a Jesus, a dispneia cedeu e a senhora parece tão bem disposta!
— A Palavra do Senhor dá contentamento ao espírito, minha filha!
Suplicante ternura acompanhou-lhe a expressão verbal, e de tal modo
que Eunice, vencida, apanhou o volume de sobre vasta cômoda e entregou-lho.
A respeitável anciã assumiu adequada posição para a leitura, recostou-
se em travesseiros altos e, tomando os óculos, segurou, firme, o Testamento
Divino. O Assistente Jerônimo ajudou-a a abri-lo, em determinado lugar, sem
que a interessada lhe percebesse a cooperação. Patenteou-se-lhe o capítulo
onze da narrativa de João Evangelista, alusivo à ressurreição de Lázaro.
A simpática velhinha leu-o, pausadamente, em alta voz. Terminando,
exclamou comovidamente:
— Agradeço ao nosso Divino Mestre a alentadora leitura que nos
mandou. Praza aos céus possamos todas nós encontrar a vida eterna, em Cristo
Jesus! Assim seja.
As filhas acompanhavam-na, respeitosas.
Jerônimo recomendou-me aplicar à doente passes de reconforto.
Depois da operação magnética, observei-lhe a insuficiência cardíaca, oriunda de
aneurisma em condições ameaçadoras. Dispunha-se o Assistente a conversar
conosco, evidenciando as formosas qualidades da enferma, quando alguém de
nosso plano assomou à porta de entrada. Era dedicada amiga que vinha velar à
cabeceira. Cumprimentou-nos, bondosa, com encantadora simplicidade.
Jerônimo explicou-lhe nossa missão. A interlocutora sorriu e considerou:
— Reconforta-nos a proteção de que nossa irmã é objeto. No entanto,
creio que há forte pedido de prorrogação em favor dela. Todos somos de
parecer que deva ser chamada à nossa esfera com urgência, para receber o
prêmio a que fez jus. Todavia, há razões ponderosas para que seja amparada
convenientemente, a fim de que permaneça com a família consanguínea, na
Crosta, por mais alguns meses.
— Teremos prazer em todo serviço fraterno — acentuou Jerônimo,
com afabilidade. Passaremos por aqui diariamente, até que a tarefa termine. Do
116 – Francisco Cândido Xavier (pelo Espírito André Luiz)
Divino Senhor me revele o caminho. Não desejo adotar outros desígnios que
não pertençam a Ele, nosso Salvador. Todavia...
Não pôde continuar. Emoção profunda estrangulara-lhe a voz e, logo
após a reticência dolorida, copioso pranto começou a brotar-lhe dos olhos
encovados.
Bezerra acomodou-se junto dela, com intimidade paternal, afagou-lhe
com a luminosa destra a fronte abatida e falou otimista:
— Já sei. Você pensa nos parentes, nos amigos, nos orfãozinhos e nos
trabalhos que ficarão. Ó, Adelaide! Compreendo seu devotamento materno à
obra de amor que lhe consumiu a vida. Entretanto, você está cansada, muito
cansada e Jesus, Médico Divino de nossa alma, autorizou o seu repouso. Confie a
Ele as penas que lhe oprimem o espírito afetuoso. Deponha o precioso fardo de
suas responsabilidades em outras mãos, esvazie o cálice de sua alma, alijando
amarguras e preocupações. Converta saudades em esperanças e desate os elos
mais fortes, atendendo a ordem divina.
Adelaide pousou no benfeitor os olhos muito lúcidos, revelando-se
confortada e, após breve pausa, Bezerra prosseguiu:
— Sua grande batalha está terminando. Você é feliz, minha amiga,
muito feliz, porque seu Espírito virá condecorado de cicatrizes, depois de
resistir ao mal durante muitos anos, como sentinela fiel, na fortaleza da fé viva...
Ensinou aos que lhe cercaram o caminho todas as lições do bem e da verdade
possíveis ao seu esforço... Entregue parentes e afeições a Jesus e medite, agora,
na Humanidade, nossa abençoada e grande família. Quanto aos serviços
confiados por algum tempo à sua guarda, estão fundamentalmente afetos ao
Cristo, que providenciará as modificações que julgue oportunas e necessárias.
Baste a você o júbilo do dever bem cumprido. Arregimente, pois, as suas forças
e não se entristeça, porque é chegado para seu coração o prélio final... Coragem,
muita coragem e fé!
A respeitável irmã sorriu, quase feliz. Logo em seguida, pequena
auxiliar do instituto quebrou o colóquio espiritual, abrindo a porta
inesperadamente e anunciando visitas.
Dona Adelaide, em face das circunstâncias, centralizou a mente no
círculo dos encarnados e perdeu o benfeitor de vista. O venerando médico dos
infortunados passou a entender-se com Jerônimo, acerca de vários problemas
que diziam respeito à nossa missão, enquanto nos retirávamos, discretamente,
proporcionando-lhes maior liberdade à permuta de ideias.
119 – OBREIROS DA VIDA ETERNA
12
Excursão de adestramento
13
Companheiro libertado
sou agora, também, o menino frágil com fome do afeto maternal nesta hora
suprema! Oh! Senhora Divina, mãe de meu Mestre e de meu Senhor, digna-te
abençoar-me! Lembra que teu filho divino pôde verte no derradeiro instante e
intercede por mim, mísero servo, para que eu tenha minha santa mãe ao meu
lado no minuto de partir!... Socorre-me! Não me abandones, anjo tutelar da
Humanidade, bendita entre as mulheres! Oh! Providência maravilhosa do Céu!
Convertera-se o coração do moribundo em foco radioso e a porta de
acesso deu entrada a venerável anciã, coroada de luz semelhando neve
luminosa. Ela se aproximou de Jerônimo e informou, após desejar-nos a paz
divina:
— Sou a mãe dele... O Assistente comentou a urgência da tarefa que nos
aguardava e confiou-lhe o depósito querido.
Em breves instantes, tínhamos perante os olhos inolvidável quadro
afetivo. Sentara-se a velhinha no leito, depondo a cabeça do moribundo no
regaço acolhedor, afagando-a com as mãos caridosas.
Em virtude do reforço valioso no setor da colaboração, Hipólito e
Luciana, atendendo ao nosso dirigente, foram velar pelo sono da esposa, para
que as suas emissões mentais não nos alterassem o esforço.
No recinto, permanecemos os três apenas. Dimas, experimentando
indefinível bem-estar no regaço materno, parecia esquecer, agora, todas as
mágoas, sentindo-se amparado como criança semi-inconsciente, quase feliz.
Ordenou Jerônimo que me conservasse vigilante, de mãos coladas à fronte do
enfermo, passando, logo após, ao serviço complexo e silencioso de
magnetização. Em primeiro lugar, Insensibilizou inteiramente o vago, para
facilitar o desligamento nas vísceras. A seguir, utilizando passes longitudinais,
isolou todo o sistema nervoso simpático, neutralizando, mais tarde, as fibras
inibidoras no cérebro.
Descansando alguns segundos, asseverou:
— Não convém que Dimas fale, agora, aos parentes. Formularia, talvez,
solicitações descabidas.
Indicou o desencarnante e comentou, sorrindo:
— Noutro tempo, André, os antigos acreditavam que entidades
mitológicas cortavam os fios da vida humana. Nós somos Parcas autênticas,
efetuando semelhante operação...
E porque eu indagasse, tímido, por onde iríamos começar, explicou-me
o orientador:
— Segundo você sabe, há três regiões orgânicas fundamentais que
demandam extremo cuidado nos serviços de liberação da alma: o centro
vegetativo, ligado ao ventre, como sede das manifestações fisiológicas; o centro
emocional, zona dos sentimentos e desejos, sediado no tórax, e o centro mental,
mais importante por excelência, situado no cérebro.
Minha curiosidade intelectual era enorme. Entendendo, porém, que a
hora não comportava longos esclarecimentos, abstive-me de indagações.
Jerônimo, todavia, gentil como sempre, percebeu-me o propósito de pesquisa e
acrescentou:
133 – OBREIROS DA VIDA ETERNA
14
Prestando assistência
15
Aprendendo sempre
sensível melhora. Sentia a casa cheia de gente e desejava saber alguma coisa a
respeito. A mãezinha, porém, afagando-o brandamente, acalmou-o,
esclarecendo:
— Ouça, Dimas: A porta pela qual você se comunicava com o plano
carnal, somático, cerrou-se com seus olhos físicos. Tenha serenidade, confiança,
porque a existência, no corpo físico, terminou.
O desencarnado não dissimulou a penosa impressão de angústia e
fitou-a com amargurado espanto, identificando-a pela voz, um tanto vagamente.
— Não me reconhece, filho?
Bastou a pergunta carinhosa, pronunciada com especial inflexão de
meiguice, para que o desencarnado se abraçasse à velhinha, gritando, num
misto de júbilo e sofrimento:
— Mãe! Minha mãe!... Será possível?
A anciã deteve-o ternamente nos braços e falou:
— Escute! Refreie a emoção, que lhe será extremamente prejudicial.
Sustente o equilíbrio, diante do fato consumado. Estamos, agora, juntou, numa
vida mais feliz. Não tenha preocupações acerca dos que ficaram. Tudo será
remediado, como convém, no momento oportuno. Acima de qualquer
pensamento que o incline à prisão no circulo que acabou de deixar, faça valer a
confiança sincera e firme em nosso Pai Celestial.
— Ó minha mãe! E a esposa, os filhos?...
A sábia benfeitora, todavia, cortou-lhe as palavras, consolando-o:
— Os laços terrenos, entre você e eles, foram Interrompidos. Restitua-
os a Deus, certo de que o Eterno Senhor da Vida, a quem de fato pertencemos,
permitirá sempre que nos amemos uns aos outros.
Contemplou-a Dimas, através de espesso véu de pranto, e, antes que ele
enunciasse novas Interrogações, falou a genitora carinhosa, apresentando-lhe
Jerônimo, que acompanhava a cena, comovido:
— Eis aqui o amigo que o desligou das cadeias transitórias. Em breve,
partirá você, em companhia dele, buscando o socorro eficiente de que necessita.
Embora atordoado, o filho esboçou silencioso gesto de contrariedade,
ante a perspectiva de nova separação do convívio materno, mas a velhinha
interveio, acrescentando:
— Vim até aqui porque você me chamou, recorrendo à Mãe divina;
contudo, não estou habilitada a lhe proporcionar ingresso em meus trabalhos,
por enquanto. O irmão Jerônimo, todavia, é o orientador dedicado que
conduzirá o serviço de sua restauração. Tenha confiança. Irei vê-lo quantas
vezes for possível, até que nos possamos reunir noutro lar venturoso, sem as
lágrimas da separação e sem as sombras da morte.
Em seguida, sussurrou algumas palavras que somente Dimas pôde
escutar e, sob funda emoção, vi-o desvencilhar-se dos braços maternos e
avançar, cambaleante, para Jerônimo, osculando-lhe respeitosamente as mãos.
O Assistente agradeceu o carinhoso preito de reconhecimento e amor e, de
olhos marejados, explicou:
— Nada efetuamos aqui, senão o dever que nos trouxe. Guarde o seu
145 – OBREIROS DA VIDA ETERNA
aos despojos por conveniência dela própria, tem primado aqui pela
inconformação. Vários amigos visitadores, em custosa tarefa de benefício aos
recém-desencarnados, têm vindo à necrópole, tentando libertá-la. A
pobrezinha, porém, após atravessar existências de sólido materialismo, não
sabe assumir a menor atitude favorável ao estado receptivo do auxilio superior.
Exige que o cadáver se reavive e supõe-se em atroz pesadelo, quando nada mais
faz senão agravar a desesperação. Os benfeitores, desse modo, inclinam-se à
espera da manifestação de melhoras Intimas, porque seria perigoso forçar a
libertação, pela probabilidade de entregar-se a infeliz aos malfeitores
desencarnados.
Indiquei, porém o laço fluídico que a ligava ao envoltório sepulto e
observei:
— Vê-se, entretanto, que a mísera experimenta a desintegração do
corpo grosseiro em terríveis tormentos, conservando a impressão de ligamento
com a matéria putrefata. Não teremos recursos para aliviá-la?
Tomei atitude espontânea de quem desejava tentar a medida
libertadora e perguntei:
— Quem sabe chegou o momento? Não será razoável cortar o grilhão?
— Que diz? — objetou, surpreso, o interlocutor — Não, não pode ser!
Temos ordens.
— Porque tamanha exigência — insisti.
— Se desatássemos a algema benéfica, ela regressaria, Intempestiva, à
residência abandonada, como possessa de revolta, a destruir o que encontrasse.
Não tem direito, como mãe infiel ao dever, de flagelar com a sua paixão
desvairada o corpinho tenro do filho pequenino e, como esposa desatenta às
obrigações, não pode perturbar o serviço de recomposição psíquica do
companheiro honesto que lhe ofereceu no mundo o que possuía de melhor. É da
lei natural que o lavrador colha de conformidade com a semeadura. Quando
acalmar as paixões vulcânicas que lhe consomem a alma, quando humilhar o
coração voluntarioso, de medo a respeitar a paz dos entes amados que deixou
no mundo, então será libertada e dormirá sono reparador, em estância de paz
que nunca falta ao necessitado reconhecido às bênçãos de Deus.
A lição era dura, mas lógica.
A infortunada criatura, alheia a nossa conversação, prosseguia
gritando, qual demente hospitalizada em prisão dolorosa. Tentei ampliar as
minhas observações, mas o servidor chamou-me a outras zonas, de onde
partiam gemidos estridentes.
— São vários infelizes, na vigília da loucura — disse calmo.
E designando um velhote desencarnado, de cócoras sobre a própria
campa, acrescentou:
— Venha e escute-o.
Acompanhando meu novo amigo, reparei que o sofredor mantinha-se
igualmente em ligação com o fundo.
— Ai, meu Deus! — dizia — Quem me guardará o dinheiro? Quem me
guardará o dinheiro?
150 – Francisco Cândido Xavier (pelo Espírito André Luiz)
16
Exemplo cristão
como pai, que Fábio desejava continuar estudando, para o aprimoramento das
faculdades intelectuais, em face dos seus pendores para o desenho e para a
literatura, porque, não poucas vezes, surpreendi-o namorando o educandário
vizinho de nossa casa, ralado de inveja ao reparar os colegiais em bandos
festivos. As nossas condições de vida, no entanto, nos reclamavam esforço
ingente; e meu filho, atirado à luta, desde muito cedo, não encontrou ensejo
para as construções artísticas que idealizava. Segregando-se na oficina de
mecânica, em ambiente pesado demais para a sua constituição física, ele não o
tolerou por muito tempo, contraindo com facilidade a tuberculose pulmonar.
— Mas chegou a saber a causa determinante da posição física de Fábio,
ao regressar ao plano espiritual? — indaguei.
— Isso representou um dos primeiros problemas que procurei
elucidar. Passado algum tempo, fui devidamente esclarecido. Meu filho e eu
fomos destacados fazendeiros na antiga nobreza rural fluminense. Nessa época,
não muito recuada, Fábio, noutro nome e noutra forma, era igualmente meu
filho. Eduquei-o com desvelado carinho e, por mais de uma vez, enviei-o à
Europa, ansioso por elevar-lhe o padrão intelectual e cioso de nossa
superioridade financeira. Ambos, porém, cometemos graves erros, mormente
no trato direto com os descendentes de africanos escravos. Meu filho era
sensível e generoso, mas excessivamente austero para com os servidores das
tarefas mais duras. Congregava-os na senzala, com severidade rigorosa, e
perdemos grande número de cooperadores em virtude do ar viciado pela
construção deficiente que Fábio conservou inalterável, simplesmente para
manter ponto de vista pessoal.
Os olhos do narrador brilharam mais intensamente. Pareceu menos
bem, ao contato das recordações, e acentuou com melancolia:
— O romance é longo e peço-lhes permissão para interrompê-lo.
Senti remorsos por haver provocado a dificuldade, mas Jerônimo
interveio em meu socorro.
— Não pensemos mais nisso — exclamou o Assistente, bem humorado
—, nunca me conformo com a exumação de cadáveres...
E enquanto a alegria tornava ao ambiente, meu orientador
acrescentou:
— Prestemos ao enfermo a assistência possível. Nesta noite, afastá-lo-
emos definitivamente do corpo carnal.
Levantamo-nos e penetramos o quarto. Fábio, fundamente abatido,
respirava a custo, acusando indefinível mal-estar. Junto dele, a esposa velava,
atenta. Através da janela aberta, o doente reparou que a cidade acendia as
luzes.
Ergueu os tristes olhos para a companheira e observou:
— Interessante verificar como a aflição se agrava à noite...
— É fenômeno passageiro, Fábio — afirmou a esposa, tentando sorrir.
Entre nós, todavia, iniciaram-se providências para socorro imediato, O
pai do enfermo dirigiu-se a Jerônimo:
— Sei que a libertação de Fábio exige grande esforço. Entretanto,
156 – Francisco Cândido Xavier (pelo Espírito André Luiz)
17
Rogativa singular
prorrogação.
Processavam-se com extremado carinho os serviços de assistência,
quando cavalheiro bem-posto deu entrada, conduzindo um menino miúdo, de
oito anos presumíveis. Varando a porta do quarto, o pequeno mostrou-se
cônscio do lugar em que se achava, cumprimentou as senhoras, respeitoso, e
voltou-se, de olhos ansiosos, para a enferma, beijando-lhe a destra com
indescritível ternura.
Albina rogou a Deus o abençoasse e o menino perguntou:
— Vovó, como vai?
Designando-o, o Assistente esclareceu:
— A súplica dessa criança alcançou-nos a colônia espiritual e
modificou-nos o roteiro.
— Quê?... — interroguei, sumamente surpreendido.
Jerônimo, todavia, continuou:
— Não é neto consanguíneo da doente, embora se considere tal. É órfão
que lhe abandonaram à porta, após o nascimento, e que Loide mantém no lar,
desde que nossa irmã se recolheu à cama. Não obstante a prova, Joãozinho é
grande e abnegado servo de Jesus, reencarnado em missão do Evangelho. Tem
largos créditos na retaguarda. Ligado à família de Albina, há alguns séculos,
torna ao seio de criaturas muito amadas, a caminho do serviço apostólico do
porvir.
Ia formular perguntas novas, mas meu orientador, indicando a enferma
que se abraçara à criança, aconselhou-me, solícito:
— Observe por si mesmo...
O diálogo entre ela e o pequenino adquirira encantadora suavidade.
— Tenho passado mal, meu filho — exclamava a respeitável senhora
em desabafo.
— Oh! Vovó! — tornou o rapazinho, olhos radiantes de fé — Tenho
rezado sempre para que a senhora fique boa, depressa.
— Tem fé?
— Confio em Jesus. Na última vez em que estive na igreja, pedi a todos
me ajudarem a rogar ao Céu pela sua saúde.
— E se Deus me chamar?
Os olhos se lhe umedeceram, mas acentuou em voz firme:
— Precisamos da senhora neste mundo.
Albina abraçou-o e beijou-o com meiguice maternal e prosseguiu:
— João, tenho sentido muita saudade de seus hinos na escola. Tem
louvado o Senhor, pontualmente?
— Tenho.
— Cante para mim, meu filho.
O pequeno sorriu, jubiloso, por haver encontrado motivo de alegrar a
doente querida e indagou, com naturalidade:
— Qual?
A enferma pensou, pensou, e disse:
— Jesus, sendo meu.
168 – Francisco Cândido Xavier (pelo Espírito André Luiz)
18
Desprendimento difícil
— Oh! Mas terá energia suficiente para tudo ver sem perturbar-se?
— Não posso garantir — respondeu, sorrindo. — Naturalmente,
qualquer Espírito encarnado, diante de um quadro desses, poderia ser vítima
da loucura e, possivelmente, atravessaria algumas poucas horas em franco
desequilíbrio, dada a novidade do espetáculo. Quando a luz aparece, em
determinado plano, onde a criatura esteja “apta para ver”, tanto se enxerga o
pântano como o céu. Questão de claridade e sintonia, simplesmente.
A notícia pôs-me frêmitos de piedade. A enfermaria estava repleta de
cenas deploráveis. Entidades inferiores, retidas pelos próprios enfermos, em
grande viciação da mente, postavam-se em leitos diversos, inflingindo-lhes
padecimentos atrozes, sugando-lhes vampirescamente preciosas forças, bem
como atormentando-os e perseguindo-os.
Desde o serviço inicial do tratamento de Cavalcante, desagradaram-me
tais demonstrações naquele departamento de assistência caridosa e cheguei
mesmo a consultar o Assistente quanto à possibilidade de melhorar a situação,
mas Jerônimo informou, sem estranheza, que era inútil qualquer esforço
extraordinário, pois os próprios enfermos, em face da ausência de educação
mental, se incumbiriam de chamar novamente os verdugos, atraindo-os para as
suas mazelas orgânicas, só nos competindo irradiar boa-vontade e praticar o
bem, tanto quanto fosse possível, sem; contudo, violar as posições de cada um.
Confesso que experimentava enorme dificuldade para desempenhar os
deveres que ali me retinham, porquanto as interpelações de infelizes
desencarnados atingiam-me insistentemente. Pediam toda a sorte de
benefícios, reclamavam melhoras, explodiam em lamúrias sem fim. Sereno e
forte, o meu orientador conseguia trabalhar de mente centralizada na tarefa,
inacessível às perturbações exteriores. Quanto a mim, entretanto, não alcançara
ainda semelhante poder. Os pedidos, os lamentos, os impropérios, feriam-me a
observação, impedindo-me de conservar a paz Intima. Por isso mesmo, ao me
retirar, pensei na surpresa amargurosa do moribundo, ao se lhe abrir a cortina
que lhe velava a visão espiritual.
Aguardei, curioso, o cair da noite, quando, em companhia do
orientador, atravessei, de volta, o pórtico do hospital.
Cavalcante avizinhava-se do coma. O sangue alagava lençóis, que eram
substituídos repetidamente. O enfraquecimento geral progredia, rápido.
O agonizante Inspirava dó. Abriram-se-lhe certos centros psíquicos, no
avançado abatimento do corpo, e o Infeliz passou a enxergar os desencarnados
que ali se encontravam, não longe dele, na mesma esfera evolutiva. Não nos
identificava, ainda, a presença, como seria de desejar, mas observava,
estarrecido, a paisagem Interior. Outros enfermos encaravam-no, agora,
amedrontados. Para todos eles, o colega de sofrimento delirava, inconsciente.
— Estarei no inferno ou vivemos em casa de loucos? — bradava sob
horrível tormento moral — Oh! Os demônios! Os demônios!... Vejam o “espírito
mau” roendo chagas!...
E, de fades contraída, apontava mísero ancião de pernas varicosas.
— Oh! Que diz ele? — prosseguia, com visível espanto — Diz que não é
176 – Francisco Cândido Xavier (pelo Espírito André Luiz)
19
A serva fiel
que nos é tão amada permanece enlaçado com pensamentos angustiosos. São
forças que partem de vós, sem dúvida, companheiros ciosos do trabalho em
ação, mas esquecidos do “faça-se a vossa vontade” que devemos dirigir ao
Supremo Senhor, em todos os dias da vida. Lastimo as circunstâncias que me
compelem a falar-vos com tamanha franqueza. Entretanto, não nos resta
alternativa diferente. Acreditais na vitória da morte, em oposição à gloriosa
eternidade da vida? Adelaide apenas restituirá maquinaria gasta ao laboratório
da Natureza. Continuará, porém, contribuindo nos serviços da verdade e do
amor, com ânimo inextinguível.
“Quanto a vós, não olvideis a necessidade de ação individual, no campo
do bem. Que dizer do viticultor que estima o valor da vinha somente através
dos serviços de alheias mãos? Como apreciar o amante das flores que nunca
desceu a cultivar o próprio jardim? Não façais a consagração da ociosidade,
mantendo-vos a distância do desenvolvimento de vossas possibilidades
infinitas. Indubitavelmente, cooperação e carinho são estimulantes sublimes na
execução do bem, mas, há que evitar a intromissão do fantasma do egoísmo a
expressar-se em tirania sentimental. Não podemos asseverar que impedis
propositadamente a liberação da companheira de cárcere. A existência carnal
constitui aprendizado demasiadamente sublime para que possamos reduzi-la à
classe de mera enxovia comum.
“Não, meus amigos, não nos abalançaríamos a semelhante declaração.
Referimo-nos tão só ao violento impulso de idolatria a que vos entregais
impensadamente, pelos desvarios da ternura mal-compreendida. A aflição com
que intentais reter a missionária do bem, é filha do egoísmo e do medo. Alegais,
em favor do vosso indesejável estado d’alma, a confiança de que Adelaide se
tornou depositária fiel, como se não devêsseis desenvolver as faculdades
espirituais que vos são próprias, criando a confiança positiva em Deus e em vós
mesmos, no trabalho improrrogável de autorrealização, e pretextais orfandade
espiritual simplesmente pelo receio de enfrentar, por vós mesmos, as dores e os
riscos, as adversidades e os testemunhos inerentes à iluminação do caminho
para a vida eterna. Valei-vos da bendita oportunidade para repetir velha
experiência de incompreensível idolatria.
“Convertem companheiros de boa vontade, mas tão necessitados de
renovação e luz quanto vós mesmos, em oráculos erguidos em pedestais de
barro frágil. Criais semideuses e gastais o incenso de infindáveis referências
pessoais, estabelecendo problemas complexos que lhes reduzem a capacidade
de serviço, olvidando as sementes divinas de que sois portadores. Corporificais
o ídolo no altar da mente, infundindo-lhe vida fugaz e, indiferentes à gloriosa
destinação que o Universo vos assinala, estimais o menor esforço que vos
encarcera em automatismos e recapitulações. Se o ídolo não vos corresponde à
expectativa, alimentais a discórdia, a irritação, a exigência; se falha, após o
início da excursão para o conhecimento superior, senti-vos desarvorados; se
rola do pedestal de cera, experimentais o frio pavor do desconhecido pelo
autorrelaxamento na renovação própria. Porque erigir semelhantes estátuas
para a contemplação, se as quebrareis, inelutavelmente, na jornada de
186 – Francisco Cândido Xavier (pelo Espírito André Luiz)
no coração, pode, em vários casos, ser levado a efeito pelo próprio interessado,
quando este haja adquirido, durante a experiência terrestre, o preciso
treinamento com a vida espiritual mais elevada. Não há, portanto, motivo para
surpresa. Tudo depende de preparo adequado no campo da realização.
Meu dirigente explicara-se com muita razão. Efetivamente, só no
derradeiro minuto interveio Jerônimo para desatar o apêndice prateado.
A agonizante estava livre, enfim!...
Abriu-se a casa à visitação geral. Evangelizados pelo verbo construtivo
de Zenóbia, os cooperadores encarnados, embora não guardassem minudentes
recordações, sustentaram discreta atitude de respeito, serenidade e
conformação.
A denodada batalhadora, agora liberta, esquivou-se gentilmente ao
convite para a partida imediata. Esperou a inumação dos despojos, consolando
amigos e recebendo consolações.
Depois de orar, fervorosamente, no último pouso das células exaustas,
agradecendo-lhes o precioso concurso nos abençoados anos de permanência na
Crosta, Adelaide, serena e confiante, cercada de numerosos Amigos, partiu, em
nossa companhia, a caminho da Casa Transitória, ponto de referência
sentimental da grande caravana afetiva...
189 – OBREIROS DA VIDA ETERNA
20
Ação de graças
Agradecemos-te a bênção
Da vida que nos emprestas;
Teus rios, tuas florestas,
Teus horizontes de anil,
Tuas árvores augustas,
Tuas cidades frementes,
Tuas flores inocentes
Do campo primaveril!...
Agradecemos-te as dores
Que, generosa, nos deste,
Para a jornada celeste
Na montanha de ascensão.
Pelas lágrimas pungentes,
Pelos pungentes espinhos,
Pelas pedras dos caminhos:
Nosso amor e gratidão!