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SABERES PLURAIS E

EPISTEMOLOGIAS
ATERRADAS
CAMINHOS DE PESQUISA NA
PSICOLOGIA E CIÊNCIAS HUMANAS

abrahão de oliveira santos


(organizador)
Universidade Federal Fluminense
REITOR
Antonio Claudio Lucas da Nóbrega
VICE-REITOR
Fabio Barboza Passos

Eduff - Editora da Universidade Federal Fluminense


CONSELHO EDITORIAL
Renato Franco [Diretor]
Ana Paula Mendes de Miranda
Celso José da Costa
Gladys Viviana Gelado
Johannes Kretschmer
Leonardo Marques
Luciano Dias Losekann
Luiz Mors Cabral
Marco Antônio Roxo da Silva
Marco Moriconi
Marco Otávio Bezerra
Ronaldo Gismondi
Silvia Patuzzi
Vágner Camilo Alves
© 2020
É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização
expressa da editora.

Equipe de realização
Editor responsável: Renato Franco
Coordenador de produção: Ricardo Borges
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Capa: Gustavo Oliveira | Tikinet
Projeto gráfico e Epub: Julia Ahmed | Tikinet
Diagramação: Robson Santos | Tikinet

Esta obra contou com avaliação dos artigos, feitas pelos pares, com correções e
revisão dos textos.

Ficha Catalográfica

S115 Saberes plurais e epistemologias aterradas [recurso eletrônico] : caminhos


de pesquisa na psicologia e ciências humanas / Abrahão de Oliveira Santos
(organizador). – Niterói : Eduff, 2020. – 23,3 MB ; PDF.

Inclui bibliografia.
ISBN 978-65-5831-083-9
BISAC PSY030000 PSYCHOLOGY / Research & Methodology

1. Cultura afro-brasileira. 2. Psicologia aterrada. 3. Epistemologia. I. Santos, Abrahão


de Oliveira. II. Título.

CDD 121.4

Ficha catalográfica elaborada por Márcia Cristina dos Santos CRB7-4700

Direitos desta edição cedidos à


Eduff - Editora da Universidade Federal Fluminense
Rua Miguel de Frias, 9, anexo/sobreloja
Icaraí - Niterói - RJ CEP 24220-008 - Brasil
Tel.: +55 21 2629-5287
www.eduff.uff.br - faleconosco@eduff.uff.br
COMITÊ EDITORIAL
Nacional
Amana Mattos – Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Fátima Lima – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Laura Quadros – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Noemi Piazarroso Lopez – Universidade Nacional de Educação à Distância
(UNED)
Pedro Paulo Bicalho – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Regina Marques Oliveira – Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)
Rinaldo Voltolini – Universidade de São Paulo (USP)
Rose Gurski – Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Internacional
Ana Maria Talak – Universidade Nacional de La Plata, Argentina
Barbara Glowczewski – Laboratoire d’Anthropologie Sociale, CNRS/EHESS/
Collège de France, França
Cristina Ronchese – Universidade de Rosario, Argentina
Gilles Monceau – Universidade de Cergy-Pontoise/Laboratório EMA-École,
Mutacion et Apprentissage, França
Laura Navarro Morales – Universidad Autónoma del México, Cidade de Toluca,
México
Mónica Balltondre Plá – Universidad Autónoma de Barcelona, Espanha
Paulo Renato Jesus – Universidade Portucalense da Cidade do Porto, Portugal
Karin Schneider – Yale University - USA
AGRADECIMENTOS
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

À comissão organizadora do III Encontro Kitembo: Laboratório


de Estudos da Subjetividade e Cultura Afro-brasileira: Povos Afro-
indígenas, Saberes Tradicionais, Pesquisa e Diálogo na Universidade,
em 9 e 10 de novembro de 2017: Abrahão de Oliveira Santos, Alline
Aparecida Pereira, Flávio Guilhon, Gabriel Vilela, Luiza Rodrigues
de Oliveira, Sheila Machado Dias, Thaíssa Gonçalves, Tulane Paixão,
Viviane Pereira da Silva, William Penna.
Aos convidados que partilharam conosco os conhecimentos e
experiências, apesar do histórico negativo da relação da academia com
os saberes tradicionais: pai Roberto Braga e mãe Arlene, Nego Bispo,
Capitão Potiguara, seu Cecílio Xukuru, Bruno Potiguara, Guilherme
Xukuru; Estela Cardoso e MC Garcia, o movimento de ocupação
Biblioteca do Engenho do Mato (BEM); dona Zilda Chaves e o movi-
mento Ocupa Alemão Favela/Quilombo, Ricardo De Moura e o Instituto
Raízes em Movimento; Ekede Maiah, da juventude de terreiro da Rede
Nacional de Religiões Afro-brasileiras e Saúde (Renafro), Francisco
Palharini, diretor do Instituto de Psicologia; Luiza Rodrigues Oliveira,
coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia; Cristina
Rauter, Katia Aguiar, Eduardo Passos, Jhonny Álvares.
A pesquisadora Hosana Celi Oliveira e Santos, por toda a articu-
lação com os povos Xukuru do Ororubá-PE e Potigura-PB.
À professora Luiza Rodrigues Oliveira, pela amizade e o esforço
sem o qual esse livro não teria saído;
A Fernando de Lima Rodrigues, companheiro em tempos de luta
e labuta, pela filmagem;
Aos mestres Tata Luazemi Roberto Braga, mama Sitambakaumbi,
mãe Lika, e tata Kavungile, pai Sérgio, pelos muitos ensinamentos dos
saberes da espiritualidade Angola-Congo;
A José Marmo da Silva (in memoriam), líder maior da Renafro,
pela força para a consolidação do Kitembo e sua presença marcante
na realização do I Encontro de Subjetividade e Cultura Afro-Brasileira:
Ancestralidade, Cultura e Práticas de Cuidado no Terreiro;
Às pessoas e instituições que financiaram ou viabilizaram de
alguma forma o evento e o livro: o colegiado do Departamental de
Psicologia, que decidiu alocar fomento no projeto do evento; o Programa
de Apoio à Pós-graduação (Proap), a Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior (Capes); a Pró-Reitoria de Extensão da
Universidade Federal Fluminense (Proex-UFF).

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Sumário

Abertura 11

Apresentação 15

Prefácio 29

CAPÍTULO I – A Pesquisa e os Saberes Tradicionais


Fazer um retorno: contribuição ao caminho de pesquisa 37
Antônio Bispo dos Santos

A pesquisa e os saberes tradicionais 43


Capitão Potiguara José Ciríaco Sobrinho

A busca da oralidade: o encontro com mulheres negras 51


Luiza Rodrigues de Oliveira

CAPÍTULO II – Pesquisa na favela, expropriação e


apropriação cultural
Por um ensino que diz da gente 57
Dona Zilda Chaves

Expropriação dos saberes pela universidade 59


Ricardo José de Moura

Nova paisagem universitária e renovação dos


modos de conhecer 69
Eduardo Passos
CAPÍTULO III – Intervenções e práticas de cuidado no
diálogo com a universidade
Oralidade e humildade como caminhos da ancestralidade e
do querer saber 75
Mãe Arlene de Katende

Oralidade e resistência angola-indígena: a erva que cura


é a que mata 78
Tata Luazemi Roberto Braga

“Eu sou um aprendiz”: aprender começa pelo respeito aos


antepassados e pelo conhecimento das lutas 80
Cecílio Santana Feitoza

A relação dialógica, a pesquisa e a construção do encontro 89


Katia Aguiar

CAPÍTULO IV – Juventudes indígenas: universidade e pesquisa


junto aos povos indígenas
Juventude Pé no Chão (Poyá Limolaygo): comunidade,
tradição e luta: dar outro rumo à academia 96
Guila Xukuru – Guilherme Araújo

Juventude indígena: identidade social e o protagonismo


indígena na pesquisa 101
Bruno Potiguara

Juventudes indígenas: mobilizações, redes e pesquisas 109


Hosana Celi Oliveira e Santos

Aprendendo a pesquisar pensando, sentindo e fazendo


no encontro 118
Johnny Alvarez
CAPÍTULO V – Saberes jovens, tradição,
universidade e pesquisa
O espaço de autogestão da ocupação no Engenho do Mato 125
Estela Cardoso

Juventude, roda de rima e tradição da resistência 130


MC Garcia

Na universidade e na rua a juventude de terreiro cansou de


se calar 132
Maiah Lunas Maciel Marques de Oliveira

Caminhos da luta antirracista na UFF 136


Cristina Rauter

CAPÍTULO VI – Pesquisa e vida em conexão


Pesquisa em conexão: uma perspectiva em construção 143
Viviane Pereira da Silva

FOTOS DO III ENCONTRO KITEMBO 151

SOBRE OS AUTORES E AUTORAS 157


Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

Abertura

Salve a Natureza Sagrada!


- Salve!
Salve os Encantos!
- Salve!
Salve as Águas!
- Salve!
Salve todos nós!
- Salve!

Obrigado senhor, meu rei.


Senhor, meu rei do Ororubá,
Obrigado senhor, meu rei.
Senhor, meu rei do Ororubá,
Pela força e a coragem e meus irmãos, para lutar,
Pela força e a coragem meus irmãos, para lutar.

Obrigado senhor, meu rei.


Senhor, meu rei do Ororubá,
Obrigado senhor, meu rei.
Senhor, meu rei do Ororubá,
Pela força e a coragem e meus irmãos, para lutar,
Pela força e a coragem meus irmãos, para lutar.

Obrigado senhor, meu rei.


Senhor, meu rei do Ororubá,
Obrigado senhor, meu rei.
Senhor, meu rei do Ororubá,
Pela força e a coragem e meus irmãos, para lutar,
Pela força e a coragem meus irmãos, para lutar.

No reinado da Jurema
Às seis horas acende a luz.
No reinado da Jurema
Às seis horas acende a luz.

11
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

Valei-me Nossa senhora


E o Coração de Jesus.
Valei-me Nossa Senhora
E o Coração de Jesus.
Valei-me Nossa Senhora
E o Coração de Jesus.

No reinado da Jurema
Às seis horas acende a luz.
No reinado da Jurema
Às seis horas acende a luz.
Valei-me Nossa senhora
E o Coração de Jesus.
Valei-me Nossa Senhora
E o Coração de Jesus.
Valei-me Nossa Senhora
E o Coração de Jesus.

Reina, reina, reina


Reina, reina rôa
Reina, reina rôa

Viva o nosso pai do Tupã!


- Viva!
Viva nossa mãe Tamain!
- Viva!
Viva o cacique Mandaru!
- Viva!
Viva o cacique Tatuí!
- Viva!
Viva o Pajé!
- Viva!
Viva a Natureza Sagrada!
- Viva!
Viva os Encantos!
- Viva!

12
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

Salve as Águas!
- Salve!
Salve as Pedras!
- Salve!
Salve as Matas!
- Salve!
Salve todos os Índios!
- Salve!
Salve os que estão aqui presentes!
- Salve!
Salve os que estão ausentes!
- Salve!
Uma salva de palmas para os nossos participantes.
Uma salva de palmas para nosso pai Tupã e nossa mãe Tamain.

Salve a Jurema sagrada!


- Salve!
Salve os Índios!
- Salve!
Salve o JUCÁ!
- Salve!
Salve todos que estão aqui presentes!
- Salve!
Em nome de Deus, em nome do Senhor do Bonfim, em nome da Jurema
Sagrada!
- Salve!
Louvação Xukuru, conduzida por seu Cecílio Xukuru e acompa-
nhada por Xukuru e Potiguara.
Esse momento é uma oração que a gente faz louvando o nosso pai
de Tupã, que é o pai de todos nós, que é o nosso Deus verdadeiro, para dar
início a um trabalho muito importante como esse, para dar força a todos
nós defender, com toda demanda, todos os contrários e as contrariedades,
todos os maus pensamentos, todas as correntes negativas. Então, esse é
o momento de oração que a gente faz quando a gente inicia o nosso tra-
balho, num evento como esse, a gente faz lá com o nosso povo, quando a
gente chama o nosso pai Tupã. Ele está no meio de nós em todo canto do
Brasil. É cultura e religião que tem a ver com nosso povo.

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Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

Como tudo nosso começa com Nzila, o Senhor dos Caminhos,


vamos fazer uma cantiga para Nzila, para continuar com os caminhos
abertos e, quando os caminhos se abrem, vem a proteção.

Nzila, Nzila ye mavambo


Gangara meso ye há, há, há
Gangara meso ye.
Luanda sisa sisa lukaya
Luanda sisa sisa lukaya wa gange
Ngue ngue kidonki ua mpemba ko
Kindoki kidonki ua mpemba ko ngue ngue
Ngue ngue kidonki ua mpemba ko
Kindoki kidonki ua mpemba ko ngue ngue
Nzila kiambote.
Kiwa Nzila.

Nzila mesmo nos proteja, abra nossos caminhos. Que os inimigos não
tenham vistas e nada de ruim possa se aproximar de nós todos.

Louvação para os minkisi, conduzida por tata Luazemi Roberto


Braga e acompanhada por sacerdotes e filhos de santo.

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APRESENTAÇÃO
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

A retomada dos saberes e a construção de epistemologias negro-


pindorâmicas: uma apresentação
Abrahão de Oliveira Santos

A Ocupação Preta na Universidade Federal Fluminense (UFF), em


2016, em meio ao movimento de ocupação de estudantes universitários
por direitos, marcava a presença do Movimento Negro, que se expandia
com a implementação das ações afirmativas na universidade e indicava
uma intensa alteração na paisagem dos cursos de formação universitária
do país. Era o efeito da luta do movimento negro por educação, expressa
desde os anos 1920 e reafirmada quando Abdias Nascimento encaminha o
projeto de lei para as ações afirmativas, em 1973, ao parlamento. As cotas
raciais para negros e indígenas foram implementadas em 2004 e referen-
dadas pelo Supremo Tribunal Federal em 2012. Anos depois da ocupação,
os noticiários chegam a exaltar a expressão de maioria de pessoas negras
na universidade (ILHÉU, 2019). Esse estado alterado de coisas se expressa
no projeto desse livro e nos vários textos que o compõem.
A chegada de cotistas negros e indígenas na graduação em
Psicologia, com a Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012, e no programa de
pós-graduação, com a Portaria Normativa nº 13, de 11 de maio de 2016,
nos traz vivências, contextos de vida, condições cognitivas e intelectuais,
práticas de ativismo e de militância, e uma diversidade de questões para
as quais a universidade, os saberes científicos e as práticas profissionais
e pedagógicas precisam se voltar (BRASIL, 2012, 2016). Nos cursos de
Psicologia das instituições públicas de ensino as tensões se apresentam,
com os estudantes solicitando e exigindo o direito de ter em sala de aula
discussões que tragam a história dos povos negro e indígena. Também
provenientes das lutas do movimento negro e dos movimentos indígenas,
as Leis nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, e nº 11.646, de 10 de março de
2008, que instituem a obrigatoriedade do ensino de história e de cultura
afro-brasileira e indígena, na educação básica; e a Resolução CNE nº 1, de
17 de junho de 2004, que institui as diretrizes curriculares nacionais para
o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana, de acordo com

16
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

os parâmetros curriculares nacionais, dão suporte institucional a essas


demandas de reparação histórica (BRASIL, 2003, 2004, 2008).
Nesse novo cenário social, as questões da formação profissional e
produção de conhecimento no Brasil chegaram finalmente num ponto
de saturação. Desde as invasões dos povos europeus às terras pindorâ-
micas, com o início das políticas de colonização e genocídio, passando
pela independência do país do império português, quando logo se bus-
cou implementar as primeiras faculdades, em 1828 (SCHWARCZ, 1993)
e criar o conhecimento para a administração do país. Depois veio a mal-
fadada abolição de 1888 e no ano seguinte a Proclamação da República,
com um projeto que excluía os grupos sociais responsáveis pela produ-
ção da riqueza nacional: os negros e os povos indígenas.
No século XIX as ciências sociais e humanas e da saúde avançam,
na medicina, psiquiatria, geografia, sociologia, antropologia, psicolo-
gia, não apenas desconsiderando a diversidade racial e cultural que for-
mava a nação brasileira, mas procurando colocar como irrelevantes as
lutas dos negros e povos indígenas, e como diz o anticolonialista Frantz
Fanon, trabalharam para folclorizar e mumificar as lutas dos povos
dominados. Ao se voltar para a “existência cultural do povo subjugado”
(FANON, 2015, p. 271), Fanon considera que a dominação colonial impõe
a perifericização dos povos e seus valores, seus costumes, sua estética,
para assim sujeitar homens e mulheres.
Entretanto, da formação congo-angola dos mocambos deno-
minada de República de Palmares, à Confederação dos Tamoios, à
Conjuração Baiana e a Revolta dos Malês e muitas insurreições e movi-
mentos de crucial importância na luta por direitos e na formação polí-
tica do Brasil, nosso povo jamais parou de se colocar e de preservar sua
memória e produzir seus conhecimentos (GOMES, 2017; MOURA, 2014).
Segundo a leitura de Joel Rufino dos Santos (1985), o movimento negro,
como entidades e ações organizadas na luta contra o racismo ou como
conjunto de estratégias de sobrevivência e dinâmica cultural de negras/
os no Brasil é parte indispensável na compreensão da dinâmica política
brasileira, com sua visão de fora do campo hegemônico.
Em 1945 uma mulher negra, Virgínia Leone Bicudo, com plena
noção de sua condição social, escreve a primeira tese sobre relações
raciais do Brasil (GOMES, 2013), o Estudo de atitudes raciais de negros
e mulatos em São Paulo, onde discute, com a Frente Negra Brasileira,

17
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

a importância de associações dos negros na conquista de direitos


(GOMES, 2013). Muitos anos depois, anos 1970 a 1990, a historiadora
Beatriz Nascimento vai ressaltar o quanto as diversas associações dos
negros mantêm continuidade com as modalidades de auto-organização
dos negros chamadas de quilombos (ÔRI, 1989).
O pensamento e a perspectiva do conhecimento trazidos por
Virgínia Bicudo e Beatriz Nascimento poderiam inspirar o desenvolvi-
mento de uma ciência aterrada nas questões e diversidade étnico-racial
da formação do país. Mas o pensamento social brasileiro e as institui-
ções acadêmicas de formação profissional e de pesquisa, e mesmo a
intelectualidade progressista, esqueceram e tentaram apagar a memória
das referidas pesquisas (GOMES, 2013). Esse modus operandi da intelec-
tualidade e da academia, em relação aos pesquisadores negros, ocorre no
contexto daquilo que Clovis Moura apontava como a estratégia branca
de bloquear a produção de conhecimento dos povos não brancos. Clóvis
Moura (1988, p. 62) denunciava os procedimentos de “fuga da realidade”,
a respeito das condições de vida da população. Essa fuga engajada na
manutenção da dinâmica das relações raciais, implica a pesquisa que
tematiza o negro, como mostrava Guerreiro Ramos (1995), a partir da
ótica de intelectuais com a perspectiva de valores conceituais brancos;
pesquisa que produz o negro aturdido, folclorizado, mumificado, sem
referência histórica, carente de visão e incapaz de se incomodar e pensar
a realidade. A pesquisa e intervenção que assim procede, desconhecen-
do-nos a nós e nossa condição de sujeito coletivo, como concebia Éder
Sader (PEREIRA, 2013; SADER, 1988) e ao mesmo tempo insinuando
nos ajudar e nos ensinar a pensar, quando continuam os “processos de
domesticação psicológica” (RAMOS, 1995, p. 220) dos que foram empur-
rados para a periferia das cidades.
Nos caminhos indicados por esses/as intelectuais negros/as,
fomentadores de um pensamento contracolonial, abrimos, em 2012,
uma clareira dentro do Departamento de Psicologia da Universidade
Federal Fluminense (UFF), que foi o Kitembo: Laboratório de Estudos
da Subjetividade e Cultura Afro-brasileira, que começou a juntar os
povos de terreiro, o povo indígena, as comunidades de periferia e fave-
las, para pensar juntos e a partir de seus próprios termos as ciências.
A pesquisa, conforme o que surgiu no terreiro deveria se colocar como
aterrada e ter perspectiva afro-indígena.

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Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

O Kitembo povoou o campus universitário com o que inicial-


mente era apenas a frequência ungida de ancestralidade e dali produziu
debates, estudos e pequenos encontros, como o I Encontro Kitembo:
“Ancestralidade, Cultura e Práticas de Cuidado nos Terreiros”, em
2014, e o II Encontro Kitembo: “Saúde da população negra”, em 2015.
Posteriormente, a vibração dos ancestrais agregou energias até que se
concentrou no conjunto de textos gerados na ocasião do III Encontro
Kitembo: Povos Afro-indígenas, Saberes Tradicionais, Pesquisa e
Diálogo, subsumido pelo princípio da oralidade, quer dizer, do encon-
tro que se dá entre os mais velhos e os mais novos, como concebia mãe
Beata de Yemanjá.
A oralidade é solo da escrita e nela ressalta a reflexão de excep-
cional importância no caminho da pesquisa aterrada (SANTOS, 2019;
SANTOS; OLIVEIRA, 2019; SANTOS; SILVA, 2018), como já havia pro-
posto, no âmbito do sentido da comunidade para os povos insurgentes no
Brasil. O encontro de povos pretos, pindorâmicos, favelados, periféricos,
de terreiro, de dentro e de fora da academia, para pensar pesquisa, gerou
textos que propõem à pesquisa e à produção de conhecimento, bem como
à formação profissional, caminhos metodológicos e epistemológicos que
se comprometam com a terra, com as comunidades, os antepassados ou
bakulo, os ancestrais, caboclos, inquices, voduns, encantados e orixás.
Considerando esses termos, as labutas da urdidura de saberes e
ciências, como, aliás, se manifesta há muito nos povos da diáspora negra
e pindorâmicos, os Xukuru abriram o III Kitembo e abrem o livro com
seus textos e louvações, agradecendo à Natureza viva e aos encantados
pela força, pela vontade e pelos irmãos para lutar e nos trazendo a vibra-
ção da sua Retomada, seguida pela louvação do povo descendente ango-
la-congo, para que os caminhos e a comunicação nos sejam prósperos.
Em janeiro de 2016, e depois em 2018, estive nas aldeias na Terra
Indígena Xukuru do Ororubá, na Serra do Ororubá, na região Agreste
do estado de Pernambuco, num encontro com o Cacique Marcos, a
matriarca dona Zenilda, a liderança espiritual e política seu Cecílio,
muitas outras lideranças Xukuru e seu povo. Um dos frequentes temas
de conversas com o povo Xukuru do Ororubá é o da Retomada, des-
crita por Hosana Santos como marco de transformação a partir do qual
os Xukuru construíram novos modos de vida e esperança no futuro
(SANTOS, 2009). Sentados em círculo na escola na Aldeia de São José,

19
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

com seu Sebastião Xukuru e meu companheiro Fernando Rodrigues, seu


Cecílio rememora os acontecimentos que prepararam as retomadas, nos
anos 1980, a disputa do cacicado, a intriga com a Fundação Nacional do
Índio (Funai), a chegada de Xicão Xukuru. Xicão logo disse, comenta seu
Cecílio: “quem demarca a terra é índio, não é a FUNAI”. Esse momento,
essa conversa, me passa um ensinamento: a primeira retomada dos
Xukuru é a da consciência de sua própria força e de sua missão.
Para as comunidades da diáspora africana e para os povos da terra,
que sofreram a violência do colonizador, retorno ou retomada é o plano
de começo e recomeço do caminho da luta e de reconhecimento das refe-
rências, cantos, estradas, terreiros, histórias por onde passamos. É tam-
bém o plano do conhecer a respeito de nós mesmos, nossa antropologia,
sociologia, historiografia, psicologia, geografia, ciências políticas, litera-
tura de ficção, crítica literária, filosofia, oralitura. Antônio Bispo parte
de sua vivência, em um jeito de conhecer que ele chama de biointeração
(SANTOS, 2015), para nos oferecer essas dicas de mobilização e de busca
de termos, parâmetros ou referências para os caminhos do nosso pesquisar.
O retorno não nos constrange no tempo para trás, como procederia
se tivéssemos uma concepção linear do tempo. Aqui o tempo é Kitembo,
a bandeira ancestral tremulante nos terreiros angola-congo, que indica a
ida e o retorno. O tempo é circular e não segue o critério do progresso,
pois que a cada geração surgem novos anseios, novas questões, novos
destinos, novas soluções e o tempo é o tempo do começar. É o tempo da
liberdade, visto que cada geração põe os seus problemas em seus próprios
termos; tempo do convívio, como vemos nas aldeias e nos terreiros, do
mais velho com o mais novo. O tempo e a força da ancestralidade, na
abertura com os Xukuru e os Potiguara de descendência congo-angola,
a junção entre pindorâmicos e angolas, na organização da resistência,
como comenta pai Roberto Braga, pactuado na performance corporal ou
nas falas, como o tempo espiralar, comentado por Leda Martins (2002).
Numa pesquisa aterrada, compromissada com a comunidade e a
ancestralidade, o primeiro retorno é aos nossos mais velhos, os mestres, o
saber, incluindo aí os nossos bakulo angolas-congos, protetores, benfeitores.
Isso faz o nosso modo de afirmar a existência, o fazer, o cuidar e o pen-
samento, bem diferentes do que propõe o iluminismo kantiano, que pro-
fessa o pensar por si mesmo da Aufklärung, o Esclarecimento (FOUCAULT,
2008; KANT, 2012). No paradigma do Enegrecimento, como ambicionamos

20
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

propor (SANTOS, 2019), nos ocorre pensar com a comunidade, na comu-


nidade, pela comunidade, de modo que o pensamento aí se apure no ver-
dadeiro conluio com os estilos das comunidades e seus destinos. E é isso
que o III Kitembo proporcionou e se presenta no conjunto dos textos desse
livro. Tanto na vivência no terreiro – na roça, como internamente falamos
–, quanto nas aldeias pindorâmicas, nos quilombos rurais, a comunidade
é constituída pelos humanos e seus antepassados, pelos que virão, e pelas
forças da natureza. Também nas favelas e periferias onde habitam os des-
cendentes da diáspora africana e dos povos indígenas, o sentido de comu-
nidade viva, atuante, constitui espíritos e corpos das pessoas, numa prolife-
ração ne nzilas, Mulambo, Caboclo dos Ventos, Marabô, Tranca e Destranca
e muitos outros nomes “como se fossem destinos os mais diversos, as varia-
ções do próprio existir” (CAMINHO…, 2020), todos referidos nos planos das
comunidades, dos que vieram e dos que ainda virão. Esses termos colocam
o projeto Kitembo no plano ético, político, estético, técnico e espiritual.
O paradigma do Enegrecimento, de perspectiva aterrada e afroin-
dígena, tem, portanto, a vivência da roça, da aldeia e do terreiro como
chão epistêmico. A ênfase na comunidade e na ancestralidade remete-nos
diretamente ao sentido do ubuntu, da vida que se refere à comunidade e
“tem por finalidade a emancipação cósmica, isto é, de todos os seres viven-
tes visíveis e invisíveis” (MALOMALO, 2019, p. 82), humanos e além do
humano. O sentido do comunitarismo aqui, que orienta a pesquisa ater-
rada, no nome de uma perspectiva afro-pindorâmica, tem a dimensão da
inclusão radical, uma vez que tudo o que existe é emanação da força vital,
do “ser-força” (TEMPELS, 1948, p. 41) que se realiza em graus variáveis ou
aproximativamente, vale dizer, o ser-força é ser-força-sendo, o ser-sendo
ou corpœspiritual.
No livro, esse aspecto programático é aberto no Capítulo I, “A
pesquisa e os saberes tradicionais”, quando o lavrador Antônio Bispo
dos Santos, no texto “Fazer um retorno: contribuição ao caminho de
pesquisa”, põe a evidência incisiva da comunidade, explicita os movi-
mentos de suas pesquisas sob o signo de “fazer o retorno”, e nos apre-
senta o tempo circular: começo-meio-começo, pleno de sentido ético,
político e espiritual, a nos guiar nas lutas e nos proteger do destino.
Embalado na memória da Retomada, a liderança Capitão
Potiguara – José Ciríaco Sobrinho apresenta o texto “Conhecimento
tradicional, pesquisa e luta”, no qual traça o percurso importante de sua

21
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

vida para seu povo. A professora Luiza Rodrigues de Oliveira faz jus à
oportunidade para tratar da oralidade no texto “A busca de oralidade: o
encontro com mulheres negras”.
No Capítulo II, “Intervenções e práticas de cuidado no diálogo
com a universidade”, Mãe Arlene de Katende, da tradição do candomblé
angola-congo da Gomeia, no texto “Oralidade e humildade como cami-
nhos da ancestralidade e do querer saber”, traz a humildade, que em sua
concepção de terreiro é a astúcia do querer saber, daquele que aprende,
daquele que se desdobra na busca do saber, a força vital que emana da
nossa ancestralidade e vem da oralidade. Tata Luazemi, Roberto Braga,
também angola-congo, porém da família, ou ndange, Tumba Junsara,
escreve “Oralidade e resistência angola-indígena: a erva que cura é a que
mata”, no qual enfatiza o vínculo dos povos banto-falantes, os primeiros
que vieram como escravizados para o Brasil, com os povos originários
ou pindorâmicos, de quem ficou ao lado na instigante troca a respeito de
plantas. Quando mãe Arlene de Katende e pai Roberto Braga enfatizam
a troca na construção do conhecimento, na preservação da tradição, na
inovação da cultura, reafirmamos e reencontramos a sabedoria de mãe
Beata de Iemanjá: “a oralidade é o mais novo aprendendo com o mais
velho, um de frente para o outro, o encontro. E o mais velho também
aprende com o mais novo. O encontro é a oralidade”.
A mata, a roça, a aldeia e o terreiro, como vai ocorrer também na
favela, espaço de embates e conquistas, são os locais onde os saberes
emergem e se desenvolvem. É aí, nos locais de encontro e nas trocas,
na presença constante dos encantados, que se tramam as lutas que tra-
vamos para viver, sobreviver e fortalecer, que surgem as narrativas e os
textos, como o do líder espiritual e político dos Xukuru do Ororubá, seu
Cecílio Santana Feitoza, “Eu sou um aprendiz: aprender começa pelo
respeito aos antepassados e pelo conhecimento das lutas”. O encontro
é afirmado também na reflexão da pesquisadora Katia Aguiar, no texto,
“A relação dialógica, a pesquisa e a construção do encontro”, no qual
põe em questão a prática da pesquisa e reflete os enganos que a ideia de
pesquisar com o outro pode colocar.
No Capítulo III, “Juventudes indígenas: universidade e pesquisa
junto aos povos indígenas”, vemos desenvolver, ao lado dos mais velhos,
a palavra de jovens lideranças indígenas como Guila Xukuru, que
escreve “Juventude pé no chão (Poyá Limolaygo), comunidade, tradição

22
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

e luta: dar outro rumo à academia”, seguindo os passos dos mestres e


atualizando o sentido das lutas do seu povo, a construção de coletivos
indígenas para dar conta dos novos embates. Guila Xukuru traz o sen-
tido de uma nova categoria surgida recentemente, a juventude indígena.
Nesse mesmo cruzamento ou terreiro, há o texto “Juventude indígena:
Identidade social e o protagonismo indígena na pesquisa’, da liderança
jovem Bruno Potiguara, avançando no desenvolvimento das questões
de jovens indígenas na universidade, como identidade e protagonismo.
Esse diálogo se faz também com o texto “Juventudes indígenas: mobi-
lizações, redes e pesquisas”, da antropóloga Hosana Celi Oliveira e
Santos. Aqui também o professor Johnny Alvarez, em “Aprendendo a
pesquisar pensando, sentindo e fazendo no encontro”, se volta para o
processo de aprendizagem e descolonização do pesquisador.
No Capítulo IV, “Saberes jovens, tradição, universidade e pes-
quisa”, a psicóloga e moradora do Engenho do Mato Estela Cardoso, no
texto “O espaço de autogestão da ocupação no Engenho do Mato”, expõe
o labor da ocupação de uma praça e uma biblioteca abandonadas e mos-
tra a vontade de reconstruir na criação de espaços de resistência e o
surgimento de um quilombo urbano. O MC Garcia, no texto “Juventude,
roda de rima e tradição da resistência”, faz um arremate cheio de vida,
de axé, nguzo e perspectivações. Garcia retorna ao seu velho pai, que o
impulsiona a pensar a tradição e a ancestralidade como um elemento
do presente e, no movimento circular do tempo de que falei acima,
as rodas de rima significam a luta no começo da nova geração. Maiah
Lunas Maciel Marques de Oliveira, dá um tom forte e preciso, no texto
“Na universidade e na rua a juventude de terreiro cansou de se calar”,
revelando os desdobramentos dos avanços do movimento negro e a con-
quista das cotas raciais na universidade. Maiah Lunas nos traz à lem-
brança o mestre ogã José Marmo (in memorian), revigorador da Rede de
Religiões Afro-brasileiras (Renafro) e o homenageia. Marmo também
esteve presente no impulso inicial de formação do Laboratório Kitembo.
Finalizando o capítulo, a professora Cristina Rauter, em “Caminhos da
luta antirracista na UFF”, expõe algumas memórias e aponta diferenças
que devem ser levadas em conta nos estudos das questões brasileiras.
No Capítulo V, “Pesquisa na favela, expropriação e apropriação cul-
tural”, temos Zilda Chaves, do Coletivo Ocupa Alemão Favela Quilombo
e colaboradora na Escola Quilombista Dandara de Palmares, que, com

23
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

plena noção do sentido de comunidade, considera indispensável que as


crianças e jovens tenham a vivência de ser preto, da favela e tenham o sen-
tido da luta, como escreve no texto “Por um ensino que diz da gente”. Já
o pesquisador Ricardo José De Moura, praticante da pesquisa enramada
na favela, traz consigo e explicita no texto “Expropriação dos saberes pela
universidade” o cuidado que a produção de conhecimento deve ter com
os saberes periféricos a fim de não reiterar a relação de subalternidade. O
diálogo aí se torna interessante, com a perspectiva da experiência e das
observações de Eduardo Passos, professor de longa data na universidade,
a partir do texto “Nova paisagem universitária e renovação dos modos de
conhecer”, no qual fala da alteração da paisagem na academia, mais “colo-
rida”, “mestiça”, agora, no dizer do professor, cuja situação nos coloca o
desafio de desenvolver metodologias participativas.
Viviane Pereira escreve o Posfácio do livro, sob o título “Pesquisa
em conexão: uma perspectiva em construção”, com um traçado escrito
no qual o movimento de estudos e produção dos membros do Kitembo
mostram-se envolvidos na ancestralidade e na busca de termos próprios
de seus problemas e encaminhamentos epistemológicos.
Este livro é o marco de uma história das ciências escrita por
negros, indígenas, favelados, periféricos, comunidade de santo e pes-
quisadores. Conta-nos, em certa ocasião, Antônio Bispo, que seu tio lhe
dizia que “os quilombolas precisam conhecer a favela, ‘parelhar’ com a
favela, para não ter medo dela. Se dizem que os terreiros de umbanda
são ruins, é para o terreiro que nós temos que ir”. A reunião desses tex-
tos, das ideias que aqui se apresentam, é o desenvolvimento dessa peda-
gogia e desse encontro com grupos sociais de diferentes estilos e condi-
ções. É a psicologia e as ciências humanas que começam outra história,
em continuidade com o movimento dos quilombos, como queria Beatriz
Nascimento, isto é, da auto-organização que uniu negros e indígenas
na luta por liberdade e direitos. Processos e fases do movimento negro.
Contrário à incidência da domesticação psicológica que é a ideo-
logia da democracia racial e da mestiçagem (e com ela a sublimação e
negação da violência do escravismo até os dias atuais), este é um livro
fruto da formação que o movimento negro, em sua luta, nos dá. No
número de março de 1929 o Clarim da Alvorada propõe o I Congresso
da Mocidade Negra. Segundo José Correia Leite, foi Vicente Ferreira
quem introduziu o termo negro, no lugar da denominação então usada,

24
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

“homem de cor” (FERNANDES, 2008; OLIVEIRA, 1984). Na live


Movimento Negro Unificado: MNU 42 anos de luta contra o racismo,
no dia 7 de julho de 2020, os militantes Yedo Ferreira e José Adão falam
da polêmica causada quando, em 1978, Abdias Nascimento sugeriu que
o movimento contra a discriminação racial tivesse o termo negro, passa
ressaltar o protagonismo negro e não a exclusão. Daí ficou Movimento
Negro Unificado contra a Discriminação Racial (MNU). O posiciona-
mento dos anos 1920, confirmado em 1978, tem um sentido para forte.
Os ativistas poderiam ter tomado os termos pardo, moreno, mulato,
mestiço. Mas, muito cuidadosos e amorosos, entenderam a necessidade
de proteger os que são mais atacados pela verve genocida do Estado, tra-
zendo, portanto, ao primeiro plano de visibilidade aqueles que tivessem
a cor mais retinta. Daí o termo que salta, negro, para dar identidade ao
movimento antirracista que ali se fortalecia.
O que se expressa nesse livro como frequência de criação na psi-
cologia é o desenrolar de um projeto disparado em 2012, quando surge o
Laboratório Kitembo. Estamos apenas no começo. Certamente, fazemos
parte de uma rama do movimento negro, do qual muitos enramamen-
tos se desenvolverão. São textos de cura para toda nossa gente. O III
Encontro Kitembo é um marco nesse propósito, um marco cognitivo,
quando passamos a pensar a partir de referências indígenas e negras,
realizando o destino de mais um quilombo, no encontro de favelados,
povo de santo, periféricos, lavradores, que lutam e pensam a partir de
si e por si como povos e comunidades. Esse livro é mais um passo na
retomada epistêmica, no movimento de nos dar a nós mesmos o direito
de dizer em quais termos a pesquisa necessita ser feita e pode ser feira.
Vamos nos libertar da velha Europa, dizia Fanon, sugerindo que os inte-
lectuais adentrassem a cultura e a luta do seu povo, para trazer suas pró-
prias referências e produzir o conhecimento da libertação. O caminho
aqui é aquele pelo qual saímos da grande noite em que fomos mergulha-
dos, com coragem, humildade e ternura.

Referências
BICUDO, Virgínia. Atitudes Raciais de pretos e mulatos em São Paulo.
Organizador: Marcos Chor Maio. São Paulo: Editora Sociologia
e Política, 2010. Originalmente apresentado como dissertação de
mestrado, Universidade de São Paulo, 1945.

25
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

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20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da
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Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-
Brasileira”, e dá outras providências. Diário Oficial da União,
Brasília, DF, 10 jan. 2003. Disponível em: https://bit.ly/3lLYOyX.
Acesso em: 18 nov. 2020.
BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Resolução nº 1, de 17 de
junho de 2004. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História
e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Diário Oficial da União,
Brasília, DF, 22 jun. 2004. Disponível em: https://bit.ly/3nvwKQI.
Acesso em: 18 nov. 2020.
BRASIL. Lei nº 11.646, de 10 de março de 2008. Altera dispositivos da Lei
no 8.313, de 23 de dezembro de 1991, para estender o benefício fiscal
às doações e patrocínios destinados à construção de salas de cinema
em Municípios com menos de 100.000 (cem mil) habitantes, e dá
outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 mar.
2008. Disponível em: https://bit.ly/2IQVns1. Acesso em: 18 nov. 2020.
BRASIL. Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso
nas universidades federais e nas instituições federais de ensino
técnico de nível médio e dá outras providências. Diário Oficial
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ly/2UAycVG. Acesso em: 18 nov. 2020.
BRASIL. Portaria Normativa nº 13, de11 de maio de 2016. Dispõe sobre
a indução de Ações Afirmativas na Pós-Graduação, e dá outras
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Instituto de Letras/UFBA, 13 jun. 2020. 1 vídeo (331 min). Publicado
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Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

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TEMPELS, Placide Frans. La philosophie bantoue. Paris: Présence
Africaine, 1948.

28
PREFÁCIO
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

Para Enegrescer o conhecimento: o solo acadêmico e a busca por


outros repertórios
wanderson flor do nascimento

Alegria. É com esse afeto que encontramos o conjunto de reflexões


propostas pelo livro Saberes plurais e epistemologias aterradas: Caminhos de
pesquisa na psicologia e ciências humanas. E por que alegria? Atravessamos
um momento bastante tenso de nossa história recente. O autoritarismo,
o obscurantismo, o negacionismo, o embarreiramento do conhecimento
científico, a desconstrução da legitimidade do campo das humanidades
e dos parcos avanços que os campos da psicologia e das demais ciências
humanas alcançaram em termos de pensar experiências não hegemônicas.
Tudo isso evocando a defesa de uma suposta democracia na qual, segundo
o atual presidente da república, “as minorias têm que se curvar às maio-
rias”. Esses são elementos que rondam nosso atual momento histórico.
Este momento posiciona as comunidades que pretendem futuros
mais acolhedores, mais plurais, menos racistas, sexistas, classistas, em
um forte deslocamento. Até o começo da década de 2010, os discursos
acadêmicos pós-modernos, os da teoria crítica, os pós-coloniais e os deco-
loniais, em uma profícua relação com diversos movimentos sociais no
mundo, olhavam para a ciência com uma acertada desconfiança crítica.
Revisitou-se, a partir das percepções dos grupos marginalizados,
a história das ciências e das denúncias de sua incisiva colaboração para
a construção do racismo, da misoginia, da opressão laboral, da homofo-
bia etc. Essas abordagens pululavam nos mais diversos campos acadê-
micos, mesmo que de maneira contra-hegemônica.
Em uma velocidade pouco vista na história, o cenário se reconfi-
gura. As forças sociais que, outrora, utilizavam as ciências para oprimir,
silenciar, buscar eliminar corpos e saberes subalternizados, se voltam,
também, contra o próprio campo das ciências, atacando sua legitimi-
dade e mesmo suas condições materiais e simbólicas de existência, como
os financiamentos e a defesa da liberdade de pensamento e investigação.
Em outro momento histórico, essa camada agenciadora da posi-
ção hegemônica do fazer científico sequestrou “a verdade” das relações

30
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

diversas e polissêmicas do mundo, visando construir e violar determinados


grupos, como mulheres, povos originários, negras e negros, pessoas LGBT,
povos do campo, trabalhadoras e trabalhadores urbanos, colonizando a
ciência e colocando-a contra o mundo no qual emergia “a verdade”.
Hoje, grupos reacionários sequestram “a verdade” da ciência,
acusando-a de “ideologia”, aprisionando-a em um totalitarismo epistê-
mico dogmático da “pós-verdade”, no qual informações falsas, criadas
e disseminadas intencionalmente, nos devolvem uma terra plana, uma
mulher e um negro naturalmente inferiores, um “índio” que atrapalha
o desenvolvimento, uma pessoa não heterossexual que não é normal.
Essas informações passaram a regular as relações assim como o fazia a
“verdade” colonizada pela ciência, no momento anterior.
Mas uma coisa se manteve: a opressão de grupos que são, insis-
tentemente, subalternizados pelas lógicas de poder, que outrora foram
vitimados por usos das ciências e agora são vitimados pelo atual obscu-
rantismo anticientífico. Esses grupos são lançados à margem de posições
que definem, dogmaticamente, como devemos sentir, pensar, viver, existir.
E é aí que o deslocamento nos chega, imperioso. Aquelas e aqueles
de nós que, até pouco tempo, fazíamos uma incisiva crítica à ciência, hoje
somos demandadas/os a defendê-la. Não por considerarmos agora que o
campo da produção científica do conhecimento não seja problemático,
mas porque os parcos avanços que conseguimos instauraram a possibi-
lidade de um espaço dialógico no interior do fazer acadêmico-científico,
que se relacionasse com os movimentos sociais e com os povos tradicio-
nais, com o “extra-universitário”, reconhecendo e mobilizando os saberes
produzidos por esses sujeitos outros em relação à hegemonia.
E esse pequeno avanço foi um dos primeiros alvos a serem ata-
cados no atual cenário. Assim, nos vemos na necessidade de defender a
produção científica do conhecimento, sem esquecer do que também a
história desta produção nos legou de negativo e violento. É importante,
sobretudo, reafirmar que esses ataques à ciência são principalmente
aos avanços em ternos de contextos inclusivos e emancipatórios que
os campos de pesquisa têm conseguido atingir, mesmo que timida-
mente, nesses últimos anos. Por isso, entrar na luta pela possibilidade
de seguir levando a pesquisa, a produção científica a sério é, também,
sem ingenuidades, disputar a garantia de que não percamos o pouco
que conquistamos.

31
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

Uma das coisas que a história dos povos negros e indígenas em


nosso país nos ensinou é que resistência é luta, criação é luta, valo-
rização das ancestralidades é luta. E este livro com o qual aqui nos
encontramos nos brinda com possibilidades de resistência, de cria-
ção e valorização das ancestralidades negras e indígenas brasileiras.
Exatamente nesse cenário obscuro pelo qual passamos, essas possibi-
lidades nos trazem ferramentas importantes para seguir lutando na
busca da produção de um conhecimento mais acolhedor, realmente
plural e preocupado com potencialização dos modos de vida diversos
que atravessam nosso tecido social.
Em torno da proposta de epistemologias aterradas, o tema da
pluralidade aparece como fundamental. E não apenas pluralidade como
fato, mas como fazer, como movimento, como pluralizar. Pluralizar
sujeitos, pluralizar vozes, pluralizar modos de compreensão da vida e
dos projetos de futuro. Pluralizar os diagnósticos do que – e como –
sejam os problemas do tempo presente e pluralizar a possibilidade de
encontro com as ferramentas de cada povo – com sua história singular,
com suas relações particulares com suas ancestralidades – para buscar
caminhos para lidar com esses problemas. Vozes dos povos originários,
quilombolas, candomblecistas, faveladas, acadêmicas, mais velhas e
mais jovens: todas elas apontam para os limites de um pensar não plu-
ralizado, que nos despotencializa, encapsula, aprisiona, violenta.
Embora diversas, plurais, todas essas vozes convergem em um
ponto: a luta por direitos, por proteção material, espiritual, ambiental,
ancestral, cognitiva. Uma luta que passa pelo reconhecimento das potên-
cias do que veio antes, da legitimidade da problematização, desde nossos
lugares existenciais, do que vivemos hoje e dos anseios por tempos outros,
tempos que nos comportem a todas e todos, em nossa pluralidade.
A convivência com a pluralidade não é fácil. E nem deveria ser. A
perspectiva prevalente, hegemônica, no ocidente, para “facilitar” a vida
(dela), recusa, obstaculiza e, paradoxalmente, dificulta a expressão da plura-
lidade. Essa mesma hegemonia transforma as percepções não hegemônicas
em minorias, para, em seguida, exigir que elas “se dobrem à maioria”.
E, com isso, a pluralidade é violada em nome de uma ideia de demo-
cracia, de cidadania, de liberdade em que apenas uma imagem dessas
experiências é percebida como válida, devendo orientar a ação de todas
e todos na sociedade. E isso viola, machuca, adoece, tanto as supostas

32
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

“minorias”, quanto o tecido de sustentação da própria hegemonia. Esse


é o grande paradoxo – e a consequência quase incontornável – de querer
subordinar as potências da pluralidade ao governo do hegemônico.
Por outro lado, uma abordagem que, como a Aterrada, aposta no
processo de pluralizar, não supõe e nem precisa supor que lidar com
a pluralidade seja fácil. Tem a dificuldade do encontro entre diversos
como parte do processo de potencialização da abordagem epistemo-
lógica. Aposta na potência criadora do conflito em contraposição ao
aspecto mortificador que o conflito assume nas abordagens hegemôni-
cas. Aterrar, entre outras coisas, é crescer na pluralidade, pluralizando,
complexificando o que parece simples demais.
Pensando desde o Terreiro, esse território aterrado, essa prática
aparece cotidianamente. Nada no Terreiro é simples. Tudo é gente, tudo
come, tudo tem história, tudo fala, tudo tem ancestralidade. No Terreiro,
pluralizar é a tarefa primordial. Minkisi, voduns, encantados e encan-
tadas, orixás, não são apenas diferentes: são plurais, como o tempo e a
ancestralidade. Dizem coisas diferentes sobre o mundo, fazem com que
percebamos o mundo de nuances e camadas diferentes. E, além disso,
nos orientam, também, de maneiras plurais.
Para o Terreiro, o chão, a terra, não é estático. É vivo, móvel. Come
e fala conosco e nos ensina que mesmo o aparentemente imóvel está lá,
vivo e pulsante. Tem Nguzu, tem axé. Por isso, até mesmo a terra, o que
nos parece simples, em sua aparente estaticidade, é plural. Aterrar, além
de buscar as raízes, buscar a ancestralidade que a própria terra carrega,
implica em apostar nos tantos possíveis plurais que habitam a terra, o
chão. Por isso, uma epistemologia aterrada é sempre dinâmica, autocrí-
tica, e busca, nas muitas potências que habitam e pisam a terra, possibi-
lidades de abertura, de encontros, de modo cuidadoso e compromissado.
E é importante que esta epistemologia aterrada esteja interessada
no Enegrecimento como aposta que caminha entre o saber e o poder,
em uma abordagem crítica antirracista. A história do Ocidente ligou
a ideia de negro ao simples, ao menor, ao inferior – e não nos esque-
çamos, que nessa operação, denominaram-se os povos originários do
continente como “negros da terra”. Com isso, tudo o que foi pensado
sob o rótulo de “negro” foi destituído de uma dignidade de organização
política, de produção de conhecimento, de condução de si mesmo. Essa
ideia monolítica de negro, construída pelo racismo, condenou e condena

33
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

o Ocidente à simplicidade e a inferioridade que ele mesmo conferiu às


pessoas entendidas como negras.
Em uma interessante inversão e pluralização, a abordagem ater-
rada busca um enegrecimento como processo, como movimento, que
traz a pluralidade para seu interior, sofisticando – desde o aparente-
mente pequeno, menor, inferior – o pensamento e a política da produção
do conhecimento. Oferece ferramentas para enfrentar o que Antônio
Bispo dos Santos chamou de cosmofobia, este pavor do mundo, que
leva o pensamento euro-cristão monoteísta a querer controlar o que não
pode compreender (ou que compreende como simples demais), instau-
rando uma lógica destrutiva de relações em esquemas de dominação.
Esse abandono da posição negativa frente ao símbolo do negro e
a proposição de um enegrecimento conforma uma teia de relações, que,
assim como a teia de Ananse, a aranha ancestral dos povos Ashanti, nos
mostra o caráter sempre precário – e, por isso, demandante da coletivi-
dade – dos processos de conhecimento e subjetivação. É uma aposta nas
potências do precário, que passa a ser visto não como aquilo a que falta
algo, mas o que nos conclama aos encontros para o fortalecimento dos
saberes, dos fazeres e da vida.
Este enegrecimento, prenhe de pluralizações, de processos de
multiplicação de referências potencializadoras do pensamento e da
ação, nos oferece múltiplas ferramentas para atravessar o momento
presente que experimentamos. Nesse pluralizar de vozes, evitando o
contexto da exclusão, mobiliza nomeares, falares, pensares de diversas
experiências no mundo. Ao chamar para a roda esses diversos modos de
significação, nos oferece uma poderosa arma anticolonial: um repertório
aterrado, aterrante, pluralizado, pluralizante e, sobretudo, fortalecedor
das lutas ancestrais pelos muitos modos de viver.
Generosamente, essa proposta é trazida para o solo acadêmico,
não na busca de legitimação, mas na aposta na formação pluralizante
das pessoas que, ao passarem por esse espaço, assumam um compro-
misso com as comunidades, com os povos tradicionais, com os movi-
mentos sociais, com as experiências marginalizadas, com a própria vida.
Um compromisso aterrado, aterrante, que abra sempre os sentidos,
as possibilidades, que combatam a injustiça, inclusive nessa perversa
dimensão da injustiça cognitiva.

34
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

E é diante dessa bonita aposta na formação que este livro que pro-
voca alegria. Alegria de um encontro potente entre vozes plurais, em um
exercício de pluralização de possibilidades de produção de conhecimento.
Encontro que, de modo solidário, convoca outras vozes, não apenas para
dar-lhes visibilidade, mas para aprender com elas e, com isso, potencia-
lizar a experiência do ensinar e do aprender, da produção dos saberes.
Por isso, este livro não deve ser lido como uma coleção de posi-
ções exóticas ou “meramente” ativistas. Mas como um convite para
experimentar um repertório que provoque reposicionamentos epistê-
micos, políticos e morais, que provoquem novas e outras apostas no
mundo, neste mundo tão diverso e plural e que, mesmo assim, tem sido
empobrecido na busca de uma abordagem unificante, monolítica das
nossas epistemologias hegemônicas.
E que esse convite nos chegue como uma oportunidade de nos
prepararmos, ainda mais, para a intensa luta necessária para que os
retrocessos que nos cercam sejam enfrentados com a altivez, criativi-
dade, generosidade e espírito coletivo com as quais nossas ancestrais
negras e os povos originários do continente enfrentaram os momentos
críticos do passado. Que possamos aprender, que possamos ouvir essas
múltiplas e plurais vozes... Que esses encontros entre mais velhos e mais
novos nos encorajem a seguir a luta...

Brasília, na seca e pandêmica primavera de 2020

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CAPÍTULO I

A Pesquisa e os Saberes Tradicionais


Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

Fazer um retorno: contribuição ao caminho de pesquisa


Antônio Bispo dos Santos

Então, um salve para nós e para o nosso ambiente. Não sei se


todo mundo aqui está sabendo, hoje, 9 de novembro de 2017, o Supremo
Tribunal estará mais uma vez, na sua agenda, dizendo, porque ele já
fez isso várias vezes, que vai julgar uma ação de inconstitucionalizado
do Decreto nº 487, de 20 de novembro de 2003 (BRASIL, 2003), que é o
decreto que regularizaria, em tese, os territórios quilombolas. Então,
hoje é o dia, para muitos do nosso povo, de muita tensão, mas é um dia
como todo e qualquer dia. Porque não são os riscos e os rabiscos e os
desenhos nos papéis que movem nossas vidas. Não tem nada de extraor-
dinário acontecendo hoje para nós. É o mesmo que acontece todos os
dias, os ataques. Apenas mais um ataque. Como é apenas mais um ata-
que e como nós estamos habituados a enfrentar ataques, então que eles
ataquem. Nós vamos, mais uma vez, como todas as vezes, nos defender
e também defender a eles.
Fiquei muito feliz, e quero cumprimentar o professor Palharini,
quando ele falou do saber científico. Eu o esperei dizer qual era o saber, e
ele disse: “o saber da vida”. Na primeira vez que nos encontramos, nós tive-
mos uma conversa muito interessante: eu dito do saber sintético e do saber
orgânico. Ele foi maravilhoso, porque demonstrou que estava impactado,
mas foi um impacto resolutivo, porque fiquei maravilhado de ouvir a sua
fala. Parabéns pela sua sensibilidade. Sua fala, na verdade, foi uma poesia.
Eu vou ser repetitivo aqui, para muitas pessoas que já me ouvi-
ram falando e vou ser repetitivo para quem já leu o que está escrito no
relatório que a gente chama de livro, mas eu também não vou me sentir
incomodado por estar repetindo. Porque também me repetem tantas
coisas que eu não gosto de ouvir.
Falar da nossa luta é a coisa mais fácil do mundo. Falar do que a
gente faz é uma maravilha.
Mas só para relembrar, eu fui formado pelos mestres de ofício
para traduzir a oralidade para escrita. Mas as minhas mestras e os
meus mestres me puseram na escola também para traduzir a escrita

37
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

para oralidade. Por que isso? Eu nasci em 1959 e quando eu nasci,


na minha região, na minha comunidade, a escrita estava chegando.
Lá no interior do interior do Piauí as coisas chegam bem depois. Às
vezes é ruim, mas às vezes é muito bom que chegue bem depois. Nós
estávamos sendo atacados pelos colonialistas, por meio dos contratos
escritos. E aí o nosso povo compreendeu que nós precisávamos com-
preender os contratos escritos. Por isso eu fui para a escola aprender
pela escrita e fiquei até a oitava série, quando minha comunidade disse
que tudo bem, que eu já dava conta.
Eu tenho tentado fazer isso, traduzir a escrita para oralidade e
a oralidade para escrita. E nessa tradução a gente foi percebendo que
muitas coisas estavam mais distantes, muito mais distantes, e que a
gente precisava fazer um retorno, percorrer a nossa trajetória de volta.
Eu vivo na roça, e na roça, às vezes, a gente se adentra no meio da mata –
creio que aos povos indígenas não é tão diferente –, e quando a gente vai
mata adentro, de repente a gente pensa que a gente está confuso, que a
gente não está mais sabendo para onde a gente vai, o que a gente faz? A
gente retorna. A gente retorna até um ponto de referência que a gente já
marcou para poder se assegurar que a nossa caminhada está indo bem.
Na história não é diferente. Para nós sabermos se a luta do nosso
povo está indo bem, a gente precisa retornar às nossas matrizes, ao iní-
cio das trajetórias, ou melhor, até onde a gente dá conta. Eu aprendi
com nosso mais velho que nada no mundo tem fim, que as coisas têm
começo, meio e começo; começo, meio e começo. Então é isso, a gente
chega num lugar, aí a gente retorna, a gente chega e a gente retorna. E
nesse começo, meio e começo, eu tive que ir para o começo orientado
pelos nossos mais velhos. E eu fui para onde? Eu fui para o início do
colonialismo. Fui tentar saber por que um povo é isso: por que um povo
faz armas, se esse povo pode fazer comida? Por que um povo faz armas,
se pode fazer instrumentos musicais? Por que um povo tem que fazer
arma, se pode usar as mãos que operam as armas para acarinhar e acari-
ciar? Eu precisava compreender isso e os nossos mais velhos e as nossas
mais velhas me mandaram pensar na nossa trajetória.
Eu cresci ouvindo, repetidas vezes, que um povo negro, como um
povo indígena, foi atacado pelo colonialismo, que tentou, e às vezes até
conseguiu, escravizar esse povo, porque tinha um modo de produção que
precisava de uma mão de obra escrava. Mas e aí, quem determinou que

38
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

povo ia ser escravizado, foi o modo de produção? O modo de produção,


por si só resolve? Isso me incomodou e eu fui atrás de outras informações.
Outra coisa que me incomodou: por que um povo fica dizendo
que outro povo é ruim, só porque tem uma tonalidade de cor diferente?
Será que é só isso? Também me incomodou, por que um povo se inco-
moda com as danças do outro povo, com as cantigas do outro povo, com
a maneira de cultuar as divindades de outro povo? Por que um povo se
incomoda com tudo que outro povo faz, enquanto este outro povo não
se incomoda com o que eles fazem? Por que isso? Qual o problema? Por
que uma pessoa se incomoda com que eu faço, se eu não me incomodo
com o que ela está fazendo?
Aí eu pensei, não é só pelo modo de produção que nós precisamos
compreender a vida, nós precisamos compreender a vida por todos os
modos. Vamos tentar compreender todos os modos desse povo incomo-
dado com os nossos modos, para saber o que tem por trás de tudo isso. Aí
eu fui atrás de um livro, que é o livro dos livros, segundo se diz, que é a
Bíblia. E na Bíblia eu fui ao Gênesis, que é o começo, para saber o porquê,
do começo para cá… Eu fui para a referência, fui para o começo, a partida
desse povo, de onde esse povo vem. E lá em Gênesis eu li assim, pelo
menos na Bíblia que eu peguei estava escrito assim: Deus Javé disse ao
homem, no caso Adão, a terra será amaldiçoada por tua causa, tu haverás
de comer com fadiga do suor do seu rosto (Gênese, 3:17). Eu estou pulando,
mas o conteúdo é esse mesmo. Dizem que a ordem dos fatores não altera
o produto, é isso que se diz. Então eu estou na metodologia deles. “Tu
comerás com fadiga, do suor do teu rosto, as ervas serão daninhas, todas
as tuas gerações serão amaldiçoadas eternamente”, enfim.
Eu fiquei abismado, como um deus diz isso para o seu filho, que
deus é esse? Nesse momento, esse deus criou o trabalho, porque ele
proibiu o Adão de comer o que a terra oferecia, o que a natureza ofe-
recia. Criou o trabalho, mas criou também o sintetismo, a sintetização
das coisas. Ele até podia comer daquela planta, mas se ele plantasse. Ele
tinha que pegar a semente daquela planta, amaldiçoada – ele também
era amaldiçoado –, e plantar e comer da planta que ele plantou. Não
podia comer daquela planta que nasceu naturalmente. Isso foi Deus que
disse para ele, então criou o trabalho.
Também criou o terror: ele disse que não adiantava, por mais
que aquele homem e aquela mulher fizessem, todas as outras gerações

39
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

estariam amaldiçoadas. Imagine eu dizer para uma pessoa que os filhos


e as filhas daquela pessoa estão amaldiçoados e tal. Então criou o terror.
Criou uma doença que eu denominei de – o professor Palharini sabe
melhor do que eu, porque é da psicologia – uma doença psíquica, a cos-
mofobia, o medo do cosmo, o medo do Deus. Então criou essa doença
que até hoje ataca aquele povo, descendente daquele Adão.
Ele também desterritorializou Adão. Se ele disse que a terra era
amaldiçoada, como eu vou viver numa terra amaldiçoada? Como esse
Deus fez tanta coisa com tão pouco tempo assim, sabe? Então esse
povo desterritorializado, cosmofóbico, amaldiçoado – esse povo é o povo
que resolveu nos atacar pelo colonialismo. Então a preocupação é bem
maior, tem muitas outras coisas por trás.
Também, continuando no mesmo caminho, de Gênesis, eu andei
mais um pulo para frente, depois da bíblia. A pessoa mais poderosa,
depois da Bíblia, aqui na Terra é o papa. Eu fui ver o que os papas escre-
veram também, como os papas compreenderam esse negócio. Aí eu vi
lá, um texto que diz assim: “Nós autorizamos ao rei Afonso a invadir,
atacar, humilhar, escravizar, destruir todos os reinados pertencentes aos
sarracenos e pagãos, onde quer que estejam os seus reinados, e também
a expropriar todas as suas terras para si e para os seus descendentes e
escravizá-los eternamente”, escrito por Papa Nicolau V, em 8 de janeiro
de 1455. Ora, em 8 de janeiro de 1455 quem era pagão para esse povo? As
pessoas que estavam na África e cultuavam muitas divindades e as pes-
soas que estavam na América e também cultuavam muitas divindades.
Aí eu voltava, ia e voltava de novo, e fui para carta de Pero Vaz de
Caminha. Todos vocês já leram a carta de Pero Vaz de Caminha? Todos
já leram? Quem não leu? Tem uma pessoa que não leu. Eu acho engra-
çado que todos os livros de história do Brasil falam da carta de Pero
Vaz, mas eles não trazem a carta para gente ler, eles citam a carta, mas
é difícil ler a carta de Pero Vaz, a gente não a encontra fácil, não. Devia
ter no livro a carta de Pero Vaz, mas não, não mostram. A carta de Pero
Vaz diz uma coisa maravilhosa. Diz assim: “Olha, rei, meu senhor, aqui
eu encontrei um povo tão bonito, cheiroso, que até toma banho”. Ora, se
o povo aqui até toma banho, com certeza os de lá não tomavam, senão,
por que a surpresa? Se o povo daqui é cheiroso, então o de lá não era tão
cheiroso assim. Mas ele ainda diz: “Olha, aqui no meio desse povo tão
cheiroso, que toma banho, que são tão generosos, que me receberam tão

40
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

bem, que comem umas batatas que eles chamam de inhame, ele comem
umas frutas”, ele encontrou um povo que podia comer do que a terra ofe-
recia. Olha a surpresa dele: eles comem a batata da terra, eles comem as
frutas que as plantas dão. Mesmo nós, com toda a nossa civilidade, isso
está na carta, nós levaremos séculos, e eu não sei se nós vamos atingir
esse nível de vida elevado que eles atingiram. Mas, mesmo assim, eles
precisam ser catequizados para se tornarem igual a nós. Não pergunta-
ram se nós queríamos nos tornar iguais. Se nós éramos mais cheirosos,
se tomávamos banho, como que nós queríamos nos igualar aos fedoren-
tos que não banham? É muita tiração de onda, mas mesmo assim.
Aí depois eu fui mais para frente e fui falar com o padre Antônio
Vieira. Está lá o sermão do padre Antônio Vieira: é melhor um negro ser
escravizado, morrer e ir para o céu, do que ser livre, morrer e ir para o
inferno. Ele não me perguntou. Eu trocava com ele, na boa assim, vamos
trocar, ele não me perguntou.
Então, visto isso, agora vamos para os ataques e contra-ataques.
Naturalmente, o rei Afonso cumpriu a autorização do papa, nos atacou,
pegou parte do nosso povo e trouxe para cá, atacou a quem estava aqui,
se sentiu todo poderoso, porque nos colocou do outro lado do oceano,
nos colocou além-mar e achou que tinha nos proibido de trazermos
nossa língua, nossas sementes, nossos modos, nossas sabedorias, nos-
sas religiosidades. Eles acharam que, por ter o mar entre nós e a África,
tinham rompido com todas as nossas relações com a África. Eles são
muito, mas muito preguiçosos na hora de pensar. O nosso território,
nós não vivemos só da terra, nós vivemos em um território e o nosso
território não é formado só pela terra, é formado pela terra, pelo sol,
pelo vento, pela lua, pelas estrelas, por muitas coisas. Então eles nos
colocaram do outro lado do mar com relação à África, mas eles não
nos colocaram do outro lado do mar com relação ao sol. Então pelo sol,
a nossa ancestralidade nos trouxe as sementes, nos trouxe os nossos
modos e até trouxe parte da nossa língua, veio pelo sol. Eles só sabiam
andar pelo mar, eles não sabiam andar pelo sol, coitados. Pelo sol, pelo
vento e por vários outros elementos.
Como nós recebemos pelo sol as orientações da nossa ancestra-
lidade, logo nós resolvemos reeditar os nossos modos nesse lugar e for-
mar os quilombos. Então o que é um quilombo? Na verdade, nós não
formamos quilombos, nós formamos as nossas comunidades. Eles que

41
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

chamaram de quilombo, porque eles queriam dar nominação crimi-


nosa. Formamos um lugar de viver que nós nem chamávamos de qui-
lombo, arrumamos um lugar para viver. Eles chamaram de quilombo e
disseram que aquilo era um crime, criminalizaram a nós, enfim, assim
como criminalizam até hoje. Quilombo é a nossa reedição dos nossos
modos, é o nosso confronto, nosso contra-ataque, nossa resistência,
mas eles chamam de ação criminosa, porque eles acharam que não
devia existir. Os quilombos, na verdade, foram tidos e havidos como
uma organização criminosa, desde o início do colonialismo aqui, até
1888. Isso falando do tempo deles, porque no nosso tempo não é 1888,
nosso tempo é muito mais do que isso.
Diante do tempo deles, até 1888 o quilombo era uma organiza-
ção criminosa. Com a lei áurea, quilombo não deixou a ser uma organi-
zação criminosa. Deixou de ser citado, mas continuou sendo uma orga-
nização criminosa, por quê? Porque a capoeira continuou sendo crime,
o samba era o crime, as religiões de matriz africanas e tudo que a gente
fazia era crime. Ora, se tudo o que a gente fazia era crime, quilombo
continua sendo uma organização criminosa. E quilombo é uma orga-
nização criminosa até 1988. Na Constituição de 1988 é que quilombo
deixa de ser uma organização criminosa para ser, pela escrita, apenas
pela escrita, uma organização de direito. Apenas pela escrita, porque,
pelas ações e pelos demais jeito de comunicar, continuou sendo uma
organização criminosa. Por exemplo, o que o exército está fazendo na
Rocinha? Como o Estado brasileiro trata as favelas? O que é a favela,
se não uma comunidade, como o quilombo é uma comunidade? Favela
é uma comunidade, o quilombo é uma comunidade, o terreiro é uma
comunidade, nós somos comunidade.
Eles botam os nomes, porque é isso que todo e qualquer colo-
nialista faz. Quem quer colonizar, a primeira coisa que faz, é botar um
nome. Quem quer dominar de qualquer maneira bota um nome, não
bota sobrenome. Por exemplo, quem cria cachorro aqui? Como chama
seu cachorro? E o sobrenome dele? Não tem, devia ter, mas não tem,
porque se tiver sobrenome, aí se fortalece, o sobrenome fortalece. Meu
nome é Antônio Bispo dos Santos, que Antônio Bispo dos Santos é esse?
Por que eu sou Bispo? Por que eu sou Santo? Isso não é sobrenome, isso
é uns troços quaisquer. Eu mesmo que registrei, fui ao cartório sozinho,
quando eu tinha 12 anos de idade. O funcionário do cartório perguntou:

42
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

qual é teu nome? Antônio Bispo dos Santos. E ele escreveu. Não tem
sobrenome quem é nomeado pela dominação.
Estou falando dessa trajetória para dizer que hoje, nesse exato
momento, estão tentando julgar o decreto. Talvez não julguem. Porque
todas as vezes que marcam, alguma pessoa deles adoece. Mês passado
eles tentaram julgar, no dia 18 de outubro, disseram que iam julgar
o decreto, aí um dos ministros adoeceu, teve que fazer uma cirurgia
urgente. Talvez um deles adoeça hoje de novo. Fiz, rapidamente, um
esquema da trajetória para ver se vocês acham que tem alguma coisa
que merece atenção. Pode ser que sim ou que não.

Referências
BRASIL. Decreto nº  487, de 20 de novembro de 2003. Regulamenta o
procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação,
demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes
das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato
das Disposições Constitucionais Transitórias. Brasília, DF:
Presidência da República, 2003.

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Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

A pesquisa e os saberes tradicionais


Capitão Potiguara José Ciríaco Sobrinho

Bom dia a todos e todas! É um prazer estar nessa universidade


e ter na mesa comigo uma pessoa que foi fruto da nossa Universidade
Federal da Paraíba (UFPB), onde temos um setor que tem um grupo de
trabalho (GT) indígena, que foi criado pelo Capitão Potiguara e pro-
fessores. E Abrahão passou por lá e hoje tem a semente plantada aqui.
Eu pensava, então, no professor quando está fazendo a sua fala, que
estava puxando a orelha do Abrahão. Me perguntava o que Abrahão
veio fazer aqui? Aí ele disse: “foi uma semente”. Eu quase respondi,
quando pensei: “Quando eu for para a mesa eu vou dizer para ele que
ele foi uma semente plantada na Paraíba e eu vim aqui para ouvir”.
Mas vamos ao que interessa.
Eu peguei uma pauta para falar de conhecimento tradicional e
pesquisa. Passei 39 anos na universidade, e me aposentei ano passado
quando veio aquela bomba da Dilma. Saí com 60 anos de idade, 39 de
contribuição. Preferi sair e voltar para o movimento indígena de uma
vez, pois meu lugar era lá. Inventei de fazer uma graduação e não deu
certo, e parece que me identifiquei com a universidade no campo da
pesquisa. Tentei fazer um curso, larguei, que foi antropologia.
Eu vou falar que contribuição a universidade e o ensino em geral
podem fazer aos povos indígenas, para os quilombolas, os negros ou
para as minorias. Eu queria falar um pouco do que eu recebi de conhe-
cimento tradicional. Eu pautei o conhecimento do meu povo em três
pontos: saúde, educação e cultura. Eu sinto o conhecimento das nossas
parteiras – até hoje temos essa tradição –, nossas rezadeiras, quando a
criança está meio doente, do que a gente chama de olhado, a gente não
vai ao hospital, vai na casa de uma rezadeira.
Eu tenho uma medicação que estou usando, porque, por infelici-
dade, eu me descobri com diabete, e deixei de tomar o medicamento que
a médica me passou e passei a usar a casca da mangaba. Para eu ter uma
sequência de vida e não me acabar antes do tempo, uso ela como medi-
camento tradicional. Eu passava numa feira livre de raízes, na Grande

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Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

João Pessoa e eu perguntava se o rapaz que estava vendendo raiz tinha


uma casca – só para testar o cara, ver se ele tinha conhecimento mesmo.
Era caraúba. Ele disse que tinha, me deu um feixe, então perguntei:
“Para que serve?”. Ele disse: “Para tudo”. E eu disse: “A minha caraúba
não serve para tudo, não, ela é o maior antibiótico e anti-inflamatório.
Ele disse: “Então traga para eu vender”. “Mas você não sabe nem o que
está vendendo!”, eu falei.
Nós temos um ponto cultural muito forte dentro da nossa histó-
ria. Eu não sou palestrante, vim aqui pegar conhecimento com vocês,
trocar ideias. E foi isso que a gente fez na abertura, com o Toré. Nosso
ritual ainda é muito forte, ele nos traz energias positivas e faz com que
venham os encantados. Talvez vocês que não tenham conhecimento e
não compreendam o que digo quando eu falo nos encantados, quando
conto que meu companheiro, que estava comigo puxando o Toré, cha-
mava atenção sobre nosso ponto cultural.
Um dia eu estava numa feira de agricultura familiar, puxamos o
Toré. Era com um pessoal que foi convidado e que não conhecia nossa
cultura. Nós acendemos um cachimbo com ervas tradicionais, não eram
drogas. Um senhor de 70 anos, depois eu desci do palco, me chamou e
disse: “Cacique,” – eu não sou cacique – “por que vocês fazem isso? Eu
fiquei meio tonto com essa fumaça”. Ele perguntou: “Isso é coisa de
xangô?”. Eu disse: “Não, companheiro, isso é uma tradição de povos
indígenas do Nordeste que têm isso aí como cultura. Nós não podemos
deixar ela abandonada, temos que passar de geração em geração. Meu
avô foi cacique nos anos 1940, quando ele já brigava pela terra, mas
nunca deixou de usar essas ervas nos nossos eventos”. Ele disse: “Pela
primeira vez eu estou vendo isso”. Eu disse: “Bom, o senhor está na
idade de 70 anos e ninguém nunca falou para o senhor uma coisa dessas.
Isso aí é cultura”.
Na educação, eu pautei também, nós temos um planejamento com
uma educação específica diferenciada de fazer planejamento de escolas.
Temos 32 aldeias, nessas escolas algumas são tipicamente indígenas,
pelo estado e outras pelo município. A gente prepara o planejamento de
uma escola, de São Francisco. Pegamos as Furnas, que são nosso terreiro
sagrado, onde nós fazemos nosso ritual, colocamos no planejamento.
Pegamos a lagoa Encantada, que para o povo Potiguara é o segredo.
Pegamos o rio do Gozo. Nós pegamos toda essa parte que nós temos

45
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

nas aldeias e colocamos no planejamento da escola para que nossos alu-


nos conheçam de perto o que é uma educação diferenciada, a educação
indígena. Isso para a gente custou muito caro, porque o Governo não dá
nada de graça, a gente tem que cobrar.
Eu deixei para falar de conhecimento tradicional primeiro, para
em seguida falar de pesquisa. Tem um cacique que diz que é professor
dos professores da universidade, porque todo o conhecimento que a uni-
versidade quer é o que está conosco. Vão lá dentro pesquisar. Teve uma
hora que eu falei: “Será que é verdade?” Passei 40 anos na universidade
e não vi isso. Vim criar grupo de pesquisa, com o Setor de Estudo e
Assessoria a Movimentos Populares (Seampo), em que está inserido o
GT Indígena, no qual estão a Hosana Santos e o Abrahão Santos.
Hoje eu tenho alunos que saíram desse grupo de pesquisa, que
estão aqui no Rio de Janeiro, trabalhando como empresários. Esse GT
que eu criei conseguiu absorver vários alunos de vários cursos, que que-
riam trabalhar a questão indígena no Nordeste. A gente queria tirar
aquela imagem que a sociedade envolvente tem em relação aos povos
indígenas do Nordeste.
Alguns historiadores não escreveram a realidade dos povos indí-
genas do Nordeste, acham que só tem indígena no Norte. Esqueceram
de nós. Esqueceram que lá na Baía da Traição, que tem como nome ver-
dadeiro Baía de Akajutibiró, houve o primeiro encontro que entre nós e
Américo Vespúcio. Foi lá onde chegou a primeira colonização, não pelo
rio Negro, no Amazonas. Chegou por lá e em Santa Cruz de Cabrália,
no estado da Bahia também.
Com relação à pesquisa, acredito que a universidade esquece de
devolver para os povos indígenas aquilo que foi produzido. Acho que
falta compromisso de alguns alunos quando eles concluem seu projeto.
Muitos querem fazer só por curiosidade e alguns para enriquecimento
do seu currículo, mas esquecem de devolver para a comunidade.
Abrahão faz uma leitura aqui e pergunta como a universidade pode
ajudar a contribuir com os movimentos sociais, indígenas, quilombolas,
negros e ribeirinhos. Eu acho que é abrindo as portas para esses povos.
Muitos indígenas não entendem por que a universidade vai ao
seu espaço. Eu sempre digo que a universidade pública foi feita para a
burguesia, não para o agricultor, o indígena, o quilombola. Porque desde
quando existiu a criação da universidade, o senhor de engenho era dos

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Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

primeiros a ocupar o espaço. Eles vinham de um colégio tradicional, que


era onde o pobre não estudava. Até hoje eu vejo isso. Os colégios parti-
culares a cada dia se multiplicam, para ter uma concorrência de acesso
à universidade pública.
Para quem ficam as vagas das universidades públicas de acesso a
indígenas, negros, quilombolas? Quais cursos sobram para nós? Alguns
de ciências humanas. Trabalhei dezoito anos na Biblioteca Central e
fazia questão de chegar perto do aluno e perguntar: “Você vem de onde,
de qual colégio?”. A maior parte só dizia que veio – eram os que passa-
vam na universidade pública – do Liceu Paraibano e da antiga Escola
Técnica. Os cursos eram pedagogia, letras, educação artística… Não sou
contra. Estou dizendo que é o que a elite não quer.
Volto a dizer, a maneira melhor de se fazer com que esse povo
seja atendido é quebrar essas barreiras. Quem é do curso de direito que
está aqui presente? Nós estamos privilegiados. Medicina, área de saúde,
tem? Uma pessoa, também. Estamos privilegiados. Porque esse público
não se preocupa com essa classe que vive sofrendo para ter seus direitos
que está na Constituição de 1988. Mas a gente precisava estar lá nessa
Constituição, pois hoje não conhecemos nossos direitos. São nossos
direitos que estão na Convenção 169 da Organização Internacional do
Trabalho (OIT), a gente já sabia também. Antônio Bispo dos Santos diz
“que tudo nós que conquistamos”, e é isso. Eu estava com o parente
Xukuru conversando agora de manhã, e ele disse: “Não se preocupem
em demarcar terra indígena não, quem demarca somos nós”.
Esta é a contribuição da universidade.
Minha filha passou no curso de direito em uma universidade fede-
ral. Eu toquei a mão do Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, e
disse que ele ia ter uma profissional para bater de frente com ele, porque
ela era do movimento. Eu pensei que a menina ia seguir. Só que ela cur-
sou três semestres e disse: “Painho, não dá para mim, porque o curso é
nojento”. Eu digo: “Minha filha, mas você está lá porque justamente você
foi escolhida para quebrar barreiras. Nós nascemos com essa missão, nós
não nascemos em berço. Nascemos para conquistar as coisas na porrada.
A terra que nós conseguimos demarcar, nós conseguimos na porrada”.
O dono das antigas Casas Pernambucanas chegou na nossa terra
em 1917, e construiu lá, nos anos 1930, a cidade fabril chamada Rio
Tinto. Ninguém é dono de uma casa lá há 87 anos. Se você morou e foi

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Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

embora, deixou a casa, ele já vai alugar para outra pessoa. Nós tínhamos
57 mil hectares de terras nossas, pegava do rio Mamanguape até o rio
Camaratuba, perto da divisa com o Rio Grande do Norte. Nós come-
çamos a demarcar essa terra desde 1800 e alguma coisa. Para ser bem
objetivo, meu avô era cacique nos anos 1940, morreu entre 1942 e 1945
e não conseguiu realizar o objetivo da demarcação. É um exemplo que
estou trazendo de como que nós conseguimos demarcar.
A primeira era uma área de 21 mil hectares que são três terras, em
três municípios, nos anos 1980. Morreu gente, viu! Lembro que eu saía da
universidade de férias e eu ia me juntar ao meu povo para fazer a retomada.
Mas o Governo, foi no período militar, mandou o exército demar-
car essa terra depois que nós fizemos a retomada. Nós temos medo de
perder essa terra hoje, porque o Governo quer rever essas terras que
foram demarcadas no regime militar, com o marco temporal.
Demarcamos outra terra em Jacaré do São Domingos de quase
5.500 hectares. Custou caro para a gente. Ficou a terra pior que tinha
para a gente demarcar, que era a de Monte Mor, 7.800 hectares, que
fica dentro da cidade de Rio Tinto, na Paraíba. Eu recebi um recado do
coordenador da Fundação Nacional do Índio (Funai) no período, para
que eu fosse cuidar da minha vida, da minha família, porque eu não ia
demarcar aquela terra nunca.
Lembro que em 2007 eu fazia parte de uma comissão que o Lula
criou, que chama Comissão Nacional de Políticas Indigenista (CNPI),
para trabalhar com políticas públicas para os povos indígenas. Eu ia
viajar, eu tinha que apresentar fatos para o Governo brasileiro. Me
Desculpem. Minha filha tinha 17 anos e eu pedi que ela reunisse os caci-
ques e retomasse a Funai de João Pessoa, por tempo indeterminado,
porque nós precisávamos apresentar fatos para a sociedade e para o
Governo brasileiro. A gente tinha que retomar aquela terra. A minha
esposa não é índia, é branca, ela disse que eu estava colocando em risco
a vida da minha filha. Minha filha é uma guerreira. Eu chamei ela e
disse: “Você tem conhecimento da luta do teu pai, dos teus avós e dos
caciques, você aprendeu um pouco com o povo Xukuru, o que te tornou
ainda mais guerreira. Não é a fala da sua mãe que vai lhe assombrar.
Você não vai fazer vergonha a seu pai. Você vai levar os caciques e apro-
ximadamente quinhentas pessoas. Quando o administrador sair para
almoçar, você tem que segurar ele”. E a menina: “Painho, e comida para

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Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

esse pessoal?”. Eu mandei ela levar bastante criança e mulher, afirmando


que era para dançar um Toré, para o pessoal não saber que era para
retomar a Funai. Quando chegasse perto da Funai, ela iria dizer que não
era para dançar Toré e sim fazer história, ocupando por tempo indeter-
minado a Funai em João Pessoa.
Eu ia para Brasília, para uma reunião ministerial, a gente sen-
tava com todos os ministros do governo em busca de melhoria para
os povos indígenas brasileiros. O Governo agora barrou a CNPI. Nós
sentávamos com dezessete ministérios para tentar ver todas as situa-
ções dos povos indígenas. O que eu queria é que minha filha enviasse
para mim, após chegar e retomar a Funai, um documento falando da
ocupação, para eu mostrar ao Governo, e assim pressioná-lo. Os alunos
do GT Indígena que hoje são professores nossos passaram dias acam-
pados conosco, comendo a alimentação que a gente comia, em nenhum
momento eles fizeram cara feia. E eles deram suporte aos nossos paren-
tes nessa mobilização juntamente com os professores da Comissão de
Direitos Humanos, os advogados, alguns deputados aliados, o Conselho
Indigenista Missionário (Cimi) e a imprensa para divulgar.
O acordo foi esse: assim que eles conseguissem entrar na Funai,
avisariam para mim.
Eu acionei nossos parceiros e o documento chegou na minha mão
às 14h.
Eu fiquei tão nervoso nesse dia lá em Brasília, que eu não conse-
guia ficar na mesa. De vez em quando saía para ir ao banheiro, tomar
água, pensando que ia dar errado todo aquele plano. 2h40min da tarde
chega uma menina, entra na sala, e diz: “Capitão Potiguara, chegou um
documento para o senhor”. Quando eu peguei o documento – eu fazia de
conta que não sabia de nada – disse: “Chegou um documento da Paraíba,
informando que a Funai da Paraíba foi ocupada por tempo indetermi-
nado e isso é culpa do Governo, porque vocês não demarcaram nossa
terra”. Por isso a coordenadora fundiária da Funai pediu para eu assinar
um documento. Ela queria que eu ligasse para os caciques, para eles
desocuparem a Funai. Disse que não assinaria, e que ela deveria fazer
um documento responsabilizando o Governo, por não demarcar a nossa
terra. Ela disse que não podia. Eu disse: “Se você não pode, imagine eu”.
Fomos a um acordo e um documento foi enviado com o compromisso
de a terra ser demarcada.

49
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

Isso foi em setembro de 2007, e quando foi dezembro de 2007,


eu fui à reunião de final de ano da CNPI. A secretária da CNPI fez um
sinal de “positivo” para mim, dizendo que tinha algo positivo na reu-
nião. Então entraram o presidente da Funai, com uma pasta embaixo do
braço, e o Ministro da Justiça, que era o Tarso Genro. O presidente da
Funai fez um sinal para mim. Quando eu vi o homem assinar a demar-
cação da terra de Monte Mor, eu não parava de chorar, porque para
mim a coisa mais importante de toda a minha vida, estou com 61 anos, é
justamente ter o meu povo com o território livre, como Bispo disse: “Eu
sempre sinto que meu povo não tem para onde ir”.
Eu tenho três cidades dentro da nossa terra indígena: Baía da
Traição, Marcação e Rio Tinto. Baía e Marcação foram construídas
dentro da terra indígena. A gente já tinha demarcado, limitamos,
elas não crescem. Baía da Traição é uma cidade turística, praia,
nós estamos lá desde os anos 500, não entregamos para ninguém,
demarcamos. Nós tivemos algumas gestões da prefeitura indígena e
temos gestões não indígenas, mas o prefeito tem que seguir as nossas
regras, tem que sentar para discutir de igual para igual e dizer que a
cidade também é indígena. Nós temos 80% da população desses dois
municípios como indígena. Nós temos hoje uma população de 21 mil
Potiguara nos três municípios. Esse é o maior orgulho que tenho
na vida, nunca me senti tão orgulhoso quanto me sinto hoje, vendo
que meu povo tem um território livre, que pode andar sem persegui-
ção, sabendo que custou caro, mas que nós estamos construindo um
futuro para meus meninos. Eu tenho um menino aqui no plenário,
que é o Bruno Potiguara, que foi quem criou, com minhas duas filhas
e outro jovem, a Organização dos Jovens Indígenas Potiguara (Ojip).
Esses meninos escreveram um livro que fica na nossa história, Índio
na visão dos índios. Eles foram a campo, tiveram quinze dias para pre-
parar todo o material e mandaram para Salvador pra ser impresso.
Esse é um dos nossos maiores orgulhos.
Muito obrigado!

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Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

A busca da oralidade: o encontro com mulheres negras


Luiza Rodrigues de Oliveira

Este texto começa antes do III Encontro do Kitembo, acontecido


há quase três anos, pois, ao ser informada pelos organizadores que com-
poria uma mesa redonda com o Antônio Bispo dos Santos, o Nego Bispo,
e com José Ciríaco Sobrinho, o Capitão Potiguara, perguntei-me sobre
como tratar da pesquisa em psicologia em um cenário por mim desco-
nhecido, os saberes tradicionais, trazidos aqui por dois mestres do saber
tradicional. Eu, professora e pesquisadora da área de psicologia do desen-
volvimento e educação, lidei, desde a minha formação, com os saberes
tradicionais como se fossem concepções prévias, aquelas que precisam
ser modificadas para chegar à concepção científica, o que traz à cena uma
clara oposição entre ciência e esses saberes – Piaget é um grande repre-
sentante dessa perspectiva. Com o avanço dos meus estudos, ao encontrar
Vygotski, vi a possibilidade de pensar uma relação diferente, que não de
oposição, entre saberes tradicionais e ciência. Para o psicólogo russo, o
significado dos conceitos científicos se explicita na sua relação com os
conceitos cotidianos, não por oposição, mas por influência mútua. Seria
uma relação entre saber científico e cotidiano, que se daria dialetica-
mente, promovida pela ideia de subjetivação como processualidade, o que
afirma o homem inserido social e historicamente na cultura. Uma história
que ganhou mais sentido quando fui ao encontro da “ensinagem-apren-
dizagem”, afirmada por Paulo Freire, que conta que, em uma de suas pri-
meiras ações de educação, tendo que falar sobre cultura para mulheres e
homens do campo, pensou em como abordar o conceito mais geral de cul-
tura. Decidiu, então, perguntar o que aquelas mulheres e aqueles homens
sabiam sobre o assunto: “[…]Havia um jarro com flores dentro. Quando
ouvi, pela primeira vez, uma mulher no debate dizer: ‘Nesse quadro que
está aí, eu vejo cultura e vejo natureza […] por exemplo, aí, é natureza,
a flor. É cultura, o jarro, mas é cultura, também, a flor. E eu disse: […]
a flor é cultura ou é natureza? Ela disse: ‘É natureza porque é flor, e é
cultura porque é arranjo’ […] Se um aluno me dissesse isso […] não me
espantaria. Por que me espantei quando isso foi dito pela mulher? Porque

51
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

é uma discriminação elitista […] ela não era acadêmica, mas dizer isso não
depende da posição acadêmica, depende da posição no mundo, depende
apenas de estar no mundo e com o mundo” (FREIRE, 1988, p. 22-23).
Inspirada por Vygotski e Freire, preparei o texto para a apresen-
tação: “É preciso estar no mundo e com o mundo”. No entanto, após
ouvir Nego Bispo e Capitão Potiguara, que abriram a mesa redonda,
entendi que os saberes tradicionais nos interrogam e nos exigem outras
epistemologias, outros modos de vida, de relação, de linguagem, outros
modos entre os mais novos e os mais velhos, para além do domínio do
pensamento. Pude ali, naquele momento, com pensamentos sobre o
concreto e o aterrado (SANTOS, 2018), iniciar outro tipo de conexão
com a obra de Paulo Freire e a obra de Lev Vygotski.
E foi assim, entre o susto de notar minha escrita prévia que não se
ajustava ao chamado do Nego Bispo e do Capitão Potiguara e a alegria
da descoberta que esse encontro me trazia, que fiz a fala que se segue.
Hoje é um dia muito feliz, estar aqui para compor a mesa com
Nego Bispo, Capitão Potiguara e Abrahão Santos, para falar de algo que
tem me interpelado nos últimos tempos, que é a relação entre a pesquisa
e os saberes tradicionais.
E é desse lugar que eu vou falar hoje, que é lugar de dúvidas, mas
também de possibilidades. Peço licença para trazer à cena quatro encon-
tros que tive na minha vida “uffiana”. Então conto memórias que têm me
ajudado a seguir adiante e a pensar em pesquisa para além daquele modelo
no qual nós fomos formadas/os – que anuncia a investigação, a pergunta,
a dúvida, mas, na verdade, não há espaço para dúvidas, questionamentos,
incertezas. Essas cenas me ajudam a ter força e coragem para admitir que
eu tenho dúvidas e incertezas em relação à pesquisa que eu venho fazendo.
Eu começo com uma cena em que a grande personagem é Dona
Maria, uma moradora de uma comunidade de Niterói. Eu tive notícias da
fala da Dona Maria há cerca de quatro anos em uma pesquisa que era uma
interface de um grupo, por mim coordenado, do Instituto de Psicologia
e de outro grupo da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal
Fluminense (UFF), coordenado pelo professor Fábio Alves. A pesquisa
versava sobre estudos epidemiológicos acerca da prevalência e preven-
ção da diabetes naquela comunidade. Um belo dia, Dona Maria chega
ao posto de saúde e diz: “Vocês precisam sair desse posto e de fato che-
gar à comunidade, conhecer as nossas vendas, os nossos mercadinhos, as

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Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

nossas hortas. Digo isso porque essa dieta que vocês passaram para o meu
marido não nos diz nada: muitos alimentos não conhecemos, outros nós
não gostamos”. Essa interpelação foi marcante e fez com que os pesquisa-
dores fossem conhecer as hortas, vendinhas e mercados da comunidade.
Embora teoricamente em nossos livros e artigos haja questiona-
mento acerca da relação entre pesquisador e população, quando afirma-
mos a pesquisa-intervenção, na concretude, no cotidiano, somos toma-
dos por um lugar em que o outro é objeto das nossas investigações.
Dona Maria interpelou isso, se fez presente e mudou todo o rumo da
nossa pesquisa, transformou aquela pesquisa tão clássica, que de pes-
quisa-intervenção não tinha nada. Dona Maria transformou a nossa pes-
quisa em sua comunidade em uma grande roda, em que foi preciso lidar
com a interrogação ao nosso modo de fazer pesquisa e lidar com o saber
das populações. Dona Maria nos ensinou o exercício de não alheamento
em relação ao outro; coisa sobre a qual tão bem escrevemos e falamos,
mas que na prática a gente não faz.
Outra memória que eu trago é da Claudia, catadora de material
reciclável. Ao ser entrevistada por um orientando de mestrado acerca
da educação ambiental, ela apresenta com propriedade o conceito de
educação ambiental, critica o conceito de reciclagem, e no final faz a
seguinte observação: qual o dia da defesa da sua dissertação? Eu esta-
rei lá e quero saber o que vocês falarão de mim na universidade. Essa
segunda interpelação me alertou para o fato de que a pesquisa não con-
vida para dentro da universidade. Vamos até às comunidades, escolas,
favelas, adentramos as vidas das populações, mas não queremos que
essas mesmas populações cheguem até o nosso cenário.
A terceira memória é de uma psicóloga de uma escola pública, a
Cleuza, que recebeu os estagiários de uma disciplina ministrada por mim
para uma entrevista. Tempos depois, Cleuza me procurou na UFF e disse:
“Eu vim aqui falar de mim, porque naquela entrevista não foi possível”.
Outra interpelação, que modo é esse de fazer entrevista, de se aproximar
do outro, em que o outro não consegue falar?! O meu grupo de pesquisa
faz, em seus estudos e escritos, crítica à ciência sem sujeito, mas no exer-
cício, na concretude, na vida diária do encontro com o outro, produz uma
fala sem sujeito. Foi preciso que a Cleuza adentrasse a minha sala na UFF
para “falar de si”, inventando ela mesma uma forma de “entrevista”.

53
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

A última cena que eu trago é de uma aluna, Yasmin, da graduação


em psicologia, que um dia me parou no corredor e disse: “Professora
querida, você não acha que é diferente falar como mulher negra na uni-
versidade?”. E Yasmin fez uma interpelação que tocou diretamente no
meu lugar aqui, o que eu estou fazendo aqui, de onde eu venho. Essa
interpelação mudou completamente a minha vida, foi formação subje-
tiva e hoje eu busco falar como mulher negra na universidade.
Essas quatro interpelações foram feitas por mulheres negras
como eu. A interpelação de Yasmin me faz perceber que para eu escutar
o outro, para que minha entrevista tenha outro sentido, para que minha
roda de conversa e minhas propostas de educação e de saúde ganhem
força, é preciso que eu apareça também nessa pesquisa: e eu sou uma
mulher negra. Esse é o meu não álibi. Eu que sou filha da UFF, graduada
em psicologia, fiz outros caminhos acadêmicos, mas não deixo de ser
filha de Madureira, de uma família negra, de um lugar que me constitui
e me diz o que eu sou.
Essa forma que eu apresento, que é tão singular, que fala de mim,
é também uma interpelação ao modo da universidade, a esse modo de
fazer pesquisa. Eu venho encontrando possibilidades de descolamento
a partir das interpelações que venho sofrendo, que eu venho chamando
de oralidade, que trouxe nas vozes de Maria, Claudia, Cleuza e Yasmin.
Muitos, quando conto essas histórias, me dizem que as mudanças
parecem ser mais significativas para mim que para as populações. Sei
das mudanças nas vidas dessas quatro mulheres que aqui apresento,
mas sei mais, é fato. Sei sobre as mudanças que vivo como pesquisadora,
como professora, subjetivamente.
Termino dizendo a vocês da minha alegria de ter partilhado as
minhas dúvidas e incertezas. Vou pedir licença para lembrar livremente
uma cena relatada por Paulo Freire, nesses vinte anos da morte dele.
Contou Freire que em uma das primeiras vezes que entrou em sala de
aula para alfabetizar, questionou-se: “Como é que eu vou explicar o que
é cultura para os camponeses? Acho que é melhor perguntar”. Uma
moça disse: “Cultura é esse abajur que está aqui. Tem a árvore que está
lá fora, o trabalho que é feito, e torna o pedaço do tronco em abajur, é
cultura”. Paulo Freire, se eu, Luiza, fosse explicar o que é cultura, ia falar
de diversos autores, com conceitos cada vez mais abstratos, um conceito
que leva a outro, a outro e a outro.

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Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

Essa minha fala breve é um testemunho das dificuldades de sair


desse lugar teoricista. Eu brinco com meus alunos, nós somos filhos
do Descartes, um cara que dizia que bastava exercer o pensamento que
a gente descobria o mundo. E a história não é essa. É com força, com
coragem, com emoção e razão que se entende o mundo.
Eu vou pedir licença mais uma vez para encerrar minha fala com
uma leitura:

Fogo!… Queimaram Palmares,


Nasceu Canudos.
Fogo!… Queimaram Canudos,
Nasceu Caldeirões.
Fogo!… Queimaram Caldeirões,
Nasceu Pau de Colher.
Fogo!… Queimaram Pau de Colher…
E nasceram, e nascerão tantas outras comunidades que os
vão cansar se continuarem queimando

Porque mesmo que queimam a escrita,


Não queimarão a oralidade.
Mesmo que queimem os símbolos,
Não queimarão os significados.
Mesmo queimando o nosso povo,
Não queimarão a ancestralidade. (SANTOS, 2015, p. 45).

É essa busca de oralidade, é esse exercício que eu venho fazendo


com muita dificuldade, mas com muita alegria. Quando alguém me fala:
“Luiza, que dureza é a coordenação daquele programa de pós-graduação
em psicologia da UFF!”. Eu respondo: “Que dureza!” Mas, aos cinquenta
anos, eu vivo esse momento com a alegria das novas aprendizagens que
a luta pela política de ação afirmativa vem me possibilitando. Estou
muito feliz de estar aqui.
E tem sido assim que essa história do encontro com Nego Bispo
e Capitão Potiguara tem me ajudado a entender que entre o concreto e
o aterrado está a minha ancestralidade, o meu encontro, pela oralidade,
com aquelas que me interrogam.
Obrigada.

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Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

Referências
FREIRE, Paulo; BETTO, Frei. Essa escola chamada vida: depoimentos ao
repórter Ricardo Kotscho. 6. ed. São Paulo: Ática, 1988.
SANTOS, Abrahão de Oliveira; SILVA, Viviane Pereira. A Pesquisa no
Kitembo: pistas para uma pesquisa aterrada. Arcos Design, Rio de
Janeiro, v. 11, n. 1, p. 7-20, 2018.
SANTOS, Antônio Bispo dos. Em colonização, quilombos: modos e signi-
ficações. Brasília, DF: Editora UnB, 2015.

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CAPÍTULO II

Pesquisa na favela, expropriação e apropriação


cultural
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

Por um ensino que diz da gente


Dona Zilda Chaves

Boa tarde, sou Zilda Chaves, sou do coletivo Ocupa Alemão, do


Complexo do Alemão, eu não tenho curso superior, mas eu tenho a
vivência, que é uma escola, principalmente, de mulher, preta e da favela,
nascida e criada. Então, a gente tem uma vivência que forma bastante a
nossa consciência. Eu sou mãe, já sou avó.
A minha vivência é agora, no coletivo. Nós estamos tentando
criar uma escola nos moldes pan-africanistas, para as crianças que
frequentam. Nós temos 25 crianças já certas e temos algumas que vão
avulso, mas 25 já estão matriculadas. E isso é para que a gente faça um
novo, não que a gente vai fazer um novo ensino, mas que a gente consiga
fazer eles crescerem de uma outra forma, que não seja essa forma que
o Estado passa. Para que eles tenham a vivência de ser preto, de ser da
favela, de saber que têm que lutar mais de 24 horas por dia para poder
ser felizes. Tem uma galera que vem de um ensino que não diz tanto
para a gente, ao qual que a gente não fala, o ensino branco, que não
condiz com a gente.
A gente está, agora, tentando conhecer – eu não conheço muito
sobre esse pan-africanismo –, estou aprendendo também, com eles, vou
aprender junto com eles. A gente vai tentar mudar para que essas crian-
ças que venham agora, venham com outros saberes, saber de verdade
da sua essência, saber quem são, como são. A gente está em uma luta.
Nós sonhamos e agora estamos começando a botar em prática a nossa
escola, que leva o nome de Escola Quilombista Dandara de Palmares.
Estamos tentando começar um novo ciclo, enquanto pretas, enquanto
da favela. A gente sabe que tem a necessidade de depois estar, sim, na
faculdade. Sim, a gente sabe que o conhecimento está aqui, a gente não
tem nenhuma dúvida disso, aqui está o conhecimento. Só que a gente
deseja que, quando eles chegarem aqui, na universidade, cheguem com
um conhecimento deles enquanto povo preto, enquanto povo da favela,
a gente quer isso. Eles virão sim, mas virão conscientes do que eles são,
para tentar fazer um mundo um pouco diferente para gente. É isso.

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Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

Expropriação dos saberes pela universidade


Ricardo José De Moura

Eu queria fazer duas observações, antes de começar essa fala pro-


priamente. Eu gostaria de fazer uma proposta para o Kitembo, que da
próxima vez pensasse em fazermos esses encontros nos quilombos, nas
favelas, nas praças, qualquer lugar que seja, que pudesse ser uma roda
de conversa e não falação minha para vocês. Parece que aqui a gente
fica num destaque, e devo confessar a vocês que isso me incomoda bas-
tante, porque parece que nós estamos num lugar de hierarquia de saber.
É uma proposta a gente fazer, inclusive, quem topar, no bar, aliás, com
uma boa cerveja.
A segunda observação diz respeito ao título dessa mesa, que é
“Pesquisa na favela e apropriação cultural”. Se me permitem, eu gostaria
de adicionar – sempre é bom a gente adicionar alguma coisa, para dar
um sentido de pluralidade – a palavra expropriação. O encontro nessa
perspectiva ficaria: “Pesquisa na favela, expropriação e apropriação
cultural”. Por que expropriação? Nós temos um problema, talvez histó-
rico, dentro desses processos. Eu vou fazer uma fala bem recortada em
relação à pesquisa por meio desses espaços de favela, que muitas vezes
se precisa expropriar o conhecimento, classificando esse conhecimento
como subalterno ou, outro exemplo, com a palavra “popular” – parece
que tudo que é popular é ruim. Então a gente tem um problema com
isso, na minha perspectiva, saber é saber, se é popular ou não, é um
outro esquema. Nós tentamos classificar os saberes, exatamente, para
poder expropriá-los. Se Classifica para expropriar e depois se apropria
do conhecimento que se expropria. Não sei se fui claro. Então se tem um
regime em que nós primeiro expropriamos o conhecimento, colocamos
ele como menor, mas, na hora, nós nos servimos desse conhecimento
que julgamos ser menor para fazer nossas teses, dissertações. E isso dá
certo aos montes.
Eu vou contar um exemplo, na verdade, é uma experiência. Nós
temos lá no Alemão um evento, que parte de um programa do Raízes em
Movimento, chamado Vamos desenrolar: Produção de conhecimento e

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Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

memória. O Vamos desenrolar nasce de uma angústia nossa, em rela-


ção aos modos de se produzir conhecimento dentro dos espaços, não só
da favela, mas espaços acadêmicos. E que angústia era essa? Tem uma
relação com o nome, era muito pomposo: Seminário de produção de
conhecimento. E a gente queria uma coisa que pudesse dialogar mais
diretamente com as pessoas, porque nome de seminário fica uma coisa
que parece que traz a concepção de hierarquia. Nós conseguimos colo-
car, numa discussão entre nós, um nome que sugeri e que parece ter sido
bastante aceito, que é: Vamos desenrolar.
Na verdade, Vamos Desenrolar diz respeito ao modo de uma da
linguagem que se estabeleceu nesses espaços: “Você tem algum tipo
de conflito, vamos desenrolar. Você tem alguma coisa para falar para
alguém, mano, vamos desenrolar”. Fica muito mais claro e muito mais
interessante a gente partir de uma produção de conhecimento que se
pudesse desenrolar e que não fosse no seminário. Muitas vezes seminá-
rios são chatos à beça, diga-se de passagem. Mas nada contra seminá-
rios. E nós fizemos esse trabalho lá dentro do Raízes e estamos fazendo
até hoje. Qual é o objetivo geral desse encontro? É colocar numa mesa
de debate, numa roda de conversa, pessoas da academia e pessoas que
não estão na academia, inclusive, que têm saberes outros, que não é o
saber científico. Talvez esse fosse o grande desafio e é o grande desafio
do Vamos Desenrolar, uma vez que um saber científico tende a suplantar
outro qualquer tipo de saber. Se você leva o seu título de doutor, parece
que você tem um emblema naquilo; ele é emblemático, você é doutor. E
a gente tem que considerar que existem tantos doutores fora da acade-
mia, que a gente precisava, inclusive, fazer o que a UFRJ fez agora com
Martinho da Vila, reconhecer doutores honoris causa, até mesmo aqueles
que nunca entraram numa universidade, mas são produtores de conhe-
cimentos indispensáveis. Então esse encontro tem essa preocupação.
Vou dar um exemplo: num dos Vamos Desenrolar teve uma dis-
cussão sobre moradia: são quatro fomentadores que abrem o desenrolo
e depois se abre para, não só perguntas, veja bem, mas para interven-
ção. Muitas vezes a pessoa não faz uma pergunta, ela faz uma inter-
venção e colabora com o processo de diálogo muito mais do que uma
pergunta. Então você chama quatro dinamizadores: dois, supostamente,
que não têm o saber acadêmico, têm um outro tipo de saber, e dois que
fazem pesquisa e a colocam na roda. Numa dessas ocasiões, a gente

60
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

estava discutindo sobre água no Complexo do Alemão. Historicamente,


as favelas são expropriadas desse processo e aí começam a colocar as
classificações e os estereótipos: gato, essas coisas. “Você não paga luz,
você não sei o quê”, como se nós não pagássemos impostos. Tenho que
confessar a vocês que tudo que sai fora da lei, em certa medida, me
interessa, então façamos o gato de água, porque estão roubando a nossa
água e quem roubava a nossa água era a Coca-Cola. Desviavam, isso
todo mundo sabe lá no Alemão, o fluxo de água do Alemão para seguir
para a Coca-Cola Rio de Janeiro Refrescos S/A. Não preciso falar mais
muita coisa. E os moradores não tinham água, obviamente, então vamos
fazer com que a água chegue na casa dos moradores. É gato? Não me
interessa, que seja gato, a água tem que chegar na minha casa, porque
é um elemento fundamental para a vida. Já que estão roubando a nossa
água, nós fizemos, então, a água sair de outro canto. E tem um senhor
que trabalhou na Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de
Janeiro (Cedae) por muito tempo, e tinha uma pesquisadora de um local,
muito amiga nossa, que estava fazendo uma pesquisa sobre questões
fundiárias, e tinha uma relação com a água. Ela fez uma exposição, uma
explanação, isso numa mesa do Vamos Desenrolar. Esse senhor com o
tal do saber popular, talvez tenha frequentado a escola apenas nas séries
iniciais, mas que trabalhou na Cedae, era um conhecedor da água do
Complexo do Alemão, tanto que era chamado, de brincadeira, de Zé
da Água. Quem mora nesses espaços sabe que a figura que manobra
a água é fundamental. Você tem uma relação com ele, você tem que
tratar o cara como peso de ouro, pois vai fazer chegar ou não a água na
sua casa. Então ele, sem dúvida nenhuma, era a figura mais importante
do local. Ora, tinha mais de quarenta e tantos anos que ele tinha esse
conhecimento. E aí, ele ouviu a pesquisadora atentamente, e quando
ela terminou de falar, ele falou assim: “Está tudo errado. O que você
falou está errado. Vou começar a dizer onde está errado”. E começou
a contar a história dele. Ao final, vou encurtar aqui para a gente avan-
çar, a pesquisadora reconheceu que tinha problemas na pesquisa dela
– uma pesquisadora de ponta –, e ouviu atentamente o que ele tinha
falado. Maravilha, então, seu Zé Mineiro, conhecido como Zé da água,
deu uma contribuição àquela exposição. Quando sai o artigo escrito, sai
o artigo com o nome da pesquisadora e não faz nenhuma menção ao seu
Zé da Água, que tem um conhecimento extraordinário e que contribui

61
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

com a pesquisa dela não como resposta, mas para refletir o problema
de pesquisa.
Reparem que isso não é um caso isolado. Se nós formos pensar
num contexto histórico, e dada a atualidade, por exemplo, isso acon-
tece com frequência. No Raízes em Movimento vamos fazer o lança-
mento agora em dezembro do livro Complexo do Alemão: uma bibliografia
comentada, que diz respeito às pesquisas. Eu fui revisor desse trabalho. E
tem questões assim que você percebe claramente. Há aproximadamente
duzentos trabalhos dentro desse livro. Eu fui ter o contato com algu-
mas dessas pessoas, nenhuma delas fez qualquer menção à produção
do conhecimento com paridade, isto é, que levasse pelo menos o nome
de alguém da comunidade junto com ela. Eu acho que é hora de a gente
parar e refletir bem sobre isso.
Primeiro que a academia não aceita, pois a gente tem que ter
autoria. Então o primeiro problema é a autoria. Veja bem, eu faço uma
pesquisa, vou para favela, pego lá os conhecimentos e a autoria é minha.
Como a autoria é minha? Por que tem que levar o meu nome apenas?
Esse é um primeiro problema – é óbvio que a questão da autoria é mais
complexa. O segundo problema que aparece: a gente fala nas rodas de
conversa, tem um fetiche do campo, quem é pesquisador sabe que o
campo é um fetiche enorme. Quando vamos fazer pesquisa, a gente,
seja qual for o método ao qual nós (eu prefiro modo a método) – pega
lá o nosso metodozinho, um determinado tipo, área de conhecimento –
estamos ligados. Ele nos conecta a um grupo específico, e vamos aplicar
como se fosse aquela velha, não é pergunta, mas aquela velha afirmação
que me parece que hoje está tão ultrapassada que a gente tem que inclu-
sive falar de outro lugar, que é o tal sujeito-objeto. Eu nunca vou con-
seguir entender isso, confesso que eu nunca consegui entender. Eu não
sou objeto de nada, de nada. E deixava muito claro isso quando vinham
falar comigo, não me tratem como objeto, eu não sou cadeira, eu não sou
um microfone, não sou, eu sou uma pessoa e tenho sentimentos, tenho
sensações e tenho um saber comigo, seja de que espécie for, então me
trate com igualdade.
Ora, é um campo de disputa. Se é um campo de disputa, a gente
precisa disputar. Eu sou negro, nasci na favela e estou numa univer-
sidade federal como professor substituto. Você imagina o que é. Faço
questão em todas as minhas aulas, aspas, todas aspas, nos primeiros

62
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

encontros dizer que eu sou o neguinho da favela, por uma questão polí-
tica. A identidade não é uma identidade fixa, ora eu sou pai, ora eu sou
filho, ora eu sou isso, ora eu sou aquilo, ora eu sou favelado. Nesse sen-
tido me interessa ser favelado, na favela, o neguinho, preto, que nasceu
na favela e que está dando aula nessa instituição, então tem que me
ouvir. E vamos fazer, tem que me ouvir no sentido, veja bem, não é de
uma arrogância, mas assim, a gente precisa disputar esses espaços.
Normalmente você encontra dentro das universidades os negros
limpando isso, limpando aquilo. Tem uma questão histórica e a gente
finge que não vê isso. O negro parece que foi feito, nesse sentido, dentro
dessas dimensões, para ocupar cargos de serviços gerais. Nada contra
esses serviços, mas a gente precisa avançar, porque historicamente a
gente tem um problema. O pesquisador vai para dentro da favela e acha
que tudo é a mesma coisa, ou seja, o neguinho está precisando. Aí tem as
pechas de modo geral. O pesquisador entra na favela, ele tem o conhe-
cimento, os favelados não têm o conhecimento. Então vai explicar para
eles qual é o projeto dele; vai com o projeto definido. Não vai para uma
conversa, não vai para dialogar. Já vai com a coisa preparada. Parece que
é um salvador.
Aliás, as matrizes científicas, as pesquisas científicas acreditam
ser salvadoras, querem salvar os outros, as pessoas, melhor dizendo, os
pretos e os favelados. Diga-se de passagem, como se constroem, por
exemplo, as intervenções urbanísticas no Rio de Janeiro. Sempre um
projeto salvífico. Na entrada do quartel general da Unidade de Polícia
Pacificadora (UPP), no Complexo do Alemão – permitam-me sair um
pouco desse script aqui –, tem um Cristo, assim, de braços abertos e um
monte de soldado na frente do Cristo, aí tem lá escrito: “Bem aventurado
os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus”. É esse tipo
de política que a gente vê dentro desse espaço. Reparem quem são os
pacificadores. E para pacificar o que e quem? Vieram para nos civilizar,
é isso? É um tipo de regime de salvação. Já não basta o que os jesuítas
fizeram com a nossa gente, ainda temos que engolir isso? Querem salvar
o pobre, o preto, o favelado, porque são a última coisa da sociedade?
Os pesquisadores, 90% deles, reparem bem, produzem o mesmo
discurso, como se eles fossem a figura central do conhecimento. Mas
não são. Então é bom que fique claro, porque a gente acaba tendo esse
problema enorme que chega dentro da favela. A gente produz o nosso

63
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

modelo com meia dúzia de perguntinhas, aquelas perguntinhas bem


sem-vergonha, diga-se de passagem, que fazem parte da mentira e da
arrogância da tal hipótese, e aí uma pessoa que tem grande conheci-
mento local tem seu saber expropriado. Maliciosamente, começa-se a
pôr sob ponto de vista de classificação, isso é um saber popular, saber
popular é menor, isso não tem validade acadêmica, e blablablá. Isso não
é um saber racional. E aí, expropria-se para, depois, o pesquisador colo-
car na pesquisa dele como se fosse ideia sua. Isso é roubo. Isso é expro-
priação e apropriação indevida. Se quiser, isso é plágio. E mais, depois
vai lançar o livro como se fosse ele que tinha feito. Estou falando da
minha área também, porque eu sou pesquisador, então eu estou balan-
çando a minha casa, eu estou tacando pedra na minha casa também.
A gente tem que ter um pouco de vergonha e passar a considerar
o outro não como objeto, mas como gente, como pessoa que tem as gera-
ções de saberes, e que a academia não é o último lugar do saber. Não é,
como diz uma música aí, desculpe-me, mas não é a última Coca-Cola do
deserto, em que pese a ironia desse significante.
Então a gente precisa entender esse mecanismo, porque normal-
mente as pesquisas repetem uma prática de hierarquia, de submissão,
repete uma prática quase que de algoz desse pessoal. Você tem uma rela-
ção de carrasco, tem uma relação muito problemática historicamente.
A gente precisa avançar nesse sentido. Então, a dona Mariazinha ou o
seu Joãozinho, que mal têm o segundo grau, que mal sabem escrever,
parece que ele é um ninguém. A experiência empírica deles é jogada
de lado por um tal saber científico, que se pressupõe como o melhor
saber. Inclusive, quando a gente tem essas rodas. Por isso aqui a minha
brincadeira com o pessoal do Kitembo. Vamos fazer no quilombo, numa
praça, vamos fazer uma roda de conversa, vamos desierarquizar esses
saberes. E assim produzir coisas que possam oxigenar inclusive a uni-
versidade. À medida que a gente consegue fazer isso, a gente avança no
campo, com todos os problemas que temos, em uma certa igualdade,
uma tentativa de equidade, mínima possível, entre esse saber científico
e o dito não científico.
Eu confesso a vocês que as dicotomias me inquietam: não cien-
tífico × científico. O que tem o científico melhor que o não científico?
Sinceramente eu não sei. Eu estou orientando agora uma menina, e por
ela mesma, ela chegou e falou que queria discutir algumas questões lá

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Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

com relação à academia, porque não aguentava mais esse saber da aca-
demia. Enfim, ela ficou empolgada com algumas coisas, eu falei. Não
tem em mim nenhuma tentativa de desqualificar o saber científico. Ele
tem importância, mas não é o mais importante. Ele tem uma importân-
cia para a sociedade, não podemos negar isso, agora não podemos deixar
que esse saber seja um saber hierárquico, porque os outros saberes da
vozinha ou da dona Mariazinha que cultiva uma flor, e sabe como nin-
guém que aquela flor, aquela planta, serve para curar, que é uma erva
medicinal, tem um saber tão significativo quanto o acadêmico, indepen-
dente dos médicos gostarem ou não.
Porque parte dos médicos tem essa mania – médicos, engenheiros
e outras profissões). Desculpa se tem aqui algum médico ou engenheiro.
Vejam, não é crítica à pessoa em si. Sabemos que há algumas profissões
que são elevadas socialmente. Há uma brincadeira nos cursos de direito:
“Juiz pensa que é Deus, desembargador tem certeza”. Assim, é uma coisa
absurda, o médico, ele acha que é a última voz, voz do saber. Se você
está doente, quem sabe mais dizer da sua vida nesse momento? A sua
avó teve ou tem uma experiência enorme com ervas medicinais e ela
te dá um remedinho supimpa. Você toma e aquela coisinha e melhora.
Estava com uma dor na coluna e aquilo te melhorou. O médico diz:
“Não, isso não é saber, isso não pode”, e te tasca remédio. As drogarias
estão cheias. E aquele remedinho que pode trazer muito benefício para
população não é levado em consideração! O saber médico traz esse tipo
de relação, uma relação não só econômica, mas também política. E aí as
drogarias, aqueles fármacos – ninguém liga se os fármacos fazem mal –
te melhoram de um lado e te arrebentam de outro.
Para esse tipo de relação, me parece nós podemos fazer uma con-
tribuição no sentido de desierarquizar esses saberes. Os pesquisadores
que normalmente vão para esses espaços, e aí não são só os pesquisa-
dores, os gestores, eu tenho uma formação, eu formo gestores públicos
nesse sentido. E o que eu mais tenho discutido com eles é uma relação
de qual desenvolvimento nós queremos. Um desenvolvimento para che-
gar na terra dos outros dizendo o que os outros têm que fazer, ao invés
de ouvir os outros, é esse tipo de desenvolvimento que ocorre hoje, a
partir de um certo saber meu, porque a outra figura é tecnicamente
competente? Aquela figura que nunca entrou na universidade, chega lá
com seu programinha de intervenção e diz: olha, vai ter que acontecer

65
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

isso, isso e aquilo. Tive um contato, agora recentemente, com o tio da


minha esposa, ele estava fazendo uma queixa sobre o processo de seu
trabalho e eu falei assim: “Eu vou levar esse exemplo para dentro da con-
versa”. Ele trabalha há muitos anos com fogão industrial, é uma pessoa
que trabalha talvez há uns 35 ou 40 anos com fogão industrial. Tem uma
cartela de clientes respeitada, eu estive com ele em alguns restaurantes
no centro do Rio de Janeiro e vi o quanto ele é respeitado. E tem umas
questões lá que ele precisa organizar, a concepção das cozinhas dos res-
taurantes, a pedido de outras pessoas, que são pessoas tecnicamente
estudadas, são os arquitetos. O que os arquitetos fazem? Desenvolvem
lá o projeto para a cozinha, e depois vai conversar com ele, porque ele é
a figura que tem quarenta anos de experiência e que sabe onde tem que
ficar o quê, e o que vai dar problema e o que não vai. Não pode tampar
a saída do gás, mas, segundo ele, os arquitetos cismam em tampar. Ele
fala assim: “Não pode, porque vai explodir”. As relações talvez deve-
riam ser mais simples, mas da última vez ele estava falando: “Eu não
aguento mais, porque eles vêm para cá com um projeto todo errado”
– ele talvez tenha aí a quinta, a sexta série do antigo primário – “Vêm
com um projeto todo errado para cá, eu pego, rabisco o projeto com eles.
Eles acham que eu não entendo do projeto, mas eu entendo. Pego ali o
projeto, rabisco um monte de coisa, o arquiteto reformula o projeto e
depois o patrão lá, dono do restaurante, aprova o projeto”. Maravilha, ele
ganha o quê? Nada. Isso é expropriação do conhecimento.
Está na hora de reconhecer que aquele profissional com quarenta
anos de trabalho sabe muito, e muitas vezes mais do que “pesquisa-
dores” – arquitetos. Então, assim, a gente precisa avançar nisso. E ele
estava se queixando: “Eu não vou mais fazer isso, porque estão expro-
priando meu conhecimento” – ele não usou exatamente essa palavra.
Então na verdade é isso, quarenta anos de trabalho, sabe alguma coisa,
um arquiteto reformula, sai o nome do projeto do arquiteto, que é inca-
paz de falar assim: “Seu João, eu vou botar aqui meu nome, mas vou
botar o seu também”, em parceria ou qualquer coisa, porque tem que ser
assim. A pesquisa, nesse sentido, é uma pesquisa com.
Há aí uma disputa, um lugar que precisamos disputar, com a uni-
versidade. A universidade precisa não só se abrir para outros tantos
conhecimentos, mas precisa reconhecer, inclusive, aquelas pessoas que
não querem assinar seu trabalho sozinho, que vão fazer uma pesquisa e

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Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

que sabe que aquele grupo de trabalho deu uma contribuição extraor-
dinária e absoluta para a pesquisa, e que, se não fosse por eles, a pes-
quisa não seria possível, e é necessário a universidade reconhecer que
aquele trabalho e a autoria dele não é só de uma pessoa. Eu acho que a
gente precisa avançar nesse campo, primeiro disputar e segundo fazer
uma disputa qualitativa, se é esse o caso, para que a universidade possa
reconhecer outras fontes de saberes, inclusive, nesse caso, os saberes
que são nascidos dentro desses lugares, dos quilombos, das favelas, das
aldeias indígenas etc.
Eu estive numa aldeia indígena, em 2016, em Ilhéus. Nós fomos
cobrir lá a terceira edição dos jogos estudantis indígenas. Era um lugar
muito problemático do ponto de vista de estrutura, saúde etc., por uma
questão histórica, mas de uma riqueza absoluta de conhecimento. Eu
brinquei lá, me desculpe por minha expressão chula, vou usar para
poder quebrar um pouco o gelo –, eu falei assim para um amigo meu:
“Eu não sei coisa nenhuma, diante disso aí eu não sei nada”. Assim,
o cara que nunca foi para universidade te dá uma aula sobre planta,
conhece tudo de planta, é curioso. Dá uma aula, assim, absurda. Guarda
uma centena de nomes na cabeça – há uma série de dificuldades para
memorizar aqueles nomes –, sabe das plantas, sabe para que serve cada
uma. Aí eu falei: “Caramba”. Aí lá pelas tantas ele me deu um cachimbo,
para dar uma cachimbada em uma erva que eu me esqueci o nome. Ele
só falou assim: “Cuidado que essa erva é a forte”, e eu falei: “Ah, mas eu
vou dar uma charutada aqui com essa erva, vai ser bonito”. Mas assim,
como é engraçado isso, até o modo como ele explicou, que importa se
você puxa forte ou puxa fraco. Ele falou: “Você que não está habituado
com essa erva, quando você for puxar no cachimbo, você puxa fraco,
porque se você puxar forte, você pode ter um desmaio”. Como é que o
cara sabe disso? Assim, isso é um saber.
Então, repara, ao longo dos anos os pesquisadores – e aí eu estou
falando pesquisadores de modo geral, generalizando, certamente, tem
tantos outros que não são assim, vou parar, senão eu vou falar à beça.
Vou terminar para poder deixar o professor aqui também continuar a
fala. Só para finalizar falarei sobre essa questão de ter muitos pesquisa-
dores, falando de modo geral, fazendo pesquisa na favela.
O que me intriga mais é exatamente você não reconhecer o
outro como capaz de produzir um discurso. Isso acontece e me intriga

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Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

profundamente. O discurso sofisticado nem sempre está numa fala


bonita, não, mas se nota se a pessoa sabe falar bem ou não, certo ou
errado. Há um certo tipo de gramática que mais atrapalha do que ajuda.
Se eu falo para você, “nós vai ao cinema”, você entendeu o que eu falei?
Entendeu, então está certo, ou não está? Deixa com os gramáticos da
norma (o)culta discutirem isso, o que importa é você me entender. Não
adianta falar com discurso empelotado de uma ciência, de um tipo de
ciência e você não entender lhufas. Porque, assim, eles falam: “Porque
epistemologia…” e começam a falar difícil, não adianta. Agora, se eu
falo, “nós vai ao cinema”, você entendeu, então deixa para os gramáticos
corrigirem, porque eu estou na esfera mais dos linguísticos, do que dos
gramáticos. Então a gente tem um problema e a gente precisa ultrapas-
sá-lo. Obviamente, eu não estou pregando que nós não devemos domi-
nar minimamente nosso idioma, não é isso que eu falo. Aliás, incentivo
isso, porque eu sou professor, de produção textual, mas tento produzir
outro tipo de texto para além do texto “gramaticalmente correto”.
O texto científico é uma forma, não é a forma, é uma possibilidade
e não a possibilidade, com o artigo definido. Tem uma possibilidade,
bacana, mas tem outras tantas possibilidades de apreensão e de produ-
ção do conhecimento, que nós precisamos disputar. Disputar esse lugar
inclui “nós”, aí vou falar “nós”. Nós, enquanto pesquisadores, devemos
ter mais do que a consciência de que nós não sabemos tudo, ter a sensi-
bilidade de entender que o mundo é formado por uma pluralidade, e não
apenas pelo meu ponto de vista.
Obrigado.

68
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

Nova paisagem universitária e renovação dos modos de conhecer


Eduardo Passos

Queria agradecer a oportunidade de estar aqui com a dona Zilda


e com o doutor Ricardo. Fui convidado pelo Abrahão para participar
dessa mesa, representando o programa e o trabalho de pesquisa que nós
fazemos aqui na pós-graduação da psicologia da Universidade Federal
Fluminense (UFF), nesse momento de troca de saberes, nesse momento
em que estamos fazendo essa experiência de abertura do diálogo.
Fazemos isso por uma experiência de mudança da paisagem da univer-
sidade. Estou na universidade há mais de trinta anos, e a universidade
onde eu estudei e onde eu comecei a minha vida profissional era muito
diferente da universidade que nós vivemos hoje. Iniciou-se o processo
de mudança dessa paisagem, uma paisagem mais colorida, mais mestiça,
mais misturada. Estamos diante de uma nova paisagem universitária.
Nessa universidade vivida assim, matizada, encontramos não só
novos integrantes, não só novos parceiros, mas, com eles, novos pro-
blemas, novos temas, novos objetos. A questão, então, é entendermos
essa experiência que dona Zilda designou de novo ciclo. Entender que a
história se faz por ciclos, conclusão de certos períodos, inauguração de
novos períodos. Esse novo ciclo exige da universidade enfrentar desafios
que não são somente o de acolher os novos integrantes com os proble-
mas que são pautados, com os objetos que são colocados para investiga-
ção. Um desafio importante, o que Ricardo sinalizou, é o da construção
de um outro modo de conhecer. É preciso conhecer de um outro modo,
é preciso que se desenvolvam metodologias de pesquisa, modos de pro-
dução de conhecimento que estejam à altura desse novo ciclo que se
abre na universidade.
E que desafio é esse? A paisagem desse ciclo que se conclui é
uma paisagem diferente. Vamos dizer que ela é monocromática, é uma
paisagem branca – dona Zilda falou isso –, é uma universidade que é
branca. E essa cor não é só cor de uma etnia, de uma pele, é a cor tam-
bém de certa maneira de pensar e de produzir conhecimento de forma
verticalizada e hierárquica. É uma maneira de pensar o conhecimento a

69
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

partir não só da distinção, mas da separação entre aquele que conhece


e aquilo ou aquele que é conhecido, entre o sujeito do conhecimento e
o objeto do conhecimento. Mudar essa paisagem, iniciar um novo ciclo,
é assumir o desafio de pesquisar de outra maneira, de produzir conhe-
cimento de forma mais lateralizada, produzir conhecimento de forma
menos verticalizada, menos hierarquizada.
E como se operacionaliza isso? Não podem ser só palavras, só
ideias, é preciso um modo de operar, é preciso alterar os modos de pro-
duzir conhecimento. Aqui na UFF temos designado esse modo de ope-
rar de pesquisa participativa, ou pesquisar-com. Fazer uma pesquisa
participativa é diferente de fazer uma pesquisa sobre algo ou alguém,
com o entrevistador conhecendo sobre determinado tema e sobre deter-
minado objeto; e com a relação com o objeto sendo a relação de quem
está sobre ele. É uma relação que pressupõe uma experiência de domi-
nação e de verticalidade.
Como produzir conhecimento numa outra atitude? Designamos
esta atitude de lateralidade. A atitude de lateralidade, de estar ao lado,
é a atitude que temos quando nossos objetos são sujeitos. O sujeito – e
esse sentido está na etimologia da palavra – é esse que está ao meu lado,
que me interpela, me coloca questões e que, consequentemente, pode ser
convidado a participar do processo de produção de conhecimento e não
estar ali apenas como objeto ou informante. Não está ali apenas como
um objeto de quem coleto dados, mas está ali como um participante do
processo de produção de conhecimento. O desafio é desenvolver meto-
dologias participativas, maneiras de produzir conhecimento que pressu-
põem protagonismo dos diferentes sujeitos implicados nesse processo:
o pesquisador da universidade e também esse que está se apresentando
como um novo integrante da pesquisa, como sujeito da pesquisa.
Nós temos feito isso aqui na UFF há algum tempo em diferentes
áreas. O Kitembo é um dispositivo importante do programa de pós-
-graduação em psicologia (PPGP) para pautar novos desafios para essa
prática da pesquisa participativa: como pesquisar com os saberes tra-
dicionais e as comunidades negras? Como produzir conhecimento com
essa forma de parceria? Como ativar essas rodas de que o Ricardo estava
falando, como dispositivos de conhecimento? Nós já temos feito isso
com outros temas: a saúde mental, por exemplo, que é um tema em
que temos trabalhado há muito tempo; o tema da violação dos direitos

70
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

humanos, um tema importante para o PPGP; o tema da deficiência, que


é outro tema importante. Como produzir conhecimento afirmando o
protagonismo desses sujeitos no processo da pesquisa: os usuários de
centros de atenção psicossocial (Caps), os atingidos pela violação dos
direitos humanos, os portadores de deficiência?
Como produzir conhecimento com esses participantes da pes-
quisa em saúde mental, que são definidos socialmente como desarra-
zoados? Como garantir a participação protagonista de um diagnosti-
cado como doente mental grave em nossa pesquisa? Como incluí-lo no
projeto de produção de conhecimento que, a rigor, não pode abrir mão
da racionalidade? Como produzir conhecimento, de modo a não abrir
mão da disputa de sentidos do que é racionalidade, tendo como par-
ceiro nesse processo um usuário do serviço de saúde pública voltado
a portadores de transtorno mental grave? Eis um enorme desafio que
se faz localmente, cotidianamente, porque é preciso um deslocamento
subjetivo de quem produz conhecimento e está treinado e acostumado
nessa universidade monocromática, nessa universidade branca. Tal
desafio exige do pesquisador um reposicionamento subjetivo e exige
que esse pesquisador faça disputas de sentido muito severas do que é
cidade científica. Como produzir um artigo científico que tenha o usuá-
rio de saúde mental como coautor? Como vencer as barreiras de acesso
a dispositivos acadêmicos como os periódicos científicos?
Essa é uma labuta cotidiana e um enfrentamento que nós só ini-
ciamos. Uma coisa é produzir as alterações no cotidiano de uma univer-
sidade como a UFF, num instituto como o da psicologia, num programa
como o de estudos da subjetividade, que abriga um evento como esse.
Outra coisa é a disputa de sentido nas associações nacionais de pós-
-graduação, nas organizações definidoras do financiamento da pesquisa
no Brasil, como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq) e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior (Capes). Ou ainda, a disputa de sentido nos comitês
de ética, nos comitês editoriais, nas revistas Qualis A. Ou seja, há todo
um sistema já montado que faz com que essa mudança de ciclo tenha
que ser feita com muito trabalho, muito ardor. E esse trabalho não pode
se realizar se não for de uma maneira efetivamente colaborativa. Temos
que aprender a colaborar, a se juntar, o que não é uma tarefa trivial. Isso
não é uma coisa fácil.

71
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

No cenário da universidade, criar um ethos colaborativo não


está sendo fácil, porque a mudança da paisagem acadêmica é acompa-
nhada de muitos afetos e muitos deles revoltados, legitimamente afetos
revoltados. Tais afetos dificultam a prática de colaboração que permite
podermos estar juntos para fazer enfrentamentos que são muito difíceis
e que poderão ser melhor enfrentados na parceria, na nossa capacidade
de lateralidade. No caso da pesquisa científica, é fazer isso, lateralizar.
Faço pesquisa com usuários de psicotrópicos em unidades de
saúde da Rede de Atenção Psicossocial (Raps). Faço pesquisa nos Caps
que tratam de pessoas portadoras de transtorno mental grave. É com os
malucos que eu trabalho e produzo pesquisa. Estou lá não como clínico,
mas como pesquisador clínico, como representante da universidade,
produzindo conhecimento. Como fazer produção de conhecimento, não
sobre eles, mas com eles? Como garantir que esse conhecimento possa
ser efetivamente gerador de novas proposições, novas ideias, novos con-
ceitos que sejam veiculados pela cidade científica? Isso tem se revelado
um grande desafio.
Mesmo aqui, na universidade, temos experimentado situações
muito difíceis e constrangedoras. Por exemplo, no ano passado, num
seminário anual de apresentação dos resultados das pesquisas que faze-
mos com os alunos de iniciação científica, quando os trabalhos são apre-
sentados para avaliação por professores de outras universidades e de dife-
rentes cursos, numa banca avaliadora do meu grupo de pesquisa, havia
um colega que fazia uma distinção, para ele importante, entre produção
de conhecimento e extensão universitária. Ele dizia: o trabalho que vocês
fazem criando parcerias comunitárias, criando essa relação com o usuá-
rio de saúde mental, isso, na verdade, não é produção de conhecimento,
é extensão universitária. Ele dizia que estávamos no lugar errado, pois
aquele era um evento de iniciação científica, portanto, de apresentação
de pesquisa científica e não apresentação de trabalho extensionistas. O
que ele estranhava era o fato de que nossa pesquisa, ao promover a late-
ralidade participativa, intervinha sobre a realidade estudada, incluindo
a realidade dos usuários do Caps como sujeitos de direito, como sujeitos
do conhecimento. Pesquisar, para o colega, não é intervir.
A ideia de que a produção de conhecimento não produz inter-
venção sobre a realidade, que não altera a realidade com a qual esta-
mos envolvidos, é ainda dominante na universidade. Há uma grande

72
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

resistência à mudança do lugar da universidade. Temos que entender


que essa mudança não vai se fazer senão pela ocupação da universidade,
não só com novos integrantes, novos objetos, novos temas, mas tam-
bém novos modos de conhecer, novas metodologias de conhecimento. A
aposta metodológica, o investimento que temos feito no sentido de criar
novos dispositivos de colheita de dados, de análise de dados, de condu-
ção de trabalho científico, me parece indispensável para a conclusão
desse ciclo e a inauguração de um novo.
Estar aqui nessa troca de saberes é uma oportunidade de dizer
que acolhemos os saberes tradicionais para nos fortalecer em uma luta
que é intrínseca ao saber científico e universitário. Nós precisamos fazer
disputa de sentido aí, pois essa luta só começou e está longe de ser uma
luta que possamos dizer que já é vitoriosa. O Kitembo traz os saberes
tradicionais, o que nos ajuda a pensar questões, não do conhecimento
popular, mas questões do conhecimento científico e universitário.
Entender que há uma disputa que não podemos desmerecer, não pode-
mos abrir mão dela, com o risco de sermos superados pela história. Essa
disputa deve ser travada com determinação e com estratégia, atentos aos
perigos que tal direção de mudança traz consigo. A universidade, em
especial a universidade pública, vive condições políticas atuais muito
desfavoráveis, com uma ameaça profunda de desaparecimento.
Precisamos defender a universidade pública e os desafios que só
a universidade tem condições de enfrentar no campo de luta que é o
nosso. Que essa troca de experiências possa fortalecer os dois lados.
Fortalecer também o lado do saber universitário que precisa inaugurar
um novo ciclo, para garantia e manutenção do projeto de uma univer-
sidade pública, produtora do conhecimento democrático, do conheci-
mento útil à sociedade em que vivemos.
Obrigado.

73
CAPÍTULO III

Intervenções e práticas de cuidado no diálogo com


a universidade
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

Oralidade e humildade como caminhos da ancestralidade e do


querer saber
Mãe Arlene de Katende

Meu mukuiu, motumbá, axé, a benção a todos e a todas.


Katende, patrono das ervas, ilumine nossas mentes, nossos cora-
ções, para que nós tenhamos uma ótima conversação e uma ótima troca
de informações, de conhecimentos. E a ideia é essa, a ideia aqui não é
ninguém querer mostrar mais do que o outro, e sim trocar um pouco do
nosso conhecimento e passar conhecimento.
Eu sou Arlene de Katende, sacerdotisa da nação de Angola há
44 anos, iniciada no Axé Gomeia, do qual eu me orgulho muito, e tam-
bém de ser neta de um grande homem e um ícone da resistência, que
se chama Joãozinho da Gomeia, que nunca vai ser esquecido por nós
do candomblé, como resistência, meu ancestre, então, eu saúdo a ele
primeiro, e, saudando a ele eu saúdo Mutakalambo, o senhor das matas,
o senhor da caça, o senhor da prosperidade.
Vou falar um pouquinho sobre o Katende, que é muito confun-
dido com o Ossain. Por ele ser ligado às ervas, por ser o patrono das
ervas, tem essa associação. Eu costumo até dizer que acaba sendo um
pouco de secretismo. Também ele é senhor das matas, inclusive, é o
protetor das matas. Ele não está só ligado às folhas, às ervas, está ligado
diretamente à mata, principalmente àquela parte mais profunda das
matas. É o senhor que detém o segredo das matas, o segredo das ervas.
Este é Katende, um nkisi que muitos dizem ser um nkisi dos mistérios,
ser o encantado das matas, e por isso nunca teve vida terrena. Tudo dele
está ligado às energias da natureza. Essa energia está ligada à mata,
como eu já falei, às árvores, aos movimentos das árvores, ao vento, ao
ar, à terra em si, porque se não existir a terra, não existe a árvore; está
ligada às folhas, está ligada à natureza de um modo geral; está relacio-
nada também à questão das matas, às águas, aos rios; e ao mar também,
porque também temos mata à beira-mar, ao encontro das águas. Isso é
o nkisi Katende, é a energia que emana de todos os lugares, como todos

75
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

os nossos minkisi, como todos os nossos ancestres, estão ligados direta-


mente às energias da natureza. Isso é Katende.
É a minha vida que dedico ao candomblé há 44 anos e me sinto
muito feliz por isso, muito agradecida, porque me considero uma escolhida.
Minha vida religiosa tinha um outro caminho, que era o caminho da igreja
católica. estudei muitos anos na igreja católica, até, aproximadamente, os
16 anos de idade, e de repente me deparei com uma casa de candomblé na
qual fui iniciada. Me sinto muito feliz por essa escolha, pelo meu nkisi ter
me escolhido, por Katende ter me escolhido e ter me dado essa missão, que
é a de poder transmitir às pessoas, a quem quer saber, a quem quer apren-
der o que eu aprendi nesses anos e ainda estou aprendendo.
O candomblé é um eterno aprendizado. A vida espiritual é um
eterno aprendizado. Devemos estar sempre com o nosso coração aberto
para esse aprendizado e ter a humildade de procurar saber mais, ter a
humildade de querer saber mais, ter a humildade de consultar o mais
velho ou até o mais novo. Ouvir a todos e, importante, respeitar os min-
kisi e saber ouvi-los, saber dar atenção a tudo o que eles nos falam, de
uma simples intuição a uma mensagem que nos é enviada através deles.
É necessário olhar com carinho e atenção a tudo o que está ao nosso
redor, como uma simples folha que cai. Isso é muito importante, eu
aprendi com a minha zeladora, já falecida, Mame’tu Dineuí, de Ndanda
Lunda, que me iniciou juntamente com o Mame’tu Ilecy de Ndanda Lunda
– fui iniciada por duas Ndanda Lunda. Tive esse prazer e essa honra de
ter as mãos, na minha cabeça, de duas rainhas, duas deusas. Minha mãe
sempre me explicou: “Minha filha, o caminho é a humildade”. Eu tenho
isso como meu aprendizado, carrego essa bandeira, que é a bandeira da
humildade, a bandeira do querer saber.
Nós devemos à nossa ancestralidade a preservação da nossa cul-
tural oral. Não podemos confundir o saber que está nos livros com o
saber de dentro da nossa casa. Não podemos confundir a oralidade, que
é um saber transmitido pelos nossos mais velhos, com o que está dentro
do livro ou está no Facebook, com o que está no YouTube, com o que
o colega passa pelo WhatsApp. Podemos, sim, ouvir, debater, dialogar,
podemos ter o conhecimento, mas não devemos querer ultrapassar a
sabedoria dos nossos ancestrais. A oralidade é a tradição que mantém
o candomblé vivo, é o que aprendemos dentro da nossa casa, dentro
da nzo, dentro do nosso bakisi, no dia a dia, observando e participando.

76
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

Considero a oralidade importante e fundamental para a preservação das


tradições do candomblé.
E quando não soubermos – aí que eu falo da questão de ser
humilde –, quando tenho uma dúvida, não tenho vergonha de procurar
me informar com os meus mais velhos – porque na dúvida, eu prefiro
perguntar, ou pedir ajuda. A pergunta, ela nos traz esclarecimentos,
quando a resposta nos é transmitida por um mestre do saber. Agir na
dúvida sempre vai ser um posicionamento negativo. Se você tem dúvida,
é melhor não fazer, eu sempre falo isso. Inclusive, na minha casa, com os
meus filhos, eu sempre falo isso para eles: “Na dúvida, não faça”. Porque
nós lidamos com vidas, nós lidamos com as energias da natureza, nós
lidamos com cabeças, mutue, nós não podemos fazer nada na dúvida.
Um zelador, um orientador espiritual, uma mame’to, um tate’to, um baba,
um Ialorixá ou babalorixá, ele não pode ter dúvida. Ele nunca pode ter
dúvida, ele tem que ter certeza, e se você tem a dúvida, pergunte.
Essa a mensagem que eu deixo aqui a vocês: que, na dúvida, não
façam nada, e esse nada quer dizer: nem tomem um banho de ervas. É
verdade.

77
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

Oralidade e resistência angola-indígena: a erva que cura é a que mata


Tata Luazemi Roberto Braga

Foi uma cartada de mestre, não só do professor Abrahão, como


dos encantados, dos minkisi, dos orixás e voduns. Quem abriu as por-
tas para esses encontros do povo de santo vir aqui falar das tradições
e dos nossos saberes, na universidade, foram a Universidade Federal
Fluminense (UFF) e os professores.
Os debates, os diálogos e as trocas promovidos pelo laboratório
Kitembo são achados. Lemba, Lembarenganga, Lembafurama, Lembadile.
Lemba mesmo vai nos dar sabedoria, paciência e amor para receber isso,
para receber, filtrar e encaixar a informação. Nós temos que estar com
a muxima aweto, o coração tem que estar aberto.
Os indígenas falam sabiamente, são os primeiros aqui nesse
país, são os donos dessa terra, vou aprender um pouco de folha com seu
Cecílio. E estamos aqui juntos, os povos originários e o povo do can-
domblé, dentro da academia. Eu não sei se por obra e graça do Superior,
do Divino Nzambi, sempre às sextas-feiras, dia de engarrafamento, mas
também dia de Lemba.
Mãe Arlene de Katende diz que na dúvida, nem um banho de
ervas. Mas não acredito que você deva pegar nem um ônibus, se você
tiver dúvida se ele vai passar no local ou não, imagina um banho de
ervas. Sempre tem alguém que pode orientar. Por favor, não se orientem
no pai de santo que é o pai Google. Eu costumo dizer que na web não
tem nada de verdadeiro. O sacerdote que é um sacerdote, que respeita e
tem amor pela sua religião, pela sua nação, pela oralidade, pela sua casa
de candomblé, ele não bota seus fundamentos na web. Nós conversamos
o tempo todo, foram quatro aulas, e mais várias e várias reuniões dos
encontros do Kitembo e nunca falamos de fundamento. O lugar do fun-
damento não é aqui. Aqui, na UFF, é lugar de passar informação.
Nós, do povo do candomblé, temos que agradecer a esses pro-
fessores “megatop”, que tiveram a ideia de virmos falar das nossas tra-
dições, de como a erva que cura pode matar; como a erva que limpa o
nosso corpo pode deixar carga ruim.

78
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

As ervas no candomblé foram adaptadas. Por isso que eu acho


muito legal nós estarmos aqui na mesa, com a liderança indígena, o seu
Cecílio Feitoza. Em 1546 chega o povo banto no Brasil. Alguns dizem:
“Ah, mas nós trouxemos a pedra, nós trouxemos a folha”. Não, desculpa,
mas quem foi amarrado e jogado à força no porão de um navio não teve
tempo para apanhar nada. Tudo foi adaptado aqui no Brasil e graças a
Deus não se perdeu, porque nós tivemos os nossos pais da terra, que são
os povos indígenas. Eles nos ensinaram a fazer, com as folhas que já exis-
tiam aqui, o que o nosso povo banto já fazia lá na África. Juntou a sabedo-
ria do povo de lá com a hipersabedoria dos índios que nos fez resistir até
hoje. Eu tenho absoluta certeza de que o cacique usa a arruda, o manje-
ricão, o eucalipto, usa todas as ervas, até ervas que para algumas pessoas
são ervas criminosas, como ervas abortivas. A mesma erva que se usa para
curar, pode matar. É como a cicuta, ela tanto mata como cura.
Nós estamos aprendendo todos os dias com vocês, nós estamos
aprendendo todos os dias com os irmãos. Se eu não conheço uma folha,
eu pergunto para mãe Arlene de Katende. Se ela não conhece, ela per-
gunta para mim ou pergunta para o moço indígena e nós chegamos a
isso aqui, a fazer uma bancada de ervas. Eu acredito que nós vamos saber
falar de muitas ervas, pois usamos pelo menos umas quarenta ervas dife-
rentes para uma obrigação, para uma iniciação. Se eu não souber, a mãe
Arlene vai saber; se eu e a mãe Arlene não soubermos, o mestre indí-
gena, nosso irmão, vai saber. Claro que cada um com a sua liturgia.

79
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

“Eu sou um aprendiz”: aprender começa pelo respeito aos


antepassados e pelo conhecimento das lutas
Cecílio Santana Feitoza

Quero dizer que eu não sou cacique. Sou da etnia Xukuru do


Ororubá, do município de Pesqueira, no Pernambuco. Sou tataraneto de
um voluntário da Guerra do Paraguai e estou emocionado, porque meus
ascendentes, meus parentes, de sete aldeias tradicionais, foram ao Rio
de Janeiro a pé. Faz muitos anos que eu venho pesquisando pelos meus
avôs, pelo que eles vêm contando. O aprendizado é passado de bisavô
para avô; de avô para pai, para mãe. E eu sou um aprendiz.
Digo: eu não sou o cacique, mas estou aqui representando o caci-
que Marcos Xukuru, filho do cacique Xikão, que foi assassinado lá no
povo Xukuru, na cidade de Pesqueira, no dia 20 de maio. Isso já fez 19
anos. Foi morto por um fazendeiro na cidade de Pesqueira, por conta
da luta pela terra.
Como digo, os parentes vieram a pé para o Rio de Janeiro. Há uma
documentação histórica, que foi dada pela princesa Isabel, por um pedaço
de chão, porque eles foram resistentes na luta, resistiram na Guerra do
Paraguai e conseguiram, com as experiências deles, da natureza, eles con-
seguiram acabar com a guerra e a princesa Isabel deu a eles as terrar
como troféu a esse povo de resistência. Ela falou para eles que iria dar
dinheiro, ouro e eles falaram que não queriam dinheiro, nem ouro, que-
riam um pedaço de chão para ficar para as gerações futuras. Isso foi feito.
Depois aconteceu a invasão dentro do nosso território e apare-
ceu um cidadão com o nome de Cícero Cavalcante. Foi até nosso povo,
iludiu o cacique, pegou o documento e trouxe para o Rio de Janeiro.
As informações que eu tenho vieram dos meus avós e dos mais velhos
que residem lá, – como o pajé Zequinha – e das famílias deles que
vieram também da Guerra do Paraguai. O rapaz que chamava Cícero
Cavalcante, uma pessoa apresentada pela Fundação Nacional do Índio
(Funai), trouxe esse documento a mando de fazendeiro, por dinheiro.
Trouxe o documento aqui para o Rio de Janeiro. Eu acredito que esse
documento está no Museu Histórico Nacional, porque trouxeram isso

80
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

na maldade, para nós não termos esse documento em mãos para saber
que aquela terra nos pertencia, ao povo de resistência.
Mas para o nosso povo foi bom, porque ele trouxe esse docu-
mento, guardou, está guardado aí, mas o cacique, na época, que era o
pai do Marcos, o Xikão Xukuru, conseguiu cópia desse documento. Eu
fiquei feliz, porque foi encontrado o nome do meu tataravô nesse docu-
mento histórico.
Eu vinha dentro do avião pensando: meus parentes vieram de
muito longe, a pé, da cidade de Pesqueira. Comiam o que encontravam.
E eu vim e em um piscar de olhos cheguei aqui no Rio de Janeiro. É a
minha primeira vez.
É uma troca de experiência nós estarmos aqui e quero dizer para
os parentes que estão aqui na mesa que eu sou um aluno, eu estou apren-
dendo com os mais velhos da comunidade, estou pegando conhecimento.
Vocês me desculpem, porque nós temos um domínio que foi feito
aqui de manhã pelos encantos e pela natureza, o que nos permite um
discurso como esse e essa troca de experiências.
Eu vim com muitas alturas, a natureza me trazendo num objeto
inventado pelo homem branco, e os meus parentes vieram aqui a pé.
Como digo, eu sou um aluno, sou aprendiz, estou aprendendo,
estamos trocando experiências, como o nosso mestre falou. E eu tenho
os meus sábios lá dentro da nossa reserva, os pajés, os curandeiros.
Hoje, aqui, como o mestre falou, é uma sexta-feira, mas é um dia muito
importante para nós, que temos a obrigação com os encantados, com os
invisíveis, pois só eles é que podem autorizar este tipo de experiência.
Eu acredito que todos aqueles que estão aqui presentes, estão porque
foram enviados pelo encantando. Isso aqui não é um lugar para todo
mundo, como nós queríamos que fosse, mas só vêm aqui os fiéis, aqueles
que a natureza traz. E nós só chegamos na hora certa.
Eu vinha no caminho, e o nosso curandeiro, pai Roberto Braga,
falou do engarrafamento. E nós vínhamos no caminho também e houve
uma concentração, uma energia negativa, porque é o dia especial. Mas
nós só chegamos na hora que Tupã permite, porque nós viemos acom-
panhados. Estamos aqui em um debate como esse para ver se as coisas
acontecem de forma diferente. Aqui não importa nem cor e nem raça.
Deus, quando fez o mundo, não dividiu ninguém. Deus fez o mundo.
Não fez a terra para o comércio, fez para nós sobrevivermos. Hoje o que

81
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

vemos é muita ganância do explorador, daquele homem que não tem


coração. Quando nós falamos em branco, há os brancos exploradores
e há os brancos conservadores. Eu acredito que todos que estão aqui
presentes que têm a pele branca, têm o coração de negro e de índio. A
corrente que corre aqui dentro desse pátio é positiva.
Nós sabemos que tem a mistura por conta da invasão do Brasil.
Nós, indígenas, somos verdadeiros habitantes do Brasil. Nos negros e nos
brancos de classe média que se fazem presentes aqui, que passam pelo
mesmo sofrimento e passam pela mesma discriminação, mas no sangue
nosso, essa energia corre igual. Dentro desse espaço aqui não tem divisão.
Eu estou sentindo que não tem mesmo, no dia de ontem e no dia de hoje.
Eu tenho oito filhos, tenho oito netos, vim aqui para trocar expe-
riências e levar história também para eles, para registrar. Porque eles vão
ser o futuro do amanhã, passando de geração para geração a história do
nosso povo, que vem desde a invasão do Brasil, ela não é de agora. Eu nasci
ontem, sou aluno, mas aqui não tem nenhum formado, nós somos aprendi-
zes, nós estamos aprendendo um com o outro, como o mestre falou que tem
erva que eu conheço e tem erva que eu não conheço. Lá na aldeia o nome
pode ser um – o alecrim de caboclo, ou arruda –, enquanto aqui é outro.
Tem um pajé nosso, pajé Zequinha, que faz a medicina tradicio-
nal para os indígenas. Quando é necessário, quando tem a doença vené-
rea, a doença trazida pelo homem branco, o pajé cura. Tem a doença
que vem pelo vento, a doença que vem pelas águas, cada caso tem sua
cura. Eu queria ter a experiência que o pajé Zequinha tem, mas estou
aprendendo, e se a natureza me permitir, eu vou aprender algumas coi-
sas, porque eu sou aluno.
Eu venho de uma reserva, o meu povo Xukuru é formado por 2.500
famílias, dentro de uma área demarcada, dividida em três regiões: Serra,
Agreste e Ribeira. Dentro dessas três regiões, são formadas 24 aldeias, e
eu sou a liderança de uma delas. Trabalho com trezentas famílias den-
tro de uma aldeia, que é a aldeia Cana Brava. Trabalham comigo três
profissionais de saúde, três agentes de saúde e dois agentes indígenas
de saneamento (Aisan) e eu sozinho de liderança. Só tem um cacique, o
Marcos Xukuru e também o pajé Zequinha. Isso já mostra o modelo de
organização dentro do nosso povo. Mas quando vamos nos reunir e defi-
nir nossas questões, nos juntamos: cacique, pajé, as lideranças, conselho
de saúde e conselho de educação, e determinamos o que devemos fazer

82
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

ou não. Primeiro, quem decide como acontece a experiência ou como


devemos fazer é o pajé; a escolha do cacique é o pajé; a escolha de uma
liderança local é o pajé. Ele faz os trabalhos dele, a natureza indica, ele
vai na comunidade, faz a reunião, apresenta o candidato e a comunidade
apoia. Mas é a natureza, primeiro, quem tem que apoiar. Nós trabalha-
mos dessa forma.
Eu comecei a respeitar a natureza, porque eu vi muitos exemplos
dentro do povo. Deveríamos fazer certas coisas na hora, não devíamos
deixar para outro dia. Eu vou citar alguns exemplos que eu vi dentro do
nosso povo para vocês. Todos que têm a obrigação com os orixás, como
o mestre falou ali; e também como a senhora disse, nós não podemos
ter dúvidas, nós temos que estar certos, isso não é coisa de fazer pela
metade, tem que ir certo. Tem que ter energia positiva, porque coisa de
encanto não se brinca. O encanto é encanto. Todos nós temos nossos
encantos. Todos que estão aqui presentes têm avô, pai, mãe que já fale-
ceram e são encantados. É bem “facinho” qualquer um de vocês ter esse
dom. Primeiro é necessário ter o respeito, pois que muitos dizem que
quem já morreu, quem já faleceu, acabou-se. Negativo. Não. A matéria
está repousando na Mãe Terra, mas o espírito está no meio de nós aqui,
e todos aqueles que nós chamamos, os encantos. Quando se fala em
encantos são todos aqueles: pessoas, curandeiros verdadeiros, que já se
foram, mas estão aqui, dando força para nós, alumiando a nossa mente,
trazendo energia positiva para darmos continuidade ao nosso trabalho,
à nossa função no dia a dia, na roça, na dormida, onde tem lazer e onde
tem diversão. Pode haver uma multidão de quinhentas pessoas, mas
somente o que tiver fé em Tupã terá o encantando ao seu lado, porque
cada qual tem a sua proteção. Mas é diferente, porque naquela multidão
tem dez ou doze pessoas com esse dom, e o resto dos quinhentos só está
pensando em maldade.
Veja aqui em uma plenária dessa, quantas pessoas tem aqui, por
quê? Porque a natureza indicou. Não foi fácil para os que estão aqui.
Mas tem outras diversões por aí, hoje há muitos lugares que oferecem
diversão, como um bar, um pagode etc.
Nós temos os nossos terreiros de rituais, para dar força, para levar
as crianças, para eles começarem a pegar a energia da natureza, as cren-
ças. É lá no terreiro de ritual sagrado onde praticamos o nosso Toré,
quando chamamos os encantados, para os nossos filhos, os nossos netos

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Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

que estão ali. Ali já é uma aula diferenciada, dentro do povo. A escola é
dentro da mata, a escola é na família, é na casa. Como se diz, a educação
não é da escola. A escola passa informação, a escola é na comunidade,
é no povo, é onde se aprende, e eu aprendi isso com os meus parentes,
meus avôs, pai, mãe, bisavô, tataravô, e eles foram passando de um para
ou outro, foram passando de pai para filho, de filho para avô, bisavô.
Hoje eu chego lá no terreiro de ritual, estão os meus filhos, os
meus netos, passamos o dia todo dentro da mata, dançando o Toré. Há
nossa igrejinha lá, que Deus Tupã fez, de palha. Aquilo é a maior mara-
vilha do mundo, e é onde estamos fazendo a preparação para eles darem
seguimento à aprendizagem que nós aprendemos com nossos avôs. Eu
já sou avô. Aí meu filho vai passando para o filho dele. Daqui a pouco
meu filho vai ser avô e isso não tem fim, é infinito. Isso é a riqueza maior
do mundo que nós temos dentro do nosso povo tradicional e dentro de
qualquer povo que pratica a sua cultura, a sua religião.
Aqui nós estamos somando forças para vermos se mudamos
alguma coisa na nação. Estamos trazendo, aos poucos, conhecimen-
tos e trocando experiências. Porque o mundo hoje tem muitas pessoas
gananciosas, que só pensam no lado deles. Estão destruindo a natureza
e acabando com as riquezas, com as matas, com os pastos, com os rios,
com tudo. Hoje, nós trabalhamos através do nosso povo pela preservação
da natureza, recuperando as florestas, as matas. Na nossa área, que foi
demarcada, a natureza foi muito explorada, muito descapinada, só era
pasto e gado. Nossa terra foi invadida. Hoje nós já vemos os pássaros can-
tando, muitos pássaros, as nascentes recuperando as águas boas. Ao redor
das nascentes, nós deixamos a floresta tomar conta. Fazemos aquele tra-
balho de orientação para os jovens, para as crianças, para que não des-
matem, porque quem está acabando com o mundo é o próprio homem da
terra, não é Deus. É o homem da terra que está acabando com o mundo.
Saibam eles que se acabarem com a natureza, eles também se acabam.
O estado do Amazonas é o pulmão do mundo e está sendo rareado
por parte do homem branco, que iludem os nossos parentes que estão
lá dentro daquela reserva. Saibam eles que, se a floresta amazônica se
acabar, eles também se acabam.
Para o nosso povo, o pajé Zequinha é o médico, o doutor formado
pela natureza, que cura os indígenas. Se um índio precisar ir para o
médico com um problema, vai, mas primeiro tem que passar pela mão

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Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

dele. O pajé Zequinha é quem vai dizer se ele pode ir ao médico ou não.
Eu já vi umas passagens lá pelo pajé. Vou contar uma história do pajé
Zequinha, de ter índio indo ao hospital e os parentes dizer: “O nosso
parente, se ele tirar o dia, não tira a noite”, e o Pajé foi lá visitar o parente
e disse: “Não, a cura dele não é essa, o médico pode mandar ele ir embora
que eu vou cuidar dele”. E hoje o parente está lá e em toda discussão que
é feita, ele diz: “Eu dou graças a Deus e ao pajé Zequinha. Se fosse depen-
der do médico de Pesqueira, eu não estaria aqui, já tinha me acabado”.
Então, isso para nós é muito importante, a cura tradicional, a
medicina tradicional, que é trazida da reserva, do mato, e serve para o
laboratório fazer a medicina da cidade. Só que hoje o povo quer facili-
dade. A mãe tem um filho em casa, ele está com uma dor e aí não quer
fazer um chá da hortelã miúdo para passar a dor, quer ir logo pegar
o remédio de farmácia que já está mais fácil. Uma dor de ouvido, ela
não quer – porque nem tem a planta também –, pegar uma folha de
arruda, espremer e botar a água da arruda no ouvido da criança para
parar aquela dor de ouvido, não, tem que ir logo ao médico.
Eu tinha um problema com 17 anos de idade. Apareceram muitos
caroços no meu rosto e espinha. Não sei como foi aquilo. Era um pro-
blema. Eu era muito, não sei se eu posso dizer, muito nojento. Tinha ver-
gonha de sair, ficava recanteado, no canto, com 17 anos de idade. Tinha
a índia lá, a minha namorada, que ia lá me visitar e tudo, que sempre
tirava o mal pensamento da minha cabeça. Chegou um dia até de eu fazer
uma loucura, me enforcar por conta daquilo. Eu fui para os médicos e o
médico não deu jeito. Passava o medicamento, eu usava e não melho-
rava. Cheguei em casa desesperado, fui em Pesqueira, em Arcoverde,
uma cidade vizinha. Tomei esses medicamentos, mas ficava pior o pro-
blema. E quando eu estava pensando besteira, de fazer com as minhas
próprias mãos, eu dormi e o encantado veio e disse: “Olha, o remédio
está ali”. Quando eu acordei, eu olhava para o pé de algodão que tinha
ao lado da minha casa, mas todo canto que eu ia era um pé de algodão, e
eu disse: “O remédio é aquele”. E isso não saía da minha cabeça. Eu sei
que fui lá, peguei as sementes do algodão, “machuquei” no pilãozinho de
pisar tempero em casa, que a minha mãe ainda tem até hoje, amassei o
algodão. Tinha um parente, um vizinho na aldeia, que fazia a bebida tra-
dicional, uma cachaça que chamava… esqueci agora. Aí eu peguei a massa
do algodão e coloquei junto com essa bebida. Fiquei bom. Tomava um

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Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

copozinho, um pouquinho da bebida forte, a cachaça com o algodão, e


tomava um banho. Tomava a bebida antes do almoço e tomava um banho;
antes da janta fazia a mesma coisa. Eu tomei num dia e no outro eu já
senti um alívio na pele. Tinha 17 anos de idade. Eu fiquei bom.
Estou com 50 anos agora e não usei mais esses medicamentos de
médico e não saiu mais esse problema em mim. Sei que foi o encantado
que veio ensinar. O encantado que me ensinou, veio em uma elevação
e me ensinou: “Faça esse remédio. Olha o remédio ali”. Eu fui fazer e
deu certo. Porque não era tempo de eu fazer aquela loucura – eu não
estaria aqui – mas não era tempo, a natureza disse: “Não, não é tempo.
Você ainda que vai ser alguém para o futuro”. E diante do meu povo, eu
sou uma pessoa muito querida, trabalho com a nação. Como falei, por
aldeia, que tem trezentas famílias, há cinco profissionais de saúde que
trabalham comigo. Para todos esses profissionais, eu falo que a gente
trabalha com a medicina tradicional, pois é uma coisa que a gente não
pode deixar acabar, pois é o que sustenta a nossa religião, os nossos cos-
tumes tradicionais. Tem que ser com as coisas que a gente estava per-
dendo e que a gente está conseguindo de volta. Essas experiências com
a natureza, esses saberes que só quem pode dar para nós é a natureza.
Aconteceu outro problema com o mestre de religião, por falar na
religião. Como eu falei, a gente tem obrigação com os encantos, com os
orixás e com todos aqueles que têm o seu domínio na natureza. Ao mes-
tre da tradição se dá o nome de Bacurau, lá na nossa aldeia. É o nome
de um pássaro que tem na mata. Eu faço a parte do Bacurau. Eu sou um
Bacurau de linha de frente do ritual, e tinha outro mais velho do que eu.
Eram quatro Bacuraus, e eu ficava por derradeiro. Quando eles estavam
cansados, aí diziam: “Pronto, agora é você que vai fazer o ritual”. Aí
a turma me acompanhava, fazendo a dança. O mestre, chegou um dia
que ele deixou de cumprir com a obrigação dele. Toda vez que ele ia, ia
diferenciado, como eu estou aqui, diferenciado. Um dia ele chegou lá no
local sagrado com trajo diferente. Levou uns conselhos do pajé, do pes-
soal da ciência, e disse: “Não, eu vim hoje, mas não estava com vontade
de fazer a oração. Vou dar uma voltinha por aí e vou brincar um forró”.
Tinha a namorada índia do lado. E nós temos lá uma pedra que chama
Pedra do Conselho, e ela dá o conselho na hora. Uma pedra sagrada, a
Pedra do Conselho, onde a gente faz nossas obrigações, as festas tradi-
cionais da nossa padroeira, que chama Nossa Senhora das Montanhas,

86
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

que é a Dona das Montanhas. É de todo mundo, não é só de nós, Xukuru.


Nossa Senhora das Montanhas é de todo o povo. E tem a festa do dia
23, de São João. A gente fala, na nossa linguagem, São João. O homem
branco muda, bota Festa Junina. A gente vai por nome de santo.
Quando é meia-noite, a gente vai para essa Pedra do Conselho,
fazer o pedido aos encantados. O Bacurau, nesse dia, estava disperso,
procurando outras diversões. Ele tinha obrigação com o encantado e
não foi. O que aconteceu? Quando foi meia-noite, que o pajé chamou os
encantados, o pessoal que faz parte da natureza disse: “Cadê o Bacurau
que não está aqui?”. Pajé Zequinha falou: “Ele está por aí”. O encantado
falou para outra índia que recebeu o cacique encantado lá da minha
aldeia, que se chamava Jardelino. O cacique se incorporou na índia para
trazer a notícia para nós, e disse: “Ele não está fazendo a minha obriga-
ção, está por aí tirando as ondinhas dele, não está me respeitando, agora
daqui para amanhã bem cedo eu levo ele. Não tem quem empate”. E o
pajé fez os seus pedidos aos orixás e ele disse: “Ele vai”. À meia-noite, na
Pedra do Conselho, nós recebemos esse recado dos encantados. Quando
foi por parte de 3 horas da manhã, o índio, o Bacurau que andava para
lá e para cá em um carro fretado de outro índio – era daqueles carros
antigos, não sei se alguém aqui conhece, chamava Rural –… o encantado
pegou a Rural e deu três emborcadas. Matou o Bacurau, na hora. A índia
ficou toda quebrada, veio para o Recife, passou uma semana e morreu.
No outro dia a gente foi para o velório do Bacurau. E por que isso acon-
teceu? Porque ele não cumpriu com a obrigação com os encantados.
Então, minha gente, eu sou um aluno, mas eu tenho orientação
dos encantados. Aqui na mesa eu estou aprendendo também com vocês.
E estou passando o que eu sei de dentro do meu povo, o que já vi, o que
já presenciei na natureza. Não foi conosco, no material, foi espiritual,
dentro do povo. São muitas passagens, muitas passagens. Aí foi quando
eu, jovem, comecei a acreditar e respeitar; que passei a acompanhar os
mais velhos, onde estava o pessoal mais velho eu estava junto, apren-
dendo, ouvindo. Trabalhei, acompanhei três caciques dentro do povo,
que eram representados pela Funai, pelo Serviço de Proteção ao Índio
(SPI), e também o cacique Antero. Esse cacique que eu falei, o Jardelino,
foi o cacique que incorporou na índia e matou o Bacurau, porque o
Bacurau não respeitou os orixás. Ele disse para nós tudinho: “Ele não
está deixando de fazer a obrigação de vocês não, ele não está fazendo é

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Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

a minha obrigação. Então, eu vou levá-lo, porque ele não está me res-
peitando”. Com trinta dias a índia que recebeu o Bacurau, que recebeu
o cacique e passou o Bacurau para outra passagem, ela também foi pas-
sada. Na semana passada foi encontra morta dentro de casa, falecida há
três dias. Ela tinha dito para a filha dela que eles iam achar ela morta
com dois ou três dias. E foi mesmo. Ela também se passou, ninguém
sabe como que ela morreu. Ela tinha obrigação com os encantados e
também não estava mantendo a obrigação.
Não é brincadeira não, minha gente, não é brincadeira não. E eu,
dentro do povo, jovem, com 20 anos, nas ocupações de terra, diante de
muitos fazendeiros e pistoleiros, eu me peguei com o encantado.
Tinha passagem lá dentro do povo, e eu sempre conto para os
meninos, parentes e amigos meu. Os pistoleiros chegavam, botavam
emboscada para mim nas passagens e nos caminhos. Era uma mistura, os
parentes sendo manipulados, trabalhando de empregado nas fazendas, e o
fazendeiro usava eles. Os índios que viviam fora da aldeia, na cidade, tra-
balhavam com os fazendeiros e faziam o que os fazendeiros mandavam.
Então, o pistoleiro chegou e disse para um parente que tinha botado uma
arma em cima de mim cinco vezes, cinco emboscadas e eu passei, como
se diz a história, na barba dele, assim, e na frente deles apareciam duas
pessoas e eles terminavam desistindo, sem força de me atingir. E um cara
perguntava: “O que ele tem? O que é que aquele rapaz tem?”, e o outro
respondia: “Não sei”. Felizmente, o que eu tenho é a proteção divina.
Na segunda-feira eu tenho, por obrigação, que acender uma luz
para os encantados, e peço para eles me acompanharem na terra, no ar,
por onde eu andar, e me defender dos maus. Que os maus não tenham
pernas nem força para me acompanhar, não tenham olhos para me ver,
não tenham braços para me pegar, não tenham armas para me atirar, não
tenham nada para me atingir. É bem fácil. Por quê? Porque eu tenho obri-
gação com os encantados, por isso que eu estou aqui hoje, vim pelo ar
em um troço, avião, que eu nunca andei… Já andei, já andei para Brasília,
Recife, de Recife para o Pará e essa vinda aqui agora para o Rio de Janeiro.
Então, minha gente, a história é muito comprida, mas é isso, isso
é um pouco de experiência que eu tenho da natureza.

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Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

A relação dialógica, a pesquisa e a construção do encontro


Katia Aguiar

Habitar o tempo

Para não matar seu tempo, imaginou:


vivê-lo enquanto ele ocorre, ao vivo;
no instante finíssimo em que ocorre,
em ponta de agulha e porém acessível;
viver seu tempo: para o que ir viver
num deserto literal ou de alpendres;
em ermos, que não distraiam de viver
a agulha de um só instante, plenamente.
Plenamente: vivendo-o de dentro dele;
habitá-lo, na agulha de cada instante,
em cada agulha instante: e habitar nele
tudo o que habitar cede ao habitante.

E de volta de ir habitar seu tempo:


ele corre vazio, o tal tempo ao vivo;
e como além de vazio, transparente,
o instante a habitar passa invisível.

Portanto: para não matá-lo, matá-lo;


matar o tempo, enchendo-o de coisas;
em vez do deserto, ir viver nas ruas
onde o enchem e o matam as pessoas;
pois como o tempo ocorre transparente
e só ganha corpo e cor com seu miolo
(o que não passou do que lhe passou),
para habitá-lo: só no passado, morto.

João Cabral de Mello Neto (1965, p. 105)

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Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

Bom dia a todos e todas. Bom dia aos meus companheiros e


companheira de mesa. Estou muito emocionada de estar aqui, de ter
recebido o convite, que é um presente, uma oportunidade ofertada pelo
coletivo Kitembo.
Houve uma mudança na minha participação, que seria a prin-
cípio na mesa de ontem, na discussão sobre pesquisa e favelas, mas,
por impossibilidades de colegas, migrei para compor esta mesa que se
propõe a tematizar o cuidado, colocando atenção nas relações entre
saberes tradicionais e universidade. Tendo escutado os mestres que me
antecederam, me sentindo cuidada e acolhida pelas falas, saberes e a
ambiência, vou fazer três destaques e comentá-los. Como os destaques
estão próximos de aprendizados colhidos nos caminhos investigativos
percorridos com grupos, coletivos e organizações, nas periferias e nos
processos de formação com trabalhadores sociais, eles podem também
dialogar, de algum modo, com a pesquisa como tema.
Um primeiro destaque diz respeito ao tempo. Cecílio Feitoza, que
traz a ancestralidade indígena para nossa mesa, fala para nós de futuro,
num momento em que, para muitos de nós, está sendo difícil ver o que
fazer no dia de amanhã – dada a conjuntura de perdas de direitos, agra-
vamento da desproteção e da precariedade, extermínios. Ouvir de um
povo que foi massacrado, que foi dizimado, que luta contra o extermínio
cotidianamente, essa palavra, “futuro” – “futuro das matas”, “recomposi-
ção da natureza”, “a religação com a natureza”, “a religação com a espi-
ritualidade” e “o futuro nosso” –, me convoca a pensar em como temos
habitado o tempo. Como a colonialidade, em nós, maneja o tempo sem
dar chance para questionarmos se outro modo de nos colocarmos nele é
possível, o que sempre nos resta é a queixa, o lamento pelo que nos falta:
justo o tempo (SCHEURMANN, 1994).
No campo onde nos movemos, a temporalidade, nas atividades de
pesquisa-intervenção que tenho acompanhado – na saúde, na educação,
na assistência –, aparece marcada pela aceleração, produtividade e pelo
utilitarismo – imposições que temos atribuído ao regime neoliberal e a
seus controles biopolíticos.
O que nos é exigido em projetos e programas, com frequência,
está referido a um tempo segmentado e sua agilização se faz no cum-
primento de metas, na fabricação de produtos como finalidade. A pers-
pectiva, nesse modo de habitar o tempo (Cronos), implica repartição e

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Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

sequenciamento – passado, presente, futuro – na intenção de seu con-


trole. Nas condições atuais de produção, com relações sociais baseadas
no individualismo, a capacidade de antecipação competitiva é intensi-
ficada e valorizada: antecipar cenários, avaliar o movimento do “outro”,
criar estratégias vantajosas e, no limite, equivaler “outro” a “competi-
dor/inimigo”. Poderíamos falar de uma relação com o futuro na qual há
preponderância do risco, da ameaça; o que, diante da incerteza e da ine-
vitabilidade da mudança de um tempo que vem, “nos faz experimentar
a sensação de um mundo fechado” (VAZ, 1997, p. 114).
Estamos imersos nesse funcionamento que marca a formação de
corpos e almas, nas nossas passagens pelas instituições (família, escola,
partidos, organizações de trabalho), muitas vezes, até mesmo naquelas
que em seus discursos e estatutos defendem a solidariedade e a coopera-
ção como valores. Podemos considerar que essas práticas carregam um
conjunto de referências culturais que é importante para nos localizar-
mos, entendermos os códigos. Mas essa perspectiva que se hegemoniza
na ordem estabelecida costuma estar tão entranhada em nós que acaba
por definir UM modo de olhar, de sentir, de pensar como natural; dese-
nha um tipo dominante de subjetividade.
Na antecipação competitiva-defensiva, esta subjetividade estra-
nha e resiste a outras perspectivas, captura dissidências e descontinui-
dades, para ajustá-las à ordenação do tempo espacializado, sequencial
– territórios fixados por saberes, fazeres e seus especialistas. Podemos
observar esse modo de percepção/relação, por exemplo, quando procura-
mos captar o que nos mobiliza em momentos que antecedem um encon-
tro: imagino, num movimento de antecipação, o que vou encontrar ou a
quem vou encontrar. O que antecipo é um tipo, um modelo, uma gene-
ralização, um pré-conceito a respeito daquele “outro” com quem iria me
encontrar. Iria, porque nesse movimento elimino o encontro ou o que
lhe é próprio, sua potência: a surpresa na diferença.
Como colocar o cuidado nessas condições? Qual a qualidade do
cuidar num tempo acelerado, com metas e resultados definidos a priori?
Como estabelecer uma relação de cuidado quando rótulos, diagnósticos
e classificações nomeiam as pessoas e se interpõem entre nossos corpos?
Penso, então, num segundo destaque: fazer diferença. Diferir.
Ele me vem de outra afirmação feita aqui hoje, a de que “estamos aqui
para ver se a gente faz a coisa diferente”. Numa instituição educativa

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Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

construída e tornada instrumento da cultura ocidental branca coloni-


zadora, concebendo o conhecimento científico como o único válido e
superior a outros saberes, como seria poder fazer “a coisa diferente”?
Desde um espaço que foi construído e que investe em silenciamentos
e desqualificações, que processos de formação favoreceriam o apren-
dizado do cuidado? Como praticar o cuidado em meio a relações de
enquadramento (classe, gênero, etnia) e seus efeitos?
Olhamos para os espaços onde desenvolvemos a formação de pro-
fissionais e vemos predominar aquele tempo sequencial organizando
as relações. Salas de aula separam os discentes em períodos, currículos
criam cisões entre teorias e práticas, fluxogramas canalizam saberes e
expectativas, colocando pré-requisitos para a expansão de conhecimen-
tos. As sondagens são provações que costumam premiar quem mais se
aproxima das sentenças dos livros ou do discurso professoral. Mesmo
considerando alguma nuance aqui, outra liberação ali, as forças de con-
servação investem na reprodução, na perpetuação da “pedagogia da
crueldade” (SEGATO, 2018) de um mundo dominado pelo extrativismo
predatório, pelo genocídio de povos e culturas, pelo ajustamento que
transforma tudo e todos em coisa, em mercadoria.
Para fazer diferente, precisamos, antes de tudo, reconhecer as for-
ças resistentes em nós, entre nós. O exercício de reversão (de valores),
de experimentação (de vitalidades) pode cortar os espaços endurecidos
com processos que oxigenam as relações estabelecidas. E aí duas obser-
vações: (a) precisamos criar dispositivos que disparem e sustentem tais
processos, mesmo que por curto tempo; e (b) tal instalação se dá como
um contratempo, rompendo a temporalidade que nos domina e criando
zonas autônomas. Impossível pensar esses caminhos de fazer diferente
em processos de formação sem nos remeter às práticas de educação
popular. Lembro as inúmeras e valiosas contribuições de pessoas, coleti-
vos, movimentos que, por décadas, fizeram e fazem proliferar a ideia de
que “ensinar não é transmitir conhecimento, mas criar condições para a
sua própria produção ou a sua construção” (FREIRE, 2003, p. 52). Nesses
percursos, as “histórias de vida” são, ao mesmo tempo, matéria-prima
para a construção de conhecimento e pontos de apoio que podem abalar
a versão da história que insiste em nos dominar. Com elas, são desper-
tados afetos e marcas de nossas experiências, dos encontros de nos-
sos corpos com as forças do mundo, sempre variáveis e singulares. Um

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Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

despertar de outro tempo (Aión) e intensidades que interpelam o mundo


e suas normativas, abrindo um tempo oportuno (Kairós) a processos
de subjetivação que “só valem na medida em que, quando acontecem,
escapam tanto aos saberes constituídos como aos poderes dominantes”
(DELEUZE, 1992, p. 217).
Por fim, um terceiro e último destaque: a presença. A mãe Arlene
fala da importância da presença e desse saber que vem com ela, desse
saber que não está aqui na universidade. Fala de uma presença que não é
uma presença qualquer. Pensando com a educação popular, seria menos
fazer propostas de educação endereçadas aos setores populares, e mais
criar acessos e condições de permanência para “o popular” entre nós.
A gente tem vivido muitas presenças por aí pelo mundo, a gente
está o tempo inteiro, como Cecílio disse, com essa presença (popu-
lar) em vários espaços: nos espaços da bagunça, da festa, também nos
espaços de estudo. É uma presença que demanda um encontro, a gente
pode ter a presença e não ter encontro e, me parece, este é um grande
desafio no ambiente educacional, no ambiente acadêmico, quando se
quer afirmar o cuidado. Como falamos há pouco: se “já sabemos” o que
ou a quem vamos encontrar (pré-visão), eliminamos o que é próprio do
encontro, a surpresa no inesperado e com ela a oportunidade de rom-
per o mundo cronometrado, regrado. Portanto, importa a qualidade da
presença e esta implica uma relação de cuidado sustentada na “escuta
ativa” (FREIRE, 2003) e na “suspensão do julgamento” (AGUIAR,
2012). E eu ainda acrescentaria: uma relação de cuidado sustentada no
que devém do encontro que pode criar desvios, fissuras-acontecimen-
tos, desmanchar limitações impostas pelo medo (do desconhecido) e
pelo apego (ao já conhecido).
Ratificada a importância da presença, ela precisa ser qualificada
pelo encontro, mas a gente precisa cuidar do encontro – observar, repa-
rar, afetar. Insisto porque no imenso desafio da construção de práticas
libertárias, num contexto tão adverso, nada é garantido. O encontro,
numa ética do cuidado, quer dar passagem ao reconhecimento da alte-
ridade e essa atitude implica considerar as condições de germinação de
uma vida, seu modo de pertencimento coletivo – aqui nessa mesa isso
se apresenta com os saberes tradicionais. Quando trago a colonialidade,
é para dizer de um enfrentamento necessário com a duração da coloni-
zação, suas atualizações, no aqui e agora. Ela comparece nas práticas

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Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

cotidianas, nas relações, seja em sala de aula, nas instituições de cui-


dado, ou nas amizades.
Nas práticas de educação popular e de pesquisa, a presença, a
participação, o ter voz é um passo importante no reconhecimento e
na valorização das pessoas em sua alteridade. No entanto, penso que
esta disposição de estar com o “outro”, de “dar voz ao outro”, não basta,
podendo mesmo, esta ação, ser um indicativo de certo domínio. Não
basta se o que nos move é a criação de cenários possíveis, é a retomada
da “fluência do tempo vital” enquadrado, encarcerado, pelos perceptos
do capital (SEGATO, 2018, p. 14). Criar condições de experiência, ger-
minar acontecimentos, implica soltar as contenções, abdicar de domí-
nios, deslocar lugares, desmanchar territórios, desarmar as amarras do
reconhecimento, engendrando novos espaços-tempos de cuidado e de
afirmação de contrapedagogias da crueldade.
Muito obrigada.

Referências
AGUIAR, Katia. Práticas de formação e a produção de políticas de exis-
tência. Psicologia & Sociedade, Recife, v. 24, p. 60-66, 2012.
DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática
educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2003.
MELO NETO, João Cabral de Meli. A educação pela pedra. Rio de
Janeiro: [s. n.], 1965.
SCHEURMANN, Erich. O papalagui. São Paulo: Marco Zero, 1994.
SEGATO, Rita Laura. Contra-pedagogías de la crueldad. Buenos Aires:
Prometeo Libros, 2018.
VAZ, P. Globalização e experiência do tempo. In: MENEZES,
Philadelphos. Signos plurais: mídia, arte e cotidiano na globaliza-
ção. São Paulo: Experimento, 1997. p. 99-115.

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CAPÍTULO IV

Juventudes indígenas: universidade e pesquisa junto


aos povos indígenas
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

Juventude Pé no Chão (Poyá Limolaygo): comunidade, tradição e


luta: dar outro rumo à academia
Guila Xukuru – Guilherme Araújo

Falar da participação dos jovens indígenas na universidade requer


voltar um pouco lá atrás, que é quando a gente se insere mais forte no
movimento indígena e no processo de luta do povo Xukuru.
Já há bastante tempo as lideranças Xukuru discutem nas assem-
bleias a importância da participação da juventude. É interessante eu
citar aqui, porque Xikão Xukuru é uma referência em conseguir sempre
fazer o jovem participar, fazer o jovem compreender que ele também
é muito importante. Então ele, Xikão, sempre anda com vários jovens,
fazendo com que eles participem e compreendam a luta do povo Xukuru.
E aí as lideranças do povo Xukuru, inteligentemente, perceberam
quais mecanismos iriam utilizar para essa participação. Elas escolheram o
teatro, na época, e o audiovisual – isso lá em 2008. Aí eu participei de uma
oficina de audiovisual que durou uns cinco meses, no povo Xukuru, e me
apaixonei pelo audiovisual. A discussão que trazia aquele audiovisual era
o povo Xukuru, a partir daquele momento, que podia contar a sua histó-
ria a partir do audiovisual. Acontecia muito em vários projetos que eram
aprovados a seguinte situação – isso foi colocado aqui ontem em uma
mesa sobre expropriação –, iam lá, entrevistavam os Xukuru, entrevista-
vam os indígenas, as nossas organizações sociais, iam embora e contavam
uma versão a partir de uma lógica que ele encontrou em outro lugar.
Sempre cito como exemplo uma entrevista que o cacique Marcos
concedeu, inclusive para a Globo, sobre o fato de que o povo Xukuru
ocupava o limite da zona urbana de Pesqueira – Capitão Potiguara estava
lembrando hoje, ele estava lá inclusive –, que é próximo ao local onde
tem o cruzeiro. Vieram os repórteres, entrevistaram o cacique Marcos,
e ele falou várias vezes da pauta de luta e do porquê do povo Xukuru
estar ali, embasado. Quando todo mundo se juntou para assistir o Jornal
Nacional, lá na retomada, quando estava todo mundo em barracos de
lona e tal, tinha uma televisão muito pequena. Todos se juntaram para
assistir, e a manchete que saiu no jornal foi: um índio de calça jeans,

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Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

celular e aparelho nos dentes. Não tinha nada a ver com tudo aquilo que
a gente queria que colocasse na pauta, com aquilo que eles prometeram
para a gente quando foram entrevistar. Inclusive, o cacique Marcos, que
não estava na aldeia, voltou para lá para poder colocar a pauta do povo
Xukuru, pela entrevista. E não só não saiu a nossa pauta, mas, pelo con-
trário, houve uma tentativa de descredibilizar o povo Xukuru, inclusive,
enquanto indígena.
Então, surge aí uma necessidade, e as lideranças Xukuru perce-
bem que essa seria uma estratégia de atender a duas demandas: tanto de
envolver a juventude, quanto de colocar nossa pauta por meio do vídeo.
Nesse momento, a gente mergulha na história do povo Xukuru.
O trabalho audiovisual necessita de uma pesquisa grande para con-
cretizar os vídeos. Eu, que participava sempre dos rituais, em todos
os momentos, quando mergulhei no audiovisual, comecei perceber
o quanto a luta do povo Xukuru foi intensa, o quanto é importante
você estar ali para contribuir. Esse era o questionamento que a gente
se fazia, no trabalho do audiovisual: o que estou fazendo, enquanto
Xukuru, para contribuir com a nossa luta? Isso tendo em vista, que
a minha geração pegou um momento diferente, o final das retoma-
das – seu Cecílio Xukuru lembrava hoje de manhã –, pegou quando a
maior parte do território já estava nas mãos do povo Xukuru. A gente
se questionava: qual seria essa lição para a juventude? Qual seria a
responsabilidade que a juventude teria que assumir? Estar no curso
de audiovisual fez com que a gente compreendesse a grandeza dessa
história, a importância de contribuir para a luta também.
Com o passar do tempo, a gente, que ia discutindo e acompa-
nhando tudo aquilo que vinha acontecendo, iniciou as discussões, as
pautas da juventude, sobre como a juventude pode se organizar e con-
tribuir para o povo Xukuru. Surge, então, o coletivo chamado Poya
Limolaygo. Poya, na língua materna, significa pé, e limolaygo significa
terra, chão. E a gente tomava com o pé no chão.
Muita gente fala da juventude como quem está pensando acima
das nuvens, que a juventude não está com o pé no chão e precisa pen-
sar direito. E a gente precisa dizer que a gente tem a juventude com
pé no chão. O Toré é o pé no chão. Ter unidade é ter o pé no chão. A
gente achou que “pé no chão” traduzia o que a gente estava pensando:
Poya Limolaygo.

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Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

A gente teve várias iniciativas no sentido de fazer com que a


juventude discuta e compreenda qual a sua missão na luta do povo
Xukuru, qual a sua missão no movimento indígena, e uma das iniciati-
vas é a Ororubá Filmes, um grupo que grava documentários, em 90% é
curta-metragem. Desde o ano passado a gente começou a transmitir a
assembleia, e já transmite a feira de trocas de semente, que é um acon-
tecimento, que ocorre agora, em 16 e 17 de novembro.
Vão na página no Facebook: Ororubá Filmes, que a gente vai
transmitir ao vivo. É uma feira que discute agricultura, a questão terri-
torial. Cecílio trouxe bastante disso hoje de manhã.
As discussões vão amadurecendo e a gente começa a perceber
outros mecanismos de ajudar o povo Xukuru. Dentre eles, aparece
muito forte o de ocupar a universidade. O povo, a partir do momento
que discute isso, de contar a sua própria versão da história, desperta na
gente também o ocupar espaços de estratégia. Isso foi uma coisa que
despertou no movimento. A gente começa a discutir cursos que sejam
importantes para nós, como indígenas, ocupá-los.
Eu sou estudante de direito e estou no último período agora. Já já
termino. A gente estava conversando agora, minutos atrás, com outro
Xukuru que está em São Carlos, na Universidade Federal de São Carlos
(Ufscar), fazendo engenharia ambiental; tem um Xukuru formado em
engenharia agrônoma; tem outros fazendo análise de sistemas, outros
administração, matemática, física, enfermagem. A gente tem indicado
aos jovens para ocupar esses lugares.
É interessante a motivação disso tudo. Na faculdade, em vários
momentos, eu me questionava por que eu não me identificava incial-
mente com o curso de direito. No primeiro momento, eu imaginava fazer
cinema, já por causa do audiovisual. E eu estava apaixonado por isso,
estava namorando com o audiovisual. Mas a gente, em todos os momen-
tos, lembrava de tudo aquilo que o povo Xukuru passou, lembrava muito
forte do período de criminalização, quando a gente viu o povo Xukuru se
juntar, as famílias carentes. Aquele era um momento da terra recém-con-
quistada, ninguém tinha muita condição, mas todo mundo se juntou e
tirou um pouco do dinheiro de cada família para contratar um advogado,
para provar que o Xukuru, que era inocente e que tinha sido assassinado,
não tinha sido assassinado por outro Xukuru. Aconteceu, e ainda acon-
tece, em vários momentos, lideranças indígenas são assassinadas, e ao

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Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

invés de se investigar o real motivo do assassinato, que dá sempre nos


latifundiários, a polícia e a justiça acusavam outras lideranças Xukuru,
como estratégia de desmobilização. Isso acontece com vários povos,
com certeza acontece com movimentos sociais também. Aquilo me feria
muito. Eu lembrava das famílias carentes que tiraram de sua renda para
contratar um advogado para a gente reivindicar a justiça.
Me servia de motivador, era importante estar na faculdade e
enxergar essa necessidade. E vem servindo para ser um motivador de
cada um de nós, cada um que tem ocupado o espaço universitário. Estar
na universidade é um pouco difícil para nós. Imagine que existe um
estereótipo do que é ser indígena. Inclusive, é vendido um estereótipo
do que é ser indígena. E eu, branco, chego na universidade, aliás, de pele
branca, gordo, com o olho claro. A primeira coisa que acontece é alguém
dizer: “Bicho, tu és índio mesmo, é?”. Esta é a primeira pergunta que eu
escuto. Uma das vezes que cheguei pintado na faculdade – a tinta do
jenipapo dura mais de dez dias na pele –, a primeira coisa que aconteceu
foi o cara me olhar e brincar: “Mas, bicho, você está se pintando de hena
agora?”, e eu disse: “Não, isso aqui faz parte da minha religiosidade, isso
é uma prática do povo Xukuru”.
Existe uma descriminação muito grande e a descredibilização de
que você realmente é indígena. No Nordeste, principalmente, é muito
frequente descredibilizarem que a gente é indígena. Eu tenho que pro-
var todos os dias, apesar de nunca fazer questão disso, e eu buscava sem-
pre manter essa coerência da discussão sobre o respeito ao ser indígena.
Então nós precisamos muito da pesquisa, como foi bem colocado
ontem. Eu tinha que fazer meu trabalho de conclusão de curso (TCC),
e, no primeiro momento, ninguém quis me orientar para o TCC. Foi
curioso, eu tive duas orientadoras que foram demitidas da faculdade.
Certamente, não foi a orientação do meu TCC, mas óbvio que ter a sen-
sibilidade para isso, de enxergar o direito a partir de outras perspectivas,
talvez não tenha agradado, não tenha sido o padrão que a faculdade
enxergava. O pivô da demissão com certeza não foi o meu TCC, que era
pequeno diante de tudo isso, mas o perfil sim, de ser alguém que acre-
ditava nessas discussões dentro do direito, de trazer algo que não esteja
na linha acadêmica esperada.
A gente enfrenta essas provações todo dia, mas quando a
gente lembra da nossa base, quando a gente lembra do nosso povo

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Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

e do porquê a gente caminhou até ali, faz a gente continuar. A gente


tinha ano para terminar o curso, a gente tinha ano para voltar ao povo
Xukuru, para contribuir junto do povo Xukuru, contribuir junto do
movimento indígena.
Coloco assim a nossa felicidade de ter momentos como esse
de estar aqui e agora, e de começar a alterar a realidade da academia
também e fazer com que isso tome um outro rumo. O Bispo lembrava
ontem: “Isso aqui é uma chocadeira”. Ele disse que o objetivo da gente
não é quebrar a chocadeira, é fazer gorar o ovo. Eu estou junto assu-
mindo esse compromisso de gorar o ovo. Vamos nessa linha.
Quando a gente vê, dentro das salas de aulas, referências da reli-
giosidade, a troca de sementes, a assembleia Potiguara, assuntos que
não estão na formação acadêmica; quando a gente vê essa replicação-
mento na sala de aula, a partilha de saberes, como estamos fazendo, de
ir para locais religiosos de dentro do povo; quando o poder se descentra-
liza e a gente vê isso funcionar na prática, pensamos: por que não lutar
para que isso funcione também na academia? A gente tem comprado
essa luta e acredito que está todo mundo aqui porque também compra
essa luta. Lá em Xukuru, quando a gente firma o compromisso para
mudar alguma coisa, para lutar por alguma coisa, a gente geralmente
termina com um grito. Eu queria terminar assim com vocês. A gente
costuma dizer assim: “Diga ao povo que avance”, e o povo, que somos
nós, responde: “Avançaremos”.
Então: “E diga ao povo que avance!”.
— “Avançaremos!”
“Diga ao povo que avance!”.
— “Avançaremos!”.

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Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

Juventude indígena: identidade social e o protagonismo indígena


na pesquisa
Bruno Potiguara

Eu sou Bruno Potiguara, da Paraíba, estudante de Ecologia, na


Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Participo do grupo de trabalho
(GT) indígena. Já participei mais ativamente, hoje estou mais vinculado
ao programa de educação tutorial (PET) indígena, na área Potiguara, um
programa para indígenas.
Falar, depois do que a gente ouviu aqui de Guilherme Xukuru, se
torna algo complicado, porque as nossas experiências são parecidas, são
singulares e próximas uma da outra. Falar dessa experiência é mostrar
de que forma se deu a formação da juventude indígena em Potiguara.
Estevão Palitot brinca ao falar que a existência da juventude de
hoje em Potiguara, que é atuante e que é marcada pela liderança jovem
junto à liderança mais velha, foi um projeto de povo que foi pensado há
muito tempo lá atrás.
Hoje a gente tem a preocupação de se dar com o sucesso da juven-
tude. Fomos um dos primeiros povos do nordeste a criar uma organi-
zação de jovens dentro do povo e viramos referência nacionalmente. O
pessoal Xukuru está aqui para não me deixar mentir. Quando a gente
começou a ir para Xukuru, quem falou pelas lideranças Potiguara foi
um jovem. Um jovem foi chamado pelo próprio Capitão, que é um dos
nossos formadores, para ir lá representar o povo.
Dentro da nossa própria comunidade, a gente pensava em dis-
cutir a educação, a saúde, o território, mas sabíamos que também era
necessário discutir juventude. A juventude não é só o que é repassado
pela mídia, o que é vendido, na verdade. Eles propagam a imagem de
uma juventude que não quer nada com a vida, que não quer nada com a
cultura, que não quer nada com a nossa espiritualidade.
Nasce daí os nossos encontros de jovens, que eram todos pensa-
dos por meio de uma coordenação da Funai, que convocava o jovem e a
gente ia participar. Participamos de dois eventos assim, e depois disso
a gente disse: “Não, vamos fazer diferente, em vez de vocês virem aqui

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Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

com o projeto pronto, vamos montar juntos, sentar aqui com a comissão
de juventude, e a juventude vai dizer o que é que a gente precisa discutir,
o que é que precisa ser trabalhado, o que precisa ser melhorado. Vamos
criar a autonomia dos povos indígenas. Ao invés de vocês trazerem o
projetinho pronto, nós vamos começar a trabalhar”.
Isso foi trabalhado desde criança. A minha geração foi uma das
gerações que teve um número de jovens grande, que ainda se mantém no
movimento. É difícil trabalhar essa luta, o interesse de estar na luta, de estar
na causa, de ter que ir para o ritual, ter que ir para a retomada, ir para uma
manifestação, para a mobilização nacional indígena. Saber que vai não para
curtir, não para conhecer uma cidade, mas para lutar, e que, se preciso for,
vai levar bomba de gás lacrimogênio e bala de borracha, a polícia vai bater,
vai meter spray de pimenta na cara, mas a gente está lá porque tem o povo
que ficou lá na comunidade que deposita confiança na gente.
Foi trabalhado isso na nossa formação. Eu vinha comentando
com os meninos. Em Potiguara o colégio teve o papel fundamental, o
colégio levava a gente para a retomada, pegava os alunos, botava dentro
dos ônibus e levava para a retomada. A gente passava o dia na retomada.
Tinha o pessoal que era mais ativo: eu, Poran, Gessé, Isaías, depois que
voltava do colégio, pegava a roupa, ia para a retomada e passava o final
de semana dormindo com os parentes.
Assim nasce a questão de brigar pela juventude, de a juventude
ter a sua voz e ser ouvida. Não para ser maior que a liderança, não para
bater de frente com a liderança, mas para estar junto. Para caminhar
junto, e estar de mãos dadas e somar essa força. A partir disso, avançar
até o universo acadêmico.
O Xukuru utilizou o audiovisual para reescrever sua história, mas
em Potiguara a gente viu de uma forma diferente. Infelizmente, as coisas,
às vezes, só valem quando estão no papel. Se não está escrito, na norma
acadêmica, se não é publicado, não tem muito valor. Para a sociedade,
existe um padrão, e a gente, enquanto Potiguara, enquanto militante,
aconselhado pela nossa liderança, entra nas universidades para reescrever
a história e mostrar que os indígenas não são menos nem mais que do que
ninguém. Estou aqui e tenho o mesmo nível que todo mundo. Uma frase
dos meninos na camisa da Universidade de Brasília (UnB) diz assim: “Eu
posso ser quem você é sem deixar de ser quem eu sou”. É preciso avançar
e produzir academicamente também para tirar certas visões.

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Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

A pesquisa junto aos povos indígenas


O tema da nossa mesa, apesar de ter juntado duas, é “A pesquisa
junto aos povos indígenas”. Muitas vezes, o pesquisador vai à comunidade,
faz a sua pesquisa, e quando é hora de apresentar aquela pesquisa, ele
apresenta uma coisa que ele quer passar. A gente nota isso quando é con-
vidado para ver a defesa de mestrado, da tese de doutorado. Geralmente
os pesquisadores vão lá, pesquisam e nem sequer convidam a gente para
assistir, para a gente saber o que está falando da comunidade. Às vezes ele
não repassa o que a comunidade realmente passou para ele.

A questão das cotas


Trabalhando essas questões, eu tinha aquela ilusão de que o difí-
cil era entrar na universidade, até eu passar no meu primeiro curso, e
entender que o difícil era permanecer lá dentro. O primeiro curso eu
passei, cursei o sexto período e abandonei. Foi um curso de engenharia,
um curso muito pesado e elitista. A universidade não é pensada para a
minoria, ela é pensada para a elite, e não quer saber se você está ali, de
que forma você chegou, quem você é e de onde você vem. Não está se
importando com isso. Quando cheguei lá, só tinha eu de indígena. Tinha
um menino que foi oficial da Marinha, mas era negro, e um africano. O
pessoal foi logo excluindo, esse aqui é o grupo de minoria: um negro,
um africano e um indígena. Nem para fazer trabalho os demais colegas
queriam. Era como se esse grupo fosse o pior de todos.
Nunca neguei a minha origem, nunca neguei que eu tinha entrado
por cota, porque tem a discussão de cota. Até o Capitão Potiguara demo-
rou para entender que a gente necessitava de cota para poder acessar a
universidade, e eu também não entendia. A gente pensava primeiro no
preconceito que viria. Mas o preconceito vem se você entrar por cota ou
sem cota, não importa. As pessoas vão te enxergar de uma forma diferente
só pela sua cor de pele, só pelo seu jeito de vestir, seu modo de falar.
Então, a gente começa a fazer esse enfrentamento, e então per-
cebemos a importância, dentro da universidade, do GT indígena. Tanto
o GT como o PET são projetos pensados de uma forma diferente. Não
tem aquela chatice, como certos projetos muito quadradinhos, feitos em
um modelo, de uma forma. A gente começa a quebrar esse paradigma
dentro da universidade a partir dos projetos, como o GT indígena e o

103
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

PET. O GT para nós é uma casa onde a gente pode chegar e conversar
da nossa realidade, contar a nossa história, sempre e tem alguém ali que
vai nos ouvir e que vai enxergar uma realidade que não é das mais fáceis.
Quando eu cursava Engenharia, eu fui pagar uma cadeira (dis-
ciplina) de direito ambiental, e uma professora do direito, da UFPB,
mulher de um procurador federal, disse que o Governo estava acabando
com as universidades públicas, pois estava colocando esse povo para
estudar nas universidades públicas. E esse povo era quem? Era cotista,
indígena, negro, era a pessoa que tinha estudado em escola pública.
Fiquei calado no dia em que ela fez essa provocação, até por-
que estava em uma turma de dez alunos e só tinha eu de cotista, e
todo mundo aplaudiu quando a professora falou que estavam fazendo
porcaria com o país, colocando aquele povo ali dentro. E eu esperei o
momento oportuno para eu poder falar, o dia em que eu fui convidado a
dar uma palestra, lá no centro de ciências jurídicas da UFPB, e eu pen-
sei: “Sou eu, agora é a minha vez”.
Quem estuda em escola pública já tem uma dificuldade grande
na universidade, imagina quem estuda em escola pública do interior do
interior, é outra coisa totalmente diferente, são realidades muito dife-
rentes. Precisamos melhorar muito os níveis da educação no Brasil. Por
isso fomos avançando nesse processo de luta e resistência.
O povo, que a professora disse que está transformando a educa-
ção superior em uma porcaria, é o mesmo povo que o pesquisador vai na
comunidade pesquisar e roubar o conhecimento e depois dizer que é dele.
Infelizmente, o que vale para a gente, na universidade, é quase
nada. A gente aprende, na verdade, simplesmente algumas normazinhas
técnicas. A universidade serve para dar apenas um título, um canudo.
A gente não pode passar pela universidade para ser apenas mais um.
Muitas pessoas passam pela universidade para ser apenas mais um.
Forma, termina, vai embora e nada muda, continua depois da universi-
dade do mesmo jeito, com os mesmos problemas de ignorância, com os
mesmos preconceitos.
Há pessoas lá que dizem que ser índio é não ser catequizado.
A pessoa é da Paraíba, mora na cidade vizinha ao território indígena,
mas desconhece a história da colonização do Brasil e toda a história de
luta e resistência dos povos indígenas. O campus universitário de Rio
Tinto fica a meia hora da minha aldeia. Aí um colega me perguntou:

104
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

“Meu amigo, o que é que você está fazendo na faculdade?”. Eu respondi:


“Creio que você não estudou história da Paraíba. Não sei o que está
fazendo aqui também. Estudar é pegar toda a história de luta e resis-
tência do nosso povo, que permanece hoje com um número reduzido,
porque foi massacrado, foi desmembrado, colocado em três aldeamentos
e se manteve, se mantém e vai se manter por muito tempo, lutando”.
Minha irmã Tamara Potiguara faz mídias digitais na UFPB.
Todos os trabalhos que ela tem que fazer, ela relaciona todos aos indí-
genas. A gente precisa trazer esse lado. Hoje ela não sente mais dificul-
dade, hoje já tem professores que querem ver este tipo de trabalho. Tem
quatro professores pedindo para ser orientadores dela. Mas para mim é
mais complicado, no meu curso de ecologia. Mesmo sendo um curso de
área relacionada ao meio ambiente, estou prestes a apresentar o projeto
de TCC e eu não tenho ainda um orientador, porque não tem ninguém
que trabalha nessa área, não tem ninguém que tem sensibilidade para
essa área. Então, a gente precisa ir cada vez mais quebrando essas bar-
reiras, superando as dificuldades.
A gente discute, no Encontro Nacional de Estudantes Indígenas
(Enei), que a gente promove todo ano – vamos agora para o sexto encontro
–,quais são os nossos maiores desafios. Tem o desafio de entrar, o de perma-
necer, o desafio de você se formar, e depois de formado, há o pensamento:
“O que é que eu vou fazer?”. Onde eu vou me ocupar ou de que forma eu
vou trabalhar nisso que eu apenas aperfeiçoei para um método que precisa
ser usado. Infelizmente, tem um método também que tem que ser usado.
O direito, a gente sabe do nosso direito, e todo mundo sabe que
a gente tem direito ao território, à educação específica de qualidade, à
saúde. Mas se a gente não cobrar e se não tiver um advogado formado
trabalhando em cima dessas causas, as pessoas pegam a Constituição de
1988, botam debaixo do braço e esquecem, o direito morreu, esquecem
todo o processo de luta e cultura.

Identidade social e o protagonismo da comunidade na pesquisa


De tudo isso, nós nos questionamos. Eu e as lideranças jovens, a
gente não está na universidade como um indivíduo qualquer. Não é o
Bruno Rodrigues da Silva que está enquanto pessoa, é o Bruno Potiguara,
que está lá enquanto povo. Existem 21 mil pessoas lá na comunidade

105
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

esperando por melhoria. A gente tem que, cada vez mais, estar fortale-
cido para levar para a comunidade uma visão diferente, e, até mesmo,
como a gente conversou no nosso grupo de estudo, é preciso reavaliar os
trabalhos que foram feitos sobre os Potiguara. Eu falava com Hosana e
disse: “A gente vai colocar você para falar primeiro, depois a gente fala.
Aí a gente vai saber o que a doutoranda vai falar sobre nós, indígenas”.
Aí a gente precisa reavaliar o que se fez e foi escrito e se real-
mente condiz com a nossa realidade, com o que as nossas lideranças
repassaram. Se não, por que a gente não vai lá e reescreve aquilo que foi
escrito e recoloca a partir de nós?
Quem vai de fora para dentro da comunidade vê de uma maneira, e
quem está ali dentro enxerga de outra forma totalmente diferente. Eu tento
trabalhar isso, com a nossa juventude, fazer das nossas pesquisas uma pes-
quisa que nasce, cresce, se mantém e é desenvolvida toda pela comunidade.
A gente está lá só para colocar nas normas. A gente chega na
comunidade e diz: “A gente está aqui à disposição de vocês, então digam
o que querem que a gente faça”. A gente vai fazendo, e a comunidade vai
dizendo o que a gente precisa fazer. A gente não chega lá dizendo: “Eu
estou no quarto período de ecologia e eu sei sobre meio ambiente”. Não,
a gente diz: “Eu não sei nada sobre meio ambiente e vim aqui escutar
o senhor, e o senhor vai me dizer o que eu preciso fazer, onde preciso
ajudar e de que forma posso ajudar a executar tal serviço”.

A dificuldade da permanência na academia


Na nossa juventude, o modelo de pesquisa trabalha mais voltado
para esse modo de pensamento, e nele precisamos avançar muito ainda.
A gente sempre falou que a UFPB é parceira nossa. Não adianta dizer
que as portas da universidade estão abertas para receber a diversidade,
se ela nunca esteve preparada para nos receber. Na verdade, a mesma
porta que está aberta para a entrada é a mesma de saída. Já está ali para
excluir, ela já te coloca em um grupinho no canto. A pessoa entra e sai,
pela mesma porta. Muitos desistem, muitos não conseguem caminhar.
O Capitão Potiguara vivenciou isso.
Quando eu passei em engenharia, passamos eu, o Kione e Rodrigo,
cada um em uma engenharia diferente. Eu fui o que passou mais tempo
no curso, me mantendo ali na luta, com pulso firme. Não era tanto pela

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Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

engenharia, mas muito mais pela luta. Eu faltava mais do que ia para as
aulas. Na aula, eu estava brigando. Ia lá todo dia na sala do pró-reitor bri-
gar. Quando tinha reunião com a reitora, eu falava: “Vamos brigar, vamos
discutir, vamos trabalhar”. Quando tinha evento indígena e tinha prova, a
prova eu deixava para repor, porque eu ia para luta, ia viajar com os meus
parentes, pois era mais importante construir o espaço.
Eu passei dificuldade, passei fome na universidade. Felizmente,
nisso dou graças a Deus, o meu pai era professor, funcionário público da
prefeitura. Só trabalhava ele em casa e tinha que manter dois filhos e uma
filha na faculdade, eu e Tamara morando em João Pessoa, e o meu irmão,
Poran Potiguara, morando em Brasília. O custo de vida dele em Brasília
era bem maior do que o meu em João Pessoa. Em João Pessoa eu morava
na casa do Capitão – que para a gente é como se fosse um segundo pai –
é um segundo pai na verdade –, mas o dinheiro que eu tinha era pouco.
Aí eu escolhia o dinheiro para passagem ou para eu comer. O restaurante
universitário (RU)? Eu não tinha. Apesar de ser gratuito, demorava quase
dois meses para ter o benefício de acesso ao RU. Então acontecia muito de
eu chegar lá, ver o dinheiro no bolso, contar e pensar: “Hoje não tem como
lanchar! Eu passo o dia sem comer nada, estudo e à noite, quando chegar
em casa, eu faço alguma coisa”. A primeira feira de casa quem fez foi o
Capitão, que me levou lá para a casa dele em João Pessoa. Ele não morava
mais lá, estava já de volta, morando na aldeia, na Baía da Traição, e a minha
primeira feirinha foi ele quem fez. O restante das coisas eu trazia de casa.
Eu não tinha dinheiro para comprar nada em João Pessoa, eu tra-
zia tudo de casa. Ia para aldeia, e quando eu voltava, voltava com uma
mochila, parecia que era roupa, mas era comida. Tinha que sobreviver
daquele jeito, e nem por isso eu nunca pensei em desistir. Era duro? Era.
Tinha noite que eu chorava. Quase entrei em estado depressivo. Toda
noite eu chorava quando eu chegava em casa, mas quando voltava para
a aldeia, eu lembrava: “Tem tanta gente aqui vivendo pior do que eu,
passando por uma realidade muito mais complicada”. Isso me dava força
para voltar na segunda-feira para a universidade e continuar lutando.

A bolsa permanência
Só para finalizar, em 2013, o Governo lança um programa cha-
mado Bolsa Permanência. O auxílio financeiro é legal, mas quem foi

107
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

consultado para fazer o programa? O programa nasce excluindo as pes-


soas: só é indígena quem mora em comunidade, já para nossa juventude,
é da seguinte maneira: eu sou índio onde quer que eu esteja. Assim a
comunidade me reconheça: onde eu estiver eu sou indígena. Então o
Bolsa Permanência começa com um processo excludente. A Paraíba foi
o primeiro estado a dar entrada no Programa de Bolsa Permanência e
foi o último a homologar e distribuir bolsas para os alunos. Por quê?
Porque a gente começou a brigar lá dentro.
Capitão Potiguara participou do processo que a gente fez para
ter liberação de bolsa. As nossas lideranças estavam em Brasília e Poran
Potiguara me ligou e disse que no dia seguinte as lideranças iam ao
Ministério da Educação (MEC) fazer um ato sobre a questão das bolsas,
e seria muito bom se nós fizéssemos um ato no mesmo momento.
A gente fez um ato no mesmo momento. Pegamos os nossos estu-
dantes, ocupamos a reitoria no mesmo horário em que estava havendo a
reunião em Brasília e fechamos a reitoria. Só daí nasceu esse processo.
Políticas públicas, na UFPB, voltada para as minorias não se tinha. A Bolsa
Permanência foi até descaracterizada, hoje se fala que é a Bolsa Indígena.
Não existe Bolsa Indígena em lugar nenhum, embora todo mundo fale.

Reparação, genocídio e nossa ancestralidade


É um processo de reparação que se a gente for observar bem,
precisava fazer muita coisa para reparar o que já foi feito de genocídio,
de matança cultural da nossa gente. Tentaram nos aculturar por meio
da cultura do branco, de uma cultura que não é nossa. Tentaram nos
colocar enquanto cidadãos sem cultura.
Não querendo dizer também que os não indígenas não têm cul-
tura, mas tentaram tirar o que é nosso, a nossa ancestralidade, a nossa
ligação, o nosso vínculo com a terra, que vai muito além de um espaço
de chão para produzir alimento, comida, fazer uma casinha para morar.
Vai muito além disso.
A terra onde a gente vive não é qualquer terra. É uma terra que
tem a espiritualidade que nos leva até ela. Não somos nós que somos
donos da terra, mas sim a terra que é nossa dona; a gente pertence
àquela terra, não a terra que pertence a nós. É uma visão totalmente
diferente, é uma ligação muito diferente que se dá das coisas.

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Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

Juventudes indígenas: mobilizações, redes e pesquisas


Hosana Celi Oliveira e Santos

Eu me chamo Hosana. Queria agradecer e pedir licença aos


ancestrais, aos encantados de luz, aos minkisi, aos orixás que permitiram
a gente estar aqui e também à presença de todos e todas nesse momento.
Como seu Cecílio Xukuru falou: “São os escolhidos e as escolhidas que
estão aqui para essa vivência”.
Para mim, há muita gratidão, muita alegria e emoção a todo
momento, a todo instante, por estar aqui presente, ainda mais em um
evento que é coordenado pelo meu irmão Abrahão Santos, professor
dessa casa. Eu sou baiana de nascença, paraibana de coração, pernam-
bucana por adoção. É muita responsabilidade estar aqui com as pessoas
que trazem alegria. É uma satisfação estar aqui no Rio de Janeiro com
vocês, trocando, partilhando energias e vivências.
Sou antropóloga. Minha graduação foi em ciências sociais, na
UFPB, em João Pessoa; o mestrado e, agora, o doutorado em antropologia
foram feitos na Universidade Federal de Pernambuco (Ufpe), em Recife.
Quando eu falo que sou antropóloga, as pessoas perguntam: “Antropóloga
faz o quê?”. “Trabalha com culturas e tal coisa”, eu respondo, mas, especi-
ficamente, eu trabalho com a questão indígena e quilombola, com maior
foco na questão indígena. E “E ensina o que aos indígenas?” e “Você não
tem medo, não?” são outras perguntas que sempre fazem. Eu respondo:
“Geralmente são eles, os povos indígenas que me ensinam”.
Eu venho trabalhando com a questão indígena desde 1999. Aliás,
entrei na graduação em 1998. Quando a gente entra em um curso de gra-
duação a gente fica meio perdida. Quando entrei no curso de ciências
sociais, na UFPB, eu me perguntava: “O que eu vou fazer? Como é que vai
ser?”. Aí Abrahão falava comigo: “Bom, você pode não saber o que quer,
mas você vai saber o que você não quer. Procure um grupo de pesquisa”.
Então, comecei a procurar um grupo de pesquisa. Visitei o
grupo de desigualdades sociais. Era ótimo, com professores excelentes.
Algumas colegas me viram nessa procura e foram comigo também. Eu
disse: “Bom, muito ‘massa’ o tema, mas eu acho que não é a minha área”.

109
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

Elas ficaram nesse grupo e fui conhecendo alguns grupos de pesquisa


até chegar o meu colega, Estevão Palitot, que hoje é professor da UFPB,
que me disse: “Tem o GT indígena, no setor de estudos e assessoria a
movimentos populares (Seampo). Apareça na reunião para conhecer”. E
eu fui lá, e “fui salva da nossa Santa Madre Igreja pela causa indígena”,
como diz nosso amigo Fernando Sousa. Desde então, entrei na questão
indígena e até hoje estou aí.
O GT indígena era coordenado pelo Capitão Potiguara e a pro-
fessa Annelsina Trigueiro, mais conhecida como Neta. Foram eles quem
inseriu a gente na questão indígena. Capitão ia levando a gente para as
aldeias, para o movimento indígena, e foi formando a gente também nesse
movimento. Então eu fui formada, eu tive a graça e a oportunidade de ser
formada junto com várias lideranças indígenas. Nesse período, Marcos
Xukuru, mais conhecido como Marquinhos Xukuru, o atual cacique desse
povo, não era cacique ainda. Já era indicado, mas foi na sequência que
ele foi cacique. Quando ele foi consagrado, pelo pajé, a cacique do povo
Xukuru, ele foi considerado o cacique mais novo no nordeste, depois foi
Aurivan, conhecido como Neguinho Truká, e, assim, outros caciques de
outros povos também foram colocando lideranças jovens.
Então eu reflito com vocês: “Ensinar o quê? E para quem?”.
Depois de ouvir o Capitão Potiguara, ouvir o seu Cecílio Xukuru falar
aqui nesse evento, em outras mesas, de suas histórias, eu pergunto:
“Eu tenho o que para ensinar mesmo?”. Eu tenho é que apreender e
muito, mas também posso partilhar o que venho aprendendo. Por falar
nesse evento, nessa mesa que eu estou, eu queria falar depois de Bruno
Potiguara e Guila Xukuru, mas eles ficaram me dizendo que eu ia falar
primeiro, para depois eles me questionarem.
Hoje eu trabalho com a questão dos jovens indígenas, das juven-
tudes indígenas na Paraíba e em Pernambuco. Na graduação, no TCC,
eu trabalhei a história de vida de dona Zenilda Xukuru e o processo de
organização do povo Xukuru do Ororubá; no mestrado, para a disserta-
ção, pesquisei o processo de retomadas do povo Xukuru do Ororubá, sua
organização e como as mulheres indígenas se inseriram nesse processo;
e, hoje, para a tese, eu trabalho no doutorado com a questão dos jovens
indígenas, as ações coletivas e dinâmicas socioculturais de juventudes
indígenas, as formas de organizações destes jovens em Pernambuco e
na Paraíba, e como eles se articulam em redes.

110
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

Dá um pouquinho de tremedeira falar junto com eles, com esses


jovens indígenas, mas também é uma alegria e uma satisfação. Fazer
uma pesquisa na qual a gente dialoga e compartilha é um desafio muito
grande. Os jovens indígenas estão dentro da universidade, estão aces-
sando as tecnologias. Tem uma rede de contatos que eu pesquiso, e uma
das coisas que eu tenho para discutir é essa rede. Eu parti da minha rede
local, da minha rede de contatos, e ela se amplia para níveis estadual,
regional, nacional e internacional, conforme notei recentemente com
o meu doutorado sanduíche, na Universidade Veracruzana (UV), em
Xalapa, capital do estado de Veracruz, no México.
O irmão de Bruno Potiguara, o Poran Potiguara, que está estu-
dando na UnB, está nesse momento em uma comitiva na França, man-
dando fotos para a gente das discussões que ele está participando por
lá. Ele me deu o contato do Félix, que é um jovem indígena que mora em
Oaxaca, no México. Não consegui visitá-lo, mas mantive contato com
ele. O Poran Potiguara o conheceu por meio das redes de jovens indíge-
nas. Essa é uma rede de solidariedade, uma rede afetiva, uma rede social.
Como perspectiva de futuro para a academia, considero muitas
vezes que as metodologias e as teorias não dão conta dessas questões,
dessa forma de fazer pesquisa e de outras formas de fazer ciência. Mas
existem experiências locais nas próprias comunidades que devem ser
levadas em conta. Devemos nos voltar mais para casa, para dentro, para
as experiências nossas no Brasil, para as experiências dos povos indí-
genas, das comunidades quilombolas, ribeirinhas, dos pescadores, do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Tem várias
experiências pipocando e que não cabem nessas caixinhas metodológi-
cas da universidade. Existem outras epistemologias.
Também proponho utilizar autores latino-americanos, bem como
autores locais, e a ver as experiências latino-americanas. No doutorado
sanduíche, eu poderia ter ido, e queriam que eu fosse, aos Estados
Unidos, à França e tal, mas eu preferi ir ao México, à Cidade de Xalapa,
no estado de Veracruz. Eu preferi as experiências da América Latina. Eu
pude sair de lá antes dos furacões. Eu conheci lá algumas experiências,
entre elas a da Universidade Veracruzana Intercultural (UVI).
Me chamou muito atenção no México a questão das universidades
interculturais. Eu fui para UV, que é Universidade Veracruzana e lá tem
a UVI, Universidade Veracruzana Intercultural, que é principalmente

111
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

indígena. Lá eles não usam o termo “quilombola”, usam o termo “afro-


descendentes” e “afromexicanos”, porque tem comunidades afrodescen-
dentes no México. É incrível as experiências dialógicas deles. A minha
orientadora, aqui, no Brasil, é Vânia Fialho, e lá no México foi Gunther
Dietz. Gunther propõe uma metodologia dialógica e duplamente refle-
xiva. Eu achei incrível, porque algumas coisas eu já tenho praticado, e
se aproximam muito dessa metodologia. Eu já colocava isso em prática,
mas não tinha nome.
Bom, voltando para a discussão no Brasil, a gente tem a educação
escolar específica e diferenciada dos povos indígenas, da qual eu acompa-
nhei o processo de efetivação, principalmente na Paraíba e um pouco em
Pernambuco. E em algumas universidades temos licenciaturas indígenas.
Essas escolas indígenas específicas e diferenciadas são formado-
ras de professores e guerreiros indígenas também. Os estudantes são
formados por professores indígenas e por suas lideranças, aprendem
a própria cultura e suas histórias de luta e resistências a partir de seus
mestres indígenas, como mencionado pelo Capitão Potiguara.
Junto a essas experiências da educação escolar indígena especí-
fica e diferenciada, os professores e lideranças indígenas se mobiliza-
ram e conseguiram que fossem criados cursos de licenciatura indígena
em algumas universidades. Esses cursos de licenciatura indígena hoje
são chamados de programas de apoio à formação superior e licencia-
turas interculturais indígenas (Prolind). Algumas universidades já têm
vestibular específico para indígenas, além das cotas. Elas têm também
os PET indígenas.
Tem também o pessoal que está no Enei. Eu destaco também as
experiências da UnB, onde tem o pessoal com o centro de convivência
multicultural dos povos indígenas, o Maloca, que vem criando espaços
dentro da universidade com diversos povos indígenas. A Ufscar e a UnB
têm vestibular diferenciado para indígenas e quilombolas. A Universidade
Federal da Bahia (Ufba) vem fazendo, em Vitória da Conquista, vestibular
para indígena e quilombola, e em Salvador ela tem o núcleo de estudantes
indígenas (NEI) e o PET indígena, assim como a Universidade Federal do
Pará (UFPA) e a Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT).
A Paraíba teve essa experiência que coloquei do GT Indígena e
tem também o PET Indígena. Na Ufpe, a gente tem o curso de licencia-
tura indígena, no campus de Caruaru, mas as cotas na Ufpe ainda são

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Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

uma incógnita, e nos programas de pós-graduação são muito mais lenda


ainda. É uma problemática. Eu acho que tem que reforçar isso, porque a
gente tenta puxar essa discussão lá dentro, essa questão das cotas e tudo
mais, e tem muitos entraves.
Algumas pessoas falaram que não tem materiais para ler sobre a
questão indígena no Brasil. Eu trago aqui algumas indicações de leituras
e sites que vocês poderão acessar e iniciar as leituras sobre a temática:
há uma coleção Trilhas, do Laced, do Museu Nacional, da UFRJ. Um dos
livros é O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas
do Brasil, de Gersem dos Santos Luciano, o Baniwa, liderança indígena,
que tem alguns capítulos, além de outros capítulos de outros indígenas.
Há vários outros volumes (disponíveis na internet), o que vai discutir
saúde, o que vai discutir leis etc. Existem vários intelectuais indígenas
e a gente precisa conhecer mais.
Tem um site chamado Índios na Visão de Índios, e tem os livros
também Índios na visão de índios, coleção onde tem um livro feito pelos
Potiguara e outro pelos Truká. Tem o etnomapeamento, que é recente,
do povo Potiguara, do Pankaruru, do povo Kapinawá. Tem, também, o
projeto Nova Cartografia Social, do qual faço parte, no núcleo Pernambuco,
e no site dele tem o “Fascículo Xukuru”, no qual o povo Xukuru escreveu
um fascículo sobre o seu processo de retomada e luta pela terra, e elabo-
rou um mapa do território. Tem o livro Xukuru: filhos da mãe natureza, feito
pelos professores Xukuru; o Caderno do tempo, e o Meu povo conta, dos pro-
fessores e alunos indígenas em Pernambuco que escreveram esse material
didático. Tem o site dos Índios Online, no qual vários jovens indígenas
estão juntos; o site da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do
Nordeste (Apoinme), em Minas Gerais e Espírito Santo, da qual o Capitão
Potiguara é um dos representantes da microrregião da Paraíba; tem o site
do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), uma organização parceira; o
Facebook da Ororubá Filmes, do Mídia Índia; o Coisa de Índios, a Rádio
Yandê, entre outros. É um material que está à disposição e, assim, a gente
já não pode dizer que não tem nada.
Recentemente, o professor João Pacheco lançou o livro O nasci-
mento do Brasil e outros ensaios; tem o livro de Regina Celestino foi publi-
cada pela FGV “A metamorfose indígena e os indígenas no Brasil”. Além
dos trabalhos escritos por mim, Hosana Santos (2003, 2009, 2020), têm
os trabalhos de Vânia Fialho de Paiva e Souza (1998, 2003), de Santos

113
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

e Souza (2017), Kelly Oliveira (2013), Antônio Carlos de Souza Lima,


Estevão Palitot, Whodson Silva, Daniela Alarcon, entre tantos outros
antropólogos e antropólogas. Trago um pouco dos materiais elabora-
dos por indígenas e pesquisadores, para que a gente possa adentrar na
temática indígena e pensar outras formas de fazer e partilhar os saberes,
conhecimento, outras formas de se fazer pesquisa, de se fazer ciência.
E, agora, retornando à temática da juventude indígena, eu peço
aqui a Guila Xukuru que mostre as costas dele um pouquinho, para
a gente ver a frase da blusa que ele está vestido. Guila faz parte da
Ororubá Filmes. Essa frase que ele traz na blusa é: “Utilizando o que
tem de moderno para fortalecer o que tem de tradicional”. Então é uma
alegria grande saber que, no GT Indígena/Seampo/UFPB, do qual eu
participava – das ciências sociais só tinha eu e Estevão, os outros estu-
dantes participantes eram do curso de comunicação social. A equipe
estava lá discutindo a questão indígena, e de indígena tinha apenas o
Capitão Potiguara, que era um dos coordenadores, e hoje tenho o orgu-
lho e a alegria de saber que atualmente 95% dos estudantes que partici-
pam do GT indígena são do povo indígena Potiguara e do povo indígena
Tabajara na Paraíba, inclusive temos aqui na mesa Bruno Potiguara que
faz parte do GT indígena.
Naquele período em que comecei, a gente fazia o trabalho de
etnodocumentação (vídeo e fotografia) junto com o Capitão Potiguara, e
a gente foi chamado pelo cacique Marquinhos Xukuru, para iniciar esse
trabalho lá nos Xukuru, em 1999, para fazer esse trabalho lá nas aldeias
do seu povo Xukuru do Ororubá. Isso foi um ano depois do assassinato
do seu pai, cacique Xikão Xukuru. Então, a gente acompanhava as reto-
madas, os rituais e tudo mais, registrava em vídeo e fotografia e depois
retornava esse material para eles.
Então, é muito bom saber que hoje é a Ororubá Filmes está aí
fazendo registros, não só da luta e da religiosidade, mas de toda uma
história feita por eles mesmos, pela juventude Xukuru. Como, por
exemplo, a Assembleia Anual Xukuru desse ano, que foi transmitida
on-line, pela equipe da Ororubá Filmes, e eu, que estava no México,
não pude estar presente, mas pude acompanhar o evento assistindo
por meio da internet.
Essas ferramentas e esses jovens indígenas vão nos animar a
criar e a encarar os vários desafios, bem como a contribuir também

114
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

para visibilizar e fortalecer suas lutas para enfrentar os seus proble-


mas. Trabalhar com eles e também com as demais lideranças indígenas
tem seus desafios, principalmente do termo juventude. Dona Zenilda
Xukuru disse que “juventude não tem idade”. Concordo com ela.
De fato, nos encontros e eventos das juventudes indígenas na
Paraíba e em Pernambuco, há pessoas das diversas faixas etárias. De
fato, os jovens indígenas se apropriam dessa frase e nos faz refletir
sobre isso, e, também, estrategicamente trazem um novo olhar, trazem
a poesia, o teatro. Trazem várias outras ferramentas, o diálogo, a roda
de conversa, a brincadeira, as danças, o “voz e violão” e também as tec-
nologias. Trazem a ideia de que a gente tem que estar junto, inserido,
para atravessar mar adentro, mas também trazem a reflexão de que é
necessário ser discreto e, às vezes, não tão discreto, porque é impor-
tante levar bronca de cacique às vezes, e é necessário enfrentar também
alguns inimigos comuns, ver pessoas que a gente gosta muito tombarem
na luta, pessoas sendo presas injustamente.
E eu acrescentaria aí um pontozinho, também, que é a demar-
cação das terras indígenas, a regularização fundiária e a criminali-
zação das lideranças, porque nesses processos, com a morosidade do
Governo Federal em demarcar as terras indígenas, desencadeiam,
aumentam, na verdade, os conflitos com os fazendeiros e a polícia. Na
maioria das vezes, inverte o processo de julgamento e o próprio povo
indígena e as lideranças indígenas, elas são criminalizadas, elas sofrem
o processo de criminalização.
No povo Xukuru, por exemplo, o Xikão foi assassinado, e algumas
lideranças Xukuru foram criminalizadas por isso e os fazendeiros que
estavam envolvidos, não. Outro exemplo, anos depois do assassinato de
Xikão, o próprio Marcos Xukuru sofreu uma tentativa de assassinato,
numa emboscada na qual dois outros indígenas foram assassinados, um
Xukuru e um Atikum que estavam junto com ele. Ele, Marcos, conseguiu
escapar com o sobrinho, e, depois, pasme, a vítima virou réu. Então a
tentativa de assassinato foi contra ele, Marcos Xukuru, e ele passou a ser
acusado, junto com todas as lideranças indígenas Xukuru. As lideranças
são criminalizadas. Todas as lideranças Xukuru foram criminalizadas.
Os jovens indígenas e seus povos vêm passando por um processo
de criminalização de suas lideranças. Continuando os exemplos, semana
passada teve um dos julgamentos de uma das lideranças principais dos

115
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

Xukuru. Graças a Deus, a liderança foi inocentada. E assim, tem uma


série de ondas de criminalização que aconteceram e acontecem até hoje
no Brasil. O Brasil responde hoje por um processo na corte interameri-
cana de direitos humanos a respeito das violações dos direitos indígenas
do povo Xukuru do Ororubá. A sentença das violações contra os direitos
indígenas, , nesse caso contra os direitos do povo Xukuru,1 desse pro-
cesso está para sair.
É necessário ver essa diversidade, essa forma de acionar as fer-
ramentas e de fazer parcerias, formar redes, de dialogar para não só
ganhar visibilidade e a confiança dos jovens com relação às lideranças,
mas também formar parcerias para atuar em outros espaços e ampliar
esses espaços, e formar contranarrativas, contradiscursos ao que está
posto pelas mídias oficiais. E uma das coisas, assim, para a qual eu
chamo atenção e acho também que é pertinente à questão discutida, é a
presença dos jovens indígenas nas universidades – eles vão poder falar
mais concretamente –, é a questão do território. O território é simbólico,
mas também é político. Ele é da mãe natureza, é morada dos encanta-
dos e é um direito indígena. O território é lugar de luta e de resistência.
Para os estudantes indígenas que estão nas universidades, esses espaços
também são territórios de luta e de resistência.
Se, de um lado, lá na aldeia eles lutam contra os fazendeiros,
contra o agronegócio, contra um projeto massacrante que se tem no
Governo, por outro lado, nas universidades eles lutam contra os filhos
dos fazendeiros, usineiros. Então a universidade também é um território
de luta e de resistência para esses estudantes indígenas. Há resistência
e luta para ter os seus rituais garantidos, para poder estar com suas ves-
timentas, suas pinturas. A gente viu agora seu Cecílio Xukuru entoar os
cânticos rituais para começar. Ser indígena é estar com uma pintura e
receber crítica, então é também ser alvo. Se identificar enquanto indí-
gena, na universidade, é ser alvo também de preconceito e racismo, o
racismo institucional, que é velado.
Então, é isso. E aqui trago uma fala de um jovem indígena, que
diz assim: “Ser jovem indígena é acreditar na força da ancestralidade
que nos inspira a viver em total harmonia com a mãe natureza; é dar
continuidade à luta dos nossos mais velhos que sempre estiveram na

1 Em 2019 saiu a sentença da corte interamericana de direitos humanos, na qual o Brasil


foi condenado por suas violações aos direitos do povo Xukuru do Ororubá/PE.

116
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

defesa, na luta pela terra, na perspectiva de preservar nossos costumes


e tradições, fortalecendo a nossa cultura e identidade”.
Aqui encerro minha fala e passo a bola adiante. Obrigada.

Referências
OLIVEIRA, Kelly Emanuelly de. Diga ao povo que avance! Movimento
indígena no Nordeste. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2013.
SANTOS, Hosana Celi Oliveira e. Dinâmicas sociais e estratégias territo-
riais: organização social Xukuru no processo de retomadas. 2009.
Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Universidade Federal
de Pernambuco, Recife, 2009.
SANTOS, Hosana Celi Oliveira e. Em cima de medo, coragem: a dor e a luta
da liderança Dona Zenilda e do seu povo Xukuru do Ororubá (PE).
2003. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Ciências
Sociais) – Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2003.
SANTOS, Hosana Celi Oliveira e; SOUZA, Vânia Rocha Fialho de Paiva e.
Dialogando sobre jovens indígenas: novas agendas e possibilidades
de estudos. In: SILVA, Tarcísio Augusto Alves (org.) As juventudes e
seus diferentes sujeitos. Recife: EDUFRPE, 2017. p. 45-60.
SANTOS, Hosana Celi Oliveira. Pintando o Brasil de jenipapo e urucum:
ações coletivas e dinâmicas sócio-político-culturais de juventudes
indígenas na Paraíba e em Pernambuco. Tese (Doutorado em
Antropologia) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2020.
SOUZA, Vânia Rocha Fialho de Paiva e. A fronteira do ser Xukuru. Recife:
Massangana, 1998.
SOUZA, Vânia Rocha Fialho de Paiva e. Desenvolvimento e associati-
vismo indígena no nordeste brasileiro: mobilizações e negociações
na configuração de uma sociedade plural. Tese (Doutorado em
Sociologia) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2003.

117
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

Aprendendo a pesquisar pensando, sentindo e fazendo no encontro


Johnny Alvarez

Queria agradecer muito ao colega Abrahão, pela oportunidade de


estar desde ontem convivendo com vocês todos. Tem sido muito rico,
muito afetivo, muito potente o encontro, e eu fico muito feliz em parti-
cipar com vocês.
Quando o Abrahão me convidou para essa mesa, na temática da
pesquisa junto aos povos indígenas, eu aceitei, mas fiquei pensando:
“Eu nunca fui um pesquisador juntos aos povos indígenas”. A minha
tese de doutorado foi com a capoeira. Eu tive um contato muito maior
com a pesquisa afrodescendente, então eu vou narrar como o encontro
com os povos indígenas se deu comigo e como esse encontro repercutiu
na minha luta dentro da universidade, algo próximo do que Nego Bispo
chama de projeto de descolonização.
Eu vou narrar como o encontro com o povo indígena me ensinou
a me descolonizar e como é que eu, enquanto professor na UFF, tento, a
partir desse encontro, construir a descolonização da universidade, justa-
mente para que a universidade não fique como os colegas descreveram,
descriminando e impedindo que esses povos possam aqui habitar.
Eu sugiro um título para a minha fala, assim: “Aprendendo a pes-
quisar pensando, sentindo e fazendo no encontro”. Eu vou narrar esses
encontros e a gente discute algumas pistas, para que o seria uma pes-
quisa junto aos povos indígenas.
A primeira provocação é em relação ao título desse simpósio do
Kitembo, que coloca diálogos, mas a nossa mesa é “junto”. Então, pre-
cisamos pensar a questão do encontro: mais do que dialogar, a gente
precisa se encontrar. O diálogo é necessário, mas muitas vezes a gente
conversa e não se encontra. Trago ao encontro essa ideia: o que é pes-
quisar no encontro e no encontro de lugares muito diferentes, que são
os povos indígenas e academia, e uma academia eurocêntrica. Depois
eu discuto mais sobre isso.
Bom, o meu primeiro contato com um povo indígena se deu
quando eu me tornei professor de psicologia no campus de Rio das

118
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

Ostras, no interior do Estado do Rio de Janeiro. Tomando uma cachaça


em um boteco, conheço a professora Adriana Russi, que desenvolvia
um projeto de educação patrimonial oriximiná, no Pará, onde há um
campus avançado da UFF desde 1970. Ao saber da minha participação
no inventário da capoeira, como patrimônio imaterial, para um projeto
junto com o meu doutorado, ela me convida a entrar em um projeto de
extensão, mas que é de pesquisa também, que inventariava o artesa-
nato local no município de Oriximiná, no Pará. Para quem não conhece,
Oriximiná é um município de proporções territoriais muito extensas,
talvez o segundo ou terceiro maior município do Brasil, com extensão
de três ou quatro Estados do Rio de Janeiro. Fica no noroeste do Pará,
com fronteira com as Guianas, Suriname e o Estado de Roraima, e é
atravessado pelo principal rio da Bacia Amazônica, o rio Trombetas,
que atravessa praticamente todo o município de Oriximiná. Nesse lugar
existe um centro urbano onde se localiza a unidade da UFF, a Unidade
Avançada José Veríssimo (UAJV), mas a população basicamente vive
distante deste centro em comunidades ribeirinhas, havendo também
muitas comunidades em reservas quilombolas e indígenas.
Me Encontro com o projeto de educação patrimonial em orixi-
miná em junho de 2011, no momento em que estávamos terminando
o inventário do artesanato local. Nesta etapa, professores e alunos da
UFF iam visitar estes moradores espalhados nestas comunidades em
Oriximiná, permanecendo neste convívio no mínimo por quinze dias.
Fui nessa expedição para fazer a devolução do material que já tinha
sido pesquisado, também para um refinar minha noção em relação ao
modo como nós pesquisadores entendíamos o artesanato local, e, por
destino, porque faltou um pesquisador. Eu fui enviado a uma viagem
para a aldeia Mapuera, que fica situada na Terra Indígena Trombetas,
em cuja reserva vivem várias aldeias indígenas de diversas etnias do
tronco Karib. Na aldeia Mapuera encontramos os povos Waiwai. Para
chegar nesta aldeia viajei um dia de avião, mais um dia de barco grande,
depois mais dois dias de traineira, e ainda mais dois dias de canoa de
tronco único, com os indígenas. Portanto, uma realidade indígena dife-
rente da que está sendo colocada aqui.
Para nós, do mundo acadêmico, esta realidade indígena ainda
está muito distante e nos é invisibilizada. Na UFF temos poucos alunos
indígenas. Mesmo com as cotas, a gente verifica ainda uma inexistência

119
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

deste universo no nosso cotidiano universitário. Por isso acho impor-


tante eventos, como este aqui, que trazem, mesmo sendo difícil perma-
necer, estudantes indígenas que estão em universidades, basicamente
no nordeste, e também povos indígenas que permanecem na terra, como
disse ontem Capitão Potiguara: “Não saímos da nossa terra desde que
os portugueses aqui chegaram”.
Chego, portanto, na aldeia Mapuera, absolutamente cru nas ques-
tões indígenas, só com uma grande disponibilidade para o encontro, e
convivendo com estereótipos “de indígena isolados”. Chegando à aldeia,
depois de cinco dias de viagem pela floresta amazônica, com a ideia de
que eu ia encontrar lá uma realidade indígena um pouco mais prote-
gida, e eu tomo um susto, ou melhor “a realidade se oferece de outra
maneira”. Então, eu vou penetrando neste encontro com todas as difi-
culdades, dentre elas destaco o não conhecimento da língua e nossa
posição de pesquisadores exteriores que iriam tratar os indígenas como
informantes a respeito do artesanato local. Encontramos uma grande
aldeia, com 2 mil índios, de etnias diversas (Waiwai, Tyriana, Tiriyó e
Hixkaryana) convivendo juntos. Ao mesmo tempo esta mistura se dava
num ambiente com forte inserção do Estado brasileiro. Então tinha a
casa da Funai, um aeroporto, uma casa de saúde, uma escola de alvena-
ria com todo um projeto pedagógico fundamentado em uma escola den-
tro dos padrões universais com atividades em língua materna Waiwai
e português, e uma enorme igreja evangélica (fruto de anos de contato
com o projeto Novas missões, vindo da América do Norte).
A partir desta experiência, nosso grupo resolve modificar as
bases metodológicas de se fazer pesquisa sobre para fazer pesquisa
com. A ideia de informante não é mais cabível, e estes outros seriam
tratados como copesquisadores e não mais como objetos informantes.
Aos poucos, nossa prática ganha o nome de etnoeducação.1 De 2012
a 2016 fizemos vários projetos de etnoeducação com diversas comuni-
dades de Oriximiná. Neles a gente convidava os professores e comu-
nitários a conosco construir a pesquisa com os mais velhos, com as
ancestralidades, e, de alguma maneira, a produzir material para den-
tro da escola. Durante estes anos, nosso grupo foi crescendo dentro e

1 Este nome tem a intenção de construir uma educação inspirada no método etnográ-
fico, com imersões profundas nas comunidades de Oriximiná/PA. O prefixo etno tem
maior relação com etnografia do que com etnia.

120
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

fora da UFF, reunindo professores da UFF e das escolas municipais


de Oriximiná, com alunos destas escolas e bolsistas da UFF, além, é
claro, dos comunitários. Este grupo interdisciplinar reúne os cursos de
psicologia, produção cultural, comunicação social, educação e direito.
Nosso colega Emílio participa também, a Estela que está conosco aqui
na mesa para trazer sua experiência na biblioteca do Engenho do Mato
é nossa bolsista, o Lucas sentado ali também é nosso bolsista, e lá, em
Oriximiná, foram se agregando conosco também integrantes de outras
aldeias Kaxuyana e Hixkaryana, comunidades quilombolas e ribeirinhas.
Esse primeiro encontro com a extensão fez com que a gente ten-
tasse produzir uma pesquisa com e não sobre. Nego Bispo tem razão
quando diz que temos que tentar construir um jeito de habitar o nosso
chão, onde estamos pisando, a nossa terra, e assim iniciar a descons-
trução de um jeito colonialista de se fazer pesquisa. Eu, enquanto euro-
centrado, estou, nesse encontro, desconstruindo a minha colonização e
acreditando que há, também, o poder de contracolonização, ou seja, o
poder de um povo que já está na sua terra e que está lutando contra a
colonização, portanto, impedindo, com a afirmação de seus modos de
vida, que a universidade faça aquilo que ela foi planejada para fazer: sus-
tentar o processo de colonização. Esses dois movimentos ficam muito
claros para mim hoje, mas na época, não: movimentos de descoloniza-
ção e movimentos de contracolonização.
Fui aluno de Cristina Rauter e de vários colegas meus com quem
hoje tenho o prazer de trabalhar, pois me formei em psicologia na UFF,
e em 2012, fiz um concurso para professor da UFF. Então, a primeira
coisa que o André do Eirado falou para mim: “Tem um professor cha-
mado Abrahão que está fazendo uns negócios que você vai gostar muito.
Ele está trazendo pai de santo para dar aula com ele”. Eu tomei posse
do cargo em 2012, quando o nosso curso de psicologia estava discutindo
o projeto pedagógico, a reforma curricular. André, como coordenador
do curso, diz: “Você tem ido para Oriximiná e a gente quer montar uma
disciplina que fale das questões indígenas e ameríndias em geral”. Era
também um desafio.
Por isso acho interessante dizer que pesquisar no encontro é
estar disponível realmente ao encontro, ficar sempre na espreita dos
acontecimentos. Nosso modo de fazer pesquisa nos ativa cada vez mais
disponibilidades aos encontros. Menos ansiedade e vontade de fazer o

121
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

que já estava previamente moldado, e mais a vontade de encontrar o que


só no encontro poderemos sendo é possível! Por isso estou contando os
encontros que foram me formando, enquanto pesquisador no encon-
tro. E aí me juntei com o Emílio, que estava chegando, ainda não tinha
chegado à UFF. Conversamos com o Abrahão, falamos sobre a maté-
ria eletiva que ele criou: Exu na Rua: Psicologia e Pensamento Iorubá,
que se tornou obrigatória, com o nome Sociedade Brasileira e África:
Subjetivações Afrodescendentes, que é um pouco como Kitembo, um
pouco como isso aqui. Eu monto uma disciplina chamada Ameríndios
e Subjetividades Nativas, que busca discutir os modos de vida destes
povos que são sempre invisibilidades, e no momento em que a matéria
se oficializou, o sistema nos roubou o termo “ameríndios”, ficando ape-
nas a disciplina Subjetividades Nativas, que existe hoje.
Eu ainda não tinha tido um encontro com encontro dos saberes.
Vai chegar daqui a pouco. E o que eu faço? Eu começo a ampliar minhas
referências bibliográficas para autores indígenas. Tem pouco tempo,
gostaria de falar tanto. Eu começo a estudar a literatura ameríndia, e,
em 2016, eu tentei acelerar, então, esse processo. Eu tenho outro grande
encontro que define um pouco o modo como eu penso a pesquisa, hoje,
com os povos indígenas, que é o encontro com José Jorge Carvalho2 e
com o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino
e na Pesquisa (INCT). Neste encontro, em janeiro de 2016, organizado
pelo nosso colega Emílio – que nesta altura dos acontecimentos já estava
na caravana UFF, já estava no barco, já tinha chegado aqui – a gente
topa construir um grupo de professores e alunos para implementar o
Encontro de Saberes na UFF. Iniciamos aproveitado disciplinas já existen-
tes nos cursos e convidando mestres e mestras – indígenas Guarani, dos
terreiros de candomblé e caiçaras de Paraty – para dar as aulas conosco
nos cursos de graduação. Importante destacar que todos os mestres e
mestras dão estas aulas ganhando o referente a um professor doutor
nas universidades federais de nosso país. Eu confesso, acho que o Bispo,
ontem, faz essa fala. O Encontro de Saberes é hoje algo em que eu acre-
dito muito. Tem sido uma experiência muito boa no sentido de “rasgar

2 Professor de antropologia da Universidade de Brasília (UnB), destaca-se nas lutas e


implementações das cotas etnorraciais na universidade brasileira. Na continuidade
destas lutas ele inicia o Projeto Encontro de Saberes na UFF, que tem como um de seus
objetivos inserir nos cursos de graduação mestres e mestras das tradições de nossa
terra, como professores colaboradores.

122
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

por dentro” nossa universidade, encontrando outros modos de ensinar


e aprender. Para nós, que somos, de alguma maneira, colonialistas, é um
presente, porque a gente, com os mestres e mestras, aprendemos muito
mais do que, muitas vezes, em determinadas pesquisas.
A partir disso, concluindo, minhas experiências como pesquisador
com os povos tradicionais têm seguido a construção de outros modos de
fazer pesquisa. Não mais sobre os indígenas, sobre os quilombolas, mas
com eles, dentro e fora da universidade. Não é a única maneira, eu acho
que existem muitas outras maneiras, porque essa briga é uma briga local
e tem que ser local. O Bispo fala isso, a gente tem que lutar perto de onde
a gente está. Eu sou muito solidário em relação aos problemas da China,
é o que a gente estava conversando aqui, mas eu posso fazer muito pouco
pela China. Eu posso fazer alguma coisa na UFF, onde eu trabalho, onde
eu convivo, então essa luta tem sido uma luta que, para nós, tem sido
muito importante e, para mim, particularmente. E, no momento, nós
conseguimos montar – eu vou terminar falando isso –,no início de 2017,
o primeiro módulo do Encontro de Saberes, em que vieram, numa disci-
plina vinculada ao Departamento de Educação e ao Departamento de
Psicologia, quatro tradições importantíssimas do nosso entorno. Temos
populações indígenas muito perto. Tivemos colegas do povo Guarani,
de Paraty, tivemos caiçaras de Paraty, que é uma população ribeirinha,
mas do mar, que vive, ainda, de maneira tradicional. Tivemos os colegas
que estiveram aqui, hoje, de manhã, do povo do terreiro, conosco, Pai
Roberto, mãe Arlene, mãe Márcia de Sapatá. Tivemos colegas quilombo-
las de São José da Serra e Pinheiral. Estamos, agora, nesse projeto, nessa
missão de transformar um pouco a universidade, para que essa prática
seja cada vez mais corriqueira e, quiçá, daqui a pouco, também, com
povo de favela, com povo de movimento social, trabalhando conosco.
Outras universidades, outras formas de tratar o saber, de tratar o conhe-
cimento, de tratar, principalmente, a relação entre nós, de que seja mais
curativa, mais cuidadosa, mais amorosa, e como eu disse, menos cul-
pada, mais maravilhosa e mais prazerosa.
Eu queria participar de outros encontros, mas acho que já deu para
dar o meu recado. Eu agradeço muito estar com vocês aqui. É muito gos-
toso, muito prazeroso, e a gente pode conversar um pouquinho mais depois.
Obrigado.

123
CAPÍTULO V

Saberes jovens, tradição, universidade e pesquisa


Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

O espaço de autogestão da ocupação no Engenho do Mato


Estela Cardoso

Boa tarde. Eu vou falar do movimento de ocupação comunitária no


Engenho do Mato. É no bairro de Niterói/RJ, onde eu moro há 27 anos. A
ocupação começou com a Roda Cultural do Engenho do Mato, em 2013.
Foi um movimento orgânico, no qual alguns moradores se juntaram e
pensaram em fazer uma ocupação comunitária e ocupar essa praça. Era
uma praça marginalizada. Para quem não conhece, Engenho do Mato é
um bairro que fica no pé da serra da Tiririca, perto da região oceânica de
Niterói. É um bairro marginalizado, periférico, distante, que não é atendido
pelas obras na região e é deixado de lado das ações da prefeitura. A praça
nem era conhecida como praça. Quando a gente chamava: “Vamos fazer
uma roda cultural, aqui, nessa pracinha”, o pessoal falava: “Gente, mas isso
é um retorno, isso não é uma praça”. E a gente: “É, sim, uma praça”.
Então, a gente cuidou, limpou e foi se reunindo ali. Incialmente
éramos umas 5 pessoas engajadas na organização, com o passar do
tempo nosso grupo foi crescendo. Desde o início, juntou a galera do rap
na Roda Cultural, junto com um movimento grande que acontece no Rio
de Janeiro, com a linguagem do hip-hop. A gente fazia grafite, tinha DJ
e batalha de MC. Essa movimentação cresceu, reunindo mais pessoas.
A gente montava o evento nas noites de domingo, com um palco e uma
banquinha com livros para doação e, a partir disso, começamos a rece-
ber muitos livros, que eram guardados na nossa casa. Era um trânsito
de levar para casa e voltar no domingo seguinte. Foram mais de setenta
edições, nesses anos.
Em frente à praça tinha uma biblioteca do centro interativo de
ensino e pesquisa (Ciep) abandonada, onde eu estudei. Ao lado dessa
biblioteca tem outra escola abandonada, a antiga Escola Estadual
Fagundes Varela, eu também estudei nessa escola, fiz o ensino fun-
damental lá. O Fagundes foi fechado para reformas há anos e a obra
nunca saiu do papel. Estes dois prédios parados formavam um cenário
triste na praça. Com o movimento da Roda Cultural ganhando força no
bairro, começou a ampliar as ideias, aumentando a arrecadação de livros

125
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

e ficou interessado na biblioteca. A gente olhava e pensava: “Gente, a


gente está cheio de livros. Onde a gente vai colocar? Tem uma biblioteca
abandonada na nossa frente”. E aí a gente vai. Na primeira tentativa, a
gente não consegue com a diretora do Ciep. Depois, aquela diretora foi
exonerada e a gente conseguiu com a outra diretora um diálogo maior.
Conversamos com ela e conseguimos ocupar o espaço. Com a ocupação,
a diretora fez algumas reformas e a gente entrou na biblioteca. Mas não
tinha água, o telhado quebrado, tudo depredado.
Pensamos: “Como vai ser e o que é ocupar esse espaço? Como
fazer a comunidade ressignificar um espaço que era de abandono para
ser um espaço de cultura, de lazer e de apropriação da comunidade?”.
Para isso, tivemos como principal estratégia os mutirões. Como é den-
tro do espaço do Ciep, entrávamos em contato com os estudantes. Foi
muito difícil. A gente conversava com os estudantes e eles falavam: “Ah,
vocês são da universidade. Vocês vão chegar aqui e vão embora depois
que vocês fizerem as suas monografias”. Como é difícil acreditar que a
gente está querendo fazer mudanças positivas!
Com o tempo, a gente foi conseguindo captar essas pessoas,
fazer com que elas acreditassem que é possível, pelo envolvimento,
pelo afeto que foi feito no espaço. Há várias histórias que a gente pode
contar, mas o que eu acho mais interessante foi como as pessoas se
apropriaram do cuidado pelo espaço, foram tomando para si e aquele
movimento foi crescendo.
A partir disso a gente conseguiu montar uma biblioteca, nascia
a BEM - Biblioteca Engenho do Mato, sem nenhum apoio financeiro,
contando apenas com trabalho comunitário e colaborativo. Se cons-
truiu um espaço novo, onde era possível inventar. Com a adesão de
cada vez mais voluntários a BEM começou a oferecer aulas e cursos,
a primeira atividade foi a capoeira. E logo nos anos seguintes já havia
muitas outras atividades.
Hoje, a gente tem um acervo de mais de 5 mil livros e não recebe
mais doação de livro, por não caber mais nas prateleiras. Agora, a gente
está revitalizando o acervo. Acontecem muitas atividades na biblioteca,
como dança e capoeira. A partir do momento em que dissemos: “Esse
espaço é seu. Vamos ver como vai ser isso”, a comunidade passou a usar
o espaço, e as pessoas foram vindo. No começo, todo mundo era muito
desconfiado, não acreditavam, e surgiam perguntas como “Mas é de

126
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

graça? As atividades são de graça? Como assim?”, até os voluntários


que iam dar aula perguntavam: “Não pode cobrar?”, e a gente colocou
isso de não cobrar, de fazer um espaço, realmente, pelo voluntário, pela
colaboração, e a gente funciona nesse espaço há quatro anos, assim.
Vou mostrar o vídeo que ilustra um pouquinho o início da ocu-
pação, mostra o primeiro mutirão que a gente fez pela revitalização da
praça e da biblioteca, “reativação” (MUTIRÃO…, 2014), como chama-
mos, o começo do início da ocupação.
Trago alguns depoimentos do vídeo:

Acho maneira a atitude de todo mundo aqui, de todos os


alunos, em geral. Esse espaço aqui, que era a nossa biblio-
teca, ficou abandonado, passou para a associação de mora-
dores, jogava um para o outro.
[…]
Antigamente, a gente estudava, fazia um monte de brin-
cadeira legal. Mas agora, o governo abandonou a gente, a
escola também.
[…]
Está nascendo um novo líder: você.
[…]
É difícil de explicar. Essa biblioteca já funcionou, antiga-
mente. Tinha livros. Eu já peguei bastante livro. Depois
de um tempo, o governo abandonou. O que era da escola
passou a ser da associação e a associação deixou de lado. O
pessoal começou violar a biblioteca, entrar lá dentro para
usar drogas.
[…]
A biblioteca estava suja, os vidros estavam quebrados,
estava horrível. As cadeiras estavam despedaçadas, os
livros cheios de poeira, todos sujos, muitos queimados.
Muitos livros foram roubados.
[…]
Invadiram a escola. Picharam as paredes.
[…]
Para mudar a situação, temos que cuidar do nosso
ambiente, do nosso espaço, e botar coerência no que

127
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

queremos fazer. Tem a galera da Roda Cultural que está


junto com a gente. Todo mundo tem que ser coerente, todo
mundo deve tomar conta, procurar ter consciência do que
está fazendo.
[…]
A nossa biblioteca ficou desativada por muito anos, como
todos nós sabemos, e não estamos satisfeitos com isso. Mas
agora a gente está aqui lutando para conseguir o nosso
direito de ter uma biblioteca, o que toda escola tem que ter.
[…]
Hoje em dia, a gente está vendo com outros olhos a
biblioteca.
[…]
Nunca pensei que ali fosse virar alguma coisa boa, mas
graças ao pessoal da Roda, que convidou a todos nós do
grêmio e do colégio para participar da ocupação, o espaço
ficou muito legal.
[…]
Cara, aqui, na biblioteca que a gente está ocupando, tinha
dentista, aula de artes. A comunidade está se impondo junto
com a direção da escola para a biblioteca não ficar largada.
A biblioteca é maravilhosa, tem altos livros. A ocupação é
exemplo máximo para todo mundo. É um local escondido,
era mato, é Engenho do Mato, mas é um lugar bem acolhedor.
[…]

Está nascendo um novo líder. (MUTIRÃO…, 2014).

Quando a gente entrou na biblioteca, foi um desafio de como


ocupar esse espaço. A gente tentou fazer do processo o mais horizontal
possível, e ele ainda está em construção. A gente está, atualmente, um
pouquinho mais amadurecido. Já passamos por várias fases. É um tra-
balho de autogestão, em que todos podem participar e todos são convi-
dados a conhecer o espaço e a propor mudanças. É um espaço aberto. O
que mais me engaja nisso tudo é acreditar que é espaço de resistência.
É difícil falar. A gente vê, hoje, como é possível resistir frente a todos os
descasos que a gente vê no nosso país; a gente está lá fazendo acontecer,

128
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

e é nós por nós. Não tem ninguém ali, não tem dinheiro nenhum envol-
vido, mostrando que é possível produzir um espaço com outro modo de
ensinar, aprender, produzir saber, sem ter que pagar pelo conhecimento.
Estamos aqui dentro da universidade, mas quem entra aqui?
Quem tem dinheiro para pagar um curso pré-vestibular bom para estar
aqui. Na ocupação a gente fez uma coisa diferente. Faz um ano que
a gente fez pré-vestibular comunitário. A gente foi ver o resultado do
Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), e um dos nossos pré-vestibu-
landos passou. É um momento novo.
Eu queria mostrar mais um vídeo para verem como está hoje.
Esse foi um encontro de três anos na Roda Cultural no Engenho do
Mato (RODA…, 2016), em 16 de abril de 2016 – “É som de preto, é som de
preto. […] Resistência” (RODA…, 2016).

Referências
MUTIRÃO: biblioteca Engenho do Mato (BEM). Rio de Janeiro: 202
Filmes, 2014. 1 vídeo (5 min). Publicado pelo canal 202 Filmes.
Disponível em: https://bit.ly/33nBcd3. Acesso em: 2 out. 2020.
RODA cultural Engenho do Mato Projeto BEM. Rio de Janeiro: [s. n.],
2016. 1 vídeo (1 min). Publicado pelo canal Daniel Campos.
Disponível em: https://bit.ly/2Slykra. Acesso em: 2 out. 2020.

129
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

Juventude, roda de rima e tradição da resistência


MC Garcia

Aí, galera, boa tarde. Eu me chamo Garcia. Eu sou MC, composi-


tor e representante da arte de rua, representante da maioria das coisas
que acontecem na rua e que eles ainda insistem em não ver. Sou do
Engenho do Mato, também, e faço parte da biblioteca.
Estou com 21 anos, e até os 17, eu nunca tinha me perguntado o
porquê do nome do meu lugar: Engenho do Mato. Por que Engenho do
Mato? Eu não tinha me dado conta. Eu perguntei para o meu pai e ele
explicou o que era. A gente faz hoje o movimento da Roda Cultural na
mesma praça onde, outrora, era um lugar onde os escravos do Engenho
do Mato apanhavam, e quando o pai do pai do meu pai era um deles, um
dos que apanhavam.
Então eu faço rima nesse mesmo lugar.
Eu fico pensando assim: eu vi a história da galera indígena que
falou antes de mim. Eu acho que o mais importante é saber o que a gente
tem para defender.
Tem uma foto que eu tirei com meus amigos de dez anos atrás,
que tem três, contando comigo, que ainda estão vivos, sabe qual é? Sete
amigos que a gente tinha lá já foram por outras vias, do crime, das dro-
gas. Eu escolhi o rap, a música, porque me apaixonei por essa parada.
Para falar a verdade, eu nem sei muito bem. Eu nem terminei a
escola. Eu parei de estudar na sexta série. Não imaginava que um dia eu
ia estar aqui, segurando um microfone, numa universidade, falando para
uma galera bonita, professores, grandes mestres do ensino, do saber,
com uma linguagem que eu, confesso, não consigo entender muito bem.
Mas eu busco ser sincero, entendeu? Porque eu acho que a sinceridade,
ela resolve qualquer problema, independentemente da situação, assim
tem sido a mim ensinado.
Estou muito contente de fazer parte da biblioteca, porque é uma
coisa que eu vejo como um bem para a minha comunidade, um bem para
as pessoas com quem eu convivo. Ensinar o menino da comunidade e fazer
rima, para mim, são coisas muito importantes. É isso o que gente tem feito.

130
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

Eu não consigo dizer, mas consigo sentir. Eu não sou muito de me


expressar por meio de discursos, mas se eu pudesse mandar uma letra,
aqui, uma poesia, ia ser mais ou menos assim:
“Nessa tarde de sexta-feira, num horário bacana, analisando a
cultura indígena, e então, o microfone na minha mão é igual uma zara-
batana. Eu fio quem eu quero, mas eu também consigo trazer vida às
pessoas que eu vejo necessidades, aqui nessa bela cidade, do Rio de
Janeiro. É malandro, é legal, mas também sabe ser sincero, sabe colocar,
realmente, as pedras que precisam, para que se componha um grande
castelo. Que no fim, independente de indígena, independente de preto,
independente de branco, formemos uma só humanidade, uma só cons-
trução, e que o amor seja, realmente, a força de toda uma grande nação”.
É isso.

131
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

Na universidade e na rua a juventude de terreiro cansou de se calar


Maiah Lunas Maciel Marques de Oliveira

Boa tarde. Primeiramente, eu queria pedir licença aos mais


velhos, aos mais novos, tomar a benção ao povo de terreiro, meu Aó,
Motumbá, Mukuiu, Awurê. Meu nome é Maiah Lunas, sou equede de
Iansã e filha de Oxóssi.
É difícil falar depois que essa juventude falou – os meninos foram
sensacionais. É bom perceber que somos povos diferentes, mas esta-
mos lutando por coisas muito parecidas, pela nossa existência. É difí-
cil, às vezes, entender. Me emocionou muito a fala do MC Garcia, dessa
coisa da academia não nos entender. Eu sou estudante da Universidade
Federal Fluminense (UFF), faço bacharelado em ciências sociais e estou
me formando nesse semestre, se Deus quiser. A academia é aquela coisa
que a gente brincou da porta giratória, parece que você entra e toda hora
você está sendo jogado para fora. É um esforço diário permanecer nesse
ambiente. A gente escuta as coisas mais bizarras. Eu faço parte do grupo
de trabalho (GT) de juventude de terreiro da Rede Nacional de Religiões
Afro-Brasileiras e Saúde (Renafro) e faço parte do Coletivo de Estudantes
Negrxs Iolanda Oliveira, da UFF. E por meio do coletivo, a gente está tra-
vando uma luta aqui dentro para conseguir implementar cotas na pós-gra-
duação dessa universidade. Tem hora que é muito cansativo, mas é o que
Bruno falou, de saber que estamos aqui, mas você não é só você, você está
carregando e representando muita gente, além de não estar aqui sozinho.
Também é importante entender, a partir da fala do MC, que esse
espaço acadêmico é legal, mas ele não é o único caminho. É impor-
tante compreender que não estar aqui dentro é uma luta e que o que se
faz em uma comunidade como Engenho do Mato é muito importante.
Percebe-se que para esses jovens que estavam falando sobre o audiovi-
sual que vimos, alguns apoios e trabalhos feitos ali podem mudar vidas.
Inclusive, eu tenho amigos naquela escola, e, uma vez, uma amiga minha
de lá me falou assim: “Eu quero fazer um técnico em radiologia, mas eu
não sei nem se eu consigo passar num técnico”, e eu perguntei como e
por que ela achava que não conseguia passar no técnico. Travamos uma

132
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

conversa sobre isso e foi necessário eu dizer várias vezes que ela era
capaz. Dizer para esse jovem que ele é capaz de ocupar o espaço que
ele quiser, que pode estar na academia, mas que pode estar em outros
ambientes batalhando, é muito importante e me faz pensar sobre a
autoestima que esse jovem tem. Não falo aqui de autoestima de beleza,
mas de acreditar em si próprio, de se enxergar potente e capaz.
Tem esse momento de se sentir perdida na universidade, de pensar
como eu posso servir ao meu povo. Vou para a educação, para a antropo-
logia? Como eu vou conseguir dialogar com o meu povo? Aonde eu posso
levar o que eu aprendi na universidade e o que eu luto para aprender aqui?
Nós estávamos com uma discussão recente para ter matéria nas
quais conseguíssemos ler pesquisadores negros. Ao invés de ler pesqui-
sadores brancos que falam da comunidade negra e do povo negro, ler
pesquisadoras negras, ler autores negros, e uma professora entrou nessa
luta. A gente está com uma matéria na qual se lê literatura negra, de
mulheres negras, e etnografia produzida por mulheres negras. Em outra
matéria, eu parei para me questionar que a gente não leu uma literatura
indígena. A gente leu recentemente sobre Davi Kopenawa, mas o texto
não é dele; o que é isso? Você lê sobre um indígena, o que ele fala, mas
para o texto ser publicado, não pode ser ele a escrever.
Algumas narrativas construídas dentro do ambiente acadêmico
são extremamente racistas e classistas. Dentro da sala de aula já escu-
tei um professor dizer que favelado não tem cultura, que mãe de fave-
lado não tem o que deixar para seus filhos, visto que não tem cultura.
Também já escutei professor falar em uma reunião de colegiado em que
se discutia sobre a adesão de cotas na pós-graduação, que seria necessá-
rio criar um curso para ajudar esses estudantes cotistas que iriam entrar
no mestrado, pois eles viriam com uma educação defasada. Sendo que
esses estudantes cursaram a graduação junto com os alunos brancos.
Assim, mostramos como é necessário ocupar o espaço acadêmico
no sentido de transgredir, porque este é um espaço elitista, branco,
eurocêntrico e cis normativo. É um espaço que parece que todo dia
que a gente entra, a gente morre um pouquinho. E ao mesmo tempo, a
gente ressurge das cinzas, porque tem uma coletividade que também é
suporte. Sou muito grata a algumas amigas minhas que estão aqui hoje,
de poder por meio da convivência conseguir minimamente construir um
dia a dia saudável dentro da universidade.

133
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

Com a luta por ocupar espaço, essa semana tivemos uma notícia
muito boa. Nós fizemos um preparatório para o mestrado de antropolo-
gia da UFF, para estudantes que entrariam por meio das cotas. Nesse pre-
paratório, lemos o edital e discutimos os textos que caíram na prova. Na
primeira fase, foram seis aprovados pela ampla concorrência, seis apro-
vados por cota, e cinco que a gente conseguiu a revisão de provas. Falta
ainda a fase das entrevistas. É a luta para colocar a galera aqui dentro e,
finalmente, a gente falar pela gente. É a gente começar a traçar a nossa
história e deixar de ler e de ouvir coisas absurdas sobre o nosso povo.
Tem uma coisa que eu não podia deixar de falar, que é sobre o olhar
do ancestral. A juventude de terreiro, da qual faço parte, é um grupo que
pertence a uma rede maior, que é a Renafro. Ela trabalha a saúde, e por
meio dela discute racismo em todas as formas. A rede está com 25 anos,
mas tem uma trajetória anterior à Renafro, e recentemente a gente per-
deu o nosso criador, quem deu esse pontapé, o Ogã José Marmo. Eu não
poderia deixar de citá-lo, porque eu entrei na militância da juventude de
terreiro por meio do Marmo, uma pessoa que me ensinou a ser quem sou
e a lutar pelo que sou. Ser jovem, negra, lésbica, de terreiro não é fácil.
É lutar todos os dias pelo que a gente é, e isso é muito difícil. Aqui eu
falei muito sobre os racismos vividos dentro da universidade, mas é por-
que estamos nesse ambiente e são batalhas que tenho tentado travar no
momento. No entanto eu não podia deixar de citar o Marmo. Embora a
minha família também me apoie muito, às vezes a gente precisa de outro
empurrão que fala assim: “Vai, que você é capaz”.
Hoje eu estou aqui como juventude de terreiro, mas acredito estar
representando muito mais, primeiro porque, como eu disse, não sou
apenas de terreiro, sou negra e lésbica, e também porque falar de can-
domblé é lutar por existir desde que chegamos nessa terra. O povo de
terreiro está morrendo. É preciso parar de falar de intolerância religiosa,
e começar a falar de terrorismo religioso, de racismo religioso. Quando
entram no terreiro e atiram numa mãe de santo, quando entram num
terreiro e fazem a gente quebrar tudo que tem ali dentro, não é mais
intolerância, é terrorismo. Há que entender que isso é racismo religioso,
racismo étnico, porque a ideia é acabar com toda essa diferença étnica.
Eu me cansei de pedir paz. Estou pronta para a guerra, mesmo.
A paz é uma coisa meio imposta para a gente. É o olhar muito europeu,
cristão, de que vai ter uma paz, a paz de Cristo vai chegar e vai ficar tudo

134
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

bem. E não é assim. Os meus ancestrais, meus orixás, minkisi, voduns e


encantados guerrearam para existir. Então estou aí pronta para guerra,
e vamos nos unir.
Os jovens indígenas falaram de avançar. A gente devolve tudo
para a comunidade indígena, eu acho que é melhor, entendeu? A situa-
ção do país está muito complicada politicamente e eu acho que a gente
tem que começar a travar as batalhas, sim, a guerrear, sim, a sair de casa
com sangue nos olhos. De vez em quando tem uns olhares nos ônibus,
pois ando com meus fios de conta diariamente e às vezes rolam uns bar-
racos. Eles estão sendo necessários. Cansei de me calar.
É isso aí, vamos para frente atacar onde for necessário. É isso.

135
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

Caminhos da luta antirracista na UFF


Cristina Rauter

Eu queria agradecer ao Abrahão e a todos que organizaram este


evento, agradecer muito por estar aqui, em primeiro lugar, porque eu
acho que a universidade tem se tornado mais colorida, mais diversa
e eu estou gostando disso. O primeiro momento em que percebi essa
mudança foi numa disciplina optativa que costumo ministrar. Foi
quando notei que lá havia alguns estudantes cotistas e que isso con-
tribuiu para melhorar a disciplina. É uma disciplina na qual estudo a
questão sobre a qual trabalho há muitos anos, a dos processos de cri-
minalização e sobre a difícil realidade de nossas prisões, perspectiva da
criminologia crítica. Quando aconteceu essa mudança na universidade,
vi que as discussões na disciplina estavam muito mais interessantes,
porque havia pessoas que viviam essa realidade, a de ser discriminado
pela cor e ser estigmatizado de várias formas. Eles tinham muito mais
condições de perceber os processos de criminalização no Brasil, tendo
experimentado o modo como a polícia aborda os negros, por exemplo,
ou sua presença constante nos bairros populares. A partir dessa expe-
riência, vivida na pele, podiam discutir melhor essa realidade.
Ao conversar sobre essa experiência da disciplina com Abrahão,
pensamos: por que a gente usa tanto Foucault e não usa, por exemplo,
Joaquim Nabuco e outros pensadores brasileiros para falar da questão
do racismo no Brasil? Para quem trabalha a questão da prisão, é impos-
sível que não se defronte com a questão do racismo. Visitar uma prisão
é uma verdadeira aula sobre a discriminação racial no Brasil, pois ali
encontraremos uma maioria preta. Para quem diz que não há racismo
em nosso país, basta olhar. É uma coisa visual. Não tem como negar.
Mas alguns negam, apesar disso.
No meu livro Criminologia e subjetividade no Brasil (2003), tinha
feito uma pesquisa sobre o discurso dos juristas brasileiros contemporâ-
neos à elaboração do Código Penal de 1940. Muitos desses juristas eram
abertamente racistas. Seja pelo racismo declarado de alguns juízes e
técnicos, seja pelo próprio funcionamento do sistema. E mesmo quando

136
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

esse racismo não é tão escancarado, o fato é que o sistema de justiça


criminal brasileiro só consegue encarcerar pretos e pobres. Vivi de perto
a realidade de nossas prisões ao trabalhar como psicóloga no sistema
penal carioca no final dos anos 1970. Desde essa época tenho pesqui-
sado e publicado sobre esse tema. O livro a que me referi (RAUTER,
2003) é uma coletânea de textos meus, incluindo minha dissertação de
mestrado, todos voltados para pensar essa difícil realidade com a qual
me defrontei, no início de minha vida profissional e que se tornou o
principal problema sobre o qual passei a pensar e pesquisar até hoje.
Outra constatação que tinha feito já há algum tempo: apesar de
ser tão exaustivamente lido no Brasil e tendo escrito um livro funda-
dor sobre o tema das prisões disciplinares, Vigiar e Punir, Foucault não
explica, a meu ver, as nossas prisões. Penso que as prisões brasileiras
em sua maioria não são disciplinares. Uma coisa que é característica
das nossas prisões é o fato de, muitas vezes, o diretor não saber quantos
presos tem na unidade prisional. Como se pode falar de disciplina nessa
instituição? É tão grande a velocidade do encarceramento, cuja conse-
quência é a superlotação, e tão poucos são os agentes penitenciários,
que é impossível olhar para uma prisão brasileira e pensar no panóptico,
de Bentham. Num sistema penal como o nosso, que hoje comporta a
terceira população carcerária do mundo, reina grande desorganização
e um estado de emergência sanitária constante. Não se sabendo qual é
o efetivo carcerário, pode-se melhor ocultar as mortes por maus tratos
ou por doenças, e dessa forma não prestar contas às famílias e à socie-
dade em geral. Porém é preciso notar que a sociedade aparentemente
não quer se ocupar do que se passa por trás dos muros das prisões. Há
muito tempo o sistema de justiça criminal brasileiro segue o bordão
“bandido bom é bandido morto”, aprovado por grande parte da popu-
lação e difundido pela mídia. Isso é muito diferente do panóptico, des-
crito por Foucault, caracterizado pelo controle individualizado e pela
observação e pela vigilância exaustivas que este modelo implica. Penso
que no Brasil convivem regiões disciplinares e regiões de amontoados
humanos. Nessas regiões de amontoados humanos, alguns podem mor-
rer ou desaparecer sem que nenhuma autoridade verdadeiramente se
ocupe desse fato. Ninguém tem número ou uniforme, ao contrário do
que ocorre numa prisão disciplinar como as que vemos nos filmes ame-
ricanos. As regiões de amontoados humanos são mais parecidas com as

137
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

masmorras inquisitoriais do que com prisões disciplinares. E lembre-


mos que essas masmorras têm, segundo dados oficiais, uma população
composta por cerca de 65% de pretos e pardos.
Mas creio que hoje é um dia de celebração, um dia de alegria, por-
que a universidade começa a mudar. Participei da comissão que implantou
as cotas no programa de pós-graduação em psicologia. Foi um processo
difícil, e está sendo ainda. Já ouvi vários colegas professores dizerem: “Eu
não estava preparado(a) para universidade do jeito que ela está hoje”. Ouvi
de pessoas amigas essa frase. É difícil para muitos reconhecer o quanto a
universidade, e especificamente a nossa universidade, é excludente. Era,
até recentemente, uma universidade majoritariamente branca. Isso é uma
coisa que ninguém gosta muito de enxergar, porque foi negado durante
muitos anos, mesmo sendo a UFF, uma universidade que sempre teve
um sindicato forte, considerada uma universidade de esquerda, na qual
os professores fizeram muitas greves em defesa da universidade pública.
Nossa universidade teve e tem também forte presença no sindicato nacio-
nal dos docentes do ensino superior, o Andes. Já fui representante do
Instituto de Ciências Humanas e Filosofia na Associação dos Docentes
da UFF (ADUFF), nosso sindicato local, no final da década de 1990, e par-
ticipei de congressos e encontros nacionais do Andes. Certa vez descobri
que o sindicato nacional tinha uma posição ambígua em relação às cotas.
Havia muitos professores que as defendiam em GT, de vários estados do
Brasil, mas as cotas não eram defendidas pela direção do sindicato de
então. Era curioso, porque, por um lado, o sindicato, que sempre teve um
funcionamento democrático, dava toda a cobertura para que os grupos
que defendiam cotas tivessem voz e presença nas assembleias realiza-
das nos congressos, mas na hora das votações, a posição defendida e que
acabava prevalecendo era sempre de que o importante era a unidade do
movimento e não as cotas raciais. Elas deveriam ficar para depois, quem
sabe para depois da revolução, numa posição bastante comum nas esquer-
das. Essa postura, apesar de ser difícil de ser sustentada, ainda prevalecia.
Estávamos no final da década de 1990.
Os professores têm que fazer uma autocrítica grande, e é difí-
cil fazer autocrítica. Mas creio que, aos trancos e barrancos, estamos
avançando. Por mais difícil que fosse, quando eu participava daquelas
discussões sobre cotas raciais na nossa pós-graduação em psicologia, eu
pensava: vamos continuando do jeito que der, o negócio é não parar. E

138
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

ao final, as cotas foram aprovadas, alterando completamente os proce-


dimentos anteriores de seleção de candidatos de mestrado e doutorado.
Eu tinha clareza de que era importantíssimo que adotássemos
ações afirmativas. Na adolescência eu morei nos Estados Unidos, exata-
mente naqueles anos muito peculiares, os anos de 1969 e 1970. Eram os
anos do festival de Woodstock, das lutas contra a Guerra do Vietnã, das
lutas vitoriosas do movimento negro americano, dos Panteras Negras,
da contracultura. Foi naquele ano que o governo americano promoveu
o que se chamou de Bus In: o processo de juntar os estudantes brancos e
negros numa mesma escola pública. Até aquela data ainda havia escolas
negras e escolas brancas. Na cidade de Oklahoma, próxima à cidade
onde eu morava, havia uma universidade só para negros. As leis já proi-
biam o fato, mas a prática da segregação racial nas escolas e em algumas
universidades continuava. Richard Nixon era o presidente nesse período
e, muito pressionado pelo movimento negro, acabou aprovando essa lei
da integração racial das escolas, que foi implementada naqueles anos
em que morei nos Estados Unidos. Ao viver isso tudo, comecei a ter
uma compreensão maior sobre o racismo que havia lá e, simultanea-
mente, percebi melhor o racismo brasileiro. Todo brasileiro que sai do
Brasil pela primeira vez se apercebe do quão desigual e racista nossa
sociedade é. Ou tem a chance de perceber. Como branca brasileira, eu
não percebia bem essa realidade antes de ir para os Estados Unidos,
saindo do Brasil pela primeira vez, aos 15 anos, em plena ditadura mili-
tar. Quando voltei de lá, percebi melhor o que se passava aqui; nosso
racismo fortemente arraigado e nossa desigualdade econômica abissal
se tornaram mais perceptíveis para mim. Mas havia diferenças entre
o que se passava lá e o que se passava aqui. Lá havia um movimento
negro organizado e na escola em que eu estudava, que já era integrada
por ser a única escola pública de nível médio da cidade, o movimento
Black Power era forte. Os estudantes negros andavam sempre juntos e
se manifestavam em muitas situações. Certa vez houve conflito racial
aberto e muitas mães de estudantes negros foram esperar seus filhos
na saída da escola. Quando a escola toda se reunia no ginásio esportivo
para alguma celebração, a banda da escola começava tocando o hino
nacional. Os estudantes negros, todos juntos, levantavam seus punhos.
Sendo eu estrangeira, me aproximara de outros estrangeiros, da América
Latina, da Tunísia, da Finlândia, da Inglaterra. Eu morava numa cidade

139
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

universitária, onde havia muitos estrangeiros. Nesses eventos no ginásio


da escola, nós, estrangeiros apenas ficávamos de pé, mas não colocáva-
mos a mão no peito durante o hino, como os estudantes brancos.
Mais tarde eu comecei a me aproximar, como professora, desses
temas, não só por essa via da questão do crime, da prisão, mas também pela
antiga convivência com minha aluna Maria da Conceição Nascimento,
sempre próxima como aluna da graduação e depois como orientanda
de mestrado e de doutorado. Orientar sua dissertação de mestrado e,
atualmente, sua tese de doutorado, em parceria com o Prof. Abrahão,
foi também para mim uma oportunidade para me aproximar ainda mais
das questões ligadas ao racismo no Brasil, de certo modo revertendo a
situação: quem orienta quem? Certa vez, já no doutorado, Conceição me
convidou para escrever um artigo para a revista da Associação Brasileira
de Pesquisadores Negros (ABPN). Ela estava organizando um número da
revista. Um dia eu disse a ela: “Conceição, eu não sei o que escrever sobre
a questão racismo, eu não trabalho com isso. Eu já li muita coisa, mas
não sei se eu consigo escrever”. Então ela me disse: “Como você não tra-
balha com isso? Então escreva sobre a branquitude”. Aceitei o desafio. Eu
resolvi escrever sobe um tema muito interessante para mim – o da imi-
gração alemã no Brasil. Tenho bisavós paternos austríacos, e da parte da
minha avó materna, tenho também uma bisavó alemã. Na família pouco
se sabe ou se fala sobre as circunstâncias da imigração. Foi então que
comprei um livro que está numa lista de livros feita por Antonio Candido
sobre o que se deveria ler para conhecer o Brasil. Naquela lista havia um
livro de Emílio Willems (1980) sobre os imigrantes alemães, um tema pou-
quíssimo explorado, apesar de hoje haver universidades do sul do Brasil
que se dedicam a pesquisá-lo, numa direção diferente daquela muito
comum, que apenas glorifica a saga dos imigrantes e que conta uma his-
tória mais mítica do que real. A partir desse livro e de outras bibliografias
que pesquisei, acabei escrevendo o artigo “Os que vieram para branquear
o Brasil: o moinho de gastar gente e a imigração alemã no século XIX”.
Nele fiz algumas reflexões sobre como esses imigrantes vieram e por que
vieram, especificamente com relação à imigração ocorrida no século XIX.
Quando falamos em imigração alemã no século XIX, temos que
levar em conta que a Alemanha ainda não existia como país, portanto os
imigrantes de língua alemã eram provenientes de diferentes regiões, e
poderiam ser em muitos casos estrangeiros entre si. Se eles vieram para

140
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

branquear o Brasil, sonho de muitos intelectuais da época, como Nina


Rodrigues e Oliveira Viana, e de políticos, eles também viveram o que
Darcy Ribeiro chamou de “moinho de gastar gente” – referindo-se ao
Brasil e às condições a que é submetida a classe trabalhadora. Sem direi-
tos, muitas vezes enganados, em relação à prometida propriedade de terra
que teriam ao chegar, os imigrantes de língua alemã, oriundos de dife-
rentes regiões da Europa, tiveram seus próprios motivos para deixar seus
países de origem, submetidos às terríveis condições de vida trazidas pelo
capitalismo que se implantava no campo e nas cidades e à fome genera-
lizada, num processo que se denominou “diáspora europeia”. Porém é
preciso ressaltar que esses imigrantes tinham no Brasil um trunfo valioso:
apesar de isolados, lançados à própria sorte nas matas virgens, dizimados
por doenças, eles eram brancos. Assim, seu destino não foi igual ao dos
negros escravizados ou libertos, ou dos índios e caboclos, seus vizinhos
mais próximos em terras pouco povoadas. Por mais sofrida que tenha sido
a imigração nesse período, sua maior vantagem foi sua cor. Não que eles
concordassem ou tivessem consciência do projeto de branqueamento,
pois o discurso, hoje tão difundido pelo nazismo sobre a superioridade
dos alemães, só se tornaria hegemônico no século seguinte.
Ainda que os passos dados pela atual política de cotas não sejam
suficientes e precisem ser defendidos e ampliados, a universidade de
hoje tenta deixar de ser branca e mostra uma face nova para quem viveu,
como eu, a universidade desde a década de 1980. Ela se torna mais rica
e diversa, mais capaz de pensar e produzir outras realidades para nosso
país. Mas a luta está apenas começando.

Referências
BASTOS, Janaína Ribeiro. O lado branco do racismo: a gênese da iden-
tidade branca e a branquitude. Revista da ABPN, Rio de Janeiro,
v. 8, n. 19, p. 211-223, 2016.
RAUTER, Cristina. Criminologia e subjetividade no Brasil. Rio de Janeiro:
Revan, 2003.
RAUTER, Cristina. Os que vieram para branquear o Brasil: o moinho de
gastar gente e a imigração alemã no século XIX. Revista da ABPN,
Rio de Janeiro, v. 10, n. 24, p. 67-88, 2018.
WILLEMS, Emílio. A aculturação dos alemães no Brasil. São Paulo:
Nacional, 1980.

141
CAPÍTULO VI

Pesquisa e vida em conexão


Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

Pesquisa em conexão: uma perspectiva em construção


Viviane Pereira da Silva

Escrevo este texto em abril de 2020, portanto cerca de dois anos e


meio desde a realização do III Encontro Kitembo: Povos Afro-indígenas,
Saberes Tradicionais e Pesquisa em Diálogo com a Universidade. Este é
um exercício muito bacana, pois me possibilitou perceber que vivencia-
mos no grupo de pesquisa como que o fechamento de um ciclo, momento
em que conseguimos definir melhor nossas questões e explicitar alguns
aspectos propositivos quanto às nossas ferramentas de pesquisa.
Nas primeiras conversas que tivemos no Kitembo, em 2017,
entendemos que pesquisar subjetividade e cultura afro-brasileira não
era para nós uma mera escolha de tema, mas a vontade de construir um
modo. Esta necessidade surgiu do reconhecimento de que o compro-
misso que tínhamos de produzir uma psicologia que pudesse oferecer
cuidados condizentes com as demandas das populações afropindorâmi-
cas era importante, mas não seria efetivo se não repensássemos o pró-
prio modo de produzir conhecimento nesta área. De início, isso exigiu
para que puséssemos em questão as metodologias de pesquisa de que
dispúnhamos até então e trouxéssemos à cena a história do encontro
entre os saberes acadêmicos e afropindorâmicos.
Este exercício crítico nos colocou diante de um grande problema,
pois a história deste encontro é marcada por processos de extermínio,
dominação e exploração, os quais certamente não tínhamos a intenção de
reproduzir. No entanto percebemos também que confiar em nossa intenção
de não reproduzir mecanismos tão arraigados em nossa formação subjetiva
não seria suficiente. Teríamos que realizar um trabalho permanente sobre
nós mesmos, voltado à transformação não apenas do que em nós estava
colonizado, mas também daquilo que em nós queria colonizar o outro,
dominá-lo, submetê-lo, inferiorizá-lo, pois esta é a regra do que ocorre his-
toricamente no encontro entre saberes e práticas acadêmicos e populares.
Era preciso que avançássemos nas críticas que vínhamos fazendo à colo-
nialidade da psicologia e pudéssemos propor alternativas, possibilidades
que nos levassem além da constatação de uma psicologia que não serve.

143
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

Pouco tempo antes de tomarmos esta como uma problemática


central do trabalho em nosso grupo de pesquisa, endereçamos ritualisti-
camente a Nkosi o pedido de que nos orientasse na construção de ferra-
mentas de atuação em psicologia condizentes com as noções de pessoa
e saúde praticadas pelos povos afropindorâmicos. Nosso pedido vem
sendo atendido e, desde então, trabalhamos muito para forjar nossas fer-
ramentas. Por um lado, o trabalho da forja é incandescente, apaixonado,
movido pelo fogo que transforma tudo. Por outro, exige também muita
paciência e determinação para sustentar os golpes ritmados e contínuos
que aos poucos vão moldando a massa incandescente. Esse é o trabalho
braçal, por vezes monótono, que dá consistência e consequência à explo-
são inicial proporcionada pelo fogo. Isso nos ensina Nkosi.
A magia e a macumba já produziam efeitos no ato mesmo de sua
feitura: afinal, quantos grupos de pesquisa têm o ebó como ferramenta de
trabalho, de intervenção, de produção acadêmica? Certamente naquele
momento não era para nós tão evidente que este ato ritualístico não acon-
tecia “por fora” do trabalho de pesquisa, mas em seu cerne. Atualmente,
após alguns avanços em nossos percursos de elaboração, podemos reco-
nhecer que ali já produzíamos uma nova metodologia de pesquisa acadê-
mica. E os efeitos de nossa macumba foram ainda muito além.
Pouco tempo depois de realizado nosso ato ritual a Nkosi, tivemos
a ideia de realizar o III Encontro Kitembo. Realizamos este evento com
o objetivo de aprendermos com pesquisadores orgânicos sobre como
nossos estudos poderiam contribuir com as lutas quilombola, indígena,
das religiões de matriz africana e das favelas. Com o termo “pesqui-
sadores orgânicos”, remeto à diferenciação que o quilombola Antônio
Bispo dos Santos – um dos convidados de nosso evento – estabelece
entre conhecimento sintético e orgânico. Bispo afirma que o primeiro
dá sustentação à racionalidade capitalista da propriedade e seu aparato
socioinstitucional, valorizando o ter. O segundo dá sustentação à vida
e se desenvolve na relação entre as pessoas e a natureza, priorizando o
ser. Este é resolutivo, pois a vida não se desenrola no mundo das ideias:
exige ação. Em uma palestra sobre direito orgânico e sintético, Nego
Bispo cita como exemplo de concepção orgânica do direito o fato de
que nas comunidades quilombolas não há cadeias, pois se alguém age de
maneira equivocada, deve ser corrigido na relação social: não há como
ressocializar fora da sociedade. Para o direito/saber orgânico, o que vale

144
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

são os efeitos práticos nas vidas das pessoas, no sentido de garantir a


sobrevivência e o melhor viver (RODA…, 2016).
Os dois dias de encontro do III Kitembo foram de grande inten-
sidade. Os participantes – organização, convidados e ouvintes – afirma-
vam todo o tempo estar muito emocionados. As falas da maior parte dos
convidados, carregadas de memórias sobre seu povo e suas lutas, de um
modo de vida marcado pela ancestralidade, pelo pertencimento e pelo
propósito no seu saber-fazer contagiaram a todos e nos levaram a um
reconhecimento de nossas próprias implicações e de nossa responsa-
bilidade enquanto pesquisadores. Os aprendizados que recebemos nos
marcaram profundamente e reverberam até hoje em nossas discussões
de estudo, em nossos textos, em nosso trabalho e vida. Posso dizer que
o III Kitembo para nós já dura quase três anos.
Após o evento, discutindo o livro de Nego Bispo (SANTOS, 2015)
em uma de nossas reuniões de estudo, entendemos que o modo de pro-
dução do saber acadêmico hegemônico exige que o pesquisador se afaste
da comunidade e do trabalho braçal para se tornar um trabalhador
intelectual. Já nas perspectivas dos saberes tradicionais negro e indí-
gena, temos o pertencimento à comunidade e o trabalho prático como
bases para a construção de qualquer saber útil e válido. Isso ficou muito
evidente nas falas de Nego Bispo, Capitão Potiguara, Hosana Santos,
Guilherme Xukuru, Bruno Potiguara, seu Cecílio Feitoza, MC Garcia,
pai Roberto Braga, mãe Arlene de Katende, Estela Cardoso, Ricardo De
Moura, dona Dona Zilda Chaves e ekedi Maiah Lunas, no III Encontro
Kitembo. Entre experiências tão diversas narradas por indígenas, qui-
lombolas, favelados e candomblecistas, um traço em comum: nenhum
deles estava ali sozinho. Estavam ali com um povo e por um povo: um
povo encarnado, que vive em suas comunidades de origem e também
um povo ancestral, que os protege e inspira na luta. Importante destacar
que este modo de vida/trabalho/pesquisa não foi por eles construído a
partir de racionalismos acadêmicos. Trata-se de um modo que trazem de
sua vida, de suas origens, de seu pertencimento ancestral e comunitário.
A partir destes ensinamentos, pude perceber dois modos muito
diferentes de fazer pesquisa: um que vou designar como modo do “sujeito
acadêmico clássico”, produto de uma universidade elitizada e segregadora,
e outro que vou chamar de modo dos “novos sujeitos acadêmicos”, mui-
tos dos quais têm chegado à graduação e à pós-graduação por meio das

145
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

políticas de ações afirmativas. Vale frisar que pessoas negras e indígenas


vêm acessando o ensino superior de maneira pontual já há muitos anos.
Como nesta pesquisa temos nos dedicado principalmente à produção de
autores afrodescendentes, citamos os nomes de alguns intelectuais que se
tornaram referência na luta negra e na produção de conhecimento aca-
dêmico, como Beatriz Nascimento, Conceição Evaristo, Lélia Gonzalez,
Abdias Nascimento, Sueli Carneiro, dentre outros. No entanto, entende-
mos que a produção e a atuação destas pessoas se deram em um contexto
acadêmico e social bastante adverso, em que o silenciamento acerca do
racismo institucional e do epistemicídio eram quase absolutos. No entanto,
graças à atuação de tais intelectuais, às conquistas do Movimento Negro
e notadamente à política de cotas, atualmente a garantia de entrada de
número significativo de estudantes não brancos no ensino superior brasi-
leiro tem possibilitado que este seja pautado em suas bases eurocêntricas
de produção de conhecimento e em sua organização institucional racista e
excludente. Apesar de muito restar a ser feito ainda para que possamos con-
siderar que haja relações raciais justas e igualitárias no âmbito acadêmico,
fato é que tais questionamentos vêm produzindo mudanças e abalando as
estruturas elitizadas do ensino superior. Sendo assim, por meio da expres-
são “novos sujeitos acadêmicos”, nos referimos aqui aos estudantes cotis-
tas, cuja chegada na academia vem abalando seus pilares de sustentação e
gerando outras possibilidades de relação e de produção de conhecimento.
No Brasil, onde a educação universitária sempre foi um meio de
exclusão social, de perpetuar o poder e o privilégio das elites brancas,
o sucesso acadêmico esteve historicamente reservado aos melhores
exemplares do sujeito liberal moderno: individualista, racionalista, des-
territorializado, descendente do self made man, o homem que faz a si
mesmo, modelo meritocrático, liberal por excelência. Todo seu processo
de pesquisa tem como foco seu próprio umbigo: suas curiosidades, inte-
resses, questões, dificuldades. No fim das contas, é o protagonista de sua
pesquisa e quem colhe dela os maiores benefícios.
O modo de pesquisa dos “novos sujeitos acadêmicos”, por sua vez,
tem na universidade um meio de fortalecimento da luta de seu povo. Tais
sujeitos muitas vezes abrem mão de seus interesses pessoais, para realiza-
rem o que seu povo precisa, como foi o caso de Guilherme – indígena da
etnia Xukuru –, um dos fundadores da Ororubá Filmes. Apaixonado pelo
campo audiovisual, o rapaz queria ter feito cinema, mas cursou a faculdade

146
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

de direito em função das necessidades do seu povo naquele momento. Por


outro lado, tal forma de engajamento não implica em martírio, como mos-
tra o caso de Bruno – indígena da etnia Potiguara –, que iniciou a graduação
em engenharia em função das necessidades de seu povo, mas não suportou
a dureza das relações naquele curso e acabou migrando para a graduação
em ecologia, campo que avalia como um pouco mais suave e possível de
habitar. Acadêmicos como Bruno e Guilherme estão em conexão com a
realidade de seu povo, com a luta da vida e pela vida.
A professora e psicóloga Luiza Oliveira afirma que o modelo de
investigação científica que partilhamos anuncia a pergunta e a dúvida
como atitudes que embasam a pesquisa, mas que, na prática, não é isso
não acontece. A investigação científica está repleta de preconcepções que
marcam relações hierárquicas entre as pessoas que participam das pes-
quisas – classificadas como sujeitos e objetos – e os saberes que nelas têm
lugar, sendo os científicos os únicos que têm status de verdade. Por mais
que falemos em história oral, história de vida e narrativas, na prática ocorre
uma relação unilateral, em que o(a) pesquisador(a) detém o privilégio de
definir as condições em que ocorre aquele processo, seus objetivos e usos,
além de ter o privilégio de ser quem enuncia o discurso verdadeiro. Sendo
assim, em nosso campo de interesse – que poderíamos designar como o da
psicologia social –, psicólogas e psicólogos ocupam o lugar de sujeitos nas
pesquisas, detentores do conhecimento psicológico verdadeiro (científico),
que é eurocentrado. Do “outro lado”, ocupando o lugar de objeto, estão
quilombolas, grupos indígenas, favelados, usuários das políticas públicas,
candomblecistas, dentre outros, cujos modos de saber e viver podem ou não
ser legitimados pelo referencial científico, o único conhecimento que tem
este poder de legitimação de outros saberes no contexto ocidental.
Há na relação de pesquisa, portanto, uma hierarquia de base,
que distribui de maneira desigual o poder no processo de produção
de conhecimento. No contexto brasileiro, os povos afropindorâmicos
foram historicamente excluídos do lugar de sujeito nas pesquisas pelas
inúmeras dificuldades de acesso ao ensino superior que lhes são impos-
tas. Seus saberes, por sua vez, foram e ainda são diminuídos por meio de
adjetivos como “populares”, “étnicos”, “tradicionais”, “míticos” – usados
no contexto acadêmico para marcar a diferença em relação ao conheci-
mento verdadeiro/científico – e submetidos à chancela da ciência quanto
ao seu status de verdade.

147
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

Esta era a relação que nos causava incômodo quando, no início de


2017, entendemos que se fazia necessário forjar outras ferramentas de
pesquisa caso quiséssemos realmente romper com esta relação colonial
encarnada no modelo científico, atualizada continuamente entre conhe-
cimentos eurocentrados e afropindorâmicos. Esta foi também a relação
questionada pela professora Luiza Oliveira, em sua fala, quando trouxe
situações de sua prática como docente e psicóloga em que, estando ela
no lugar de “sujeito do conhecimento”, foi interpelada por pessoas que
estariam ocupando o lugar de “objeto”, aprendendo com elas e modifi-
cando profundamente sua prática e seu modo de pesquisar.
Convidado pelo Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro
(CRP/RJ) a propor uma “saúde fora da caixa”, Abrahão Santos afirmou a
importância de pensarmos formas de cuidado, escuta e acolhimento inspi-
rados nas práticas de terreiro de candomblé. Ressaltou, no entanto, que tal
proposta pode soar surpreendente a alguns ou até gerar repúdio em outros, e
que isso se deve ao epistemicídio, à desqualificação que os saberes não euro-
centrados, notadamente os indígenas e afrodescendentes, sofrem no embate
colonial. Esta é a “caixa” que nos aprisiona e que não nos permite ver nada
além de suas paredes. Nas palavras do autor, “se aceitarmos o pressuposto
de que o saber emerge em um contexto histórico e dele participa, devemos
considerar que todo saber psi é imediatamente étnico, quer dizer, marcado
pelo espaço, pelo tempo e pelos problemas e recursos de um povo” (SANTOS,
2016, p. 19, grifo nosso). Ou seja, o conhecimento clássico da psicologia
ocidental tem também caráter étnico e remete à cultura monoteísta cristã,
patriarcal, heteronormativa e cissupremacista do homem branco europeu.
E como podemos modificar esta condição que afeta toda a produ-
ção de conhecimento acadêmico e a torna parcial, tendenciosa, eurocen-
trada, insensível e alheia a uma diversidade de outras perspectivas de
mundo e formas de vida e conhecimento? Neste livro propusemos duas
direções que são complementares e que não podem se efetivar isolada-
mente. A primeira delas nos foi ensinada pelo líder indígena Capitão
Potiguara, que, quando indagado sobre como a universidade poderia
contribuir com a luta de seu povo, afirmou que o que a universidade
poderia fazer pelo seu povo era abrir espaço para eles estarem ali na
academia produzindo também conhecimento.
O quilombola Antônio Bispo Santos, que compunha mesa
com Capitão Potiguara, comparando a universidade a uma grande

148
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

chocadeira, afirmou que o melhor não seria destruí-la, mas sim “gorar
os ovos dos mostrengos e colocar os nossos”. Os monstrengos, a que se
refere, são aqueles que alimentam o racismo, o epistemicídio, a exclu-
são dos povos não brancos desse espaço privilegiado de produção de
conhecimento e fortalecem as relações coloniais de saber e poder. Para
reverter esse processo, muito terá que ser destruído. E não podemos ter
receios de trabalhar pela destruição daquilo que nos destrói, que destrói
povos e comunidades inteiras há centenas de anos: a máquina colonial.
Os ensinamentos de Nego Bispo, do Capitão Potiguara, da profes-
sora Luiza Oliveira e dos companheiros de pesquisa do Kitembo me fize-
ram entender a amplitude das ações afirmativas e o quanto elas se fazem
urgentes e necessárias. Por um lado, os povos indígenas, quilombolas, den-
tre outros não brancos, não precisam e não querem ser tutelados por quais-
quer outros povos ou saberes, uma vez que são os mais indicados para pro-
duzir um conhecimento que de fato atenda às necessidades de sua gente.
Por outro, é evidente que o modelo universitário, pautado pela branquitude,
apenas reproduz violências e desigualdades, servindo para manter o status
quo. Em um país desigual, corrupto e violento como o Brasil, o conheci-
mento produzido nestes moldes vem subsidiando a miséria e o extermínio
dos povos que produzem a riqueza da nação, mas dela não usufruem.
Outra direção que entendemos ser importante para que possamos
construir modos de pesquisa que não reproduzam a relação colonial foi se
evidenciando ao longo das discussões nos nossos grupos de orientação, com
os impasses encontrados em cada caminho de pesquisa. Muitos de nós fomos
selecionados para os cursos de mestrado e doutorado com projetos que
propunham metodologicamente entrevistas ou que buscavam definir uma
relação do(a) pesquisador(a) com o campo mais ou menos neutra. À medida
que fomos discutindo os projetos nos encontros do grupo de orientação,
percebemos que estes formatos não combinam com nossos anseios ético-
-políticos de prática profissional e de produção de conhecimento. Em um
desses encontros, quando debatíamos o texto da professora Luiza Oliveira,
retomamos sua proposta de pensar a perspectiva do surgimento do pes-
quisador em cena pelo viés da oralidade em que, não apenas o pesquisador
reconhece sua implicação no processo de pesquisa, como reconhece também
as transformações que ela produz na sua vida e em sua atuação profissional.
A oralidade é o modo de produção e transmissão de conhecimento
predominante entre grupos tradicionais, como indígenas de diferentes etnias,

149
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

quilombolas, candomblecistas, capoeiristas, dentre outros. Trata-se de um


conhecimento que se constrói a partir do encontro, da conexão, da troca, em
que todas as partes envolvidas contribuem e são transformadas nesta relação.
Nos termos propostos por Nego Bispo em nosso evento, um modo de pes-
quisa realizado nestes termos teria caráter resolutivo, sendo útil e benéfico
para todas as partes envolvidas. Na relação de pesquisa isso exige abrir mão
do pequeno poder do intelectual, do lugar de sujeito acadêmico produtor de
conhecimento. Este é um exercício que temos buscado aprender, não sem
dificuldades, não sem termos que pôr em análise nosso narcisismo acadêmico.
A relação com povos afropindorâmicos, tanto no contexto aca-
dêmico quanto em diferentes circunstâncias de nossas vidas pessoais,
tem nos ensinado – o que vamos construindo e compartilhando nos
encontros de orientação e estudo do Kitembo – uma perspectiva de vida
em conexão. Tudo está conectado por uma única energia vital chamada
Axé, no candomblé Ketu, e Nguzo, no candomblé Angola, – e, certa-
mente, muitos outros nomes possíveis que não conheço, mas que são
praticados por diversos povos tradicionais. Esta perspectiva nos orienta
a construir uma psicologia que percebe a pessoa não como indivíduo,
mas como ser em conexão com os demais animais, com as plantas, com
os mares, os ventos, o fogo, as pedras, uma grande diversidade de seres
animados e inanimados, modos de singularização de uma única energia
vital. Na relação de pesquisa não seria diferente: construímos um modo
acadêmico inspirado na oralidade, em que a produção de conhecimento
e Axé/Nguzo ocorre a partir do encontro, da conexão.

Referências
SANTOS, Antônio Bispo dos. Em colonização, quilombos: modos e
significações. Brasília, DF: Editora UnB, 2015.
SANTOS, Abrahão de Oliveira. Relatório final do estágio pós-doutoral do
Projeto Subjetividade, Espiritualidade e Práticas de Cuidado nas
Religiões de Matriz Africana. PPGAS - Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social – Museu Nacional, Universidade Federal do
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2016, 129 p. (pp. 09-61).
RODA de conversa com o mestre quilombola Antônio Bispo dos Santos.
Brasília, DF: Universidade de Brasília. 1 vídeo (80 min). Publicado
pelo canal Maré (UnB). Disponível em: https://bit.ly/3cQydgB.
Acesso em: 14 nov. 2017.

150
FOTOS DO III ECONTRO KITEMBO:
Laboratório de Estudos da Subjetividade e
Cultura Afro-brasileira:
Povos Afroindígenas, Saberes Tradicionais,
Pesquisa e Diálogo na Universidade.
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

Cecílio Santana Feitoza, Katia Aguiar, Flávio Guilhon,


Mãe Arlene de Katende, Tata Luazemi Roberto Braga

Capitão Potiguara José Ciríaco Sobrinho.

152
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

Antônio Bispo dos Santos, Abrahão de Oliveira Santos,


Capitão Potiguara José Ciríaco Sobrinho e Luíza Rodrigues de Oliveira.

Antônio Bispo dos Santos.

153
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

Capitão Potiguara José Ciríaco Sobrinho e Luíza Rodrigues de Oliveira.

Louvação aos encantados. Cecílio Santana Feitoza, Guila Xukuru,


Capitão Potiguara José Ciríaco Sobrinho, Hosana Celi Oliveira e Santos,
Bruno Potiguara.

154
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

MC Garcia, Estela Cardoso, Cristina Rauter, Johnny Alvarez,


Flávio Guilhen, Hosana Celi Oliveira e Santos, Guila Xukuru,
Bruno Potiguara, Maiah Lunas Maciel Marques de Oliveira

Dona Zilda Chaves, Viviane Pereira da Silva,


Ricardo José de Moura, Eduardo Passos.

155
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

Participanmtes do III Encontro Kitembo:


Povos Afro-indígenas, Saberes Tradicionais, Pesquisa e Diálogo.

156
SOBRE OS AUTORES E AUTORAS
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

Abrahão de Oliveira Santos é muzenza no Lumyjacare, psicólogo, pro-


fessor do Instituto de Psicologia da Universidade Federal Fluminense
(UFF); cofundador do Encontro de Professores Negros/as e Ativistas
Antirracistas da UFF (Enuff); coordenador do Kitembo: Laboratório de
Estudos da Subjetividade e Cultura Afro-brasileira; cofundador e coor-
denador do GT Psicologia e relações raciais da Associação Nacional
de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (Anpepp); membro da
Articulação Nacional de Psicólogas(os) Negras(os) e Pesquisadoras(es)
de Relações Raciais e Subjetividades (Anpsinep-RJ); trabalha na elabo-
ração de uma psicologia afropindorâmica, da perspectiva aterrada e de
um paradigma do enegrecimento na pesquisa.

Antônio Bispo dos Santos é lavrador da comunidade quilombola


Saco Curtume, São João do Piauí (PI); formado por mestras e mestres
de ofício, especializado em aproveitamento de quintal, orientado pela
geração da avó; presidente do Sindicato dos trabalhadores Rurais de
Francinópolis (PI), de 1989 a 1993; secretário geral da Federação dos
Trabalhadores na Agricultura do Estado do Piauí, de janeiro de 1993 a
dezembro de 1995.

Bruno Rodrigues da Silva é estudante de graduação em Ecologia, na


Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Em 2007 contribuiu para a
criação da Organização de Jovens Indígenas Potiguaras (Ojip); parti-
cipa da Associação dos Universitários Potiguara (AUP). Foi pesquisa-
dor do GT Indígena do Setor de Estudos e Assessoria à Movimentos
Populares (Seampo), da UFPB; bolsista do programa de educação
tutorial (PET) Indígena da UFPB; membro da Comissão Nacional de
Estudantes Indígenas. Atuando como jovem liderança indígena, parti-
cipou da retomado do território Potiguara de Monte-Mor; de diversos
eventos, assembleias, encontros e mobilizações indígenas, entre eles:
Abril Indígena/Acampamento Terra Livre (ATL), Encontro Nacional de
Estudantes Indígenas (Enei), I e II Encontro de Jovens Indígenas do
Nordeste. Organizou os Encontros de Estudantes Indígenas da Paraíba
e Assembleias de Jovens Indígenas Potiguara.

158
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

Cecílio Santana Feitoza é agricultor e faz parte do Conselho de Lideranças


do povo Xukuru do Ororubá, representando a aldeia Cana Brava; repre-
sentante e liderança política e religiosa do povo Xukuru; responsável pelos
rituais da aldeia Cana Brava e junto com o pajé atua nos principais rituais
Xukuru. Participou de diversas retomadas e mobilizações do povo Xukuru;
participa anualmente da Assembleia do povo Xukuru, do Abril Indígena, do
Acampamento Terra Livre (ATL), em Brasília, e do Encontro de Pajés; par-
ticipou das Conferencias de Politicas Indigenistas (2015). Participa e contri-
bui para a articulação da agricultura orgânica; Encontro de troca de Saberes
e sementes e saber da agricultura Xukuru – Urubá Terra, Culminância do
Projeto pedagógico “Pé de Livro” e Leitura do Tempo, entre outros.

Cristina Rauter é professora titular do Instituto de Psicologia da


Universidade Federal Fluminense (UFF), onde atua na graduação e na pós-
-graduação. É mestre em Filosofia e doutora em Psicologia Clínica; rea-
lizou pós-doutorado em Filosofia. Em 2018-19 foi professora visitante na
Universidade de Coimbra. Suas pesquisas atuais referem-se aos processos
de subjetivação contemporâneos numa perspectiva transdisciplinar que
tem como base a filosofia de Spinoza. Suas publicações estão relacionadas
à questão prisional, à violência e a intervenções clínicas nestes campos.

Eduardo Passos é doutor em Psicologia e professor titular do Instituto


de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Estela Cardoso Pereira é formada em Psicologia pela Universidade


Federal Fluminense (UFF) e trabalha como psicóloga clínica. Atua desde
2013 em ações culturais e comunitárias no Engenho do Mato, bairro
periférico da Região Oceânica de Niterói, onde mora desde sua infân-
cia. Integrou o coletivo da Roda Cultural do Engenho do Mato (RCEM),
sendo responsável pela Biblioteca Comunitária do Engenho do Mato
(BEM). Participou do movimento de ocupação comunitária da BEM.
Atualmente é membro da autogestão da BEM e oferece aulas, como
professora de Kung Fu.

Guilherme Araújo Marinho Magalhães é advogado, mestrando em


Antropologia Social na Universidade Federal do Rio grande do Norte
(UFRN). Começou a contribuir para a luta do povo Xukuru através do

159
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

audiovisual, sendo um dos fundadores da Ororubá Filmes. Contribuiu


para a criação e articulação do Coletivo da Juventude Indígena
Xukuru, que se chama Poya Limolaygo (Pé no chão, na língua); Foi
representante do seu povo na Comissão de Juventude Indígena de
Pernambuco (Cojipe). Está atualmente como presidente da Associação
da Comunidade Indígena Xukuru. Participa anualmente da Assembleia
Xukuru e participou de vários eventos, assembleias e conferências indí-
genas, entre elas a I Conferência de Políticas Indigenistas, etapa esta-
dual (2015), Abril Indígena em Brasília, Abril Indígena em Pernambuco,
Conferência de Juventude de Pernambuco. Organizou o I Encontro de
Jovens Indígenas do Nordeste (2016) e participou do Seminário Nacional
de Juventude Indígena.

Hosana Celi Oliveira e Santos é doutora em Antropologia pela


Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), com doutorado san-
duíche pela Universidade Veracruzana, México. Pesquisadora do
Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Etnicidades (Nepe/UFPE) e
do Laboratório de Estudos Rurais do Nordeste (LAERural/UFPE).
Coordenadora adjunta do Laboratório de Ações Coletivas e Culturais
(LACC/UPE) e do núcleo pernambucano do Projeto Nova Cartografia
Social e Comunidades Tradicionais do Brasil. Participou de eventos,
assembleias, mobilizações e retomadas do povo indígena Potiguara,
na Paraíba, e Xukuru do Ororubá, em Pernambuco; da Conferencia
Indígena Brasil Outros 500, em Coroa Vermelha, no ano 2000; do Abril
Indígena, Acampamento Terra Livre(ATL), em Brasília, de Assembleias
Potiguara (PB), Assembleia dos povos indígenas do Ceará e Assembleias
do povo Xukuru do Ororubá (PE). Também participou da Conferência
dos Povos Indígenas, Encontro dos Universitários Indígenas Potiguara,
I Encontro de jovens indígenas do Nordeste, Encontro Nacional de
Estudantes Indígenas (ENEI). Foi assessora da Articulação dos Povos
e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo
(Apoinme). Atualmente faz assessoria para a Comissão de Jovens
Indígenas de Pernambuco (Cojipe).

Johnny Menezes Alvarez é mestre e doutor em Psicologia pela


Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor Associado
II do Instituto de Psicologia da Universidade Federal Fluminense

160
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

(UFF). Coordenador da especialização em Etnoeducação na Unidade


Avançada José Veríssimo (UAJV/UFF), em Oriximiná (PA). Integrante
do Projeto Encontro de Saberes da UFF, que busca construir uma
Universidade Pluriepistêmica num diálogo com mestres, mestras e
suas tradições. Pesquisa os processos psicológicos em suas interfaces
afro-indígenas.

Jose Ciríaco Sobrinho, Capitão Potiguara é servidor público aposentado,


ex-vereador pelo Partido dos Trabalhadores. É liderança indígena do
povo Potiguara; representante da Articulação dos Povos e Organizações
Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme); mem-
bro da Paraíba no Conselho Nacional de Políticas Indigenistas (CNPI);
e Conselheiro Distrital de Saúde Indígena. Contribuiu para a criação
e foi coordenador do GT Indígena do Setor de Estudos e Assessoria à
Movimentos Populares (Seampo), da UFPB. Como liderança indígena
contribui e participou de eventos, assembleias, mobilizações e retoma-
das não só do seu povo Potiguara, mas também de outros povos indí-
genas, tais como Xukuru do Ororubá (Pernambuco), Tapeba (Ceará),
Tupinambá (Bahia), Tremembé de Almofala (Ceará), entre outros. É
assessor de assuntos indígenas junto ao governo da Paraíba e sempre
trabalhou fazendo a ponte entre a aldeia e os órgãos públicos em busca
de melhorias para seu povo. Como liderança tradicional, trabalha pelo
fortalecimento da cultura.

Katia Aguiar é psicóloga, educadora popular e professora associada do


instituto de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), vin-
culada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia, linha de pesquisa
Subjetividade, Política e Exclusão Social. Doutora em Psicologia Social
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e Mestra
em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF). É membro
do grupo de pesquisa Produção de Subjetividade e Estratégias de Poder
no Campo da Infância e da juventude. Integra o Núcleo de Educação do
Conselho Regional de Psicologia/RJ, o Fórum sobre a Medicalização da
Educação e da Sociedade, e o Movimento da Economia Solidária. É atual
presidente da Cooperação e Apoio a Projetos de Inspiração Alternativa
(Capina), ONG que atua no apoio e assessoria a organizações de movi-
mentos sociais no campo da economia dos setores populares.

161
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

Luiza Rodrigues de Oliveira é psicóloga e professora adjunta da


Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutora em Educação pela
Universidade de São Paulo (USP). Professora dos programas de pós-
-graduação em Psicologia e em Ensino de Ciências da UFF. Faz parte
do coletivo de professores(es) negras(os) e ativistas antirracistas da
UFF (Enuff).

Mãe Arlene de Katende é mestre dos saberes de matriz africana de


tradição congo-angola, de raiz Gomeia.

Maiah Lunas Maciel Marques de Oliveira é mulher preta da juven-


tude de candomblé; é lésbica e militante do movimento de mulheres
negras. Possui bacharelado em Ciências Sociais pela Universidade
Federal Fluminense (UFF). Atualmente é mestranda em Comunicação
pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFF e faz parte
do Laboratório de Experimentação e Pesquisa de Narrativas da Mídia
(LAN); do Coletivo de Estudantes Negrxs da UFF (Cenuff); e do Núcleo
de Estudos Guerreiro Ramos (Negra).

Mc Garcia, Thiago Ferreira da Cruz, é poeta, MC de batalha, líder


do ranking da BDE há 7 anos, foi três vezes campeão na Batalha do
Conhecimento; venceu competições como a Batalha do Tanque, Batalha
da Trindade, Conexão Favela&Arte, Roda de Icaraí. Recentemente lan-
çou a música «Batalha do Engenho - Rompendo Grilhões», ao lado de
Marciano, Cogu, Zenin, com produção de Higor Sipá, pelo selo Ganga.
Trabalha no próximo lançamento pelo canal da Roda  Cultural do
Engenho do Mato e na preparação do seu álbum de estreia.

Roberto Braga Tata Luazemi é mestre dos saberes de matriz africana


de tradição congo-angola e líder da nzo Lumyjacare, em Nova Iguaçu,
Rio de Janeiro.

Ricardo José De Moura é coordenador de formação do Instituto Raízes


em Movimento e integrantes dos grupos de pesquisa: Modernidade e
Cultura, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (GMPC/UFRJ) e
Centro de Pesquisa, Estudo, Documentação e Memória do Complexo
do Alemão (Cepedoca). Doutor em planejamento urbano e regional,

162
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas

pelo Instituto de Planejamento e Pesquisa Regional e Urbana da UFRJ


(IPPUR/UFRJ) e coordenador de formação do Instituto Raízes em
Movimento.

Viviane Pereira da Silva é doutoranda e integrante do Laboratório


Kitembo de Estudos da Subjetividade e Cultura Afro-brasileira, no
Instituto de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF).
É mestre em Políticas Públicas e Formação Humana e graduada em
Psicologia, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
Trabalha como artesã de aromas e produtos fitoterápicos, com interesse
especial pelo estudo das práticas de cuidado a partir das plantas. Tem
a alegria de ser iniciada para o Orixá Ogum, sem o qual nenhum destes
caminhos seria possível.

wanderson flor do nascimento é Tata Nkosi Nambá da Nzo


ria Ndandalunda, professor de filosofias africanas e bioética da
Universidade de Brasília (UnB). Graduado, especialista e mestre em
Filosofia e doutor em Bioética.

Zilda Chaves é moradora do Complexo do Alemão, mãe e avó, partici-


pante do coletivo Ocupa Alemão: Favela Quilombo e colaboradora na
Escola Quilombista Dandara de Palmares.

163

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