Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Comissão Editorial
Eduardo Galasso Faria, Fernando Bortoleto Filho,
Gerson Correia de Lacerda, Shirley Maria dos Santos
Proença, Paulo Proença e Valdinei Aparecido Ferreira.
Publicação Semestral
ISSN 1806-5635
O
primeiro número da Re-
Valdinei Aparecido F
mo e modernidade.
○
○
6 O EVANGELHO DE MARCOS
Archibald Mulford
Woodruff
16 A CRIAÇÃO MANIFESTA A
GRAÇA DE DEUS
Eduardo Galasso Faria
60 A BÍBLIA NO ACONSELHAMENTO
PASTORAL
Shirley Maria dos Santos Proença
74 DESENCANTAMENTO
DO MUNDO EM MAX WEBER
Valdinei Aparecido
Ferreira
O Evangelho de Marcos como
evangelho de Deus 1
E
vangelho de Deus2 é
uma frase encontrada Archibald Mulford W
no trecho programático
do Evangelho de Marcos, logo no iní-
cio (1.14). A frase pode nos surpre-
ender. Evangelho de Jesus Cristo
(1.1) é uma frase melhor conhecida
e soa mais natural para os nossos ou-
Woodruff
○
○
tira proveito da “estrutura” ou “textura” que mais importa tem algo a ver com
○
○
do Evangelho de Marcos na sua íntegra, Deus.
O EV
PÁGINAS 6 A 15
REVIST
REVISTA
○
entendendo que Marcos tem uma coe-
EVANGELHO
○
○
rência considerável, desde 1.1 até 16.8,
Deus fala,
A TEOL
○
seja a coerência de uma composição lite-
TEOLOGIA
ora por um
○
rária, seja a coerência de um mosaico
○
○
muito bem feito.
profeta, ora
OGIA E SOCIEDADE
○
○
○
O título do ○
○
diretamente
do céu
○
livro já abre
○
○
Marcos, que caracteriza Jesus Cristo frase só pode ser Deus mesmo. Marcos
○
EVANGELHO
○
como Filho de Deus. Este primeiro primeiro promete uma palavra escrita do
○
ANGELHO DE DEUS
versículo serve como título da obra, e a
○
frase Filho de Deus já abre uma ques- palavras famosas sobre voz e deserto
○
○
tão, pois o seu sentido não era tão óbvio (Isaías 40.3), insere outras palavras de
○
não eram, como nós, filhos de uma cul- criando assim um contexto para Isaias,
○
○
tura e de uma educação cristãs. Para eles, que identifica a voz com o mensageiro
○
○
um filho de Deus pode ser um rei, um (ou anjo)5 que Deus prometeu, primei-
○
Paulo
a Deus. Os primeiros leitores/ouvintes
aulo
aulo,, SP
o tempo final.
○
○
de Marcos por certo vislumbravam algo, Desta forma, após a voz autoral do
○
Archibald Mulford W
○
Ao ver este título, o ouvinte pode Marcos é a voz de Deus, ouvida através
○
de profecia.
○
oodruff
anjo
hebraico. Em conseqüência, um “anjo
anjo” prometido
○
no homem Jesus. Porém Marcos, ao cor- pode ser um mensagerio humano, João Batista. De
○
7
○
○
○
○
○
Entende-se que os profetas ouviram Cafarnaum. Ganhamos perspectiva ao
O EVANGELHO DE MARCOS COMO EVANGELHO DE DEUS
○
○
a voz de Deus no contexto de visões. perceber que evangelho é um quase-si-
○
○
Marcos não tarda em trazer o leitor/ou- nônimo de anúncio. Um evangelho é um
○
vinte o mais próximo possível de uma anúncio bom, forte, oficial. O evange-
○
○
experiência semelhante à que foi vivida lho de Deus é o anúncio de Deus. É o
○
○
pelos profetas. O que Jesus viu é descri- anúncio que anuncia a Deus ou o anún-
○
to para o leitor/ouvinte: o céu abre e não cio que Deus anuncia?7 Considerando
○
○
só abre, como abre de cima em baixo. que Deus já entrou nesta história falan-
○
○
Falta pouco para Jesus ver um trono. do, a segunda opção deve ser a certa. Se
○
Enquanto o Espírito desce sobre ele (o o anúncio no seu conteúdo versa sobre
○
○
Espírito tem semblante de pomba ou a Deus e o que Deus está fazendo, este
○
○
descida é semelhante à de uma pom- fato é simples conseqüência do fato pri-
ba), Jesus ouve a voz que diz Tu és meu ○
○
○ mário que é: Deus está falando e se re-
filho, o bem-amado, resolvi favorecer- velando.
○
○
te (1.11). A voz retorna bem depois, no Como a narrativa nesta perícope tem
○
ração fornece um outro momento, com resumem a mensagem que ele procla-
○
○
visual extraordinário (9.7): Este é meu mou naquela fase. Neste resumo-de-en-
○
filho, o bem-amado. Dai ouvidos para sino figura o reino. O reino também é
○
○
páginas 6 a 15
Obviamente, Deus vai se fazer pre- ra fase do seu ministério: O tempo cum-
○
○
de Jesus. Mas, primeiro, Deus age e fala to. Não é nosso objetivo neste ensaio
○
○
8
○
○
○
○
○
○
○
9.1 e 11.10. As duas parábolas do Reino sus também têm que entrar, mas a ênfa-
REVISTA
○
○
tratam, na verdade, da vinda do Reino se em Marcos não cai sobre isto, pois o
○
○
(4,26-29.30-32). Várias vezes aparece a que precisa acontecer com eles está acon-
○
expressão entrar no Reino (9.47; 10.23- tecendo com uma outra linguagem.8
○
○
25), ao lado da expressão receber o Rei- A conseqüência da proximidade do
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
○
no (10.15). O Reino chegou (ou quase) Reino é a necessidade do arrependimen-
○
ao bom escriba, que não está longe do to. Arrepender-se e crer no anúncio es-
○
○
reino de Deus (12.34). Os discípulos já tão muito ligados, são quase a mesma
○
○
receberam o “mistério” do reino, que coisa. O Reino está próximo, Deus está
○
nada mais precisa ser do que a informa- próximo, tudo muda, inclusive você.
○
○
ção que Deus já estabeleceu o propósito ○
Oração a
○
Deus
○
ta retórica. Mais ainda: este termo pare- se não o maior. Jesus olha para o céu ao
○
○
ler, pela primeira vez. Esta linguagem é questão de orar em outros momentos
○
○
aqueles que ouvem só parábolas de Je- Jesus é dirigido a Deus (15.34). No en-
○
(4.11), talvez porque a hora vai chegar neira errada, como fazem os fariseus de
○
○
para eles num outro momento (4.26-29). Dalmanuta, que querem um sinal do céu
○
ouvinte.
○
Arimatéia é caracterizado como “espe- A análise proposta aqui é somente para Marcos.
○
9
A expressão em grego, pistis theou
theou, merece um
○
9
○
○
○
○
○
○
○
O conflito é negando a ressurreição mas ridiculari-
O EVANGELHO DE MARCOS COMO EVANGELHO DE DEUS
○
○
zando-a. O Deus deles é distante, mui-
○
sobre Deus,
○
to sagrado mas inoperante no mundo.
○
O mesmo assunto volta no momen-
o Poder
Poder
○
○
to dramático do confronto entre Jesus
○
Que o evangelho de Marcos está re-
○
e o sumo-sacerdote, em que este, de-
○
pleto de conflitos, disso ninguém duvi- sesperado porque o interrogatório vai
○
○
da. Intérpretes divergem, no entanto, mal, pergunta (14.61) És tu o Messias,
○
sobre a natureza destes conflitos. Os
○
o filho do Bendito? O Deus deste sa-
○
conflitos de Jesus registrados em Mar- cerdote é o Bendito, sagrado, no céu,
○
○
cos seriam todos com o império roma- gozando de uma perfeição que não exis-
○
no, ou com o judaísmo, ou com Sata-
○
te na terra. O Deus dos epicureus gre-
○
nás, ou com o Templo e os sacerdotes. ○
○ gos é também assim. Jesus replica: Eu
Na verdade, os conflitos envolvem vári- sou, e tu verás o Filho da Humanida-
○
que é muito errado: o dos saduceus bém aparece em 10.27 (“Tudo é possí-
○
dos? Porque eles desconhecem as Es- jam o reino de Deus vindo em poder”).
○
○
do Filho de
Filho
○
10
Os conflitos de Jesus em Marcos não se esgotam 12 do qual, parcialmente, acabamos de
○
conflitos com autoridades vindas de Jerusalém para tratar.10 Em geral, o início do evangelho
○
10
○
○
○
○
○
○
○
o final, e os dois ciclos de conflitos ca- na sua estréia em Cafarnaum (1.22,27),
REVISTA
○
○
bem plenamente neste esquema. No ca- autoridade esta que se manifesta no en-
○
○
pítulo 2, um desfile de opositores dife- sino e nos exorcismos, sendo sempre a
○
rentes vão entrar em conflito com Jesus: mesma.
○
○
escribas, escribas dos fariseus, discípu- Se o primeiro ciclo trata da autorida-
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
○
los de João Batista junto com discípulos de do Filho da Humanidade, o segundo
○
dos fariseus, os fariseus, uma combina- ciclo não trataria da mesma questão? A
○
○
ção de farsiseus e herodianos, uma com- resposta, embasada na moldura do segun-
○
○
binação não só improvável como do ciclo, aponta para uma diferença en-
○
marcante. No capítulo 12 o desfile é uma tre os dois ciclos. O título de Jesus que
○
○
combinação de fariseus e herodianos, ○
○
está em jogo é diferente, e a diferença
saduceus e um escriba. Considerados vai ter uma conseqüência enorme. O tí-
○
juntos, estes dois blocos têm uma estru- tulo em jogo no segundo ciclo é “Filho
○
○
escribas; o primeiro desfile termina com do do título Filho de Deus está saindo
○
○
dos conflitos, começa com a mesma com- bola dos vinhateiros, o sentido do título
○
○
ciclos de conflito tratam da mesma ques- um lado, a voz do céu já anunciou o fato
○
○
tão? A questão seria, talvez, sobre a pes- (1.11; 9.7). Os demônios também sabem
○
○
pela moldura11 do primeiro ciclo, a ques- (1.24), de que Jesus é “o Santo de Deus”
○
○
tão envolve a pessoa de Jesus mesmo. deve ser vista como uma variante do
○
○
nhor do Sábado (2.28). A questão do pri- início e o fim de um trecho maior, tomados juntos,
○
meiro ciclo, portanto, refere-se justa- fornece o contexto do trecho e marca os seus limites.
○
○
por sua vez, acaba de demonstrar a sua uma figura apocalíptica, não tem identidade
○
11
○
○
○
○
○
○
○
porque Deus enlouquece os demônios, 37, depois do diálogo com o bom escriba.
O EVANGELHO DE MARCOS COMO EVANGELHO DE DEUS
○
○
e com a presença de Jesus o próprio Deus Esta pequena perícope vai fechar a mol-
○
○
se faz presente. Ainda mais: os demôni- dura. Acabou-se a fila, já passaram os
○
os são usurpadores de espaços (sinago- fariseus com herodianos, saduceus e o
○
○
ga, terra) que são de Deus e Jesus ex- bom escriba e, diz o texto, ninguém mais
○
○
pulsa-os. No templo Jesus também ex- ousava questioná-lo (12,34b). Com isso,
○
pulsa usurpadores de um espaço, a co- o leitor/ouvinte deverá perceber que
○
○
meçar pelos cambistas (11.15-17). Jesus está agora saindo das controvérsi-
○
○
A moldura do ciclo de Marcos 12 abre as como tais e passando a oferecer o seu
○
com a parábola dos vinhateiros e o desa- ensino, ensinando o que ele quer. Quan-
○
○
fio sobre a pedra rejeitada. Na parábola, do isto aconteceu na primeira parte de
○
○
o filho do dono do vinhedo vem receber Marcos, Jesus passou a ensinar por pa-
o aluguel em nome do pai. Os alvos da ○
○
○ rábolas (capítulo 4), depois de passar
parábola são as autoridades do templo pelo primeiro desfile de opositores (2.1-
○
○
que acabaram de questionar a Jesus so- 3,6), receber a primeira ameaça de mor-
○
bre a expulsão dos cambistas (11.27). te (por parte de incompetentes, 3.6; cf.
○
○
dades, vinhedos e outras fazendas.14 Eles trar-se imune às idéias de sua família
○
○
páginas 6 a 15
vinhedo, que tem dificuldades para re- parábolas, que são ensinos dele não
○
○
Mas esta parábola é uma parábola de in- Jesus toma a iniciativa de desafiar os
○
○
versão15, e eles vão perceber logo que escribas sobre a questão do Messias. “Os
○
torcer pelo dono do vinhedo da parábola escribas” dizem que o Messias é Filho
○
○
cular; os maus vinhateiros são eles, en- tende-se que o autor do Salmo é Davi, e
○
○
gar ao templo, que é o vinhedo de Deus, plural e se refere aos membros das famílias
○
para fazer cobranças. Quais cobranças, o Em tese, sacerdotes não devem possuir terras,
○
14
15
Adaptação da expressão em inglês “parable of
○
12
○
○
○
○
○
○
○
o Salmista chama o Messias de “meu (Deuteronômio 6.4-5), o mandamento
REVISTA
○
○
Senhor”, o que é incompatível com a de amar a Deus. Se pairava uma dúvida
○
○
opinião dos escribas. O Messias é tam- sobre os fariseus e herodianos, desta vez
○
bém Senhor, sentado à direita de Deus. não há dúvida: o bom escriba aceita este
○
○
Filho de Deus no início do desfile, à di- mandamento da boca de Jesus.17 Cabe
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
○
reita de Deus depois do desfile, Jesus é lembrar que Jesus chegou a Jerusalém
○
marcado como estando bem próximo a em nome do Senhor (11.9).
○
○
Deus. Assim se fecha a moldura do desfi- Lembranças da cobrança de Deus
○
○
le de opositores. Que Jesus é Filho de são encontradas em outros momentos
○
Deus, a confissão do Centurião (15.39) do evangelho de Marcos também: o
○
○
vai reforçar. ○
○
templo é minha casa (11.17). Os ver-
Dentro desta moldura, o Filho de dadeiros irmãos e as verdadeiras irmãs
○
Deus, se não estiver exatamente cobran- fazem a vontade de Deus (3.35). Os “hi-
○
○
(12.13-17,28-34a), que por sua vez for- dição humana (7.6-13). O que Deus
○
○
mam a moldura que cerca (e, cercando, juntou, que nenhum homem separe
○
○
destaca) a primeira afirmação do poder (10.9). Ninguém é bom a não ser Deus
○
tos a César. A resposta de Jesus é mui- as cobranças de Deus, com uma afirma-
○
○
to mais que uma saída inteligente da ção do poder de Deus em lugar de des-
○
○
famosa armadilha, pois Jesus inverte a taque, no centro. Em cada perícope den-
○
herodianos estão pagando a Deus o que a ênfase cai sobre Deus. Nestas
○
○
16
A estrutura concêntrica pode ser visualizada
○
serão desafiadas a devolver a Deus o que A – JESUS E DEUS: parábola dos vinhateiros
○
(12.1-12)
é de Deus.
○
(12,18-27)
○
o bom escriba pergunta: Qual dos man- B’ – COBRANÇA: o primeiro mandamento (12.28-34)
○
17
Em Lc 10.25-29 um escriba recita este
○
13
○
○
○
○
○
○
○
perícopes o leitor crítico procura em vão um assunto, abre-se outro. Ou melhor,
O EVANGELHO DE MARCOS COMO EVANGELHO DE DEUS
○
○
por detalhes que apontem para a im- reabre-se uma questão. A questão da
○
○
portância de Jesus. Jesus nestas autoridade de Jesus abriu-se no primei-
○
perícopes mostra muita habilidade18 no ro desfile de conflitos atrelada ao título
○
○
debate, bem como um jeito de inverter Filho da Humanidade, como já vimos,
○
○
sempre as questões. Este Jesus fala com e não vai se fechar nos últimos capítu-
○
autoridade, mas o leitor/ouvinte de Mar- los de Marcos sem este título, que vol-
○
○
cos já espera isto. Nas controvérsias do ta com previsões de glória (13.26;
○
○
primeiro desfile no capítulo 2, uma 14.62). Na segunda destas previsões,
○
questão pode ficar resolvida por um dita ao sumo-sacerdote, o Filho da Hu-
○
○
milagre de Jesus que confirme a autori- manidade estará assentado à direita do
○
○
dade do Filho da Humanidade, mas no Poder, quer dizer, à direita de Deus. Lá,
segundo desfile, no capítulo 12, a auto- ○
○
○ com um título que não é Filho de Deus,
ridade que resolve as questões é de a leitura do Salmo 110 receberá uma
○
○
18
Um grego pode dizer deste Jesus que ele é deinos
○
19
Mateus, diferentemente de Marcos, relata que
○
templo pode ser chamado de anúncio Se for aceita a proposta que o Messias sentado à
20
○
deixa a questão sobre Jesus sem con- mesma mensagem de 12,35-37: o Messias é melhor
○
tirada do Salmo 110 sobre o Messias DANOVE, “The Rhetoric of the Characterization of
○
sentado à direita do Senhor. Fecha-se Biblica, Roma, 2003, v.84, n.1, p.16-34.
○
○
○
○
○
14
○
○
○
○
○
○
○
O Centurião
REVISTA
○
○
○
encerra o
○
○
assunto
○
○
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
Um dos momentos mais dramáticos
○
○
do Evangelho de Marcos é a “confissão”
○
○
do centurião em 12.39: De verdade,
○
este homem era Filho de Deus. O
○
○
Centurião é, provavelmente, experien-
te no serviço dele, assistiu a outras tor- ○
○
○
21
○
○
○
○
○
15
○
○
A criação manifesta
a graça de Deus
V
ivemos um tempo
em que a consciên- Eduardo Galasso F
cia ecológica mundial
se manifesta e chama atenção com
urgência para os perigos que o pla-
neta terra (nossa casa) enfrenta e o
que isto pode significar para o fu-
Faria
aria
○
○
pos, indica um caminho diferente, evan- provocado enormes prejuízos para si
○
○
gélico e bastante esperançoso para o mesmo com o esgotamento da natu-
A CRIAÇÃO MANIFEST
PÁGINAS 16 A 27
REVIST
REVISTA
○
mundo criado por Deus e mantido pela reza, sua fauna e flora. A terra está
○
○
sua providência. sendo destruída. As águas dos mares
A TEOL
○
Uma nova leitura teológica do tes- e rios estão sendo envenenados e os
TEOLOGIA
○
temunho bíblico acerca da criação tem ecossistemas se acham ameaçados. O
○
○
proporcionado uma elucidativa reflexão consumo exagerado de camadas
MANIFESTA
OGIA E SOCIEDADE
○
○
teológica, que merece ser examinada e populacionais privilegiadas tem au-
○
desenvolvida. Alguns teólogos têm res- mentado a poluição, o clima tem mu-
○
○
saltado ora a doutrina da encarnação de ○
○
dado, as áreas de plantio perdem sua
Deus, ora a idéia de promessa e espe- condição de fertilidade, a água deixa
A A GREAÇA DE DEUS
○
rança dentro de uma nova visão da de ser potável. Sobre o ser humano
○
○
escatologia cristã. Ora se fala da natu- paira a ameaça de uma catástrofe eco-
○
○
reza como expressão do ser de Deus lógica e nuclear. Pela forma irrespon-
○
(visão sacramental), ora da criação con- sável como é tratada, a terra sofre e
○
tínua com novos céus e nova terra (res- corre perigos cada vez maiores. A
○
○
que o ser humano com a sua ganância Quantas não são as espécies animais
○
cermos a parte que nos cabe no que vem desaparecer a cada dia? Com os paí-
Eduardo Galasso F
○
○
orientação que como cristãos temos da natureza e hoje, com as armas nu-
○
Paulo
aulo
aulo,, SP
desenvolvido na igreja, com reflexos em cleares, os perigos são ainda maiores.
○
○
Faria
A crise ecológica
○
O mundo atual vive enormes proble- dável. Sem dúvida, o ser humano é
○
○
terra, lar dos seres humanos no univer- deveria ser o primeiro a lutar pela exis-
○
○
so. Em sua relação com o mundo exteri- tência verdadeiramente humana que
○
○
17
○
○
○
○
○
contribuição à teologia protestante e
A CRIAÇÃO MANIFESTA A GRAÇA DE DEUS
○
○
ecumênica na atualidade, observa que “a
○
○
crise ecológica do mundo moderno par-
○
te dos modernos países industriais... que
○
○
surgiram no âmbito da cultura predomi-
○
○
nantemente determinada pelo cristianis-
○
mo” (Doutrina Ecológica da Criação,
○
○
1993, p. 42). Isso quer dizer que, de
○
○
certa forma, o modo como o cristianis-
○
mo tem compreendido e explicado o
○
○
mundo e o papel do ser humano nele,
○
Crise ecológica e
○
contribuiu para crise ecológica em que
○
cristianismo ○
○
○ estamos envolvidos. O “sujeitai a terra”
no âmbito de “uma fé bíblica da criação
Durante séculos, a teologia judaico-
○
do que trinitário. De certa forma, so- maneira imprópria de usar o poder para
○
○
mente o Deus Pai tem sido apresentado atender apenas aos seus interesses ime-
○
diatos.
○
to, apenas depois. Com a entrada do tratado como propriedade humana quan-
○
○
pecado, a criação foi corrompida e, a par- do deveria ser recebido como “emprés-
○
ção entre Deus e mundo alienado, que Na verdade, o que parece existir é uma
○
○
nio irresponsável. O ser humano, feito à dido como “coroa da criação” de forma
○
glória de Deus.
○
O teólogo reformado alemão, Jürgen bíblico foi desaparecendo para ser subs-
○
18
○
○
○
○
○
○
○
tituída por uma imagem distorcida, ide-
REVISTA
○
○
ológica, como fruto de uma compreen-
○
○
são conveniente a interesses vários. Ou-
○
tras acusações são feitas ao cristianismo
○
○
e à teologia cristã pelo descaso com que
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
○
a natureza é tratada no ocidente. Exis-
○
tem mesmo os que afirmam que só os
○
○
naturalistas, que não acreditam em Deus
○
○
e aceitam este mundo como a única rea-
○
lidade existente, sem preocupação com
○
○
o além, se preocupam com o que está ○
A Trindade na
Trindade
○
conheça que “a base religiosa para uma uma nova abordagem da doutrina da cri-
○
○
teoria ecológica certamente é rica de fon- ação que, atenta aos fundamentos bíbli-
○
ecológica seja levada a sério” ( Haught, tão preocupados em formular uma dou-
○
○
vezes, ao serem tirados de seus contex- ficas entre Deus, a pessoa humana e a
○
19
○
○
○
○
○
○
○
mundo e o mundo está presente em vida” (p. 58). Esse (re)conhecimento, ao
A CRIAÇÃO MANIFESTA A GRAÇA DE DEUS
○
○
Deus. E é preciso compreender a “cria- contrário do saber dominador, promove
○
○
ção no Espírito” que no futuro, condu- intensa e genuína forma de comunhão
○
zirá a uma “comunhão ecológica univer- solidária.
○
○
sal, não violenta, pacífica e solidária” (p. Outras questões estão relacionadas
○
○
31). com o ato da criação de Deus e têm afe-
○
De maneira geral, a doutrina da cria- tado nossa maneira de lidar com a natu-
○
○
ção é exposta a partir dos dois primeiros reza. Como encarar, por exemplo, o pro-
○
○
capítulos de Gênesis e sua expressão te- blema do mal na criação? E o drama do
○
ológica na história da igreja está ligada ao pecado?
○
○
Credo dos Apóstolos: “Creio em Deus
○
○
Pai todo-poderoso, criador dos céus e da
terra”. Uma observação mais acurada, no ○
○
○
20
○
○
○
○
○
○
○
Karl Barth (The Triumph of Grace in the
REVISTA
○
○
Theology of Karl Barth. 1956), apresen-
○
○
ta um capítulo sobre doutrina da cria-
○
ção do teólogo suíço, “O Triunfo da
○
○
Graça na Criação”, que merece ser ana-
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
○
lisado e reproduzido em algumas de suas
○
ênfases.
○
○
Enquanto os teólogos ortodoxos es-
○
○
tavam preocupados em mostrar a queda
○
e a superação da inimizade entre a mu-
○
○
○
lher e a serpente (Gn 3.14-15) por meio
Criação e graça
○
no século passado. O teólogo reformado dizer que nela já estava presente a pro-
○
○
preensão dessa doutrina, com amplas im- ser compreendido adequadamente com
○
○
plicações. Barth, que para estranhamento sas, mas sim pelo testemunho bíblico
○
cristológico os três primeiros capítulos médio de Jesus Cristo. Para Barth, não
○
○
Cristo, como verdadeiro Deus e parte da como uma questão para reflexão teoló-
○
○
Trindade, atua na criação de tal forma que gica, à parte do pacto da graça estabele-
○
○
G.C. Berkouwer, que analisou o pensa- mesmo que falar da história da salvação
○
○
mento de Barth em um importante li- (p. 53). A criação em si não tem sentido
○
21
○
○
○
○
○
○
○
O caos e as
A CRIAÇÃO MANIFESTA A GRAÇA DE DEUS
○
○
trevas
○
○
○
O caos e as trevas são tratados inici-
○
○
almente por Barth como uma realidade
○
○
existente no limite da criação de Deus,
○
do seu lado de fora. Como ele afirma,
○
○
eles formam uma realidade que tem exis-
○
○
tência apenas no limite. O que não é bom
○
ser humano por meio de Jesus Cristo que não foi criado, e se vamos admitir a sua
○
a criação e o homem devem ser compre-
○
existência “devemos dizer que é somen-
○
endidos. O importante, pois, não são ver-
○
te o poder do ser que emerge do não di-
○
dades ontológicas ou cosmológicas ○
vino”. Só pode existir como algo que foi
explicativas sobre a criação do mundo,
○
de Cristo, antes da criação, decide man- de algo que Deus teria utilizado na cria-
○
○
ter comunhão com o ser humano e com ção, mas seria um abismo, um “nada”,
○
criação e revela a obra sempre graciosa e que uma teoria cosmológica dualista con-
○
○
reconciliadora de Deus. Antes do mun- trapondo bem e mal, mas o Sim triun-
○
de, em Cristo, manter comunhão com o aça à criação são vencidos. “Sem forma e
○
○
ser humano. Por esse motivo é que vazia” (Gn 1.1) refere-se muito mais ao
○
em comunhão com Deus. Tudo o que mem faz a escolha errada e dela se ena-
○
○
fosse neutro ou oposto à vontade divina mora. Essa liberdade do ser humano é o
○
lidade do mal, intimamente relaciona- Apesar disso, a criação da luz, que faz
○
é, porque está excluída, uma realidade impossível a existência das trevas. “O dia
○
22
○
○
○
○
○
○
○
lha nas trevas e, portanto, a natureza vel realidade. E, assim, o homem faz a
REVISTA
○
○
não é abandonada a si mesma mas per- escolha irracional e absurda que é a pos-
○
○
manece sob da graça de Deus” (p. 59). sibilidade impossível do pecado. Aí o
○
Toda a criação existe sob a luz que vem homem exerce a “absurda capacidade”
○
○
de Deus e como primeira obra (Gn 1.3) de se submeter à influência do caos, des-
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
○
em sua criação é o seu “Sim à criatura”. crita em Gn 3. O pecado é “a invasão do
○
O que Deus fez mostra a sua bonda- caos, a revolução do nihilismo”, o algo
○
○
de manifesta no pacto da graça feito com errado que não tem o mínimo direito de
○
○
o ser humano e a criação e que tem como se realizar. Mas isso não deriva do mun-
○
centro Jesus Cristo e sua misericórdia. do criado por Deus nem da liberdade
○
○
Para Barth, Ele é a luz que inunda toda a ○
○
concedida ao homem. A liberdade con-
criação e significa o triunfo da graça. Como cedida ao homem é a liberdade saudável
○
temos em Gênesis 1.31, “viu Deus tudo que nunca pode conduzi-lo à destruição.
○
○
como realidades rejeitadas e escarnecidas. acordo com a sua criação”. Por isso, o
○
○
Aqui é levantada a questão da realidade e pecado não pode ser explicado. O peca-
○
○
sido rejeitados “caos e trevas são reais e criação do homem, ele é simplesmente
○
○
mundo não esteja no pecado ou que este- Embora a Bíblia fale do pecado, do
○
Do mesmo modo, Barth rejeita a idéia que Deus é o vencedor “desse absurdo,
○
○
de que o homem tenha sido criado com dessa possibilidade impossível...”. Mas,
○
○
e o mal, ou seja, a possibilidade do livre preciso muito cuidado para não enxergá-
○
○
mem “não é a liberdade de escolher en- caos não existe como algo negativo que
○
tre obediência e desobediência”, entre o faz parte da criação, mas como algo es-
○
○
bem e o mal. Não existe para o homem tranho que precisa ser vencido. E é só
○
○
um livre arbítrio neutro. A liberdade lhe dessa forma que a realidade pode ser
○
○
foi dada “exclusivamente com o propó- compreendida. Para Barth existe uma
○
O que acontece é que o homem não é pecto negativo que está no limite da vida.
○
○
faz com que as coisas do lado do caos gnosticismo, ao contrário, as trevas cons-
○
○
constituam uma ameaça real.Então, o pe- tituem o caos ameaçador que submete a
○
○
cado torna-se uma realidade, uma horrí- boa criação de Deus ao mal.
○
○
○
○
○
23
○
○
○
○
○
○
○
mundo, embora imperfeito, está sob o
A CRIAÇÃO MANIFESTA A GRAÇA DE DEUS
○
○
poder da ação reconciliadora de Deus”.
○
○
Mesmo tendo esses dois aspectos – ne-
○
gativo e positivo – a criação não participa
○
○
do caos. O lado das trevas apenas mos-
○
○
tra o caos no limite do que vivemos. Por
○
causa da bondade de Deus manifestada
○
○
concretamente na eleição e encarnação
○
○
de Jesus Cristo, não podemos identifi-
○
car o lado tenebroso com o caos ameaça-
○
○
Em Jesus Cristo, dor. Daí porque os dois lados da criação
○
○
constituem a boa criação de Deus, em
a vitória sobre o ○
○
○ oposição ao caos.
Como vemos, Barth não nega que to – constituem a boa criação de Deus, o
○
○
caos. O choro, a derrota, a morte, o so- te da vida. O caos não constitui o polo
○
○
frimento estão presentes mas não dei- oposto da boa criação de Deus, em uma
○
dade com o caos, mas não identidade. O cita na eleição de Deus. Da parte de Deus
○
○
cia são diferentes do caos ameaçador. é um hino de louvor ao criador que fez
○
○
Mesmo ameaçada e em perigo, toda cri- todas as coisas muito boas. As trevas e o
○
em sua totalidade é boa sim, como está boa criação de Deus, como ensinavam
○
○
da. Pode-se então falar, isto sim, da mi- apreciava de modo especial. Para ele, a
○
que tem sua base na vontade divina. via ser adotada pela teologia, já que com
○
○
Esses dois lados da realidade consti- ela foi capaz de perceber e expressar as-
○
24
○
○
○
○
○
○
○
todoxia e os reformadores não enxerga- afirma que o caos não foi criado mas “es-
REVISTA
○
○
ram. No tempo em que ocorria o trágico tabelecido”. E isso nada tem a ver com a
○
○
terremoto de Lisboa (1755) quando mi- criação do bem e do mal. Por isso o caos
○
lhares morreram e as pessoas pergunta- não é o eterno antagonista do poder divi-
○
○
vam onde estava Deus, ele continuava a no. Na cruz esse dualismo está excluído.
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
○
expressar musicalmente um lado da cri- Em Cristo, Deus tomou sobre seus om-
○
atura que estava no limite, mas não era o bros essa contradição ameaçadora e a der-
○
○
mal. Barth vê aí uma música que expres- rotou. A fidelidade de Deus para com a
○
○
sa a harmonia da criação, onde está in- criação se manifestou triunfante ao ser
○
cluído o aspecto negativo e o limite da pronunciado o “haja luz!”
○
○
vida. São trevas é certo, mas não é o caos ○
○
Em Cristo, diz Barth, temos a reden-
dos gnósticos. ção vitoriosa sobre o caos para já e não
○
raia sobre o mundo. O caos na verdade é nós, mas isto não é a fé cristã. A existên-
○
a realidade não-existente, pela qual Deus cia de um otimismo cristão tem lugar,
○
○
passou e rejeitou. O caos não é criação mas não resulta de qualquer visão super-
○
○
de Deus e “a base de sua existência é ficial e sim da alegria que vem de Jesus
○
somente o não querer de Deus”. A ver- Cristo. Ele tem a ver com “a alegria do
○
○
ação, na eleição e na sua graça. O caos mundo pela primeira obra de Deus cha-
○
existe como sua antítese, sua obra alie- mada à existência, a luz”. Na verdade,
○
○
nada, o seu não querer. O caos é uma para o teólogo suíço, o cristianismo não
○
○
realidade impossível e intolerável. Por- tem vivido com seriedade a alegria dessa
○
○
tanto, é uma possibilidade real, mas não condição triunfante e por séculos tem
○
desejada por Deus. A vitória sobre ele só errado, não sendo obediente a essa vi-
○
○
pode ser alcançada pela graça de Deus. são. Ao ser rejeitado em Cristo, o caos
○
○
Contra o caos Deus pronuncia o seu Não foi esvaziado e agora seu único papel é o
○
ao mesmo tempo que diz o seu Sim à de inimigo derrotado. Não devemos nos
○
○
criação. Em sua misericórdia, Deus, atra- iludir com o seu real poder (vencido) que
○
○
o triunfo sobre a contradição que o caos separação entre luz e trevas. Com Ele,
○
○
de Deus. Não é sua criatura embora seja criação. Aí está a transformação que dá
○
real e, mesmo assim, está sujeito ao seu vida ao mundo, superando as coisas ve-
○
○
poder. É justamente por não ser criatura lhas que se passam e trazendo o reino de
○
○
25
○
○
○
○
○
○
○
sério. Eles se manifestam como o reino
A CRIAÇÃO MANIFESTA A GRAÇA DE DEUS
○
○
da mentira (Jo 8.44), como imitação do
○
○
reino dos céus e seus anjos. No entanto,
○
principalmente no NT, eles são mostra-
○
○
dos como um exército derrotado e em
○
○
fuga. Satanás caiu como um relâmpago
○
e o reino está próximo! É preciso viver a
○
○
seriedade e a alegria dessa confissão triun-
○
○
fante que nasce da obediência. Por não
○
ser obediente a essa visão, durante sécu-
○
○
los o cristianismo tem errado.
○
Os demônios,
○
Quanto ao problema da origem do
○
o mal e o pecado ○
○
○ mal, Barth diz que para ele não temos
resposta. O que temos, e isso nos parece
Quanto aos demônios como adversá-
○
rios de Deus, é preciso vê-los apenas “de ta do mal com o triunfo da graça na cria-
○
○
relance”, diz Barth. Demorar-se nisso é ção, por intermédio de Jesus Cristo.
○
Eles querem ser importantes no estudo pecado. A base de sua existência é o não
○
○
da teologia, mas para eles devemos olhar querer de Deus. A verdadeira obra de
○
também não precisamos ficar negando a dade ou seu caráter horrível, o pecado é
○
contra eles. Para nós, o importante é sa- mana. O pecado é a realidade impossí-
○
pelo fato de que Deus, ao dizer Sim a si temos de enxergá-lo à luz da derrota que
○
26
○
○
○
○
○
○
○
REVISTA
○
○
○
○
○
○
○
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
rejeição das trevas e na obra da reconcili- sobre seus ombros e as derrotou com o
○
no triunfo da graça (separação entre tre- de Deus para com a sua criatura. O sen-
○
○
vas e luz). Na verdade, o pecado só pode tido dessa vitória está no Haja Luz! Essa
○
Barth!
○
unfo da reconciliação em Cristo é o tri- Theology of Karl Barth. London, Paternoster Press,
○
milagre da história. “No evento reden- – Deus na Criação, Petrópolis, Vozes, 1993.
○
○
○
○
○
○
○
27
○
○
Notas sobre a espiritualidade
em Calvino
M
uitas previsões fo-
ram feitas no sen- Áureo R
tido de que a religião
Rodrigues
○
○
contribuído. Isto se refletiu na tendên- teologia, suas formulações e a atividade
○
○
cia em analisar Calvino tão somente como investigativa passaram a ser vistas com
NOT
PÁGINAS 28 A 45
REVIST
REVISTA
NOTAS
○
reformador e um cerebral teólogo siste- desconfiança.
○
○
AS SOBRE A ESPIRITU
mático. Digna de nota, porém, é a ênfa- O resgate, portanto, da maneira como
A TEOL
○
se de Calvino sobre a vida cristã e a ora- Calvino constrói sua teologia é oportuno
TEOLOGIA
○
ção, inclusive dedicando mais espaço nas no sentido de não vê-lo apenas interes-
○
○
Institutas a este assunto do que ao tema sado em discutir questões abstratas,
OGIA E SOCIEDADE
○
○
da predestinação. Há, de modo eviden- dogmáticas, mas também preocupado
○
te, uma separação entre doutrina e ex- com a piedade que a vida cristã requer.
○
ESPIRITUALIDADE
○
periência. Todavia, isto não ocorreu so- ○
○
Em segundo lugar, o reexame das moti-
mente no âmbito do protestantismo. José vações e fundamentos de Calvino são
○
ALIDADE EM CAL
○
○
gia jesuítica que surge ali, e foi referen- to com a proposta que emerge de Calvino
○
○
CALVINO
a separação entre graça e experiência paralelos e desafios de nossa época.
○
○
VINO
○
dogmáticas.
○
○
Paulo
aulo
aulo,, SP
torna evidente a partir do chamado
○
○
odrigues de Oliveira
○
29
○
○
○
○
○
○
○
I
NOTAS SOBRE A ESPIRITUALIDADE EM CALVINO
○
○
I – MODELOS DE ESPIRITU
MODELOS ALIDADE
ESPIRITUALIDADE
○
○
NO SÉCULO DE CAL
SÉCULO VINO
CALVINO
○
○
○
○
O movimento monástico e místico - A vida monástica desde
○
seus primórdios no século III sempre representou um modelo a
○
○
ser buscado por aqueles cristãos que ansiavam por uma
○
○
espiritualidade mais intensa. Antão, Pacônio e Antônio têm sido
○
apontados como os precursores deste movimento que não é exclu-
○
○
sivamente cristão. Curiosamente, tanto o monasticismo pagão como
○
○
o judaico e o cristão tiveram origens no deserto egípcio. À medida
○
que cessavam as perseguições, e o martírio deixava de representar
○
○
os do Evangelho.
○
○
vida ascética diante das palavras de Jesus ao moço rico: “Se queres
○
30
○
○
○
○
○
○
○
seqüentes votos de castidade, pobreza e temporâneo de Calvino desde os tem-
REVISTA
○
○
obediência foram considerados não ape- pos de universidade, juntamente com
○
○
nas como um chamado à perfeição, mas Teresa de Ávila e S.João da Cruz são per-
○
um estado de perfeição. Os votos foram sonagens destes acontecimentos. Embora
○
○
ainda considerados um segundo batismo o movimento jesuíta tenha adquirido
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
○
na medida que o primeiro significava a outras configurações bem distintas dos
○
morte para o pecado e estes a morte para místicos, porém, em determinados pon-
○
○
o mundo (Steinmetz 1995: p.189-192). tos, ele foi profundamente influenciado
○
○
Todavia, ao longo da história, o movimen- por esta busca da perfeição, procurando
○
to monástico, que tinha sido apontado combinar tanto ação como contempla-
○
○
como protesto à secularização e ○
○
ção. Parte desse processo foi o que se
paganização da igreja, acabou por assu- convencionou chamar de movimento de
○
mir rumos totalmente distintos da sua interiorização que incluía a oração men-
○
○
como Calvino, sem deixar de reconhe- Inácio de Loyola praticava essa téc-
○
○
igreja, nem por isso deixaram de apon- procurava visualizar as cenas da vida, pai-
○
é repleto de acontecimentos que vão Esta união não se dava através do inte-
○
○
nascença, as grandes descobertas, a cir- assim como duas chamas se tornam uma
○
○
ram profundamente a civilização ociden- mais corrompida com toda sorte de vícios. Em
○
IV.13,15).
sas transformações principalmente no
○
2
Esta palavra tem o sentido mais amplo como um
○
âmbito espanhol. Inácio de Loyola, con- momento de retiro específico para meditar e refletir
○
○
○
○
○
31
○
○
○
○
○
○
○
1989: p.71). Este encontro com Deus memorável estudo sobre a
NOTAS SOBRE A ESPIRITUALIDADE EM CALVINO
○
○
toma lugar no mais profundo interior da espiritualidade espanhola que marcou a
○
○
alma. Em outras instâncias do movimen- colonização e a alma latino-americana,
○
to místico esta ascese era apresentada na nos fala do Cristo guerreiro3 bem como
○
○
seguinte ordem: purificação, iluminação do Cristo sofredor, o qual foi retratado
○
○
e união com Cristo, aqui visto como o principalmente por Velásquez. “As ima-
○
noivo da alma. A alma deveria ser gens e pinturas apresentavam este Cris-
○
○
purificada dos seus pecados para atingir to dilacerado, exangue, moribundo ou
○
○
a união, união esta inspirada principal- morto. Ele é a própria ‘encarnação da
○
mente pela linguagem de Cantares, que morte’, o ‘Cristo cadáver’ sempre na
○
○
facilmente assumiu um tom não apenas cruz.” (Mackay, op., cit. p. 116-17). Este
○
○
sentimental, mas também erótico. tipo de cristologia ou espiritualidade teve
Jaroslav Pelikan acrescenta que “a linha ○
○
○ impacto profundo na América Latina na
entre a emoção e sentimentalismo facil- análise de Saul Trinidad, produzindo pa-
○
○
tre ‘agape’ e ‘eros” (Op. cit., p.131). A marginalização (Trinidad, Saul, 1984,
○
○
dência tanto das pressões exteriores culo XVI, entre os que se convencionou
○
○
xão e morte de Cristo (Kavanaugh, op. Deus como alvo da perfeição e não raras
○
○
3
A concepção do Cristo guerreiro teria sido forjada batalha e que, durante a sua convalescença,
○
no processo das longas lutas pela libertação da consagra sua vida à Virgem e em especial ao serviço
○
península ibérica ocupada durante séculos pelos do papa. Eduardo Hoornaert (1974) tem um
○
árabes. As cruzadas bem como o passado de lutas interessante estudo sobre o catolicismo brasileiro
○
contra os árabes criaram entre os ibéricos um onde descreve o “catolicismo guerreiro” que neste
○
espírito de guerra. Todavia, este espírito se revelou período se direciona contra os infiéis protestantes
○
○
com mais ferocidade entre os espanhóis. John franceses na Baía de Guanabara e os holandeses no
○
Mackay (1988) descreve a alma espanhola como Nordeste. Antonio G. Mendonça (1984) ainda nos
○
apaixonada e tendo como supremo ideal de vida ser lembra que o espírito guerreiro não foi exclusividade
○
um soldado. Até os sacerdotes, frades e freiras do catolicismo ibérico. Entre os protestantes esse
○
32
○
○
○
○
○
○
○
Tais práticas foram vistas ou identificadas essas interpretações do movimento mo-
REVISTA
○
○
como protestantes em determinados mo- nástico e místico. Bernardo de Clairvaux,
○
○
mentos e lugares, principalmente na pe- o grande nome do misticismo medieval,
○
nínsula ibérica onde a Inquisição esteve escrevera um dos maiores comentários
○
○
sempre mais visível. A repressão e des- sobre Cantares (Séc. XII) que se tem
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
○
confiança, todavia, não impediram que notícia, o qual consistia de oitenta e seis
○
surgisse uma das maiores expressões da sermões apenas nos dois primeiros capí-
○
○
espiritualidade mística do século XVI: tulos (Pelikan, op.cit., p. 126).
○
○
Teresa de Ávila (1515-1582). Teresa teve São João da Cruz, contemporâneo de
○
várias experiências místicas. Em uma de- Teresa de Ávila, em parte obscurecido
○
○
las teria contemplado o rosto de Cristo a ○
○
inicialmente por ela, todavia, teve mais
caminho da cruz. Seu modelo de oração tarde reconhecida a sua influência como
○
era a chamada “oração passiva místico que usa a poesia como instru-
○
○
duas formas: a “silenciosa” e “união”. No sempre foi uma alternativa aos místicos
○
seu mais elevado grau de experiências para expressar experiências que não po-
○
○
místicas ela referia a uma perfeita união diam ser definidas ou aceitas racional-
○
○
Cristo (Kavanaugh, Op.cit., p.75-79). A tos era “a noite escura” para se referir
○
○
com Cristo não era novidade dentro do sua busca da união com Deus, união esta
○
movimento místico como nos referimos de amor na qual a alma se tornava seme-
○
○
acima. O livro de Cantares, lido alegori- lhante ou igual a Deus (Kavanaugh, op.cit.,
○
○
mente, como fonte de inspiração para popular no século XVI era o dissemina-
○
○
○
○
○
○
○
4
Uma das evidências mais nítidas dessa cristologia/ encontro dessas cristologias com a cultura afro-
○
espiritualidade pode ser vista nas celebrações da ameríndia produziu diferentes reações e resultados.
○
semana santa onde o ponto alto é a sexta-feira da Os derrotados indígenas e os escravos subjugados
○
perde importância religiosa para a sexta-feira. Nela sofredor e agonizante da cruz que expressa as
○
Nenhum comércio aberto, nem passeios, música ou riqueza, sofrimento são desígnios de Deus e não
○
danças. Nos grandes centros essa é uma prática em resultados de situações históricas. Logo, não podem
○
33
○
○
○
○
○
○
○
do culto das relíquias. Calvino, de modo que reivindicavam possuir os legítimos
NOTAS SOBRE A ESPIRITUALIDADE EM CALVINO
○
○
mais específico, tratou dessa situação em espinhos da coroa de Cristo (Idem,
○
○
duas obras: “Tratado das Relíquias” e “In- p.304). Porém a relação continua e en-
○
ventário das Relíquias” (1543). Em vereda para objetos e situações bizarras:
○
○
ambas expõe a forma supersticiosa e o prepúcio de Cristo preservado desde a
○
○
mágica que assumiu a espiritualidade sua circuncisão, a manjedoura, a primei-
○
popular, preconizando a necessidade de ras fraldas de Cristo, vasilhas utilizadas
○
○
volta à Palavra de Deus. Todas as situa- para a transformação da água em vinho,
○
○
ções que envolviam o culto às relíquias remanescentes do vinho de Caná que to-
○
são descritas por Calvino com uma iro- dos anos era oferecido em pequenas do-
○
○
nia que ora resvala para o humorístico ses aos peregrinos mediante, é claro, uma
○
○
ora para o satírico. Geralmente seus tex- oferta e que milagrosamente também
tos se nos apresentam sisudos e densos. ○
○
○ nunca se acabava; sapatos de Jesus, mi-
Todavia, estes fogem à regra. Alguns au- galhas do pão da última ceia, a faca utili-
○
○
tores chegaram a ver neles a influência zada para cortar o cordeiro pascal, pra-
○
do estilo de Erasmo em sua crítica à reli- tos, a toalha com que Jesus lavou os pés
○
○
1990, p.268). Ao listar numerosos itens, da multiplicação dos pães, ramos usados
○
cada um aos olhos da razão evidencian- manto que cobriu Jesus perante Pilatos,
○
○
lento. Se alguém não for convencido teo- Calvino não resiste e de modo mordaz
○
esse culto. Ele faz um inventário dessas te mais que uma vaca ou tivesse ela ain-
○
relativas a Cristo como a lança do solda- mente ela teria fornecido a quantidade
○
○
do que o feriu: “Esta deveria ser uma, exibida [...] teria ela dado aos magos ou
○
porém talvez por obra de um alquimista pastores que visitaram o menino leite
○
○
tem quatro além daquelas que existem p.317). A bizarra lista segue adiante: o
○
○
tenho o nome...” (Calvin, 1983, p.304). pedaços do peixe assado que Jesus co-
○
○
roa eram tantos que provavelmente eles sus quando lavava os pés dos discípulos,
○
Calvino lista pelo menos vinte um locais que mais uma vez ironicamente acres-
○
○
○
○
○
○
○
34
○
○
○
○
○
○
○
centa que, se todas as lascas da cruz de “Comediantes e atores teriam rido
REVISTA
○
○
Cristo fossem amontoadas, dariam uma disto, mas monges e sacerdotes im-
○
postores não têm deixado de enga-
○
carga de navio, embora os evangelhos re-
nar as pessoas de boa fé. [...] Com
○
gistrem que uma pessoa sozinha a carre-
○
certeza não existe homem ou mu-
○
gou.
TEOLOGIA E SOCIEDADE
lher idosa tão estúpidos que não
○
○
Calvino tem conhecimento do epi- vejam quão ridículas são estas coi-
○
sódio histórico no qual Helena, mãe de sas, mas porque as mentiras são co-
○
○
Constantino, teria feito várias gestões bertas com o véu da religião, a ini-
○
qüidade de assim ridicularizar a
○
para se conseguir a cruz bem como os
Deus e anjos não são assim perce-
○
pregos. Supostamente ela teria encontra-
○
bidas”. (Ibidem, p.320-321)
○
do a cruz e três pregos, dos quais teria ○
○
legítimos pregos (Ibidem, p.303). Ao que pelo menos entrar em acordo para não
○
ele aduz:
○
35
○
○
○
○
○
○
○
II
NOTAS SOBRE A ESPIRITUALIDADE EM CALVINO
○
II – A PROPOSTA DE CAL
PROPOSTA VINO
CALVINO
○
○
○
Richard Gamble (1998, p.33), um “scholar” calvinista, nos apre-
○
○
senta um conceito espiritualidade que brota em Calvino e que está
○
○
alicerçado na maneira como ele estrutura as Institutas: o conheci-
○
mento de Deus e do ser humano; a necessidade de honrar a Deus
○
○
através da fé, obediência e serviço; a total dependência de Cristo, o
○
○
Verbo Encarnado, e a resposta humana em piedade e adoração. Es-
○
tritamente falando, a espiritualidade seria, portanto, a resposta hu-
○
○
mana àquilo que Deus tem feito. Calvino, no entanto, usa o termo
○
○
piedade para descrever esta resposta. Esta piedade/espiritualidade é
○
a resposta através da imitação amorosa de Cristo ao preço que ele
○
○
mano.5 A vida cristã tem um duplo objetivo: Deus ordena aos cris-
○
○
5
O papel da lei na vida cristã dividiu luteranos e calvinistas, principalmente
○
terceiro uso da lei, para Calvino, consistia na adoção da lei como guia para o
○
36
○
○
○
○
○
○
○
tem destinado todos seus filhos a que lo que é adverso ao Espírito de Deus: a
REVISTA
○
○
sejam conformes à imagem de Cristo corrupção da nossa natureza, concupis-
○
○
(Calvin, 1960, III, 8.1). Sem dúvida ne- cência e artimanhas que o Diabo usa para
○
nhuma, sua trajetória de vida foi marcada nos afastar de Deus. No mundo estão os
○
○
por intensos e agudos sofrimentos des- prazeres e todas as atrações que cativam
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
○
de a oposição que enfrentou nos primei- o ser humano afastando-o de Deus
○
ros anos em Genebra, que culminaram (Calvin, 1998b). 6
○
○
com sua expulsão juntamente com Farel Calvino (1960, III, 6-10) ainda trata
○
○
(1538), até as dores pela perda da espo- extensivamente da vida cristã que tem
○
sa querida após nove anos de casamen- nas Escrituras a base para produzir o amor
○
○
to, dos filhos que também morreram pre- ○
○
pela justiça em nossos corações e pro-
maturamente, bem como das enfermi- porcionar uma regra para justiça. A per-
○
de várias enfermidades como pedra nos nós mesmos, porque não pertencemos a
○
○
rins, gota, constipação intestinal, nós mesmos, mas a Deus e assim deve-
○
○
hemorróidas, dores nas juntas, problemas mos viver e morrer para Ele (Idem, 7.1).
○
vermes (Cooke, 1990, 59-60). Os sofri- fica renunciar cada dia a nós mesmos e
○
○
nossa natureza humana corrupta neces- Deus, pois a renúncia nos liberta de de-
○
○
sitamos desse tipo de corretivo. As afli- sejos egoístas, aspirações de poder, luta
○
○
ções cobrem-nos como uma sombra de por posses e glória, etc. O mundo de ví-
○
morte, assim a vida terrena é como uma cios que habita a alma humana somente
○
○
morte contínua (Calvin, 1998a). As afli- poderá ser vencido pela renúncia, a qual
○
○
ções ou as poucas coisas boas que des- nos possibilita não apenas o correto rela-
○
frutamos têm o objetivo de não distrair cionamento com Deus, mas também
○
○
a atenção do cristão daquilo que Deus com nosso próximo e além disso pode-
○
○
tem preparado na vida futura. Simplici- mos suportar mais facilmente as adver-
○
○
dade e frugalidade devem ser marcas sidades da vida humana (Ibidem, 4-10).
○
da vida cristã exercida pela igreja deve acrescenta que não há verdadeiro segui-
○
○
ajudar o cristão a viver de modo separa- mento de Cristo sem nos identificarmos
○
6
Calvin. Commentary on Catholic Epistles. Ages
○
Mundo para Calvino significa tudo aqui- software. Albany, USA, 1998.
○
○
○
○
○
37
○
○
○
○
○
○
○
Tradicionalmente a oração nem sempre
NOTAS SOBRE A ESPIRITUALIDADE EM CALVINO
○
○
foi considerada um assunto que pudesse
○
○
ser inserido em obra teológica ao lado dos
○
temas clássicos. Ela sempre foi vista
○
○
como exercício da piedade pessoal, por-
○
○
tanto um assunto de caráter prático.
○
Nesse particular Calvino inova ao intro-
○
○
duzir o tema da oração, situando-a exa-
○
○
tamente no capítulo que antecede a dou-
○
trina da eleição e, contrariando uma vi-
○
○
são simplista que reduz a teologia
○
com ele, logo, a cruz é um caminho ine-
○
calvinista à predestinação, nas Institutas,
○
vitável.
○ ele escreve mais sobre oração do que so-
O que Calvino considera ser a cruz?
○
louvor.
○
38
○
○
○
○
○
○
○
sua Palavra. em normas rígidas porque oramos a um
REVISTA
○
○
Calvino alinha seis razões fundamen- Pai indulgente que aceita nossas orações,
○
○
tais pelas quais devemos orar: 1) embo- embora imperfeitas. A primeira regra diz
○
ra Deus saiba o que necessitamos, a ora- respeito ao controle dos nossos pensa-
○
○
ção foi instituída por nossa causa, é um mentos. A oração deve ser feita com en-
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
○
instrumento para que nossos corações tendimento e coração, nada pedindo
○
possam ser incendiados com zelo e ar- exceto o que está em conformidade à
○
○
dente desejo de amá-lo e servi-lo bus- vontade de Deus. Em segundo lugar, a
○
○
cando refúgio nele em tempos de neces- oração deve expressar um sentimento
○
sidade; 2) que nenhum desejo ou vonta- intenso da nossa necessidade, como men-
○
○
de do qual venhamos a nos envergonhar ○
○
digos que suplicam, ou seja, não há lugar
possam adentrar às nossas mentes ao para orações superficiais; em terceiro
○
coração; 4) para que tendo recebido o Deus. Ela não é uma obra meritória em
○
○
dade; 5) para que aprendamos a acolher suas promessas (Ibidem, III, 20.4-16).
○
○
com grande alegria aquilo que obtivemos Calvino ainda toca em outras ques-
○
mediante oração; 6) para confirmar a re- tões fundamentais: a oração do Pai Nos-
○
○
tes (Ibidem, III, 20.2). A seguir, Calvino mediação de Cristo e a intercessão dos
○
○
propõe quatro regras básicas da oração santos. Com relação ao Pai Nosso, ele
○
39
○
○
○
○
○
○
○
planar a súplica pelo pão diário, Calvino de Calvino está em seu ataque à idola-
NOTAS SOBRE A ESPIRITUALIDADE EM CALVINO
○
○
acrescenta que esta petição é o antídoto tria. Conhecimento de Deus e culto são
○
○
contra anseios e cobiça por bens materi- inseparáveis. Ninguém pode conhecer a
○
ais. Tendo a porção diária e confiantes Deus sem experimentar anseio ou dese-
○
○
no cuidado divino, podemos viver em jo ardente em cultuá-lo. Em Calvino, dois
○
○
simplicidade (Ibidem,III, 20.44). Por princípios fundamentais subjazem na sua
○
outro lado, a doutrina da intercessão dos concepção de culto: “soli Deo Gloria”;
○
○
santos coloca Deus em segundo plano. “finitum non est capax infiniti”. Ou seja,
○
○
Aqui Calvino foi mais contundente que o objetivo central da vida humana é a gló-
○
os demais reformadores que não deram ria de Deus e, em segundo lugar, Deus é
○
○
a este assunto maior importância, segun- o totalmente outro, a realidade transcen-
○
○
do Henri Strohl (1963). dente que não pode ser reduzido, con-
Calvino argumenta a partir do ele- ○
○
○ fundido ou aprisionado em uma dimen-
mentar: não há nenhuma base são material. Segundo Calvino, o catoli-
○
○
Todas as vezes que abandonamos o ensi- te por confundir ou não discernir essa
○
○
escorregadio. Elas nos ensinam que so- do-o da sua glória. Por essa razão, Calvino,
○
mente Cristo é nosso mediador eficaz. ao enumerar os males que afligiam a igre-
○
○
permite crer na eficácia da sua interces- ma, começa exatamente com o culto. Ele
○
○
tercessão dos santos seria desconfiar de “Se nós perguntarmos, então, por
○
○
Deus em suas promessas, bem como rou- quais coisas principalmente a reli-
○
no papel das Escrituras como referencial tes as quais não somente ocupam
○
○
para nossas orações. A fé está alicerçada lugar primordial, mas dão sentido
○
origem no ouvir a Palavra (Op. cit., 1960, e em segundo lugar a fonte da nos-
○
III, 20.21).
○
sa salvação.”(1983, p.126).
○
40
○
○
○
○
○
○
○
Calvino assim afirma que não se pode ou “semen religionis”, o qual está pre-
REVISTA
○
○
ser cristão sem o conhecimento do que sente mesmo nos ímpios e perversos.
○
○
seja o culto devido a Deus. Culto corre- Como evidência disso, ele lembra o fato
○
to ou adequado precede o conhecimen- de não haver nação que não tenha algu-
○
○
to da salvação. O culto tem como princi- ma expressão religiosa. A idolatria e su-
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
○
pal propósito o reconhecimento do que perstição seriam ainda evidências desse
○
Deus é como única fonte de justiça, san- velho anseio humano que se manifesta
○
○
tidade, sabedoria, verdade, poder, bon- de maneira equivocada em relação a
○
○
dade, misericórdia, vida e salvação. Por- Deus. Esta semente religiosa, ironica-
○
tanto, o culto é a oportunidade de ren- mente, não aproxima o ser humano de
○
○
der-lhe a glória devida bem como buscar ○
○
Deus, pelo contrário, o aliena e o distan-
nele todo bem ou recurso de que neces- cia mais ainda.7 Devido à sua condição
○
cia devida à sua grandeza e excelência, (Idem, I, 3.1; 4.1). Comentando o Sal-
○
as cerimônias, os instrumentos, são au- mo 97, ele acrescenta que somente o ver-
○
○
xílios que devem envolver tanto o corpo dadeiro conhecimento de Deus dissipa
○
○
latria na queda, a qual afetou profunda- religião conosco, mas devido à cegueira
○
○
mente o ser humano. Este já não mais e fraqueza das nossas mentes ela está
○
pode conhecer a Deus. Seus dons natu- depravada. Assim esta semente de reli-
○
○
ram e seus dons espirituais (fé, amor a fato a fonte de toda superstição e idola-
○
○
7
Esta afirmação de Calvino e que Barth assumiu
acaba por inevitavelmente encaminhar-
○
te. Este anseio pela verdade nada mais é qualquer outra religião ainda se constitui em
○
macro-ecumenismo.
○
41
○
○
III
○
○
○
○
○
III - DESAFIOS DO NOSSO PRESENTE
NOTAS SOBRE A ESPIRITUALIDADE EM CALVINO
○
○
○
A título de conclusão, vamos alinhar alguns tópicos tentando estabe-
○
○
lecer um diálogo entre o pensamento de Calvino em resposta a determi-
○
○
nadas situações do seu tempo e ao mesmo tempo tentar algumas cone-
○
xões. É evidente que Calvino viveu e enfrentou um contexto totalmente
○
○
distinto do nosso. Todavia, alguns princípios e valores podem e devem ser
○
○
retomados. Um dos primeiros aspectos a ser novamente observado é a
○
○
ênfase em todos assuntos que Calvino dá sobre a importância da funda-
○
mentação nas Escrituras na discussão de todos os temas. É corrente afir-
○
○
mar que as Escrituras se revestem de caráter normativo para a vida cristã
○
○
e que a Reforma deu ênfase ao “sola Scriptura” como princípio distintivo.
○
Todavia, não basta proclamar a supremacia da Escritura em termos de fé e
○
○
estabelecer princípios para sua prática tanto privada como pública, Calvino
○
○
nos mostra que a oração precisa ser encarada não apenas como assunto da
○
○
nas como tema teológico, mas também da própria prática cristã. A oração
○
○
ficou assim restrita aos livros devocionais e aqui entendidos como obras
○
sem densidade.
○
○
42
○
○
○
○
○
○
○
alvos da vida ao alcance de uma fé que cessidade humana de um suporte concre-
REVISTA
○
○
“decreta e ordena” a Deus que conceda to para fé, o uso do “tocar” chega às raias
○
○
esses bens aos “filhos do Rei”, a compre- da manipulação, à semelhança do culto
○
ensão reformada da vida cristã soa estra- medieval das relíquias. É preciso dizer que
○
○
nha, distante ou superada. A busca de as formas sutis e refinadas de idolatria que
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
○
um cristianismo sem cruz, sem renúncia afloram com justificativas religiosas não
○
e sem despojamento são velhas tentações podem ser ignoradas. Portanto, não é de
○
○
que emergem com diferentes roupagens se estranhar que o mercado – entidade
○
○
e justificativas teológicas. Falar em cruz poderosa e invisível – é obedecido e
○
e renúncia em uma sociedade hedonista cultuado religiosamente, bem como o
○
○
e que vê no consumo e posse o caminho ○
○
mercado de bens religiosos está em plena
para realização humana é, sem dúvida, expansão.
○
uma tarefa no mínimo ingrata e que não Uma das características mais proemi-
○
○
Não é de se estranhar a tentativa de fa- calvinista de que o finito não pode con-
○
○
zer do evangelho um bem de consumo ter o infinito perpassa sua teologia e en-
○
○
Deus é que, em sua soberania, ele graci- contra as reivindicações da teologia libe-
○
○
osamente nos permite acesso pela ora- ral do século XIX, quando o transcen-
○
ção, porém, a finalidade primeira é que dente foi domesticado e reduzido à ra-
○
○
o nosso coração seja tomado por um zelo zão, experiência ou sentimento. O mis-
○
○
oração não se esgota em pedir o que ne- acordo com Pelikan, “facilmente se cru-
○
graça de Deus. Além disso, Deus não está Cristo, em muitas circunstâncias,
○
nos. De outra sorte, não seria Deus. Criatura”(Op. cit., p.131). Outros mís-
○
○
presenciamos uma espiritualidade extre- chegavam a falar que tudo vindo de Deus
○
foi banida pela tecnologia, ciência ou sis- va calvinista da oração procura não so-
○
○
cos estão na ordem do dia. Apesar da ne- cessidade humana, o que excluía de prin-
○
○
○
○
○
43
○
○
○
○
○
○
○
cípio qualquer pretensão de união mís- Esse modelo de espiritualidade, na
NOTAS SOBRE A ESPIRITUALIDADE EM CALVINO
○
○
tica. maioria das vezes, se torna separatista ou
○
○
A contemplação mística ou o isola- excludente. Na prática repete-se o equí-
○
mento monástico tinham como pressu- voco cometido pelo movimento monás-
○
○
posto uma concepção de mundo e ne- tico contemporâneo a Calvino. No an-
○
○
cessidade de fugir a esta realidade. Em- seio de escapar de um mundo e igreja
○
bora não pudesse ser enquadrado neces- corrompidos e em busca do que se en-
○
○
sariamente como uma piedade munda- tendia ser perfeição, o movimento mo-
○
○
na, Calvino não deixa de ver o mundo nástico, segundo Calvino, enveredava para
○
como teatro da glória de Deus e a partir uma atitude separatista rompendo com a
○
○
da sua concepção de vocação desenvolve igreja ao adotar um ministério peculiar e
○
○
e lança as bases de uma ética do traba- administração privada dos sacramentos,
lho, relações econômicas e sociais que ○
○
○ bem como, deixando de participar das
vão influenciar a Europa e a civilização reuniões com o povo de Deus. Em assim
○
○
buir a Calvino uma espiritualidade mun- da unidade da igreja (Calvin, 1960, IV,
○
○
Deus e o mundo como lugar onde glori- mente enveredado por esse rumo. O
○
○
e trabalho teve e tem profundas impli- entre outras causas, para esse tipo de
○
○
na experiência e subjetividade que tanta uma relação com Deus mediada pela
○
○
ensão da igreja como comunidade. A fal- igreja mãe e escola, a qual aprendemos
○
○
44
○
○
○
○
○
○
○
Bibliografia GAMBLE, Richard. Calvin and Sixteenth-
REVISTA
○
Century Spirituality: Comparison with the
○
CALVIN, J. “An Inventory of Relics”, In:
Anabaptists in Calvin Studies Society Papers,
○
BEVERIDGE, H. & BONET, J. (editors).
1995, 1997. G.Rapids: CRC, 1998.
○
Selected Works of John Calvin, vol. 1. G.Rapids:
○
Baker 1983. HOONAERT, Eduardo. A Formação do
○
_________. Commentary on Colossians, Catolicismo Brasileiro 1550 - 1800. Petrópolis:
TEOLOGIA E SOCIEDADE
Philipians and Tessalonians. Albany, USA: Ages Vozes, 1974.
○
○
software, 1998a. KAVANAUGH, K. “Spanish Sixteenth Century:
○
_________. Commentary on Catholic Epistles. Carmel and Surrounding Movements”, In
○
Albany, USA: Ages software, 1998b. DUPRÉ, L. & SALIERS, D. (editors). Christian
○
Spirituality. New York: Crossroad, 1989.
○
_________. Commentary on Psalms. Albany,
○
USA: Ages software, l998c. MACKAY, John. El Otro Cristo Espanol. Mexico:
○
Casa Unida de Publicaciones, 1988.
○
_________. Institutes of the Christian Religion.
○
Philadelphia: Westminster, 1960. MENDONÇA, A. G. O Celeste Porvir. São Paulo:
○
Paulinas, 1984.
○
COOKE, Charles. “Calvin´s Illnesses and their Haven: Yale Press, 1985.
○
George, T. ed. John Calvin and the Church – A S.Paulo: Aste, 1963.
○
45
○
○
“Se Roma perecer, o que se há de salvar?”
Santo Agostinho e a
queda de R oma
Roma
N
a vida de Santo Agos-
tinho (354-430), o ano Gerson Correia de Lacerda
de 410 teve tremenda
importância. Em 410, Roma foi
saqueada pelos godos. Agostinho não
vivia em Roma. Era bispo de Hipona,
no norte da África. Contudo, ele foi
profundamente afetado pelo acon-
tecimento. Roma não chegou ao fim
de sua história com aquele saque. A
cidade sobreviveu ao ataque dos Apesar disso, o saque de Roma
godos e a parte ocidental do Impé- pelos godos teve um grande impac-
rio Romano durou mais algumas dé- to. Naquela época, o Império Ro-
cadas. Os godos não pretendiam des- mano era oficialmente cristão. Em
truir o Império Romano, mas parti- conseqüência disso, a fé cristã teve
cipar nos benefícios de suas rique- de responder às acusações e às dú-
zas. Brown afirma que: vidas levantadas pelo saque. Os pa-
Alarico viveu a maior parte de gãos acusaram a religião cristã de ser
sua vida dentro das fronteiras a responsável pela queda da cidade.
do Império Romano...Ele usou
Os cristãos ficaram com incertezas
a força destruidora de sua tri-
bo para barganhar vantagens e a respeito da validade de sua fé.
conquistar um posto no alto Pretendemos examinar aqui a
comando do estado romano; resposta providenciada por Santo
ele e seus sucessores dependi- Agostinho tanto às acusações quan-
am dessa posição para terem to às dúvidas em sua obra A Cida-
abertura para negociações com
de de Deus. Nosso objetivo é estu-
o governo romano.(1969, p.
288) dar o que Santo Agostinho afirmou
○
○
○
○
○
sobre a queda de Roma em 410 e avaliar reira. Ao contrário, foi “uma cuidadosa e
○
○
a importância de suas colocações para a premeditada publicação de um homem
○
○
nossa realidade. Seguiremos os seguin- já idoso, com uma grande
PÁGINAS 46 A 59
REVIST
“SE ROMA PERECER
REVISTA
○
tes passos: obsessão”(Brown, 1969, p. 312). Em
○
○
1) Análise da relação entre a queda outras palavras, é um livro que pertence
A TEOL
○
de Roma e A Cidade de Deus; “aos anos mais produtivos e repletos de
TEOLOGIA
PERECER,, O QUE SE HÁ DE SAL
○
2) Exame da resposta de Santo ocupação de Agostinho”(Loetscher,
○
○
Agostinho aos pagãos e aos cris- 1935, p. 17).
OGIA E SOCIEDADE
○
○
tãos; De fato, a expressão acima é profun-
○
3) Estudo da relevância dessa respos- damente verdadeira para descrever a si-
○
○
ta para a nossa realidade. ○
○
tuação de Agostinho no período em que
escreveu A Cidade de Deus. Por um
○
Roma e
○
de Deus
○
aulo
aulo,, SP
contrário, ele era o maduro Agostinho
○
livros.
○
milênio”(Idem, p.100).
que ele era um homem maduro quando
Gerson Correia de Lacerda
○
do apresentação de Marrou:
vida, visto que morreu em 430. Portan-
○
escrito por alguém no começo de sua car- nismo contemporâneo (livros I-X):
○
○
○
○
○
○
47
○
○
○
○
○
○
○
a) os deuses pagãos não tiveram safiadora em Cartago. Nesse senti-
“SE ROMA PERECER, O QUE SE HÁ DE SALVAR?” SANTO AGOSTINHO E A QUEDA DE ROMA
○
○
nenhuma influência sobre o desen- do, o saque de Roma assegurou que
○
volvimento da história, especial- uma obra de pura exegese para pou-
○
mente na história do povo romano cos eruditos cristãos...se transfor-
○
○
(livros I-V); b) os deuses não asse- masse num deliberado confronto
○
guram a seus fiéis a vida eterna (li- com o paganismo” (Op. Cit., p.312)
○
○
vros VI-X).
○
Segunda parte (de caráter De acordo com esse ponto de vista,
○
Agostinho utilizou a queda de Roma
○
dogmático, positivo) – a visão cris-
○
tã da história: a) fundamento teo- como uma oportunidade para expor seu
○
lógico da Cidade de Deus, da cria-
○
pensamento. Em outras palavras, a que-
○
ção à queda (livros XI-XIV; b) his-
○
da de Roma não é importante para a com-
tória da Cidade de Deus inserida na
○
preensão da obra. A queda de Roma for-
○
cidade terrestre, de Caim ao tem-
○
po presentes (livros XV-XVIII); c) ○
○
neceu somente um contexto ou pretex-
história futura: os últimos tempos to para um livro que poderia ter sido es-
○
escreveu essa obra imensa? Essa pergun- mo e paganismo “não nos empolga hoje
○
○
ta é muito importante. Ela pode ser for- como questão atual. Além disso, tam-
○
origem desse texto? tar do tema real de sua obra senão de-
○
respeito do saque de Roma. Agosti- nal das duas cidades. Este era um assun-
○
nho poderia perfeitamente ter es- to que ele tinha esboçado em 405, no
○
○
48
○
○
○
○
○
○
○
tra aqueles que acusavam a religião cris- saque de Roma e, especialmente, as
REVISTA
○
○
tã de ter provocado desgraças a Roma ao perguntas ansiosas ou escarne-
○
cedoras por ele provocadas...Se não
○
interditar os sacrifícios...Felizmente para
houvesse o surgimento de tais ques-
○
nós, o grande bispo não esqueceu seu de-
○
tões, Agostinho nunca teria escrito
○
sejo primitivo...” ( Idem, 1953,
TEOLOGIA E SOCIEDADE
A Cidade de Deus. (Op. Cit.,
○
○
p.141,142) p.268)
○
Portanto, existe uma corrente de in-
○
○
terpretação que afirma que A Cidade Concordamos com esse tipo de in-
○
○
de Deus é uma obra de teologia da his- terpretação. Pensamos até que a discus-
○
tória incidentalmente relacionada com a são sobre a possibilidade de Agostinho
○
○
queda de Roma. Essa corrente de inter- ○
○
escrever A Cidade de Deus sem a que-
pretação atribui valor maior à segunda da de Roma não tem o menor fundamen-
○
parte da obra, ao mesmo tempo em que to. O fato histórico irrefutável é que ele
○
○
existe uma segunda resposta à questão Agostinho redigiu quase metade desse
○
○
sobre as relações entre a queda de Roma livro para apresentar uma resposta tanto
○
○
queda de Roma, o que se tornou Por outro lado, também é claro que
○
49
○
○
○
○
○
○
○
verno e garantiam a liberdade de subgerente de Deus, não havia uma
“SE ROMA PERECER, O QUE SE HÁ DE SALVAR?” SANTO AGOSTINHO E A QUEDA DE ROMA
○
○
todos. Em decorrência disso, cada linha definida de separação entre a
○
um dos povos do império era ane- igreja e o estado. O império era ou
○
xado e considerava Roma como sua estava se tornando a seus olhos o
○
○
pátria...Pouco a pouco, as incursões reino divino na terra, e ele tinha a
○
bárbaras se multiplicaram no Reno divina missão de apoiar, e até mes-
○
○
e no Danúbio, cada vez mais auda- mo dirigir, este curso de aconteci-
○
ciosas. No terceiro século, sob os mentos. (1967, p.13)
○
○
imperadores Valeriano e Galiano,
○
bandos de francos ultrapassaram as A relação entre o cristianismo e o
○
defesas da fronteira, atravessaram
○
Império Romano era demasiadamente
○
a Gália, a Espanha, e tomaram os
○
navios que lhes permitiram desem- forte para ser negligenciada durante a de-
○
cadência do Império. Jerônimo expres-
○
barcar na Mauritânia; ao mesmo
○
tempo, os alamanos penetraram no ○
○
sou bem a perplexidade de toda uma
vale do Reno. (1964, p.18-19) geração diante dessa situação, quando
○
parte de seu tempo ou de sua situação 259). “Se Roma perecer, o que se há de
○
○
histórica. Tem razão Salustiano Álvares salvar?” (apud Brown, 1969, p. 289).
○
○
(1986, p.55) quando afirma que preci- No sentido mais estreito, A Cidade
○
cultura do tempo de Agostinho para en- tinho às dúvidas dos cristãos e às acusa-
○
○
tender suas idéias. Se o saque de Roma ções contra eles provocadas pelo saque
○
da cidade de Roma.
○
sador e pastor cristão a respeito de uma dade terrena” com a qual a “cidade
○
○
“cidade” com a qual o cristianismo esta- celestial” parecia ter vinculado o seu des-
○
○
50
○
○
○
○
○
○
○
A resposta sas normas são nefastas para a con-
REVISTA
○
○
dução do estado... Se grandes des-
○
de Agostinho graças alcançaram o estado, isso
○
ocorreu por culpa dos imperadores
○
aos pagãos e
○
cristãos que seguem o melhor que
TEOLOGIA E SOCIEDADE
podem a religião cristã. Isso tudo é
○
aos cristãos
○
muito claro! (Courcelle, 1964, p.
○
68.)
○
Em agosto de 410, Alarico coman-
○
○
dou os godos no ataque a Roma. “De re-
Em tais palavras podemos perceber
○
pente, as sombras do grande declínio e
○
que as idéias de Volusiano tinham forte
○
queda desceram, mesmo sobre a segura
○
○ poder de atração. Elas forneciam uma
África” (Meer, 1961, p. 157). Os refu-
explicação, simples e compreensível,
○
não teve contato com o paganismo nos I-X), onde abundam as lembranças
○
cobriu a antiga religião nos livros. E, em livros I-V), tendo sob seus olhos os
○
guintes: não retribuir ao outro o mal ções pagãs com os seguintes argumen-
○
tos:
○
pessoa nos ferir uma face, devemos a) Demonstrando que a violência era
○
○
51
○
○
○
○
○
○
○
durante o saque de Roma, a fé cristã ofe- ses (Ibidem, p. 45,46,53) e mesmo os
“SE ROMA PERECER, O QUE SE HÁ DE SALVAR?” SANTO AGOSTINHO E A QUEDA DE ROMA
○
○
receu uma contribuição positiva. Foi gra- romanos antigos
○
○
ças à fé cristã que os godos chegaram a não recebiam nem podiam esperar
○
manifestar clemência. Na verdade, os receber leis para regulamentar sua
○
conduta e a de seus deuses, visto que
○
godos respeitaram os santuários por oca-
○
as leis que eles próprios elaboraram
○
sião do saque: eram superiores e faziam com que
○
Assim escaparam multidões, que,
○
a moralidade dos deuses ficasse en-
○
agora, reprovam a religião cristã e vergonhada. Os deuses exigiam en-
○
imputam a Cristo os males que caí-
○
cenações em sua própria honra; os
○
ram sobre a cidade; mas a preserva- romanos excluíram os encenadores
○
ção de sua própria vida – um benefí- de todas as honras cívicas: os pri-
○
cio que eles tinham recebido por
○
meiros ordenaram que eles deveri-
○
causa do respeito revelado pelos bár- am ser celebrados pela representa-
○
baros a Cristo – eles atribuíam não ○
○
ção cênica de suas próprias desgra-
ao nosso Cristo, mas à sua própria ças; os últimos determinaram que
○
protegeram seus fiéis, que foram con- d) Ele analisou a história de Roma e
○
deuses pagãos não poderiam ter salvo história de vitórias e de glórias. Roma
○
○
Roma dos godos. Na verdade, nem mes- sofreu fracassos contra inimigos exter-
○
Conclui-se que tais deuses...nunca por causa de seus problemas sociais. Não
○
var o Império Romano. Se eles ti- inegável que a Roma pagã construíra um
○
que eles não elevaram a moral dos roma- do Agostinho, a edificação de um gran-
○
○
nos. Ao contrário, os filósofos gregos ti- de império por intermédio de guerras não
○
52
○
○
○
○
○
○
○
realizadas pelos romanos: (Ibidem, p. 21). E acrescentou as seguin-
REVISTA
○
○
Será que alguém iria replicar con- tes palavras, ao recapitular o conteúdo
○
tra a afirmação de que o Império
○
do primeiro livro:
○
Romano nunca poderia ter sido tão ...Eu consumi considerável espaço,
○
amplamente estendido nem ter sido
○
especialmente para que pudesse ali-
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
tão glorioso, a não ser por meio de viar as ansiedades que perturbam a
○
constantes e intermináveis guerras?
○
muitos, quando eles observam que
Na verdade, este é um argumento
○
as bênção de Deus e os desastres
○
correto! Por que um reino deve ser comuns e diários caem sobre a sor-
○
perturbado com a finalidade de se
○
te dos maus e dos bons, sem distin-
○
engrandecer? No pequeno mundo ção; mas, principalmente, para que
○
do corpo humano, não é melhor ter
○
○
eu pudesse ministrar alguma con-
uma estatura moderada, com saú- solação àquelas santas e castas mu-
○
dúvidas dos próprios cristãos. Ao tratar vida corrupta, mas porque os bons
○
Agostinho afirmou: “Ao abordar tais bons são afligidos pelas calamidades
○
○
sos em confortar nossos irmãos do que por Jó: para que o espírito humano
○
○
53
○
○
○
○
○
○
○
qual lugar a morte irá conduzi-los.
“SE ROMA PERECER, O QUE SE HÁ DE SALVAR?” SANTO AGOSTINHO E A QUEDA DE ROMA
○
b) Em tal situação, os cristãos não
○
E, visto que os cristãos estão bem
○
sofrem dano com os sofrimentos, mas cientes que a morte dos piedosos
○
pobres, cujas feridas são lambidas
○
são aperfeiçoados por eles:
○
Todos os membros da família de pelos cães, é bem melhor do que a
○
dos ímpios ricos que se vestem com
○
Deus...têm portanto sua própria
○
consolação – uma consolação que tecidos de púrpura e linho fino, que
○
prejuízo poderiam trazer as mortes
○
não falha e que traz uma esperança
○
segura que as coisas deste mundo, terríveis para aqueles que viveram
○
que vacilam e caem, não podem bem? (Ibidem, p. 16)
○
○
perturbar. Eles não recusam a dis-
○
ciplina desta vida temporal, pela Além disso, o cativeiro num país es-
○
○
qual são preparados para a vida eter- trangeiro não altera em nada a condição
○
na; eles não lamentam sua experi-
○
dos cristãos:
○
ência, pois as boas coisas da terra
Mas como a nossa preocupação ago-
○
aperfeiçoar os cristãos porque eles não país celestial, que são peregrinos
○
○
(Ibidem, p. 21)
○
está neste mundo. Em tal situação, nem pode estar presente, sem ser per-
○
imperfeições; e, em retribuição à
○
(Ibidem, p. 34,35)
○
54
○
○
○
○
○
○
○
A relevância perada fuga do mundo real e de suas
REVISTA
○
○
questões políticas, que leva ao esta-
○
da resposta belecimento de uma atitude de vida
○
ascética e individualista, que, ante-
○
de Agostinho
○
cipando-se a toda preocupação com
TEOLOGIA E SOCIEDADE
o processo histórico de nosso mun-
○
para a nossa
○
do, abandonado-o sem qualquer re-
○
sistência às forças terrenas e às for-
○
época
○
ças malignas. (Op. cit., p. 208)
○
○
Depois de haver respondido às acu-
○
sações dos pagãos e às dúvidas dos cris- Contudo, o que queremos afirmar é
○
tãos, Agostinho passou a tratar do ○
○
que a obra de Agostinho possui um gran-
de valor para a nossa época e para o nos-
○
dirigir nossa atenção para outra direção. mo. Ele demonstrou que o paganismo
○
○
Na primeira parte, tentamos provar que consiste numa religião puramente mer-
○
queda de Roma. Na segunda parte, pro- deuses para obtenção de bênçãos. Eles
○
sua obra. Temos agora, diante de nós, um aos deuses que possam ajudá-la a
○
○
cia de tudo isso para a nossa realidade? bre a terra, não por causa do amor
○
○
Agostinho providenciou uma boa aná- pela prática do bem, mas por causa
○
te, nenhuma relevância para a nossa si- usar Deus. (Agostinho, 1950, p. 485)
○
○
uma boa consolação aos cristãos, dizen- acusação pagã contra o cristianismo por
○
○
do que eles eram cidadãos de uma cida- causa da queda de Roma. O cristianismo
○
○
de celestial. Mas, como afirmou era condenado porque Deus não havia
○
55
○
○
○
○
○
○
○
til, no cristianismo. Na verdade, se os se em sua própria força, representa-
“SE ROMA PERECER, O QUE SE HÁ DE SALVAR?” SANTO AGOSTINHO E A QUEDA DE ROMA
○
○
cristãos estavam cheios de dúvidas por da na pessoa de seus governantes; a
○
outra diz ao seu Deus: “Eu te amo, ó
○
causa da queda de Roma, o motivo de
Senhor, porque tu és a minha for-
○
suas dúvidas era a concepção religiosa
○
ça”. (Ibidem, p. 477)
○
mercantil que os estava dominando. Eles
○
○
estavam prestando culto a Deus com a Outro ponto importante para nós no
○
finalidade de obterem aquilo que dese- pensamento da Agostinho é que ele nos
○
○
javam. E esse tipo de atitude representa ensina a desconfiar que os impérios,
○
○
a essência do paganismo. Nesse sentido, mesmo os assim chamados impérios cris-
○
o paganismo não é alguma coisa que per-
○
tãos, possam trazer o Reino de Deus.
○
tence ao passado da religião. O paganis- Peter Brown escreveu que Agostinho
○
○
mo está presente em todos os tempos, “considerava os antigos romanos com a
inclusive em nosso próprio tempo. ○
○
○
mesma intensa ambivalência que nós
Contra tal concepção religiosa, Agos- consideramos nossos eminentes
○
○
existe uma enorme distância entre o pa- mirava algumas das virtudes dos funda-
○
○
56
○
○
○
○
○
○
○
A mesma espécie de ambivalência é mo tem sido associado à civilização oci-
REVISTA
○
○
revelada quando Agostinho fala a respei- dental, que chega a ser chamada de “civi-
○
○
to do império cristão de Constantino e lização cristã”. A experiência histórica de
○
de Teodósio. Por um lado, ele reconhe- Agostinho deve nos levar a evitar qualquer
○
○
ceu a prosperidade de Constantino como tipo de confusão entre esta civilização, ou
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
○
uma dádiva terrena dada por Deus e exal- qualquer outra, com a Cidade de Deus.
○
tou a fé e piedade de Teodósio. Entre- A civilização ocidental não é o Reino de
○
○
tanto, ele também afirmou: Deus. Mesmo vivendo na civilização oci-
○
○
Mas, a fim de que nenhum impera- dental, os cristãos precisam reconhecer
○
dor se tornasse cristão só para ter a que, nela, eles não estão em seu próprio
○
mesma felicidade que Constantino, ○
○
lar. Eles são sempre peregrinos e estran-
porque cada um deveria ser cristão
○
por amor à vida eterna, Deus lan- geiros, mesmo nessa civilização.
○
que Graciano fosse batido pela es- Cidade de Deus não querem dizer fuga
○
tal ambivalência, revelou aquilo que eles estão neste mundo. Em outras pala-
○
○
lismo político que o capacitou a elogiar ência da tenacidade dos laços que
○
○
terra. Seu reino não é deste mundo. Con- dono do mundo, era uma obra sobre
○
57
○
○
○
○
○
○
○
gregos à cidade de Tróia com o ataque respeito de Deus, dizendo que Deus está
“SE ROMA PERECER, O QUE SE HÁ DE SALVAR?” SANTO AGOSTINHO E A QUEDA DE ROMA
○
○
dos godos a Roma e concluiu: ocupado com as coisas humanas. “Os
○
○
...os amáveis gregos se apropriaram reinos deste mundo são dados por Ele
○
do templo de Juno para concreti- tanto aos bons como aos maus”. (Ibidem,
○
zar os propósitos de sua avareza e
○
p.140)
○
orgulho, ao passo que as igrejas de
○
...todas as outras bênçãos e privilé-
Cristo foram escolhidas mesmo pe-
○
gios desta vida, bem como o pró-
○
los selvagens bárbaros para cenas
prio mundo, a luz, o ar, a terra, a
○
adequadas de humildade e de mi-
○
água, os frutos e até mesmo a alma
○
sericórdia. (Agostinho, Op. cit.,
humana, seu corpo, sentidos, men-
○
p.8)
○
te, vida, Ele concede generosamen-
○
te tanto aos bons como aos maus.
○
Além disso, Agostinho sustentou a
○
E, entre essas bênçãos, também
○
idéia de que é bom ter cristãos como ○
deve ser contada o domínio de um
império, cuja extensão Ele determi-
○
dade e probidade, que são grandes na história, eles não estão abandonando
○
58
○
○
○
○
○
○
○
Concordamos com Hardy. Além dis- papel da fé cristã neste mundo, o qual
REVISTA
○
○
so, é preciso acrescentar que Agostinho muitas vezes tem sido negligenciado em
○
○
escreveu sobre este conflito humano nome da cidade celestial.
○
porque viveu numa época de decadên- Jerônimo perguntou: “Se Roma pe-
○
○
cia de uma civilização com a qual o cris- recer, o que se há de salvar?” Santo Agos-
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
○
tianismo tinha se vinculado profunda- tinho respondeu: “...os reinos humanos
○
mente. A Cidade de Deus não é um li- são estabelecidos pela providência
○
○
vro da época de Constantino, quando divina...Nunca se deve imaginar que
○
○
muitos chegaram à conclusão de que o Deus tenha deixado os reinos humanos,
○
Reino de Deus havia chegado. A Cida- suas dominações e servidões, fora das leis
○
○
de de Deus é um livro a respeito do pe- ○
○
de sua providência”. (Agostinho, Op. cit.,
ríodo em que o Império Romano mar- p.142,143, 158)
○
Bibliografia
vro profundamente ligado à sua época é
○
que é uma obra para todos os tempos. Stare Relations, A.D. 313-363”. Church History
○
36 (1967), 3-17.
○
fícios mundanos. A mensagem de Agos- the Church – Essays and Lectures in Church
○
éditeur, 1938.
○
Império Romano. No nosso tempo, o New York, Sheed and Ward, 1961.
○
cristianismo tem sido associado com a Agustin y la Liberación. Lima, Ceta y Cep, 1986.
○
59
○
○
A Bíblia no Aconselhamento
Pastoral
A
s pessoas que trabalham
na área de Teologia Prá- Shirley Maria dos Santos P
tica, especificamente no
Aconselhamento Pastoral, encon-
tram poucos recursos teóricos, ela-
borados a partir da realidade latino
americana, que forneçam reflexão
sistematizada a respeito da prática
do aconselhamento. Dentre as pou-
cas publicações sobre o assunto, al-
gumas fornecem embasamento bí-
Proença
roença
○
○
ACONSELHAMENTO P ASTORAL
PASTORAL
A BÍBLIA NO ACONSELHAMENTO P
PÁGINAS 60 A 73
REVIST
REVISTA
○
○
A sistematização da prática do aconselhamento pastoral, realizada
○
○
A TEOL
por pastoralistas e pesquisadores da área de Teologia Prática, tem com
TEOLOGIA
○
objetivo oferecer subsídios teóricos para a reflexão a respeito desta ati-
○
vidade desenvolvida nas Igrejas.
OGIA E SOCIEDADE
○
São freqüentes por parte dos estudiosos e das pessoas que se utili-
○
○
zam desta forma especifica de procedimento perguntas como: O que é
○
Aconselhamento Pastoral? Para que serve? Qual a melhor metodologia
○
○
PASTORAL
○
ASTORAL
○
○
como o ato de dar conselhos, de direcionar a uma resposta; por sua vez,
○
○
pastorado.
○
○
aulo
aulo,, SP
○
Proença
○
roença
61
○
○
○
○
○
○
○
A BÍBLIA NO ACONSELHAMENTO PASTORAL
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
tre o saber prático e o saber teórico. Al- so no qual as pessoas se encontram
○
para repartir lutas e esperanças.
○
guns conceitos a respeito do processo de
○
(1996, p.66,67)
aconselhamento têm desafiado a prática
○
○
mas humanos. As inquietações, an- curto ou médio prazo com uma pessoa
○
outrem...
○
Não deve haver espaço para julga- orientá-lo para um tratamento específi-
○
○
62
○
○
○
○
○
○
○
vamente estruturado, com um programa tamento”(Idem, p.25).
REVISTA
○
○
de conhecimento emocional, psicológi- Dos conceitos a respeito do
○
○
co e espiritual, tentando curar suas feri- aconselhamento pastoral pode-se obser-
○
das” (1996, p.19). Esta conceituação de- var a preocupação em ter a pessoa do
○
○
monstra o diálogo entre a Psicologia e a aconselhado como central no processo.
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
○
Teologia. A interdisciplinaridade tem O aconselhador torna-se um facilitador
○
como objeto a integralidade humana, ins- para que a pessoa que o procura encon-
○
○
taurando um processo para sarar as feri- tre as respostas ou pelo menos novas al-
○
○
das; “a cura é uma atividade que abrange ternativas para resolver sua situação de
○
desde tratamentos hospitalares, sessões crise.
○
○
de aconselhamento, formas de reconci- ○
○
Tão importante quanto acolher o
liação humana e de perdão até os minis- aconselhado é o aconselhador não per-
○
p.25). Para ele, o “aconselhamento pas- ral” não é dado suficiente para uma prá-
○
○
dar as pessoas a lidar com seus proble- reformular o que for necessário e esta-
○
mas e crises de uma forma mais belecer novos parâmetros para o desen-
○
○
63
○
○
○
○
○
○
○
II
I I – VÁRIOS MÉTODOS NO PROCESSO DO
A BÍBLIA NO ACONSELHAMENTO PASTORAL
○
○
ACONSELHAMENTO P ASTORAL
PASTORAL
○
○
○
○
Não há dúvida que ao se iniciar o processo de aconselhamento estabe-
○
○
lece-se uma relação de poder entre os envolvidos. Por esta razão, torna-se
○
imprescindível ao aconselhador e aconselhado reconhecer que a
○
○
○
○
assistência pastoral, fundamentada no poder igualador da aceitação e
○
ação libertadora de Deus, procura desmascarar esquemas destrutivos
○
de poder e mudar a dinâmica do poder de tal maneira que os/as parti-
○
○
cipantes da assistência tornem-se agentes e receptores de justiça
○
relacional... O termo “justiça relacional” significa “as condições pelas
○
○
quais todas as pessoas possam estar em termos mutuamente benéficos
○
aconselhado pertence? E como a sua história de vida foi tecida até o mo-
○
○
64
○
○
○
○
○
○
○
do problema e assume este papel nado contexto social. Algumas aborda-
REVISTA
○
○
diretivo, o aconselhado torna-se coadju- gens se ocupam do indivíduo; outras, do
○
○
vante e receptor-objeto no processo. indivíduo em suas relações sociais num
○
Neste caso, o aconselhamento se reves- determinado contexto histórico.
○
○
te de juízo de valor e de visão unilateral No modelo do ponto de vista
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
○
da realidade. O aconselhado aprenderá a fundamentalista, o aconselhamento é
○
sublimar suas inquietações e frustrações um instrumento para induzir o aconse-
○
○
e se sentirá satisfeito com uma solução lhado a tomar uma decisão radical ao
○
○
momentânea para os seus problemas. Por enfrentar determinado problema. “Seu
○
outro lado, se a relação estabelecida for método é a conversação que confronta a
○
○
conduzida pelo aconselhado, toda e qual- ○
○
pessoa com o mal que ela faz (alcoolis-
quer palavra do aconselhador será ape- mo, medo, falta de fé etc), a responsabi-
○
nas um reforço para decisões já refleti- liza pelos seus atos e busca uma nova ori-
○
○
pontos de vista prévios. Tanto no primei- trar o caminho que o aconselhado deve
○
○
ção de aconselhamento, a fim de dimi- que ela vive. Diversos manuais seguem
○
○
nal entre a pessoa que aconselha e a que mas à luz dos ensinamentos bíblicos. Um
○
○
a inserção do aconselhado num determi- do para “salvar as áreas de nossa vida que
○
○
○
○
○
○
○
65
○
○
○
○
○
○
○
A BÍBLIA NO ACONSELHAMENTO PASTORAL
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
naufragam nas tempestades do nosso dia- lado, deixa fora a parte da crítica
○
psicológica da religião, leva a uma
○
a-dia, que se despedaçaram nos arreci-
○
psicologização da fé e a uma
fes ocultos de ansiedade, culpa e falta
○
○
teologização da psicologia, que não
de integridade” (Op. cit., p.14). Assim ○
○
Pastoral tem como um dos seus repre- para o crescimento individual e comuni-
○
bem refletida, porém, por outro espiritualidade são plurais. Não há uma
○
○
○
○
○
○
66
○
○
○
○
○
○
○
cartilha diretiva que encerre as etapas dos problemas geradores da crise. E, por
REVISTA
○
○
aplicáveis para que se atinja o objetivo fim, aconselhador e aconselhado realizam
○
○
de tal prática. Por se tratar de um pro- uma desconstrução e construção conjun-
○
cesso, os modelos se entrecruzam e es- ta. Uma pessoa procura a outra e ambas
○
○
TEOLOGIA E SOCIEDADE
tabelecem novos padrões que estão su- precisam se respeitar em suas posturas
○
○
jeitos a novas interpretações. Por isso, ideológicas, éticas e percepções do mun-
○
aconselhamento é um desafio único para do para que haja comunicação efetiva e
○
○
as pessoas envolvidas; ainda que se con- o processo seja salutar, principalmente
○
○
te com pistas orientadoras, elas não se para o aconselhado.
○
tornam regras definitivas a conduzir o Os princípios acima enumerados pro-
○
○
processo. ○
○
equívocos relacionais entre os envolvidos. cesso relacional que tem por objetivo
○
○
tes pontos de vista sobre o mesmo pro- si, do outro e de Deus, tendo como refe-
○
○
67
○
○
○
○
○
○
○
III
A BÍBLIA NO ACONSELHAMENTO PASTORAL
○
○
III - A BÍBLIA NO PROCESSO DE
○
○
ACONSELHAMENTO P ASTORAL.
PASTORAL.
○
○
○
Ao ser instaurado o processo de aconselhamento numa situação de
○
○
crise1, um dos questionamentos mais freqüentes diz respeito à
○
○
metodologia adequada a ser utilizada.
○
Como foi lembrado anteriormente, não existe um manual pronto
○
○
a ser seguido. Existem pistas para que o processo de aconselhamento
○
○
flua e se transforme em instrumento libertador para a vida das pessoas
○
que dele necessitam. Alguns cuidados devem ser considerados para
○
○
que o aconselhador seja um facilitador no processo de aconselhamento.
○
○
Em primeiro lugar, mapear a situação que levou o aconselhado a
○
1
Para compreensão a respeito da crise ver artigo FARRIS, James Reaves, “Intervenção na
○
68
○
○
○
○
○
○
○
não se transforme em uma conversa des- Neste caso, a Bíblia é utilizada como
REVISTA
○
○
provida de significado e de objetivo, ou um manual que contém as obrigações
○
○
em uma sessão de psicoterapia conduzida que o aconselhado deve cumprir para
○
por profissional não qualificado. resolver seus problemas. Tendo em vista
○
○
Os textos bíblicos, no aconselha- que a causa dos males encontra-se na si-
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
○
mento pastoral, em algumas diretrizes tuação de pecado, todo sofrimento será
○
metodológicas, legitimam posturas mo- curado, pois os ensinamentos bíblicos
○
○
ralistas, discriminatórias e hierárquicas; mostram que, diante do arrependimen-
○
○
em outras, defendem os ensinamentos to, o pecado é perdoado; portanto, a cau-
○
encontrados na Bíblia como necessários sa do sofrimento está resolvida.
○
○
para o processo de restauração da vida ○
○
Há outros aconselhadores que utili-
do aconselhado. Reafirma-se, neste caso, zam a Bíblia como um talismã. Ela é
○
A leitura das histórias bíblicas traz à túnios. Aos textos bíblicos são atribuí-
○
memória das pessoas em situação de cri- dos poderes que advêm do sobrenatu-
○
○
divina é revelada a todas as pessoas, prin- Deus em relação aos atos humanos, prin-
○
○
turas que oprimem e destroem os indi- miliares, etc...Ao ser usada como um
○
○
... a Bíblia, que é verbalmente ins- exemplificar: quando uma pessoa pro-
○
pirada, revela em todas as suas par- cura quem aconselha e conta seu pro-
○
○
conduzir a vida. Ela lhe mostra textos que lembram o pecado causador
○
○
Deus cria todo o sofrimento e a do- do se usa a Bíblia neste sentido, é ler tex-
○
○
ença nos seres humanos...Deus cha- tos que demonstram a devassidão huma-
○
69
○
○
○
○
○
○
○
livra do conflito e, conseqüentemente, 4. Ajudar a curar patologia espiritu-
A BÍBLIA NO ACONSELHAMENTO PASTORAL
○
○
da crise. al e a mudar crenças patogênicas...
○
○
Outros aconselhadores têm como 5. Conscientizar as pessoas a respei-
○
referências as promessas bíblicas, que to da vida cristã. (Id., p.119-122)
○
○
servem para consolar e confortar o cora-
○
○
ção aflito com ênfase na misericórdia di- Há, ainda, aconselhadores que usam
○
vina. Neste caso as causas dos conflitos as histórias dos personagens bíblicos, e
○
○
que geram a crise devem ser esquecidas, as identificam com as histórias de vida
○
○
pois Jesus Cristo já as esqueceu. Sob esta dos aconselhados. Propõe-se uma
○
perspectiva; ele restaura toda e qualquer interação entre as histórias bíblicas e a
○
○
situação que pode ser fruto de ação de- história pessoal, por meio da análise das
○
○
moníaca na vida da pessoa. diversas fases da crise e as possíveis so-
Ao se usar a Bíblia no aconselhamento ○
○
○ luções encontradas pelos personagens
pastoral se faz necessário atentar para o bíblicos. Ao aproximar estas histórias
○
○
ceber se este recurso não está sendo para dor pode se tornar o condutor do pro-
○
○
páginas 60 a 73
aconselhamento, que tem por palavras Este método leva em consideração que
○
○
crescimento integral, em que se reflita a medo etc e buscaram respostas que lhes
○
○
informe o processo, o espírito e lugar a uma vida mais plena, mas não isen-
○
○
3. Realizar um diagnóstico de ques- usar histórias outras, pois, ainda que se-
○
70
○
○
○
○
○
○
○
questões que afligem e causam pertur- ainda que descritas em histórias particu-
REVISTA
○
○
bação pessoal e relacional. larizadas, refletem o aspecto relacional
○
○
A Bíblia, para o cristianismo, é fonte com o semelhante e com o sagrado.
○
de inspiração para o desenvolvimento da O aconselhado procura o aconselha-
○
○
fé, é norteadora para o culto e para a éti- dor com uma história, que está interliga-
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
○
ca. A fé, que provém da relação com o da a outras, formando o contexto em que
○
sagrado, encontra sustentação nos ele vive. Ao se fazer uso de histórias de-
○
○
ensinamentos bíblicos e, por esta razão, terminadas precisa-se reconhecer suas
○
○
a Bíblia torna-se importante instrumen- particularidades a fim de não transformá-
○
to no processo de aconselhamento. las em modelo acabado. A semelhança
○
○
Quando os textos bíblicos são estu- ○
○
com determinada história bíblica pode
dados com seriedade, não se tornam pre- ajudar a identificar os aspectos da situa-
○
texto para julgamento e punição do acon- ção de crise com que se pretende traba-
○
○
atuam como aliado do processo de liber- as pessoas não são as mesmas e nem as
○
○
toral, quais as pistas para que a leitura da que enfrenta crises de toda espécie e que,
○
○
mas em que estiveram envolvidos os per- do povo judeu não foi suficiente para ele
○
○
abuso de poder; esquemas para benefi- morte dos cristãos não conseguiram apa-
○
○
ses familiares; violência sexual etc) nos aconselhamento é sustentada pela men-
○
○
partir disso pode se reconhecer nas es- opressões e lutar contra a discriminação
○
enfrentadas pelos personagens bíblicos, blia traz relatos que nos chamam a aten-
○
○
○
○
○
○
○
71
○
○
○
○
○
○
○
ção para o que se pretende no rio são componentes fundamentais para
A BÍBLIA NO ACONSELHAMENTO PASTORAL
○
○
aconselhamento. Se buscarmos uma pa- que vidas sejam restauradas e consigam
○
○
lavra de exortação, de consolação, de in- viver em harmonia pessoal e relacional,
○
centivo, certamente a encontraremos. ainda que novas crises surjam.
○
○
Mas é impossível se construir novas re- No aconselhamento pastoral, a Bíblia
○
○
lações se não forem reconhecidas as qua- não se esgota numa caixinha de promes-
○
lidades e os defeitos, os horizontes e as sas, não se limita às advertências e não se
○
○
limitações de cada pessoa envolvida no esgota em interpretações exclusivistas.
○
○
aconselhamento. Ela é recurso fundamental para se com-
○
A leitura da Bíblia no aconselhamento preender a diversidade de problemas, as
○
○
é fonte de inspiração para repensarmos possíveis soluções e principalmente o ho-
○
○
nossa condição de vida no momento es- rizonte de inegável esperança.
pecífico. Não é um receituário paliativo ○
○
○ As ciências humanas oferecem ins-
para encobrir a necessidade de transfor- trumental para o aconselhamento pasto-
○
○
espiritual. Trata-se de uma proposta de oferecer condições para esta prática es-
○
○
vida, e de aquisição de valores que nos sencial na vida das igrejas; mas a Teologia
○
○
páginas 60 a 73
A leitura fragmentada nos leva a in- teóricos para a reflexão sobre o processo
○
○
vida, com a construção contínua de no- forma planejada, com critérios definidos
○
○
a re-visitação aos dogmas e preceitos, cesso, uma vez instaurado, conta com o
○
72
○
○
○
○
○
○
○
BIBLIOGRAFIA
REVISTA
aconselhamento precisa ser amplamen-
○
○
te discutido para que os textos bíblicos
○
CLINEBELL, Howard J., Aconselhamento Pastoral:
○
não sejam usados como cartilhas diretivas modelo centrado em libertação e crescimento. São
○
Paulo: Paulinas; São Leopoldo: Sinodal, 1987.
e possam trazer libertação para as pesso-
○
○
FARRIS, Reaves James, “Teologia prática, cuidado e
TEOLOGIA E SOCIEDADE
as envolvidas no processo de
○
aconselhamento pastoral: um resumo da história
○
aconselhamento. A mensagem bíblica recente e suas conseqüências atuais”. In: Teologia
○
Pastoral, São Bernardo do Campo, ano XI, no. 12,
pode ser renovadora num momento de
○
p. 11-30, dez/1996.
○
crise, de angústia, de sofrimento em que
○
___________________, “Intervenção na crise:
○
as pessoas estão imersas. perspectivas teológicas e implicações práticas”. In:
○
Teologia Pastoral, São Bernardo do Campo, ano XI,
Se partirmos do pressuposto que o
○
no. 12, p. 101-118, dez/1996.
○
os danos ocasionados e as novas perspec- relações de ajuda. São Leopoldo: Escola Superior de
○
Teologia/Sinodal, 2003.
tivas. O aconselhador, como facilitador
○
do processo, torna-se acolhedor, solidá- educação”. In: Teologia Pastoral, São Bernardo do
○
ao objetivo, mas, isto sim, estar prepara- do aconselhamento pastoral. São Leopoldo: Sinodal,
○
1998.
○
______________________, “Aconselhamento
frer com os que sofrem. Viver os
○
ensinamentos bíblicos de cuidado, paci- América Latina. São Leopoldo: Sinodal; São Paulo,
○
73
○
○
Desencantamento do
Mundo
O
presente trabalho, em
primeiro lugar, pro- Valdinei Aparecido F
põe-se a rastrear o con-
ceito de desencantamento do mun-
do ( Entzauberung der Welt) nos tra-
balhos sociologia da religião elabora-
dos por Max Weber. Trata-se de um
exercício de compreensão de um as-
Ferreira
erreira
○
○
sário abordaremos outros textos de vida. Lutero, segundo Weber, produziu
○
○
Weber, especialmente A Ciência como uma desvalorização da vida monacal e por
DESENCANT
PÁGINAS 74 A 85
REVIST
REVISTA
DESENCANTAMENTO
○
Vocação, uma conferência proferida em conseqüência um aumento no valor mo-
○
○
1918 e publicada em 1919, que trata da ral do trabalho secular e profissional. A
A TEOL
○
relação entre ciência e desencantamento. vida monacal foi vista por Lutero como
TEOLOGIA
○
A construção da idéia de desencan- produto de uma egoística falta de cari-
○
○
tamento do mundo aparece pela primei- nho que afasta o homem de suas respon-
OGIA E SOCIEDADE
AMENTO DO MUNDO
○
○
ra vez na Ética Protestante. Weber está sabilidades neste mundo (Ibidem, p.54).
○
interessado em encontrar a origem da Todavia, devido à compreensão que
○
○
atitude moderna de racionalização. Con- ○
○
Lutero tem da doutrina da Providência
sidera infrutífera qualquer tentativa de – segundo a qual o lugar de cada indiví-
○
num esquema de etapas, das quais o Deus e a melhor forma de agradar a Deus
○
○
“não segue linhas paralelas nos vários se- permaneceu em sua forma tradicional.
○
○
Valdinei Aparecido F
ceito de racionalismo, pois é preciso con- O calvinismo fornecerá o elemento
○
○
diferentes” (Idem, p.51). Isto conduz trabalho racional, uma vocação, que é
○
○
Weber para a investigação daquele que pedida por Deus” ( Ibidem, p.115). Mas
Ferreira
erreira
○
seria, segundo suas palavras, “o dogma porque se pede um trabalho racional, de-
○
Paulo
○
aulo
aulo,, SP
central de todos os ramos do protestan- vemos nos perguntar: o que operou essa
○
○
res da vida” o que nos trabalhos sistemá- a “influência daquelas sanções psicológi-
○
○
○
○
○
○
○
75
○
○
○
○
○
○
○
cas que, originadas da crença religiosa e Esta tensão insuportável para os fiéis
DESENCANTAMENTO DO MUNDO
○
○
da prática da vida religiosa, orientavam encaminhou como solução a doutrina da
○
○
a conduta e a ela prendiam o indivíduo” prova. Os eleitos para a salvação podem
○
(Ibidem, p.67). A crença religiosa que ser conhecidos por um tipo de conduta
○
○
exerceu maior influência sobre a condu- cristã que glorifica a Deus. Weber apon-
○
○
ta dos homens daquele tempo foi a dou- ta dois tipos de recomendações que eram
○
trina calvinista da predestinação. Segun- feitas aos fiéis: a) combater as dúvidas
○
○
do esta doutrina, Deus previamente, sem com o reforço da autoconfiança ; b) en-
○
○
qualquer previsão de fé ou de obras, tregar-se a uma intensa atividade profis-
○
predestinou alguns homens para a salva- sional. Deveria ser privilegiado, na me-
○
○
ção e outros para a perdição eterna. Tra- dida do possível, um trabalho sistemáti-
○
○
ta-se de um pensamento de grande con- co e racional, segundo as recomendações
sistência lógica, pois segue rigorosamen- ○
○
○ de Richard Baxter. A mudança de pro-
páginas 74 a 85
te o pressuposto de que “Deus não exis- fissão já não era mais condenada, mas
○
○
te para os homens, mas estes por causa deveria ser o resultado de uma escolha
○
de Deus”. Desta forma, Deus é glorifi- racional. A caridade cristã, expressa por
○
○
cado tanto na perdição quanto na salva- meio de boas obras, deveria também ser
○
○
ção dos homens. A questão que passaria coordenada num sistema racional. A dou-
○
“como sei que sou um dos eleitos para a duta devem ser compreendidas como
○
○
salvação?” Segundo Weber, essa questão “meios técnicos, não de compra da sal-
○
○
deve ter empurrado para segundo plano vação, mas de libertação do medo da con-
○
todos outros interesses (Ibidem, p.76). denação” (Ibidem, p.80). Weber finaliza
○
○
O homem não podia mais contar com a a análise do conceito de vocação afirman-
○
○
que “Calvino encarava com desconfian- onasse seu próprio estado de graça,
○
76
○
○
○
○
○
○
○
opus superrogationes, mas algo que Aquele grande progresso histórico-
REVISTA
○
○
podia ser requerido de todo aquele religioso da eliminação da magia do
○
que estivesse certo da salvação. A mundo, que começara com os ve-
○
vida religiosa dos santos, desligan- lhos profetas hebreus e conjunta-
○
○
do-se da vida “natural”, não era mente com o pensamento científi-
TEOLOGIA E SOCIEDADE
muito vivida – este é o ponto mais co helenístico, repudiou todos os
○
○
importante – fora do mundo, em meios mágicos de salvação como su-
○
comunidades monásticas, mas den- perstição e pecado, chega aqui à sua
○
○
tro do mundo e de suas instituições. conclusão lógica. (Ibidem, 72).
○
Esta racionalização da conduta den-
○
tro deste mundo, mas para o bem
○
Sobre este processo de desencanta-
○
do mundo do além, foi a conse-
○
mento do mundo, Weber remete-nos,
qüência do conceito de vocação do ○
tais para converter o calvinismo numa ressaltar que Weber, ainda na Ética Pro-
○
religião ética e, por conseqüência, numa testante, faz mais algumas importantes
○
○
sencantamento do mundo. Weber apon- mais adiante afirma que “os católicos não
○
1
Weber, como é próprio de seu método, faz uma
○
77
○
○
○
○
○
○
○
ram presos ao que Weber chama de um importante assinalar a relação que esta-
DESENCANTAMENTO DO MUNDO
○
○
ciclo essencialmente humano de: peca- belece entre a conduta ascética, exigida
○
○
do, arrependimento, reparação, relaxa- pela profecia emissária, e a
○
mento, seguidos de novo pecado ( transcendência de Deus, diz ele: “Essa
○
○
Ibidem, p.82). Diferentemente, por profecia emissária teve uma profunda
○
○
exemplo, o metodismo buscará a perfei- afinidade eletiva com um conceito especi-
○
ção, ou seja, uma vida sem pecado. O al de Deus: o conceito de um Senhor da
○
○
ideal de vida cristã que domina o purita- Criação supramundano, pessoal, irado,
○
○
nismo não é cíclico, mas linear. O alvo misericordioso, amante, exigente, puni-
○
do puritano é “progredir” na graça de tivo” (Ibidem, p.329). Trata-se do Deus
○
○
Deus. Disto decorre o hábito de contro- do calvinismo. Os seres humanos encon-
○
○
lar em um diário os progressos obtidos na tram-se separados de Deus por um “gol-
vida espiritual. Weber, ainda na Ética Pro- ○
○
○ fo intransponível” ( Weber, 1987, p.71).
páginas 74 a 85
magia do mundo não permitiu nenhum os desígnios de Deus. Resta ao fiel ape-
○
outro curso psicológico, que não a prática nas viver a ética dos eleitos, que nada
○
○
do ascetismo laico” (Ibidem, p.106). mais é que uma técnica para produzir alí-
○
○
deram-se como vasos do divino. A pri- Weber, porém, antes desta afirmação
○
○
meira enfatiza a ação e a segunda, a con- assinalou que duas coisas foram neces-
○
○
templação. Weber aponta que a atitude sárias para que isso pudesse acontecer
○
religiões iraniana e do oriente e as religi- valor supremo e sagrado não devia ser de
○
○
1982a, p.329) Para a compreensão que religião deve ter desistido, na medida do
○
○
78
○
○
○
○
○
○
○
trar como o protestantismo, principal- (Op. cit., p.299), vale também para a re-
REVISTA
○
○
mente na versão calvinista, preencheu lação com a esfera intelectual. O
○
○
adequadamente essas condições para que ascetismo gera uma religião racionaliza-
○
o desencantamento do mundo ocorres- da, mas que sempre pedirá o sacrifício
○
○
se internamente. do intelecto – credo non quod, sed quia
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
○
Vimos até aqui que Weber estabele- absurdum. O ascetismo protestante vi-
○
ce uma relação muito forte entre verá sempre o seguinte dilema: para não
○
○
ascetismo e desencantamento do mun- ceder ao misticismo, deve incentivar a
○
○
do. A religião a partir da qual o desen- apologética racional, mas ao incentivá-la
○
cantamento do mundo ocorre é sempre pode gerar “inimigos da fé” dentro dos
○
○
uma religião ascética. Isto fica claro no ○
○
próprios muros. Temos aqui, embora não
exame do conceito de vocação apresen- seja este o objetivo de nosso trabalho,
○
tado na Ética Protestante e também nas uma importante referência para compre-
○
○
ores. O ascetismo gera uma religião com nas Igrejas Protestantes: as reações
○
forma a tensão entre a religião racionali- rado no seio de uma religião ascética
○
○
Quanto mais a religião se tornou como religião. Não foi por acaso que a
○
testantes.
○
testante põe em marcha o capitalismo, Protestante, Weber afirma, logo após fa-
○
79
○
○
○
○
○
○
○
e em direções muito diferentes, estar busca pelo significado do mundo: “a
DESENCANTAMENTO DO MUNDO
○
○
“particularmente interessado no elemento crença na predestinação realiza essa re-
○
○
irracional que precisamente se ausenta núncia, de fato e com plena coerência. A
○
nesta, como em toda concepção de “vo- reconhecida incapacidade do homem em
○
○
cação” (1987, p.51). O paradoxo desta- escrutinizar os caminhos de Deus signi-
○
○
cado por Weber reside no fato de que, fica que ele renuncia numa clareza sem
○
embora a religião busque atribuir um sen- amor à acessibilidade do homem a qual-
○
○
tido para o mundo, seu ponto de partida quer significado do mundo” (1982b:
○
○
é essencialmente irracional e seu ponto p.409-10). Ao desvendar a origem o
○
de chegada pode ser também irracional. racionalismo moderno Weber encontrou
○
○
J. Habermas observa que Weber com- também a origem do irracionalismo mo-
○
○
preendeu a conduta ascética derno.
intramundana, como um comportamen- ○
○
○ Weber, no último capítulo da “Ética
páginas 74 a 85
fins, mas sustendado pela ação com rela- ria tornar-se um profissional
○
ção a valores (Op. cit., p.263). Dito de (berufsmench) e todos tiveram que se-
○
○
outra forma: o puritano adota uma con- gui-lo”(Op.cit., p.130). Nesta etapa a
○
○
duta metódica porque acredita ser esta ação racional com relação a fins despren-
○
a vontade de Deus para sua vida. Portan- de-se de seu fundamento racional com
○
○
to, o seu ponto de partida é por excelên- relação a valores e passa a seguir uma ló-
○
○
cia irracional, aliás como Weber afirma gica própria (Op. cit., p.305). Weber
○
○
claramente: “As várias grandes formas descreve esse processo da seguinte for-
○
tia-se a um destino cujo sentido lhe es- vamente, quem sabe – seu espírito
○
80
○
○
○
○
○
○
○
ronda em torno de nossas vidas. mo weberiano. (1997, p.25)
REVISTA
○
○
Onde a “plenitude vocacional” não O conceito de separação entre as
○
pode ser relacionada diretamente diferentes esferas e seu permanente es-
○
aos mais elevados valores culturais
○
tado de tensão só foi desenvolvido ple-
○
– ou onde, ao contrário, ela também
○
namente nas “Rejeições Religiosas do
TEOLOGIA E SOCIEDADE
deve ser sentida como uma pressão
○
Mundo e suas Direções” (1982b).
○
econômica - o indivíduo renuncia a
○
toda tentativa de justificá-la. No Catherine Colliot-Thelene observa que
○
○
setor de seu mais alto desenvolvi- Weber utilizará o termo desencantamen-
○
mento, nos Estados Unidos, a pro- to do mundo, nos textos de 1913 a 1919,
○
cura da riqueza, despida de sua rou-
○
com um sentido mais amplo do que ti-
○
pagem ético religiosa, tende cada
○ vera na Ética Protestante. Segundo
vez mais a associar-se com paixões ○
mica ganha uma legalidade própria que Weber, desemboca no antagonismo ab-
○
○
não mais depende da legitimação religi- soluto entre as diferentes esferas, isto é,
○
no politeísmo de valores:
○
demais esferas: arte, ciência, política, Vista dessa forma, a ‘cultura’ surge
○
○
fera ganha a sua legalidade própria, pas- relação ao ciclo da vida natural, or-
○
○
sando a orientar-se por princípios que são ganicamente prescrito. Por essa ra-
○
cia no esquema analítico de Weber, como porém, parece tornar-se uma agita-
○
se pode ver:
○
autocontraditórias e mutuamente
○
tônomas entre si, no sentido de que sensato quanto mais ele é tomado
○
lógica interna específica, à sua “le- tureza específica de cada esfera es-
○
81
○
○
○
○
○
○
○
conflito parece destacar-se cada vez estabelecidas sobre a interpretação do
DESENCANTAMENTO DO MUNDO
○
○
mais e de forma mais insolúvel.[...] fenômeno religioso. O que causa perple-
○
E não só o pensamento teórico, de-
○
xidade não é a sobrevivência das religi-
sencantando o mundo, levava a essa
○
ões, mas o seu intenso processo de ex-
○
situação, mas também a própria
○
tentativa da ética religiosa de raci- pansão, especialmente das religiões com
○
○
onalizar prática e eticamente o um forte apelo mágico. Diante deste
○
mundo. (1982b: p.407-08) fato, o conceito weberiano de desencan-
○
○
tamento do mundo tem sido revisitado
○
A perda de liberdade, refletida pela
○
por diferentes autores.
○
dominação, é o outro aspecto negativo A idéia popularizada na modernidade
○
○
que acompanha o processo de desencan- segundo a qual as religiões iriam decli-
○
tamento do mundo. Weber nos diz que
○
nando, chegando até mesmo ao desapa-
○
o ascetismo, desde os primórdios de seu ○
○ recimento histórico, não encontra nenhu-
páginas 74 a 85
da riqueza. Esta nova atitude contribuiu fraqueza. Duas obras teológicas foram
○
○
“determinará até que a última tonelada Cox (1965). O primeiro foi publicado
○
○
de combustível tiver sido gasta” (1987, na Inglaterra e o segundo nos EUA. Não
○
A efervescência religiosa deste final uma lei histórica, do tipo comtiano. Isto
○
○
de século está mexendo com as idéias fica muito claro em toda obra Weberiana.
○
○
○
○
○
○
○
82
○
○
○
○
○
○
○
A afirmação feita por Lísias N. Negrão leitura do campo religioso na atualida-
REVISTA
○
○
nos ajuda a entender isto: de? De forma alguma. O que pode ser
○
○
As análises de Weber foram válidas generalizado para a modernidade não é o
○
para um período já encerrado da processo de desencantamento, entendi-
○
história do Ocidente: o apogeu da
○
do como a racionalização do cristianis-
TEOLOGIA E SOCIEDADE
○
racionalidade num mundo desen-
○
cantado, em que o sagrado se exi- mo, mas suas implicações secularizantes.2
○
Uma das principais implicações do de-
○
lou. Mais recentemente vivemos o
○
período dos chamados “retorno do sencantamento foi a separação entre Igre-
○
○
sagrado” ou da “revanche de Deus”, ja e Estado. Neste sentido, a expansão
○
em que este mundo, de alguma for- transnacional do capitalismo, encarregou-
○
ma, se reencanta. Mesmo se consi- ○
○
se de fazer com que os Estados nacio-
derarmos a realidade do Terceiro
○
Tanto o seu conceito não pode ser lido processo de racionalização interno à reli-
○
Weber salienta que o catolicismo foi uma caso dos países latino-americanos, não
○
○
Isto significa que o conceito não te- duzido ao desencantamento. Desta for-
○
○
nha nenhuma significação teórica para a ma, não há, pelo menos se estiverem cor-
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
2
Adotamos a distinção feita por Pierucci entre
○
83
○
○
○
○
○
○
○
retas as distinções que fizemos, nenhum Porém, convém não menosprezar a
DESENCANTAMENTO DO MUNDO
○
○
equívoco em afirmar que as sociedades racionalidade ocidental, cujos caminhos
○
○
latino americanas continuam encantadas, e desdobramentos mereceram a dedica-
○
embora no século XX tenham se secula- ção da “vocação” científica de Weber. O
○
○
rizado significativamente. A necessida- que Cristián Parker afirma acima não
○
○
de de buscar uma compreensão da secu- deve significar que a religiosidade lati-
○
larização na América Latina, escapando no-americana não foi “contaminada” pela
○
○
de uma simples transposição da análise racionalidade ocidental, ou ainda, que por
○
○
feita no contexto da Europa, foi alguma outra razão, esteja isenta de qual-
○
enfatizada por Cristián Parker, como se- quer influência. “Inspirados” pelo mé-
○
○
gue: todo histórico utilizado por Weber, de-
○
○
Em nosso continente subdesenvol- vemos buscar entender a partir de que
○
vido e dependente, os processos de ○
○ lugar a religiosidade brasileira (ou latino-
secularização assumiram outras ca-
páginas 74 a 85
te, à evolução histórica e estrutural não nos esqueçamos que se pode “raci-
○
todo caso, prolonga o sentido sub- sagem propriamente. Daí ser acertada a
○
○
84
○
○
○
○
○
○
○
nhos teóricos para analisar o crescimen- Bibliografia
REVISTA
○
○
to das religiões na atualidade. Além dis-
○
ARON, Raymond. As Etapas do Pensamento
○
so, Weber torna possível pensar que Sociológico. 5ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
○
mesmo onde os indivíduos estão desen- ARAÚJO, Luiz Bernardo Leite. Religião e
○
Modernidade em Habermas. São Paulo: Loyola,
○
cantados pode ocorrer um “surto” de
TEOLOGIA E SOCIEDADE
1996.
○
○
reencantamento, conforme veremos BERGER, P. O Dossel Sagrado. 2ª ed. São Paulo:
○
Paulus, 1985.
abaixo, mas este assunto precisa ser tra-
○
COHN, Gabriel. Introdução. in:: Max Weber (Coleção
○
tado em separado. Grandes Cientistas Sociais). 6ª ed. São Paulo: Ática,
○
1997.
○
As camadas do proletariado, mais
○
COLLIOT-THÉLÈNE, Catherine. Max Weber e a
baixas, mais instáveis, para as quais
○
História. São Paulo: Brasiliense, 1985.
as concepções racionais são menos ○
○
DIGGINS, John Patrick. Max Weber (A Política e o
acessíveis, e, ainda, as camadas Espírito da Tragédia). Rio de Janeiro: Record, 1999.
○
para demonstrar a fecundidade da análi- WEBER, Max. Rejeições Religiosas do Mundo e suas
○
85
○
○