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EPISTEMOLOGIAS
ATERRADAS
CAMINHOS DE PESQUISA NA
PSICOLOGIA E CIÊNCIAS HUMANAS
Equipe de realização
Editor responsável: Renato Franco
Coordenador de produção: Ricardo Borges
Normalização e Revisão: Pedro Barros | Tikinet
Capa: Gustavo Oliveira | Tikinet
Projeto gráfico e Epub: Julia Ahmed | Tikinet
Diagramação: Robson Santos | Tikinet
Esta obra contou com avaliação dos artigos, feitas pelos pares, com correções e
revisão dos textos.
Ficha Catalográfica
Inclui bibliografia.
ISBN 978-65-5831-083-9
BISAC PSY030000 PSYCHOLOGY / Research & Methodology
CDD 121.4
Internacional
Ana Maria Talak – Universidade Nacional de La Plata, Argentina
Barbara Glowczewski – Laboratoire d’Anthropologie Sociale, CNRS/EHESS/
Collège de France, França
Cristina Ronchese – Universidade de Rosario, Argentina
Gilles Monceau – Universidade de Cergy-Pontoise/Laboratório EMA-École,
Mutacion et Apprentissage, França
Laura Navarro Morales – Universidad Autónoma del México, Cidade de Toluca,
México
Mónica Balltondre Plá – Universidad Autónoma de Barcelona, Espanha
Paulo Renato Jesus – Universidade Portucalense da Cidade do Porto, Portugal
Karin Schneider – Yale University - USA
AGRADECIMENTOS
Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas
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Sumário
Abertura 11
Apresentação 15
Prefácio 29
Abertura
No reinado da Jurema
Às seis horas acende a luz.
No reinado da Jurema
Às seis horas acende a luz.
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Saberes Plurais e Epistemologias Aterradas
No reinado da Jurema
Às seis horas acende a luz.
No reinado da Jurema
Às seis horas acende a luz.
Valei-me Nossa senhora
E o Coração de Jesus.
Valei-me Nossa Senhora
E o Coração de Jesus.
Valei-me Nossa Senhora
E o Coração de Jesus.
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Salve as Águas!
- Salve!
Salve as Pedras!
- Salve!
Salve as Matas!
- Salve!
Salve todos os Índios!
- Salve!
Salve os que estão aqui presentes!
- Salve!
Salve os que estão ausentes!
- Salve!
Uma salva de palmas para os nossos participantes.
Uma salva de palmas para nosso pai Tupã e nossa mãe Tamain.
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Nzila mesmo nos proteja, abra nossos caminhos. Que os inimigos não
tenham vistas e nada de ruim possa se aproximar de nós todos.
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APRESENTAÇÃO
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vida para seu povo. A professora Luiza Rodrigues de Oliveira faz jus à
oportunidade para tratar da oralidade no texto “A busca de oralidade: o
encontro com mulheres negras”.
No Capítulo II, “Intervenções e práticas de cuidado no diálogo
com a universidade”, Mãe Arlene de Katende, da tradição do candomblé
angola-congo da Gomeia, no texto “Oralidade e humildade como cami-
nhos da ancestralidade e do querer saber”, traz a humildade, que em sua
concepção de terreiro é a astúcia do querer saber, daquele que aprende,
daquele que se desdobra na busca do saber, a força vital que emana da
nossa ancestralidade e vem da oralidade. Tata Luazemi, Roberto Braga,
também angola-congo, porém da família, ou ndange, Tumba Junsara,
escreve “Oralidade e resistência angola-indígena: a erva que cura é a que
mata”, no qual enfatiza o vínculo dos povos banto-falantes, os primeiros
que vieram como escravizados para o Brasil, com os povos originários
ou pindorâmicos, de quem ficou ao lado na instigante troca a respeito de
plantas. Quando mãe Arlene de Katende e pai Roberto Braga enfatizam
a troca na construção do conhecimento, na preservação da tradição, na
inovação da cultura, reafirmamos e reencontramos a sabedoria de mãe
Beata de Iemanjá: “a oralidade é o mais novo aprendendo com o mais
velho, um de frente para o outro, o encontro. E o mais velho também
aprende com o mais novo. O encontro é a oralidade”.
A mata, a roça, a aldeia e o terreiro, como vai ocorrer também na
favela, espaço de embates e conquistas, são os locais onde os saberes
emergem e se desenvolvem. É aí, nos locais de encontro e nas trocas,
na presença constante dos encantados, que se tramam as lutas que tra-
vamos para viver, sobreviver e fortalecer, que surgem as narrativas e os
textos, como o do líder espiritual e político dos Xukuru do Ororubá, seu
Cecílio Santana Feitoza, “Eu sou um aprendiz: aprender começa pelo
respeito aos antepassados e pelo conhecimento das lutas”. O encontro
é afirmado também na reflexão da pesquisadora Katia Aguiar, no texto,
“A relação dialógica, a pesquisa e a construção do encontro”, no qual
põe em questão a prática da pesquisa e reflete os enganos que a ideia de
pesquisar com o outro pode colocar.
No Capítulo III, “Juventudes indígenas: universidade e pesquisa
junto aos povos indígenas”, vemos desenvolver, ao lado dos mais velhos,
a palavra de jovens lideranças indígenas como Guila Xukuru, que
escreve “Juventude pé no chão (Poyá Limolaygo), comunidade, tradição
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Referências
BICUDO, Virgínia. Atitudes Raciais de pretos e mulatos em São Paulo.
Organizador: Marcos Chor Maio. São Paulo: Editora Sociologia
e Política, 2010. Originalmente apresentado como dissertação de
mestrado, Universidade de São Paulo, 1945.
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PREFÁCIO
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E é diante dessa bonita aposta na formação que este livro que pro-
voca alegria. Alegria de um encontro potente entre vozes plurais, em um
exercício de pluralização de possibilidades de produção de conhecimento.
Encontro que, de modo solidário, convoca outras vozes, não apenas para
dar-lhes visibilidade, mas para aprender com elas e, com isso, potencia-
lizar a experiência do ensinar e do aprender, da produção dos saberes.
Por isso, este livro não deve ser lido como uma coleção de posi-
ções exóticas ou “meramente” ativistas. Mas como um convite para
experimentar um repertório que provoque reposicionamentos epistê-
micos, políticos e morais, que provoquem novas e outras apostas no
mundo, neste mundo tão diverso e plural e que, mesmo assim, tem sido
empobrecido na busca de uma abordagem unificante, monolítica das
nossas epistemologias hegemônicas.
E que esse convite nos chegue como uma oportunidade de nos
prepararmos, ainda mais, para a intensa luta necessária para que os
retrocessos que nos cercam sejam enfrentados com a altivez, criativi-
dade, generosidade e espírito coletivo com as quais nossas ancestrais
negras e os povos originários do continente enfrentaram os momentos
críticos do passado. Que possamos aprender, que possamos ouvir essas
múltiplas e plurais vozes... Que esses encontros entre mais velhos e mais
novos nos encorajem a seguir a luta...
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CAPÍTULO I
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bem, que comem umas batatas que eles chamam de inhame, ele comem
umas frutas”, ele encontrou um povo que podia comer do que a terra ofe-
recia. Olha a surpresa dele: eles comem a batata da terra, eles comem as
frutas que as plantas dão. Mesmo nós, com toda a nossa civilidade, isso
está na carta, nós levaremos séculos, e eu não sei se nós vamos atingir
esse nível de vida elevado que eles atingiram. Mas, mesmo assim, eles
precisam ser catequizados para se tornarem igual a nós. Não pergunta-
ram se nós queríamos nos tornar iguais. Se nós éramos mais cheirosos,
se tomávamos banho, como que nós queríamos nos igualar aos fedoren-
tos que não banham? É muita tiração de onda, mas mesmo assim.
Aí depois eu fui mais para frente e fui falar com o padre Antônio
Vieira. Está lá o sermão do padre Antônio Vieira: é melhor um negro ser
escravizado, morrer e ir para o céu, do que ser livre, morrer e ir para o
inferno. Ele não me perguntou. Eu trocava com ele, na boa assim, vamos
trocar, ele não me perguntou.
Então, visto isso, agora vamos para os ataques e contra-ataques.
Naturalmente, o rei Afonso cumpriu a autorização do papa, nos atacou,
pegou parte do nosso povo e trouxe para cá, atacou a quem estava aqui,
se sentiu todo poderoso, porque nos colocou do outro lado do oceano,
nos colocou além-mar e achou que tinha nos proibido de trazermos
nossa língua, nossas sementes, nossos modos, nossas sabedorias, nos-
sas religiosidades. Eles acharam que, por ter o mar entre nós e a África,
tinham rompido com todas as nossas relações com a África. Eles são
muito, mas muito preguiçosos na hora de pensar. O nosso território,
nós não vivemos só da terra, nós vivemos em um território e o nosso
território não é formado só pela terra, é formado pela terra, pelo sol,
pelo vento, pela lua, pelas estrelas, por muitas coisas. Então eles nos
colocaram do outro lado do mar com relação à África, mas eles não
nos colocaram do outro lado do mar com relação ao sol. Então pelo sol,
a nossa ancestralidade nos trouxe as sementes, nos trouxe os nossos
modos e até trouxe parte da nossa língua, veio pelo sol. Eles só sabiam
andar pelo mar, eles não sabiam andar pelo sol, coitados. Pelo sol, pelo
vento e por vários outros elementos.
Como nós recebemos pelo sol as orientações da nossa ancestra-
lidade, logo nós resolvemos reeditar os nossos modos nesse lugar e for-
mar os quilombos. Então o que é um quilombo? Na verdade, nós não
formamos quilombos, nós formamos as nossas comunidades. Eles que
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qual é teu nome? Antônio Bispo dos Santos. E ele escreveu. Não tem
sobrenome quem é nomeado pela dominação.
Estou falando dessa trajetória para dizer que hoje, nesse exato
momento, estão tentando julgar o decreto. Talvez não julguem. Porque
todas as vezes que marcam, alguma pessoa deles adoece. Mês passado
eles tentaram julgar, no dia 18 de outubro, disseram que iam julgar
o decreto, aí um dos ministros adoeceu, teve que fazer uma cirurgia
urgente. Talvez um deles adoeça hoje de novo. Fiz, rapidamente, um
esquema da trajetória para ver se vocês acham que tem alguma coisa
que merece atenção. Pode ser que sim ou que não.
Referências
BRASIL. Decreto nº 487, de 20 de novembro de 2003. Regulamenta o
procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação,
demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes
das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato
das Disposições Constitucionais Transitórias. Brasília, DF:
Presidência da República, 2003.
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embora, deixou a casa, ele já vai alugar para outra pessoa. Nós tínhamos
57 mil hectares de terras nossas, pegava do rio Mamanguape até o rio
Camaratuba, perto da divisa com o Rio Grande do Norte. Nós come-
çamos a demarcar essa terra desde 1800 e alguma coisa. Para ser bem
objetivo, meu avô era cacique nos anos 1940, morreu entre 1942 e 1945
e não conseguiu realizar o objetivo da demarcação. É um exemplo que
estou trazendo de como que nós conseguimos demarcar.
A primeira era uma área de 21 mil hectares que são três terras, em
três municípios, nos anos 1980. Morreu gente, viu! Lembro que eu saía da
universidade de férias e eu ia me juntar ao meu povo para fazer a retomada.
Mas o Governo, foi no período militar, mandou o exército demar-
car essa terra depois que nós fizemos a retomada. Nós temos medo de
perder essa terra hoje, porque o Governo quer rever essas terras que
foram demarcadas no regime militar, com o marco temporal.
Demarcamos outra terra em Jacaré do São Domingos de quase
5.500 hectares. Custou caro para a gente. Ficou a terra pior que tinha
para a gente demarcar, que era a de Monte Mor, 7.800 hectares, que
fica dentro da cidade de Rio Tinto, na Paraíba. Eu recebi um recado do
coordenador da Fundação Nacional do Índio (Funai) no período, para
que eu fosse cuidar da minha vida, da minha família, porque eu não ia
demarcar aquela terra nunca.
Lembro que em 2007 eu fazia parte de uma comissão que o Lula
criou, que chama Comissão Nacional de Políticas Indigenista (CNPI),
para trabalhar com políticas públicas para os povos indígenas. Eu ia
viajar, eu tinha que apresentar fatos para o Governo brasileiro. Me
Desculpem. Minha filha tinha 17 anos e eu pedi que ela reunisse os caci-
ques e retomasse a Funai de João Pessoa, por tempo indeterminado,
porque nós precisávamos apresentar fatos para a sociedade e para o
Governo brasileiro. A gente tinha que retomar aquela terra. A minha
esposa não é índia, é branca, ela disse que eu estava colocando em risco
a vida da minha filha. Minha filha é uma guerreira. Eu chamei ela e
disse: “Você tem conhecimento da luta do teu pai, dos teus avós e dos
caciques, você aprendeu um pouco com o povo Xukuru, o que te tornou
ainda mais guerreira. Não é a fala da sua mãe que vai lhe assombrar.
Você não vai fazer vergonha a seu pai. Você vai levar os caciques e apro-
ximadamente quinhentas pessoas. Quando o administrador sair para
almoçar, você tem que segurar ele”. E a menina: “Painho, e comida para
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é uma discriminação elitista […] ela não era acadêmica, mas dizer isso não
depende da posição acadêmica, depende da posição no mundo, depende
apenas de estar no mundo e com o mundo” (FREIRE, 1988, p. 22-23).
Inspirada por Vygotski e Freire, preparei o texto para a apresen-
tação: “É preciso estar no mundo e com o mundo”. No entanto, após
ouvir Nego Bispo e Capitão Potiguara, que abriram a mesa redonda,
entendi que os saberes tradicionais nos interrogam e nos exigem outras
epistemologias, outros modos de vida, de relação, de linguagem, outros
modos entre os mais novos e os mais velhos, para além do domínio do
pensamento. Pude ali, naquele momento, com pensamentos sobre o
concreto e o aterrado (SANTOS, 2018), iniciar outro tipo de conexão
com a obra de Paulo Freire e a obra de Lev Vygotski.
E foi assim, entre o susto de notar minha escrita prévia que não se
ajustava ao chamado do Nego Bispo e do Capitão Potiguara e a alegria
da descoberta que esse encontro me trazia, que fiz a fala que se segue.
Hoje é um dia muito feliz, estar aqui para compor a mesa com
Nego Bispo, Capitão Potiguara e Abrahão Santos, para falar de algo que
tem me interpelado nos últimos tempos, que é a relação entre a pesquisa
e os saberes tradicionais.
E é desse lugar que eu vou falar hoje, que é lugar de dúvidas, mas
também de possibilidades. Peço licença para trazer à cena quatro encon-
tros que tive na minha vida “uffiana”. Então conto memórias que têm me
ajudado a seguir adiante e a pensar em pesquisa para além daquele modelo
no qual nós fomos formadas/os – que anuncia a investigação, a pergunta,
a dúvida, mas, na verdade, não há espaço para dúvidas, questionamentos,
incertezas. Essas cenas me ajudam a ter força e coragem para admitir que
eu tenho dúvidas e incertezas em relação à pesquisa que eu venho fazendo.
Eu começo com uma cena em que a grande personagem é Dona
Maria, uma moradora de uma comunidade de Niterói. Eu tive notícias da
fala da Dona Maria há cerca de quatro anos em uma pesquisa que era uma
interface de um grupo, por mim coordenado, do Instituto de Psicologia
e de outro grupo da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal
Fluminense (UFF), coordenado pelo professor Fábio Alves. A pesquisa
versava sobre estudos epidemiológicos acerca da prevalência e preven-
ção da diabetes naquela comunidade. Um belo dia, Dona Maria chega
ao posto de saúde e diz: “Vocês precisam sair desse posto e de fato che-
gar à comunidade, conhecer as nossas vendas, os nossos mercadinhos, as
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nossas hortas. Digo isso porque essa dieta que vocês passaram para o meu
marido não nos diz nada: muitos alimentos não conhecemos, outros nós
não gostamos”. Essa interpelação foi marcante e fez com que os pesquisa-
dores fossem conhecer as hortas, vendinhas e mercados da comunidade.
Embora teoricamente em nossos livros e artigos haja questiona-
mento acerca da relação entre pesquisador e população, quando afirma-
mos a pesquisa-intervenção, na concretude, no cotidiano, somos toma-
dos por um lugar em que o outro é objeto das nossas investigações.
Dona Maria interpelou isso, se fez presente e mudou todo o rumo da
nossa pesquisa, transformou aquela pesquisa tão clássica, que de pes-
quisa-intervenção não tinha nada. Dona Maria transformou a nossa pes-
quisa em sua comunidade em uma grande roda, em que foi preciso lidar
com a interrogação ao nosso modo de fazer pesquisa e lidar com o saber
das populações. Dona Maria nos ensinou o exercício de não alheamento
em relação ao outro; coisa sobre a qual tão bem escrevemos e falamos,
mas que na prática a gente não faz.
Outra memória que eu trago é da Claudia, catadora de material
reciclável. Ao ser entrevistada por um orientando de mestrado acerca
da educação ambiental, ela apresenta com propriedade o conceito de
educação ambiental, critica o conceito de reciclagem, e no final faz a
seguinte observação: qual o dia da defesa da sua dissertação? Eu esta-
rei lá e quero saber o que vocês falarão de mim na universidade. Essa
segunda interpelação me alertou para o fato de que a pesquisa não con-
vida para dentro da universidade. Vamos até às comunidades, escolas,
favelas, adentramos as vidas das populações, mas não queremos que
essas mesmas populações cheguem até o nosso cenário.
A terceira memória é de uma psicóloga de uma escola pública, a
Cleuza, que recebeu os estagiários de uma disciplina ministrada por mim
para uma entrevista. Tempos depois, Cleuza me procurou na UFF e disse:
“Eu vim aqui falar de mim, porque naquela entrevista não foi possível”.
Outra interpelação, que modo é esse de fazer entrevista, de se aproximar
do outro, em que o outro não consegue falar?! O meu grupo de pesquisa
faz, em seus estudos e escritos, crítica à ciência sem sujeito, mas no exer-
cício, na concretude, na vida diária do encontro com o outro, produz uma
fala sem sujeito. Foi preciso que a Cleuza adentrasse a minha sala na UFF
para “falar de si”, inventando ela mesma uma forma de “entrevista”.
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Referências
FREIRE, Paulo; BETTO, Frei. Essa escola chamada vida: depoimentos ao
repórter Ricardo Kotscho. 6. ed. São Paulo: Ática, 1988.
SANTOS, Abrahão de Oliveira; SILVA, Viviane Pereira. A Pesquisa no
Kitembo: pistas para uma pesquisa aterrada. Arcos Design, Rio de
Janeiro, v. 11, n. 1, p. 7-20, 2018.
SANTOS, Antônio Bispo dos. Em colonização, quilombos: modos e signi-
ficações. Brasília, DF: Editora UnB, 2015.
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com a pesquisa dela não como resposta, mas para refletir o problema
de pesquisa.
Reparem que isso não é um caso isolado. Se nós formos pensar
num contexto histórico, e dada a atualidade, por exemplo, isso acon-
tece com frequência. No Raízes em Movimento vamos fazer o lança-
mento agora em dezembro do livro Complexo do Alemão: uma bibliografia
comentada, que diz respeito às pesquisas. Eu fui revisor desse trabalho. E
tem questões assim que você percebe claramente. Há aproximadamente
duzentos trabalhos dentro desse livro. Eu fui ter o contato com algu-
mas dessas pessoas, nenhuma delas fez qualquer menção à produção
do conhecimento com paridade, isto é, que levasse pelo menos o nome
de alguém da comunidade junto com ela. Eu acho que é hora de a gente
parar e refletir bem sobre isso.
Primeiro que a academia não aceita, pois a gente tem que ter
autoria. Então o primeiro problema é a autoria. Veja bem, eu faço uma
pesquisa, vou para favela, pego lá os conhecimentos e a autoria é minha.
Como a autoria é minha? Por que tem que levar o meu nome apenas?
Esse é um primeiro problema – é óbvio que a questão da autoria é mais
complexa. O segundo problema que aparece: a gente fala nas rodas de
conversa, tem um fetiche do campo, quem é pesquisador sabe que o
campo é um fetiche enorme. Quando vamos fazer pesquisa, a gente,
seja qual for o método ao qual nós (eu prefiro modo a método) – pega
lá o nosso metodozinho, um determinado tipo, área de conhecimento –
estamos ligados. Ele nos conecta a um grupo específico, e vamos aplicar
como se fosse aquela velha, não é pergunta, mas aquela velha afirmação
que me parece que hoje está tão ultrapassada que a gente tem que inclu-
sive falar de outro lugar, que é o tal sujeito-objeto. Eu nunca vou con-
seguir entender isso, confesso que eu nunca consegui entender. Eu não
sou objeto de nada, de nada. E deixava muito claro isso quando vinham
falar comigo, não me tratem como objeto, eu não sou cadeira, eu não sou
um microfone, não sou, eu sou uma pessoa e tenho sentimentos, tenho
sensações e tenho um saber comigo, seja de que espécie for, então me
trate com igualdade.
Ora, é um campo de disputa. Se é um campo de disputa, a gente
precisa disputar. Eu sou negro, nasci na favela e estou numa univer-
sidade federal como professor substituto. Você imagina o que é. Faço
questão em todas as minhas aulas, aspas, todas aspas, nos primeiros
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encontros dizer que eu sou o neguinho da favela, por uma questão polí-
tica. A identidade não é uma identidade fixa, ora eu sou pai, ora eu sou
filho, ora eu sou isso, ora eu sou aquilo, ora eu sou favelado. Nesse sen-
tido me interessa ser favelado, na favela, o neguinho, preto, que nasceu
na favela e que está dando aula nessa instituição, então tem que me
ouvir. E vamos fazer, tem que me ouvir no sentido, veja bem, não é de
uma arrogância, mas assim, a gente precisa disputar esses espaços.
Normalmente você encontra dentro das universidades os negros
limpando isso, limpando aquilo. Tem uma questão histórica e a gente
finge que não vê isso. O negro parece que foi feito, nesse sentido, dentro
dessas dimensões, para ocupar cargos de serviços gerais. Nada contra
esses serviços, mas a gente precisa avançar, porque historicamente a
gente tem um problema. O pesquisador vai para dentro da favela e acha
que tudo é a mesma coisa, ou seja, o neguinho está precisando. Aí tem as
pechas de modo geral. O pesquisador entra na favela, ele tem o conhe-
cimento, os favelados não têm o conhecimento. Então vai explicar para
eles qual é o projeto dele; vai com o projeto definido. Não vai para uma
conversa, não vai para dialogar. Já vai com a coisa preparada. Parece que
é um salvador.
Aliás, as matrizes científicas, as pesquisas científicas acreditam
ser salvadoras, querem salvar os outros, as pessoas, melhor dizendo, os
pretos e os favelados. Diga-se de passagem, como se constroem, por
exemplo, as intervenções urbanísticas no Rio de Janeiro. Sempre um
projeto salvífico. Na entrada do quartel general da Unidade de Polícia
Pacificadora (UPP), no Complexo do Alemão – permitam-me sair um
pouco desse script aqui –, tem um Cristo, assim, de braços abertos e um
monte de soldado na frente do Cristo, aí tem lá escrito: “Bem aventurado
os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus”. É esse tipo
de política que a gente vê dentro desse espaço. Reparem quem são os
pacificadores. E para pacificar o que e quem? Vieram para nos civilizar,
é isso? É um tipo de regime de salvação. Já não basta o que os jesuítas
fizeram com a nossa gente, ainda temos que engolir isso? Querem salvar
o pobre, o preto, o favelado, porque são a última coisa da sociedade?
Os pesquisadores, 90% deles, reparem bem, produzem o mesmo
discurso, como se eles fossem a figura central do conhecimento. Mas
não são. Então é bom que fique claro, porque a gente acaba tendo esse
problema enorme que chega dentro da favela. A gente produz o nosso
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com relação à academia, porque não aguentava mais esse saber da aca-
demia. Enfim, ela ficou empolgada com algumas coisas, eu falei. Não
tem em mim nenhuma tentativa de desqualificar o saber científico. Ele
tem importância, mas não é o mais importante. Ele tem uma importân-
cia para a sociedade, não podemos negar isso, agora não podemos deixar
que esse saber seja um saber hierárquico, porque os outros saberes da
vozinha ou da dona Mariazinha que cultiva uma flor, e sabe como nin-
guém que aquela flor, aquela planta, serve para curar, que é uma erva
medicinal, tem um saber tão significativo quanto o acadêmico, indepen-
dente dos médicos gostarem ou não.
Porque parte dos médicos tem essa mania – médicos, engenheiros
e outras profissões). Desculpa se tem aqui algum médico ou engenheiro.
Vejam, não é crítica à pessoa em si. Sabemos que há algumas profissões
que são elevadas socialmente. Há uma brincadeira nos cursos de direito:
“Juiz pensa que é Deus, desembargador tem certeza”. Assim, é uma coisa
absurda, o médico, ele acha que é a última voz, voz do saber. Se você
está doente, quem sabe mais dizer da sua vida nesse momento? A sua
avó teve ou tem uma experiência enorme com ervas medicinais e ela
te dá um remedinho supimpa. Você toma e aquela coisinha e melhora.
Estava com uma dor na coluna e aquilo te melhorou. O médico diz:
“Não, isso não é saber, isso não pode”, e te tasca remédio. As drogarias
estão cheias. E aquele remedinho que pode trazer muito benefício para
população não é levado em consideração! O saber médico traz esse tipo
de relação, uma relação não só econômica, mas também política. E aí as
drogarias, aqueles fármacos – ninguém liga se os fármacos fazem mal –
te melhoram de um lado e te arrebentam de outro.
Para esse tipo de relação, me parece nós podemos fazer uma con-
tribuição no sentido de desierarquizar esses saberes. Os pesquisadores
que normalmente vão para esses espaços, e aí não são só os pesquisa-
dores, os gestores, eu tenho uma formação, eu formo gestores públicos
nesse sentido. E o que eu mais tenho discutido com eles é uma relação
de qual desenvolvimento nós queremos. Um desenvolvimento para che-
gar na terra dos outros dizendo o que os outros têm que fazer, ao invés
de ouvir os outros, é esse tipo de desenvolvimento que ocorre hoje, a
partir de um certo saber meu, porque a outra figura é tecnicamente
competente? Aquela figura que nunca entrou na universidade, chega lá
com seu programinha de intervenção e diz: olha, vai ter que acontecer
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que sabe que aquele grupo de trabalho deu uma contribuição extraor-
dinária e absoluta para a pesquisa, e que, se não fosse por eles, a pes-
quisa não seria possível, e é necessário a universidade reconhecer que
aquele trabalho e a autoria dele não é só de uma pessoa. Eu acho que a
gente precisa avançar nesse campo, primeiro disputar e segundo fazer
uma disputa qualitativa, se é esse o caso, para que a universidade possa
reconhecer outras fontes de saberes, inclusive, nesse caso, os saberes
que são nascidos dentro desses lugares, dos quilombos, das favelas, das
aldeias indígenas etc.
Eu estive numa aldeia indígena, em 2016, em Ilhéus. Nós fomos
cobrir lá a terceira edição dos jogos estudantis indígenas. Era um lugar
muito problemático do ponto de vista de estrutura, saúde etc., por uma
questão histórica, mas de uma riqueza absoluta de conhecimento. Eu
brinquei lá, me desculpe por minha expressão chula, vou usar para
poder quebrar um pouco o gelo –, eu falei assim para um amigo meu:
“Eu não sei coisa nenhuma, diante disso aí eu não sei nada”. Assim,
o cara que nunca foi para universidade te dá uma aula sobre planta,
conhece tudo de planta, é curioso. Dá uma aula, assim, absurda. Guarda
uma centena de nomes na cabeça – há uma série de dificuldades para
memorizar aqueles nomes –, sabe das plantas, sabe para que serve cada
uma. Aí eu falei: “Caramba”. Aí lá pelas tantas ele me deu um cachimbo,
para dar uma cachimbada em uma erva que eu me esqueci o nome. Ele
só falou assim: “Cuidado que essa erva é a forte”, e eu falei: “Ah, mas eu
vou dar uma charutada aqui com essa erva, vai ser bonito”. Mas assim,
como é engraçado isso, até o modo como ele explicou, que importa se
você puxa forte ou puxa fraco. Ele falou: “Você que não está habituado
com essa erva, quando você for puxar no cachimbo, você puxa fraco,
porque se você puxar forte, você pode ter um desmaio”. Como é que o
cara sabe disso? Assim, isso é um saber.
Então, repara, ao longo dos anos os pesquisadores – e aí eu estou
falando pesquisadores de modo geral, generalizando, certamente, tem
tantos outros que não são assim, vou parar, senão eu vou falar à beça.
Vou terminar para poder deixar o professor aqui também continuar a
fala. Só para finalizar falarei sobre essa questão de ter muitos pesquisa-
dores, falando de modo geral, fazendo pesquisa na favela.
O que me intriga mais é exatamente você não reconhecer o
outro como capaz de produzir um discurso. Isso acontece e me intriga
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CAPÍTULO III
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na maldade, para nós não termos esse documento em mãos para saber
que aquela terra nos pertencia, ao povo de resistência.
Mas para o nosso povo foi bom, porque ele trouxe esse docu-
mento, guardou, está guardado aí, mas o cacique, na época, que era o
pai do Marcos, o Xikão Xukuru, conseguiu cópia desse documento. Eu
fiquei feliz, porque foi encontrado o nome do meu tataravô nesse docu-
mento histórico.
Eu vinha dentro do avião pensando: meus parentes vieram de
muito longe, a pé, da cidade de Pesqueira. Comiam o que encontravam.
E eu vim e em um piscar de olhos cheguei aqui no Rio de Janeiro. É a
minha primeira vez.
É uma troca de experiência nós estarmos aqui e quero dizer para
os parentes que estão aqui na mesa que eu sou um aluno, eu estou apren-
dendo com os mais velhos da comunidade, estou pegando conhecimento.
Vocês me desculpem, porque nós temos um domínio que foi feito
aqui de manhã pelos encantos e pela natureza, o que nos permite um
discurso como esse e essa troca de experiências.
Eu vim com muitas alturas, a natureza me trazendo num objeto
inventado pelo homem branco, e os meus parentes vieram aqui a pé.
Como digo, eu sou um aluno, sou aprendiz, estou aprendendo,
estamos trocando experiências, como o nosso mestre falou. E eu tenho
os meus sábios lá dentro da nossa reserva, os pajés, os curandeiros.
Hoje, aqui, como o mestre falou, é uma sexta-feira, mas é um dia muito
importante para nós, que temos a obrigação com os encantados, com os
invisíveis, pois só eles é que podem autorizar este tipo de experiência.
Eu acredito que todos aqueles que estão aqui presentes, estão porque
foram enviados pelo encantando. Isso aqui não é um lugar para todo
mundo, como nós queríamos que fosse, mas só vêm aqui os fiéis, aqueles
que a natureza traz. E nós só chegamos na hora certa.
Eu vinha no caminho, e o nosso curandeiro, pai Roberto Braga,
falou do engarrafamento. E nós vínhamos no caminho também e houve
uma concentração, uma energia negativa, porque é o dia especial. Mas
nós só chegamos na hora que Tupã permite, porque nós viemos acom-
panhados. Estamos aqui em um debate como esse para ver se as coisas
acontecem de forma diferente. Aqui não importa nem cor e nem raça.
Deus, quando fez o mundo, não dividiu ninguém. Deus fez o mundo.
Não fez a terra para o comércio, fez para nós sobrevivermos. Hoje o que
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que estão ali. Ali já é uma aula diferenciada, dentro do povo. A escola é
dentro da mata, a escola é na família, é na casa. Como se diz, a educação
não é da escola. A escola passa informação, a escola é na comunidade,
é no povo, é onde se aprende, e eu aprendi isso com os meus parentes,
meus avôs, pai, mãe, bisavô, tataravô, e eles foram passando de um para
ou outro, foram passando de pai para filho, de filho para avô, bisavô.
Hoje eu chego lá no terreiro de ritual, estão os meus filhos, os
meus netos, passamos o dia todo dentro da mata, dançando o Toré. Há
nossa igrejinha lá, que Deus Tupã fez, de palha. Aquilo é a maior mara-
vilha do mundo, e é onde estamos fazendo a preparação para eles darem
seguimento à aprendizagem que nós aprendemos com nossos avôs. Eu
já sou avô. Aí meu filho vai passando para o filho dele. Daqui a pouco
meu filho vai ser avô e isso não tem fim, é infinito. Isso é a riqueza maior
do mundo que nós temos dentro do nosso povo tradicional e dentro de
qualquer povo que pratica a sua cultura, a sua religião.
Aqui nós estamos somando forças para vermos se mudamos
alguma coisa na nação. Estamos trazendo, aos poucos, conhecimen-
tos e trocando experiências. Porque o mundo hoje tem muitas pessoas
gananciosas, que só pensam no lado deles. Estão destruindo a natureza
e acabando com as riquezas, com as matas, com os pastos, com os rios,
com tudo. Hoje, nós trabalhamos através do nosso povo pela preservação
da natureza, recuperando as florestas, as matas. Na nossa área, que foi
demarcada, a natureza foi muito explorada, muito descapinada, só era
pasto e gado. Nossa terra foi invadida. Hoje nós já vemos os pássaros can-
tando, muitos pássaros, as nascentes recuperando as águas boas. Ao redor
das nascentes, nós deixamos a floresta tomar conta. Fazemos aquele tra-
balho de orientação para os jovens, para as crianças, para que não des-
matem, porque quem está acabando com o mundo é o próprio homem da
terra, não é Deus. É o homem da terra que está acabando com o mundo.
Saibam eles que se acabarem com a natureza, eles também se acabam.
O estado do Amazonas é o pulmão do mundo e está sendo rareado
por parte do homem branco, que iludem os nossos parentes que estão
lá dentro daquela reserva. Saibam eles que, se a floresta amazônica se
acabar, eles também se acabam.
Para o nosso povo, o pajé Zequinha é o médico, o doutor formado
pela natureza, que cura os indígenas. Se um índio precisar ir para o
médico com um problema, vai, mas primeiro tem que passar pela mão
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dele. O pajé Zequinha é quem vai dizer se ele pode ir ao médico ou não.
Eu já vi umas passagens lá pelo pajé. Vou contar uma história do pajé
Zequinha, de ter índio indo ao hospital e os parentes dizer: “O nosso
parente, se ele tirar o dia, não tira a noite”, e o Pajé foi lá visitar o parente
e disse: “Não, a cura dele não é essa, o médico pode mandar ele ir embora
que eu vou cuidar dele”. E hoje o parente está lá e em toda discussão que
é feita, ele diz: “Eu dou graças a Deus e ao pajé Zequinha. Se fosse depen-
der do médico de Pesqueira, eu não estaria aqui, já tinha me acabado”.
Então, isso para nós é muito importante, a cura tradicional, a
medicina tradicional, que é trazida da reserva, do mato, e serve para o
laboratório fazer a medicina da cidade. Só que hoje o povo quer facili-
dade. A mãe tem um filho em casa, ele está com uma dor e aí não quer
fazer um chá da hortelã miúdo para passar a dor, quer ir logo pegar
o remédio de farmácia que já está mais fácil. Uma dor de ouvido, ela
não quer – porque nem tem a planta também –, pegar uma folha de
arruda, espremer e botar a água da arruda no ouvido da criança para
parar aquela dor de ouvido, não, tem que ir logo ao médico.
Eu tinha um problema com 17 anos de idade. Apareceram muitos
caroços no meu rosto e espinha. Não sei como foi aquilo. Era um pro-
blema. Eu era muito, não sei se eu posso dizer, muito nojento. Tinha ver-
gonha de sair, ficava recanteado, no canto, com 17 anos de idade. Tinha
a índia lá, a minha namorada, que ia lá me visitar e tudo, que sempre
tirava o mal pensamento da minha cabeça. Chegou um dia até de eu fazer
uma loucura, me enforcar por conta daquilo. Eu fui para os médicos e o
médico não deu jeito. Passava o medicamento, eu usava e não melho-
rava. Cheguei em casa desesperado, fui em Pesqueira, em Arcoverde,
uma cidade vizinha. Tomei esses medicamentos, mas ficava pior o pro-
blema. E quando eu estava pensando besteira, de fazer com as minhas
próprias mãos, eu dormi e o encantado veio e disse: “Olha, o remédio
está ali”. Quando eu acordei, eu olhava para o pé de algodão que tinha
ao lado da minha casa, mas todo canto que eu ia era um pé de algodão, e
eu disse: “O remédio é aquele”. E isso não saía da minha cabeça. Eu sei
que fui lá, peguei as sementes do algodão, “machuquei” no pilãozinho de
pisar tempero em casa, que a minha mãe ainda tem até hoje, amassei o
algodão. Tinha um parente, um vizinho na aldeia, que fazia a bebida tra-
dicional, uma cachaça que chamava… esqueci agora. Aí eu peguei a massa
do algodão e coloquei junto com essa bebida. Fiquei bom. Tomava um
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a minha obrigação. Então, eu vou levá-lo, porque ele não está me res-
peitando”. Com trinta dias a índia que recebeu o Bacurau, que recebeu
o cacique e passou o Bacurau para outra passagem, ela também foi pas-
sada. Na semana passada foi encontra morta dentro de casa, falecida há
três dias. Ela tinha dito para a filha dela que eles iam achar ela morta
com dois ou três dias. E foi mesmo. Ela também se passou, ninguém
sabe como que ela morreu. Ela tinha obrigação com os encantados e
também não estava mantendo a obrigação.
Não é brincadeira não, minha gente, não é brincadeira não. E eu,
dentro do povo, jovem, com 20 anos, nas ocupações de terra, diante de
muitos fazendeiros e pistoleiros, eu me peguei com o encantado.
Tinha passagem lá dentro do povo, e eu sempre conto para os
meninos, parentes e amigos meu. Os pistoleiros chegavam, botavam
emboscada para mim nas passagens e nos caminhos. Era uma mistura, os
parentes sendo manipulados, trabalhando de empregado nas fazendas, e o
fazendeiro usava eles. Os índios que viviam fora da aldeia, na cidade, tra-
balhavam com os fazendeiros e faziam o que os fazendeiros mandavam.
Então, o pistoleiro chegou e disse para um parente que tinha botado uma
arma em cima de mim cinco vezes, cinco emboscadas e eu passei, como
se diz a história, na barba dele, assim, e na frente deles apareciam duas
pessoas e eles terminavam desistindo, sem força de me atingir. E um cara
perguntava: “O que ele tem? O que é que aquele rapaz tem?”, e o outro
respondia: “Não sei”. Felizmente, o que eu tenho é a proteção divina.
Na segunda-feira eu tenho, por obrigação, que acender uma luz
para os encantados, e peço para eles me acompanharem na terra, no ar,
por onde eu andar, e me defender dos maus. Que os maus não tenham
pernas nem força para me acompanhar, não tenham olhos para me ver,
não tenham braços para me pegar, não tenham armas para me atirar, não
tenham nada para me atingir. É bem fácil. Por quê? Porque eu tenho obri-
gação com os encantados, por isso que eu estou aqui hoje, vim pelo ar
em um troço, avião, que eu nunca andei… Já andei, já andei para Brasília,
Recife, de Recife para o Pará e essa vinda aqui agora para o Rio de Janeiro.
Então, minha gente, a história é muito comprida, mas é isso, isso
é um pouco de experiência que eu tenho da natureza.
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Habitar o tempo
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CAPÍTULO IV
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celular e aparelho nos dentes. Não tinha nada a ver com tudo aquilo que
a gente queria que colocasse na pauta, com aquilo que eles prometeram
para a gente quando foram entrevistar. Inclusive, o cacique Marcos, que
não estava na aldeia, voltou para lá para poder colocar a pauta do povo
Xukuru, pela entrevista. E não só não saiu a nossa pauta, mas, pelo con-
trário, houve uma tentativa de descredibilizar o povo Xukuru, inclusive,
enquanto indígena.
Então, surge aí uma necessidade, e as lideranças Xukuru perce-
bem que essa seria uma estratégia de atender a duas demandas: tanto de
envolver a juventude, quanto de colocar nossa pauta por meio do vídeo.
Nesse momento, a gente mergulha na história do povo Xukuru.
O trabalho audiovisual necessita de uma pesquisa grande para con-
cretizar os vídeos. Eu, que participava sempre dos rituais, em todos
os momentos, quando mergulhei no audiovisual, comecei perceber
o quanto a luta do povo Xukuru foi intensa, o quanto é importante
você estar ali para contribuir. Esse era o questionamento que a gente
se fazia, no trabalho do audiovisual: o que estou fazendo, enquanto
Xukuru, para contribuir com a nossa luta? Isso tendo em vista, que
a minha geração pegou um momento diferente, o final das retoma-
das – seu Cecílio Xukuru lembrava hoje de manhã –, pegou quando a
maior parte do território já estava nas mãos do povo Xukuru. A gente
se questionava: qual seria essa lição para a juventude? Qual seria a
responsabilidade que a juventude teria que assumir? Estar no curso
de audiovisual fez com que a gente compreendesse a grandeza dessa
história, a importância de contribuir para a luta também.
Com o passar do tempo, a gente, que ia discutindo e acompa-
nhando tudo aquilo que vinha acontecendo, iniciou as discussões, as
pautas da juventude, sobre como a juventude pode se organizar e con-
tribuir para o povo Xukuru. Surge, então, o coletivo chamado Poya
Limolaygo. Poya, na língua materna, significa pé, e limolaygo significa
terra, chão. E a gente tomava com o pé no chão.
Muita gente fala da juventude como quem está pensando acima
das nuvens, que a juventude não está com o pé no chão e precisa pen-
sar direito. E a gente precisa dizer que a gente tem a juventude com
pé no chão. O Toré é o pé no chão. Ter unidade é ter o pé no chão. A
gente achou que “pé no chão” traduzia o que a gente estava pensando:
Poya Limolaygo.
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com o projeto pronto, vamos montar juntos, sentar aqui com a comissão
de juventude, e a juventude vai dizer o que é que a gente precisa discutir,
o que é que precisa ser trabalhado, o que precisa ser melhorado. Vamos
criar a autonomia dos povos indígenas. Ao invés de vocês trazerem o
projetinho pronto, nós vamos começar a trabalhar”.
Isso foi trabalhado desde criança. A minha geração foi uma das
gerações que teve um número de jovens grande, que ainda se mantém no
movimento. É difícil trabalhar essa luta, o interesse de estar na luta, de estar
na causa, de ter que ir para o ritual, ter que ir para a retomada, ir para uma
manifestação, para a mobilização nacional indígena. Saber que vai não para
curtir, não para conhecer uma cidade, mas para lutar, e que, se preciso for,
vai levar bomba de gás lacrimogênio e bala de borracha, a polícia vai bater,
vai meter spray de pimenta na cara, mas a gente está lá porque tem o povo
que ficou lá na comunidade que deposita confiança na gente.
Foi trabalhado isso na nossa formação. Eu vinha comentando
com os meninos. Em Potiguara o colégio teve o papel fundamental, o
colégio levava a gente para a retomada, pegava os alunos, botava dentro
dos ônibus e levava para a retomada. A gente passava o dia na retomada.
Tinha o pessoal que era mais ativo: eu, Poran, Gessé, Isaías, depois que
voltava do colégio, pegava a roupa, ia para a retomada e passava o final
de semana dormindo com os parentes.
Assim nasce a questão de brigar pela juventude, de a juventude
ter a sua voz e ser ouvida. Não para ser maior que a liderança, não para
bater de frente com a liderança, mas para estar junto. Para caminhar
junto, e estar de mãos dadas e somar essa força. A partir disso, avançar
até o universo acadêmico.
O Xukuru utilizou o audiovisual para reescrever sua história, mas
em Potiguara a gente viu de uma forma diferente. Infelizmente, as coisas,
às vezes, só valem quando estão no papel. Se não está escrito, na norma
acadêmica, se não é publicado, não tem muito valor. Para a sociedade,
existe um padrão, e a gente, enquanto Potiguara, enquanto militante,
aconselhado pela nossa liderança, entra nas universidades para reescrever
a história e mostrar que os indígenas não são menos nem mais que do que
ninguém. Estou aqui e tenho o mesmo nível que todo mundo. Uma frase
dos meninos na camisa da Universidade de Brasília (UnB) diz assim: “Eu
posso ser quem você é sem deixar de ser quem eu sou”. É preciso avançar
e produzir academicamente também para tirar certas visões.
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PET. O GT para nós é uma casa onde a gente pode chegar e conversar
da nossa realidade, contar a nossa história, sempre e tem alguém ali que
vai nos ouvir e que vai enxergar uma realidade que não é das mais fáceis.
Quando eu cursava Engenharia, eu fui pagar uma cadeira (dis-
ciplina) de direito ambiental, e uma professora do direito, da UFPB,
mulher de um procurador federal, disse que o Governo estava acabando
com as universidades públicas, pois estava colocando esse povo para
estudar nas universidades públicas. E esse povo era quem? Era cotista,
indígena, negro, era a pessoa que tinha estudado em escola pública.
Fiquei calado no dia em que ela fez essa provocação, até por-
que estava em uma turma de dez alunos e só tinha eu de cotista, e
todo mundo aplaudiu quando a professora falou que estavam fazendo
porcaria com o país, colocando aquele povo ali dentro. E eu esperei o
momento oportuno para eu poder falar, o dia em que eu fui convidado a
dar uma palestra, lá no centro de ciências jurídicas da UFPB, e eu pen-
sei: “Sou eu, agora é a minha vez”.
Quem estuda em escola pública já tem uma dificuldade grande
na universidade, imagina quem estuda em escola pública do interior do
interior, é outra coisa totalmente diferente, são realidades muito dife-
rentes. Precisamos melhorar muito os níveis da educação no Brasil. Por
isso fomos avançando nesse processo de luta e resistência.
O povo, que a professora disse que está transformando a educa-
ção superior em uma porcaria, é o mesmo povo que o pesquisador vai na
comunidade pesquisar e roubar o conhecimento e depois dizer que é dele.
Infelizmente, o que vale para a gente, na universidade, é quase
nada. A gente aprende, na verdade, simplesmente algumas normazinhas
técnicas. A universidade serve para dar apenas um título, um canudo.
A gente não pode passar pela universidade para ser apenas mais um.
Muitas pessoas passam pela universidade para ser apenas mais um.
Forma, termina, vai embora e nada muda, continua depois da universi-
dade do mesmo jeito, com os mesmos problemas de ignorância, com os
mesmos preconceitos.
Há pessoas lá que dizem que ser índio é não ser catequizado.
A pessoa é da Paraíba, mora na cidade vizinha ao território indígena,
mas desconhece a história da colonização do Brasil e toda a história de
luta e resistência dos povos indígenas. O campus universitário de Rio
Tinto fica a meia hora da minha aldeia. Aí um colega me perguntou:
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esperando por melhoria. A gente tem que, cada vez mais, estar fortale-
cido para levar para a comunidade uma visão diferente, e, até mesmo,
como a gente conversou no nosso grupo de estudo, é preciso reavaliar os
trabalhos que foram feitos sobre os Potiguara. Eu falava com Hosana e
disse: “A gente vai colocar você para falar primeiro, depois a gente fala.
Aí a gente vai saber o que a doutoranda vai falar sobre nós, indígenas”.
Aí a gente precisa reavaliar o que se fez e foi escrito e se real-
mente condiz com a nossa realidade, com o que as nossas lideranças
repassaram. Se não, por que a gente não vai lá e reescreve aquilo que foi
escrito e recoloca a partir de nós?
Quem vai de fora para dentro da comunidade vê de uma maneira, e
quem está ali dentro enxerga de outra forma totalmente diferente. Eu tento
trabalhar isso, com a nossa juventude, fazer das nossas pesquisas uma pes-
quisa que nasce, cresce, se mantém e é desenvolvida toda pela comunidade.
A gente está lá só para colocar nas normas. A gente chega na
comunidade e diz: “A gente está aqui à disposição de vocês, então digam
o que querem que a gente faça”. A gente vai fazendo, e a comunidade vai
dizendo o que a gente precisa fazer. A gente não chega lá dizendo: “Eu
estou no quarto período de ecologia e eu sei sobre meio ambiente”. Não,
a gente diz: “Eu não sei nada sobre meio ambiente e vim aqui escutar
o senhor, e o senhor vai me dizer o que eu preciso fazer, onde preciso
ajudar e de que forma posso ajudar a executar tal serviço”.
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engenharia, mas muito mais pela luta. Eu faltava mais do que ia para as
aulas. Na aula, eu estava brigando. Ia lá todo dia na sala do pró-reitor bri-
gar. Quando tinha reunião com a reitora, eu falava: “Vamos brigar, vamos
discutir, vamos trabalhar”. Quando tinha evento indígena e tinha prova, a
prova eu deixava para repor, porque eu ia para luta, ia viajar com os meus
parentes, pois era mais importante construir o espaço.
Eu passei dificuldade, passei fome na universidade. Felizmente,
nisso dou graças a Deus, o meu pai era professor, funcionário público da
prefeitura. Só trabalhava ele em casa e tinha que manter dois filhos e uma
filha na faculdade, eu e Tamara morando em João Pessoa, e o meu irmão,
Poran Potiguara, morando em Brasília. O custo de vida dele em Brasília
era bem maior do que o meu em João Pessoa. Em João Pessoa eu morava
na casa do Capitão – que para a gente é como se fosse um segundo pai –
é um segundo pai na verdade –, mas o dinheiro que eu tinha era pouco.
Aí eu escolhia o dinheiro para passagem ou para eu comer. O restaurante
universitário (RU)? Eu não tinha. Apesar de ser gratuito, demorava quase
dois meses para ter o benefício de acesso ao RU. Então acontecia muito de
eu chegar lá, ver o dinheiro no bolso, contar e pensar: “Hoje não tem como
lanchar! Eu passo o dia sem comer nada, estudo e à noite, quando chegar
em casa, eu faço alguma coisa”. A primeira feira de casa quem fez foi o
Capitão, que me levou lá para a casa dele em João Pessoa. Ele não morava
mais lá, estava já de volta, morando na aldeia, na Baía da Traição, e a minha
primeira feirinha foi ele quem fez. O restante das coisas eu trazia de casa.
Eu não tinha dinheiro para comprar nada em João Pessoa, eu tra-
zia tudo de casa. Ia para aldeia, e quando eu voltava, voltava com uma
mochila, parecia que era roupa, mas era comida. Tinha que sobreviver
daquele jeito, e nem por isso eu nunca pensei em desistir. Era duro? Era.
Tinha noite que eu chorava. Quase entrei em estado depressivo. Toda
noite eu chorava quando eu chegava em casa, mas quando voltava para
a aldeia, eu lembrava: “Tem tanta gente aqui vivendo pior do que eu,
passando por uma realidade muito mais complicada”. Isso me dava força
para voltar na segunda-feira para a universidade e continuar lutando.
A bolsa permanência
Só para finalizar, em 2013, o Governo lança um programa cha-
mado Bolsa Permanência. O auxílio financeiro é legal, mas quem foi
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1 Este nome tem a intenção de construir uma educação inspirada no método etnográ-
fico, com imersões profundas nas comunidades de Oriximiná/PA. O prefixo etno tem
maior relação com etnografia do que com etnia.
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e é nós por nós. Não tem ninguém ali, não tem dinheiro nenhum envol-
vido, mostrando que é possível produzir um espaço com outro modo de
ensinar, aprender, produzir saber, sem ter que pagar pelo conhecimento.
Estamos aqui dentro da universidade, mas quem entra aqui?
Quem tem dinheiro para pagar um curso pré-vestibular bom para estar
aqui. Na ocupação a gente fez uma coisa diferente. Faz um ano que
a gente fez pré-vestibular comunitário. A gente foi ver o resultado do
Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), e um dos nossos pré-vestibu-
landos passou. É um momento novo.
Eu queria mostrar mais um vídeo para verem como está hoje.
Esse foi um encontro de três anos na Roda Cultural no Engenho do
Mato (RODA…, 2016), em 16 de abril de 2016 – “É som de preto, é som de
preto. […] Resistência” (RODA…, 2016).
Referências
MUTIRÃO: biblioteca Engenho do Mato (BEM). Rio de Janeiro: 202
Filmes, 2014. 1 vídeo (5 min). Publicado pelo canal 202 Filmes.
Disponível em: https://bit.ly/33nBcd3. Acesso em: 2 out. 2020.
RODA cultural Engenho do Mato Projeto BEM. Rio de Janeiro: [s. n.],
2016. 1 vídeo (1 min). Publicado pelo canal Daniel Campos.
Disponível em: https://bit.ly/2Slykra. Acesso em: 2 out. 2020.
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conversa sobre isso e foi necessário eu dizer várias vezes que ela era
capaz. Dizer para esse jovem que ele é capaz de ocupar o espaço que
ele quiser, que pode estar na academia, mas que pode estar em outros
ambientes batalhando, é muito importante e me faz pensar sobre a
autoestima que esse jovem tem. Não falo aqui de autoestima de beleza,
mas de acreditar em si próprio, de se enxergar potente e capaz.
Tem esse momento de se sentir perdida na universidade, de pensar
como eu posso servir ao meu povo. Vou para a educação, para a antropo-
logia? Como eu vou conseguir dialogar com o meu povo? Aonde eu posso
levar o que eu aprendi na universidade e o que eu luto para aprender aqui?
Nós estávamos com uma discussão recente para ter matéria nas
quais conseguíssemos ler pesquisadores negros. Ao invés de ler pesqui-
sadores brancos que falam da comunidade negra e do povo negro, ler
pesquisadoras negras, ler autores negros, e uma professora entrou nessa
luta. A gente está com uma matéria na qual se lê literatura negra, de
mulheres negras, e etnografia produzida por mulheres negras. Em outra
matéria, eu parei para me questionar que a gente não leu uma literatura
indígena. A gente leu recentemente sobre Davi Kopenawa, mas o texto
não é dele; o que é isso? Você lê sobre um indígena, o que ele fala, mas
para o texto ser publicado, não pode ser ele a escrever.
Algumas narrativas construídas dentro do ambiente acadêmico
são extremamente racistas e classistas. Dentro da sala de aula já escu-
tei um professor dizer que favelado não tem cultura, que mãe de fave-
lado não tem o que deixar para seus filhos, visto que não tem cultura.
Também já escutei professor falar em uma reunião de colegiado em que
se discutia sobre a adesão de cotas na pós-graduação, que seria necessá-
rio criar um curso para ajudar esses estudantes cotistas que iriam entrar
no mestrado, pois eles viriam com uma educação defasada. Sendo que
esses estudantes cursaram a graduação junto com os alunos brancos.
Assim, mostramos como é necessário ocupar o espaço acadêmico
no sentido de transgredir, porque este é um espaço elitista, branco,
eurocêntrico e cis normativo. É um espaço que parece que todo dia
que a gente entra, a gente morre um pouquinho. E ao mesmo tempo, a
gente ressurge das cinzas, porque tem uma coletividade que também é
suporte. Sou muito grata a algumas amigas minhas que estão aqui hoje,
de poder por meio da convivência conseguir minimamente construir um
dia a dia saudável dentro da universidade.
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Com a luta por ocupar espaço, essa semana tivemos uma notícia
muito boa. Nós fizemos um preparatório para o mestrado de antropolo-
gia da UFF, para estudantes que entrariam por meio das cotas. Nesse pre-
paratório, lemos o edital e discutimos os textos que caíram na prova. Na
primeira fase, foram seis aprovados pela ampla concorrência, seis apro-
vados por cota, e cinco que a gente conseguiu a revisão de provas. Falta
ainda a fase das entrevistas. É a luta para colocar a galera aqui dentro e,
finalmente, a gente falar pela gente. É a gente começar a traçar a nossa
história e deixar de ler e de ouvir coisas absurdas sobre o nosso povo.
Tem uma coisa que eu não podia deixar de falar, que é sobre o olhar
do ancestral. A juventude de terreiro, da qual faço parte, é um grupo que
pertence a uma rede maior, que é a Renafro. Ela trabalha a saúde, e por
meio dela discute racismo em todas as formas. A rede está com 25 anos,
mas tem uma trajetória anterior à Renafro, e recentemente a gente per-
deu o nosso criador, quem deu esse pontapé, o Ogã José Marmo. Eu não
poderia deixar de citá-lo, porque eu entrei na militância da juventude de
terreiro por meio do Marmo, uma pessoa que me ensinou a ser quem sou
e a lutar pelo que sou. Ser jovem, negra, lésbica, de terreiro não é fácil.
É lutar todos os dias pelo que a gente é, e isso é muito difícil. Aqui eu
falei muito sobre os racismos vividos dentro da universidade, mas é por-
que estamos nesse ambiente e são batalhas que tenho tentado travar no
momento. No entanto eu não podia deixar de citar o Marmo. Embora a
minha família também me apoie muito, às vezes a gente precisa de outro
empurrão que fala assim: “Vai, que você é capaz”.
Hoje eu estou aqui como juventude de terreiro, mas acredito estar
representando muito mais, primeiro porque, como eu disse, não sou
apenas de terreiro, sou negra e lésbica, e também porque falar de can-
domblé é lutar por existir desde que chegamos nessa terra. O povo de
terreiro está morrendo. É preciso parar de falar de intolerância religiosa,
e começar a falar de terrorismo religioso, de racismo religioso. Quando
entram no terreiro e atiram numa mãe de santo, quando entram num
terreiro e fazem a gente quebrar tudo que tem ali dentro, não é mais
intolerância, é terrorismo. Há que entender que isso é racismo religioso,
racismo étnico, porque a ideia é acabar com toda essa diferença étnica.
Eu me cansei de pedir paz. Estou pronta para a guerra, mesmo.
A paz é uma coisa meio imposta para a gente. É o olhar muito europeu,
cristão, de que vai ter uma paz, a paz de Cristo vai chegar e vai ficar tudo
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Referências
BASTOS, Janaína Ribeiro. O lado branco do racismo: a gênese da iden-
tidade branca e a branquitude. Revista da ABPN, Rio de Janeiro,
v. 8, n. 19, p. 211-223, 2016.
RAUTER, Cristina. Criminologia e subjetividade no Brasil. Rio de Janeiro:
Revan, 2003.
RAUTER, Cristina. Os que vieram para branquear o Brasil: o moinho de
gastar gente e a imigração alemã no século XIX. Revista da ABPN,
Rio de Janeiro, v. 10, n. 24, p. 67-88, 2018.
WILLEMS, Emílio. A aculturação dos alemães no Brasil. São Paulo:
Nacional, 1980.
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chocadeira, afirmou que o melhor não seria destruí-la, mas sim “gorar
os ovos dos mostrengos e colocar os nossos”. Os monstrengos, a que se
refere, são aqueles que alimentam o racismo, o epistemicídio, a exclu-
são dos povos não brancos desse espaço privilegiado de produção de
conhecimento e fortalecem as relações coloniais de saber e poder. Para
reverter esse processo, muito terá que ser destruído. E não podemos ter
receios de trabalhar pela destruição daquilo que nos destrói, que destrói
povos e comunidades inteiras há centenas de anos: a máquina colonial.
Os ensinamentos de Nego Bispo, do Capitão Potiguara, da profes-
sora Luiza Oliveira e dos companheiros de pesquisa do Kitembo me fize-
ram entender a amplitude das ações afirmativas e o quanto elas se fazem
urgentes e necessárias. Por um lado, os povos indígenas, quilombolas, den-
tre outros não brancos, não precisam e não querem ser tutelados por quais-
quer outros povos ou saberes, uma vez que são os mais indicados para pro-
duzir um conhecimento que de fato atenda às necessidades de sua gente.
Por outro, é evidente que o modelo universitário, pautado pela branquitude,
apenas reproduz violências e desigualdades, servindo para manter o status
quo. Em um país desigual, corrupto e violento como o Brasil, o conheci-
mento produzido nestes moldes vem subsidiando a miséria e o extermínio
dos povos que produzem a riqueza da nação, mas dela não usufruem.
Outra direção que entendemos ser importante para que possamos
construir modos de pesquisa que não reproduzam a relação colonial foi se
evidenciando ao longo das discussões nos nossos grupos de orientação, com
os impasses encontrados em cada caminho de pesquisa. Muitos de nós fomos
selecionados para os cursos de mestrado e doutorado com projetos que
propunham metodologicamente entrevistas ou que buscavam definir uma
relação do(a) pesquisador(a) com o campo mais ou menos neutra. À medida
que fomos discutindo os projetos nos encontros do grupo de orientação,
percebemos que estes formatos não combinam com nossos anseios ético-
-políticos de prática profissional e de produção de conhecimento. Em um
desses encontros, quando debatíamos o texto da professora Luiza Oliveira,
retomamos sua proposta de pensar a perspectiva do surgimento do pes-
quisador em cena pelo viés da oralidade em que, não apenas o pesquisador
reconhece sua implicação no processo de pesquisa, como reconhece também
as transformações que ela produz na sua vida e em sua atuação profissional.
A oralidade é o modo de produção e transmissão de conhecimento
predominante entre grupos tradicionais, como indígenas de diferentes etnias,
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Referências
SANTOS, Antônio Bispo dos. Em colonização, quilombos: modos e
significações. Brasília, DF: Editora UnB, 2015.
SANTOS, Abrahão de Oliveira. Relatório final do estágio pós-doutoral do
Projeto Subjetividade, Espiritualidade e Práticas de Cuidado nas
Religiões de Matriz Africana. PPGAS - Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social – Museu Nacional, Universidade Federal do
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2016, 129 p. (pp. 09-61).
RODA de conversa com o mestre quilombola Antônio Bispo dos Santos.
Brasília, DF: Universidade de Brasília. 1 vídeo (80 min). Publicado
pelo canal Maré (UnB). Disponível em: https://bit.ly/3cQydgB.
Acesso em: 14 nov. 2017.
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FOTOS DO III ECONTRO KITEMBO:
Laboratório de Estudos da Subjetividade e
Cultura Afro-brasileira:
Povos Afroindígenas, Saberes Tradicionais,
Pesquisa e Diálogo na Universidade.
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SOBRE OS AUTORES E AUTORAS
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