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Revista Médica

Interações entre de Minas


exercício físico, Gerais
álcool e fígado 1

Artigo de Revisão

Interações entre exercício físico, álcool e fígado

Interactions between physical exercise, alcohol and liver

Marina Silva de Lucca1, Eveline Torres Pereira2, Luciana Moreira Lima3

1
Médica. Mestranda do
Programa de Pós-Graduação em
RESUMO Educação Física da Universidade
A ingesta crônica de álcool causa danos tóxicos diretos e indiretos e Federal de Viçosa, MG, Brasil.
as principais alterações são causadas pelo seu próprio metabolismo. O 2
Educadora Física. PhD.
etanol aumenta o estresse oxidativo principalmente no fígado, reduz (Professora Adjunta do Programa
de Pós-Graduação em Educação
a relação NAD+/NADH, aumenta a produção de acetaldeído e altera Física da Universidade Federal de
a função mitocondrial. Essas alterações são frequentemente associadas Viçosa, MG, Brasil).
com o aumento de produtos da peroxidação lipídica, essenciais ao 3
Bioquímica. PhD. (Professora
desenvolvimento da doença hepática alcóolica (DHA). Os exercícios Adjunta do Programa de Pós-
físicos moderados parecem não influenciar significativamente as Graduação em Ciências da
características morfológicas do tecido hepático ou a função hepática. Saúde da Universidade Federal
Em exercícios pesados e prolongados, observam-se estresse oxidativo, de Viçosa, MG, Brasil).
alterações histológicas, prejuízo da farmacocinética e níveis alterados
de enzimas hepáticas. Cessado o exercício alguns dias, parece haver Instituição:
recuperação da função hepática normal. As alterações hepáticas com o Universidade Federal de Viçosa,
exercício agudo parecem ser transitórias e possivelmente contribuem MG, Brasil
para a homeostase. A atividade física parece ter alguma influência direta
na patologia hepática, além da simples modificação dos níveis de gordura * Autor Correspondente:
no fígado e parece que a intensidade da atividade física é importante para Marina Silva de Lucca
prevenir a progressão da doença. Entender os mecanismos subjacentes E-mail: lucca_marina@hotmail.
da doença hepática auxiliaria na descoberta de intervenções para reduzir com
a progressão dessa doença de uma condição benigna, como a esteatose,
para formas graves como esteatohepatite, fibrose e cirrose. Portanto, Recebido em: 28/05/2016.
exercícios podem ser uma terapia útil para melhorar a performance e Aprovado em: 18/12/2017.
a capacidade funcional em indivíduos com doença hepática, porém
não está claro na literatura se o exercício físico pode restaurar a saúde
hepática e nem qual seria a quantidade e o tipo de exercício necessários.
Palavras-chave: Álcool, Exercícios Físicos, Doença Hepática Alcoólica.

DOI: http://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.20180075
Rev Med Minas Gerais 2018; 28: e-1934
2 Interações entre exercício físico, álcool e fígado

ABSTRACT
Chronic alcohol intake causes direct and indirect toxic damage and major
changes are caused by their own metabolism. Ethanol increases oxidative
stress primarily in the liver, reduces NAD + / NADH ratio, increases the
production of acetaldehyde and alters mitochondrial function. These
changes are often associated with increased lipid peroxidation products
that are essentiais to the development of alcoholic liver disease (ADH).
The moderate intensity exercise does not seem to significantly influence
the morphological characteristics of liver tissue or liver function. In
heavy and prolonged exercise, oxidative stress, histological changes,
impaired pharmacokinetics and altered levels of liver enzymes are noted.
Liver function seems to improve a few days after the end of exercise.
Hepatic changes with acute exercise appear to be transient and possibly
contribute to homeostasis. Physical activity seems to have any direct
influence on the liver pathology in addition to the simple modification
of the levels of fat in the liver and it seems that the intensity of physical
activity is important to prevent disease progression. Understanding the
mechanisms underlying hepatic disease, this could help find interventions
to slow the progression of liver disease of a benign condition, such as
steatosis to severe forms, such as steatohepatitis, fibrosis and cirrhosis.
Therefore, exercise can be a useful therapy to improve the performance
and functional capacity in patients with liver disease, but it is not clear
in the literature that the exercise can restore liver health and even what
the quantity and type of needed exercise.
Keywords: Alcohol, Physical Exercise, Alcoholic Liver Disease.

INTRODUÇÃO específicas aprovadas para tratamento da DHA no momen-


to, sendo seu uso experimental.5 Por essa razão, é importante
A Doença Hepática Alcóolica (DHA) inclui um espectro buscar intervenções no estilo de vida e comportamento que
de alterações, desde uma simples esteatose ao carcinoma he- contribuam para o tratamento e a prevenção da DHA.
patocelular, cujos fatores genéticos e ambientais interagem Evidências têm surgido quanto a possíveis benefícios he-
para produzir um fenótipo da doença e sua progressão.1,2 páticos do treinamento físico. A ação do exercício aeróbio
Essa particularidade poderia explicar o motivo pelo qual pode estar inversamente associada com o desenvolvimento
alguns indivíduos que fazem uso pesado do álcool3 não pro- de esteatose, seja mediada pela perda de peso, seja por efei-
gridem para esteatohepatite, enquanto outros que fazem uso tos diretos. Ou seja, o exercício aeróbio regular pode reduzir
moderado a desenvolvem. Porém, a DHA está mais frequen- os níveis de gordura hepática e esse benefício pode ocorrer,
temente associada a níveis altos de consumo de álcool.1,2 embora em menor extensão, sem perda de peso.6,7,8,9 Essa re-
O álcool é um importante fator de risco para doenças visão sumariza conceitos clássicos da patogênese da DHA e
crônicas e uma das principais causas preveníveis de morbi- efeitos do exercício físico sobre o fígado saudável e na DHA.
mortalidade. A carga global de doença da DHA pode ser
minimizada com intervenções principalmente nos estágios
iniciais da doença.4 Em princípio, toda a carga global da Revisão de literatura e discussão
DHA é evitável, porém difícil de alcançar, pois interfere em Este estudo constitui-se de uma revisão da literatura es-
hábitos individuais e culturais de longa data. pecializada, feita entre maio de 2015 e maio de 2016, no
A esteatose é o estágio precoce da DHA e frequentemen- qual realizou-se uma consulta a periódicos selecionados pela
te é revertida com a abstinência ao álcool, sendo a cessação fonte Pubmed. As palavras-chave utilizadas na busca foram:
do consumo sua principal terapêutica, melhorando os desfe- Alcohol, Alcohol Metabolism, Physical Exercise, Alcoholic
chos clínicos e histológicos, além da sobrevida.5 Liver Disease, Physical Activity, Exercise, Alcoholic
Tratamento farmacológico para esteatohepatite alcóolica Steatosis, Alcoholic Fatty Liver Disease, Physiological Effects
(EHA) é frequentemente usado para hepatite aguda e para of Exercise. A busca foi tanto por termos isolados (alcohol
promover abstinência alcóolica. Porém, não há medicações metabolism; psysiological effects of exercise), quanto em
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associações (por exemplo, alcohol e physical exercise). Os cirrose, sem desenvolvimento prévio de EHA.15 Pode cursar
critérios de inclusão para os estudos encontrados foram to- como uma hepatomegalia assintomática e sintomas digesti-
dos os artigos que relacionavam doença hepática com álcool vos inespecíficos.
e/ou atividade física (exercício físico); atividade física (exer- O álcool e seus metabólitos (acetaldeído, ésteres de áci-
cício físico) e efeitos no fígado ou efeitos no metabolismo do dos graxos e etanol, compostos proteínas-etanol) atuam co-
álcool; álcool e sua interferência no fígado; discutiam o me- mo hepatoxinas, sendo que seu metabolismo (vias oxidativas
tabolismo do álcool e outros efeitos dele no organismo. Não e não-oxidativas) é o responsável pelos principais mecanis-
houve restrição quanto ao ano de publicação, porém apenas mos de toxicidade do álcool.11
artigos em inglês ou português foram incluídos. Foram ex- O álcool e seus metabólitos (acetaldeído, ésteres de áci-
cluídos estudos que não atendiam os critérios de inclusão e dos graxos e etanol, compostos proteínas-etanol) atuam co-
que não estavam disponibilizados na íntegra. Foram incluí- mo hepatoxinas, sendo que seu metabolismo (vias oxidativas
dos 30 artigos na revisão. e não-oxidativas) é o responsável pelos principais mecanis-
mos de toxicidade do álcool.11 Figura 1.
Fígado e Doença Hepática Alcóolica 1. Via oxidativa citosólica (desidrogenases)
O álcool possui propriedade de nutriente, fornecendo Via usual, gera energia oxidativa abundante e as enzimas
calorias (7Kcal/g), sendo também uma toxina. Gera uma álcool desidrogenase e a acetaldeído desidrogenase partici-
carga metabólica e subprodutos oxidativos, funcionando pam do processo. Os produtos finais dessa reação são acetal-
como solvente orgânico e regulador fisiológico direto.10 As deido, acetato e altos níveis de NADH. O excesso de NADH
calorias derivadas do metabolismo do álcool são produzi- não pode ser oxidado a NAD+ nas mitocôndrias e seu excesso
das às custas do metabolismo dos demais nutrientes, pois a entra na reação de síntese de ácidos graxos, formando trigli-
oxidação do álcool é preferencial ao de outros nutrientes.11 cerídeos, que se acumulam em gotículas lipídicas citosólicas,
Embora as taxas variem, a capacidade metabólica média para contendo além dos triglicerídeos e ácidos graxos, monogli-
remover o álcool é de cerca de 170 a 240 g por dia para uma cerídeos e diglicerídeos. O fígado normalmente não estoca
pessoa com um peso corporal de 70 kg. Esta capacidade é triglicerídeos, mas após ingesta moderada de álcool, gotícu-
aproximadamente uma dose-padrão por hora12 (Tabela 1). las lipídicas microvesiculares acumulam-se nos hepatócitos.
A lesão hepática por uso crônico de álcool origina-se na A redução da relação NAD+/ NADH pode afetar reações
zona perivenosa do lobo hepático por ser uma região menos bioquímicas na mitocôndria e expressão gênica no núcleo.
oxigenada, com menor capacidade de reações de redução, A carga de NADH requer quantidades extras de oxigênio
maior concentração de citocromo P450 (CYP2E1) e meno- na mitocôndria para ser oxidada e os hepatócitos não con-
res níveis de antioxidantes (glutationa)1,2. seguem captar oxigênio do sangue arterial em quantidades
Os achados morfológicos da DHA não são específicos suficientes para suprir adequadamente todas as regiões do
dessa condição.10,13 As alterações iniciam-se com a esteato- fígado. Assim, o consumo de álcool resulta em hipóxia signi-
se hepática como resultado do prejuízo da síntese, armaze- ficativa perivenular, região que mostra a primeira evidência
namento, mobilização e quebra de gorduras. Com a pro- de lesão do consumo crônico de álcool e pode ser suficiente
gressão da injúria, há indução de inflamação, lesão celular para levar a prejuízos na síntese protéica2. O acetaldeído é
e apoptose, todos contribuindo para a esteatohepatite. O gatilho para inflamação, remodelamento da matriz extrace-
etanol induz o citocromo CYP2E1, produzindo acetaldeído lular e fibrogênese por meio de ação nas células estreladas.
tóxico e espécies reativas de oxigênio; endotoxinas derivadas Sua forma covalente liga-se a proteínas e DNA levando a
do intestino ativam células de Kupffer, produzindo citoci- produtos imunogênicos, como malondialdeído, e efeitos
nas inflamatórias; ácidos graxos livres armazenados promo- pró-carcinogênicos.1,2,11,14 O dano oxidativo afeta o trans-
vem estresse oxidativo e apoptose de hepatócitos. Por fim, porte da carga de lipídeos produzidos, prejudicando sua li-
ocorre deposição de fibrose por células estreladas hepáticas beração para circulação. Ocorre acúmulo de lipoproteínas
ativadas.1,2,14 como VLDL, distendendo o aparelho de Golgi, contribuin-
A esteatose é definida por conteúdo hepatocitário de do para a esteatose. Essa maior disponibilidade de vesículas
gordura ≥ 5%6 e desenvolve-se em aproximadamente 90%
dos indivíduos que ingerem mais de 60g/dia de etanol, sen-
do completamente reversível após 4 a 6 semanas de absti-
nência. A fibrose e a cirrose desenvolvem-se em 5 a 10% dos
indivíduos. Existe um risco elevado para desenvolver lesão
hepática progressiva mesmo na esteatohepatite (EHA) leve,
com cirrose desenvolvendo-se em mais de 50%. Abstinência
alcoólica está associada com normalização histológica em
27% dos pacientes com hepatite alcóolica, com progressão
para cirrose em 18% e hepatite persistente nos demais.14
Apesar de ser considerada uma anormalidade histológica be-
nigna e reversível, pacientes com esteatose que persistem no
uso de álcool podem desenvolver fibrose e, em alguns casos,
Figura 1. Metabolismo do etanol

Tabela 1. Dose padrão de álcool definida pela Organização Mundial de Saúde


Cerveja/Chope Vinho Destilados Dose padrão (álcool puro)
330 mL a 4% 100 mL a 12% ou 30 mL a 40% 10-12 g
70 mL a 18%

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4 Interações entre exercício físico, álcool e fígado

gordurosas fornece amplo substrato para peroxidação lipídi- disfunção da barreira intestinal e a endotoxemia precedem a
ca em subprodutos como malondialdeído. Existe uma clara lesão hepática. As endotoxinas ativam isoladamente as célu-
relação entre dano oxidativo e inflamação e doenças associa- las de Kupffer, enquanto o TNF-α, por sua vez, mantém a
das ao alcoolismo, como disfunção cerebral, doenças ósseas lesão hepática por piorar a permeabilidade intestinal e sus-
e musculares, alterações pulmonares, aumento da gravidade tentar o dano necroinflamatório do fígado.4
de infecções, subnutrição e aumento da prevalência de do-
enças cardiovasculares ou câncer.16,17 O aumento da relação Exercício Físico, Álcool e Fígado
NADH/NAD também pode relacionar-se a hipoglicemia O fígado é o principal órgão do corpo na regulação dos
grave por intoxicação aguda ao álcool e o álcool pode, em estoques de carboidratos e lipídeos, garantindo oferta de me-
certas condições, relacionar-se a hiperglicemia por menor tabólitos tanto para atividades físicas, quanto para síntese de
uso periférico da glicose. O metabolismo de esteróides, as- tecido muscular e cerebral9.
sim como o da galactose, serotonina e outras aminas podem De forma geral, o álcool em esportes e exercícios pode
interferir ainda no aumento da relação NADH/NAD2. afetar as habilidades psicomotoras pelo uso agudo, podendo
2. Via oxidativa Citocromo P450 (especialmente reduzir a performance e interferir nos mecanismos de re-
CYP2E1) gulação da temperatura corporal durante o exercício. Além
O consumo crônico de álcool leva a “up-regulation” disso, o consumo de álcool reduz o uso de glicose e ami-
do citocromo P450, especialmente o 2E1 (CYP2E1), que noácidos pelo músculo esquelético com efeitos adversos no
auxilia a álcool desidrogenase na conversão do etanol em fornecimento de energia e prejuízo de processos metabólicos
acetaldeído. Trata-se de uma via de menor importância em durante o exercício, podendo causar miopatia alcóolica.20
condições usuais para o metabolismo de álcool, mas extre- Com relação ao fígado, o exercício isoladamente não al-
mamente tóxica: forma acetaldeído e o radical 1-hidroxietil, terou a função mitocondrial em um estudo experimental,
responsável por interações drogas-álcool; ativa toxinas como mas quando associado ao consumo de álcool, verificou-se a
acetominofen, halotano, benzeno, hidrocarbonetos halo- ausência de alteração significativa na função oxidativa da mi-
genados em produtos intermediários reativos tóxicos; ativa tocôndria hepática, concluindo-se que o treinamento físico
procarcinogênicos como nitrosaminas e compostos azo em pode ter atenuado o declínio mitocondrial hepático induzi-
carcinogênios ativos; ativa o oxigênio molecular em espécies do pelo etanol.21
reativas de oxigênio como radical superóxido, peróxido de Tanto o exercício agudo, quanto o treinamento físico
hidrogênio e radical hidroxil, que induzem a peroxidação podem aumentar as taxas de metabolismo hepático micros-
lipídica e formação de produtos proteína-acetaldeído. A somal do álcool sem alterar a atividade da enzima álcool
produção do radical superóxido e peróxido de hidrogênio desidrogenase.22
podem ser mecanismos para a lesão hepática induzida pelo Sugere-se que o aumento da temperatura corporal du-
estresse oxidativo.1,2,11,18 rante o exercício pode aumentar a atividade de enzimas
3.Via Peroxissomal hepáticas envolvidas no metabolismo do etanol.11,19 Parece
Via não usual, mas a enzima catalase peroxisomal pode haver um pequeno aumento na taxa de eliminação do ál-
utilizar o álcool como substrato na presença de excesso de cool, causada provavelmente por aumento da temperatura
peróxido de hidrogênio2. A atividade da catalase aumenta corporal ou pela liberação de catecolaminas.11
significativamente após uso combinado de álcool e atividade
física, tanto por liberação da enzima dos tecidos para o plas- A interação entre exercício físico e fígado apre-
ma, quanto por mecanismo compensatório para lidar com senta os seguintes achados9:
excesso de peróxido de hidrogênio.19
4. Reações de conjugação e síntese de acil graxos. 1) O exercício agudo reduz transitoriamente o fluxo
O etanol pode reagir com o ácido glicurônico formando sanguíneo hepático, mas parece haver recuperação do flu-
etilglucorinide e, com ácidos graxos, produzindo esteracil xo sanguíneo com o repouso, inclusive podendo aumentar
graxos, principalmente no fígado e pâncreas, podendo ser algumas horas após sua interrupção. Esse aumento poderia
tóxicos ao inibir a síntese de DNA e de proteínas. Se o meta- refletir inflamação, mas também serviria para reposição dos
bolismo oxidativo é bloqueado, a via de síntese de acil graxos estoques de glicogênio e aumento da depuração de triglice-
aumenta sua função.11 rídeos da circulação.
Mecanismos imunes também relacionam-se com o apa- 2) O exercício aumenta a liberação de glicose a partir
recimento e progressão da DHA.18 Os lipopolissacarídeos da glicogenólise e gliconeogênese para manter sob controle
derivados do intestino são um ponto crítico para esteatose a glicemia sanguínea e aumenta a oxidação da glicose para
hepática, inflamação e fibrose. O álcool favorece translo- obter energia durante o exercício prolongado. Após 90-180
cação bacteriana (gram positivas e negativas) por alterar a minutos de exercício aeróbio vigoroso, dependendo da dieta
barreira intestinal, aumentando níveis de endotoxinas cir- e treinamento do indivíduo, os estoques de glicogênio do
culantes que se ligam aos receptores de superfície CD14 nas fígado e músculo podem se exaurir. O aumento da glicone-
células de Kupffer. Essas células são ativadas precocemente ogêse induzida pelo exercício é estimulada pela redução da
na DHA, produzem espécies reativas de oxigênio, liberam secreção de insulina e aumento das concentrações de gluca-
citocinas inflamatórias, principalmente fator de necrose tu- gon. Existem muitas hipóteses concorrentes sobre gatilhos
moral – alfa (TNF-α) e podem ter um papel chave na pa- das adaptações hepáticas do metabolismo de carboidratos
togênese da lesão induzida pelo álcool. Portanto, disfunção durante o exercício agudo. Ainda não está claro, se alterações
na barreira intestinal, clereance alterado de endotoxinas ou hormonais, alterações na concentração substrato/metabóli-
alteração da composição da microbiota são alguns dos me- to, citocinas, espécies reativas de oxigênio ou alterações as-
canismos que podem explicar os altos níveis de endotoxi- sociadas ao fluxo sanguíneo hepático iniciam essas alterações
nas após exposição ao álcool, existindo evidências de que a metabólicas. Parece que o treinamento aeróbico induz adap-
tações metabólicas tanto em humanos, quanto em animais,
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auxiliando na homeostase da glicose durante o exercício moderada a vigorosa podem ter benefícios na sobrevida de
prolongado, incluindo aumento dos estoques de glicogênio pacientes com doença hepática. Esse benefício pode ser por
tanto no fígado quanto no músculo e fornecimento de car- efeitos cardiometabólicos favoráveis e influência no metabo-
boidratos por meio de maior metabolismo lipídico. lismo lipídico.26
3) Uma série aguda de exercícios tem pouco efeito O consumo crônico de álcool e o envelhecimento são
imediato no metabolismo lipídico e pode realmente os principais fatores que levam a redução das atividades das
aumentar levemente o conteúdo de triglicerídeos no fígado. enzimas antioxidantes hepáticas. O álcool reduz os níveis de
O exercício crônico pode mostrar up-regulation de enzimas superóxido dismutase, catalase, glutationa peroxidase, glu-
hepáticas e redução global dos níveis de gordura hepática, tationa redutase e glutationa, enquanto aumenta os níveis
havendo uma adaptação positiva, levando a redução dos tri- de malondialdeído no tecido hepático, sendo que o estresse
glicerídeos hepáticos. Durante o exercício agudo, pode haver oxidativo produzido pelo álcool em idosos é provavelmente
up-regulation de enzimas hepáticas e redução da expressão maior pela redução de antioxidantes que ocorre naturalmen-
de enzimas lipogênicas. Ocorre aumento da capacidade do te com a idade.27
uso de gordura durante o treinamento físico regular pelo Nesse sentido, o treinamento físico parece contribuir
músculo esquelético, sendo que, até o momento, parece para atenuar os danos oxidativos, com aumento do estado
que o fígado contribuiria muito pouco com essa resposta. O antioxidante hepático.19 O treinamento físico (30 minutos
treinamento físico também ameniza o hormônio lipolítico de esteira, 5 vezes por semana, durante 2 meses) conseguiu
em resposta ao exercício, estando associado com alterações reverter o aumento da peroxidação lipídica hepática e a re-
no metabolismo lipídeo/lipoproteína, associando-se ainda dução do estado antioxidante em ratos idosos (1 ano e meio
com a redução da quantidade de triglicerídeos estocados no de vida) induzidos pelo consumo de álcool por 2 meses (2g
fígado. etanol/Kg a 20%).28 Parece que a redução idade-dependente
4) Uma série de exercício agudo sustentado pode do sistema de depuração de radicais livres pode sofrer de-
aumentar a síntese protéica hepática, mas durante atividade terioração com o uso de álcool e o treinamento físico pode
prolongada, o fígado produz glicose a partir de aminoácidos auxilar na reversão dessa deterioração.29
liberados da musculatura esquelética para manter o controle O prejuízo no estado redox pode levar à lesão do DNA,
glicêmico. Já o treinamento resistido parece que aumenta a modificação protéica e peroxidação lipídica. O índice de es-
produção de proteínas do choque térmico e reduz a secreção tado redox sanguíneo reflete geralmente o estado redox cor-
de proteínas orexígenas, aumentando a concentração de al- poral e o estresse oxidativo pode alterar a permeabilidade da
bumina sérica. membrana e levar a hemólise como citado anteriormente. O
5) Durante o exercício agudo, pode haver up-regulation consumo excessivo de álcool está associado com redução da
dos sistemas protetores contra mutação gênica e choque tér- glutationa reduzida e aumento da GGT e substâncias tiobar-
mico e aumento de fatores de crescimento transformadores bitúricas ácido-reativas. O exercício agudo aumentou a res-
como a folistatina. posta das enzimas hepáticas em bebedores pesados, enquan-
Existem poucos achados epidemiológicos sobre o efeito to atenuou a resposta elevada antioxidante após o exercício
da atividade física sobre a DHA. Confirmar o efeito preven- físico agudo quando comparado ao grupo controle17. No en-
tivo da atividade física sobre o acúmulo de gordura hepáti- tanto, mais estudos são necessários para avaliar a verdadeira
ca para alcoolistas leves e pesados é uma informação muito relação entre o treinamento físico e a função hepática e não
útil para todas as pessoas, mas especialmente para aqueles apenas considerando o exercício agudo.
que não conseguem reduzir ou interromper o uso de álco- O estresse oxidativo induzido pelo exercício ativa as vias
ol.24 Além disso, a atividade física pode ter alguma influ- de sinalização que aumentam a expressão de antioxidantes e
ência positiva direta na patologia hepática, além da simples são também responsáveis pelo processo de adaptação indu-
modificação dos níveis de gordura no fígado e parece que a zida pelo exercício. Essa adaptação é influenciada por vários
intensidade da atividade física é importante para prevenir a fatores, incluindo o volume do treinamento físico, intensi-
progressão da doença.6,7,8,9 dade, frequência e modalidade do exercício.30
Porém, torna-se necessário salientar que a fadiga dificulta
a implementação e manutenção da atividade física regular
em pessoas com doença hepática avançada. Pacientes com Conclusão
cirrose apresentam capacidade aeróbica reduzida e menor A ingesta crônica de álcool causa danos tóxicos diretos e
força muscular que paciente saudáveis, parecendo haver cor- indiretos ao aumentar o estresse oxidativo, reduzir os níveis
relação inversa entre gravidade da doença hepática, indepen- de antioxidantes não-enzimáticos, reduzir a relação NAD+/
dente de sua causa, e a capacidade física.24,25 NADH, alterar a função mitocondrial, aumentar a peroxi-
O treinamento físico pode atenuar danos hepáticos oxi- dação lipídica e aumentar a produção de acetaldeído.
dativos induzidos pelo álcool e auxiliar na manutenção do Por outro lado, os exercícios podem ser uma terapia útil
sistema antioxidante. Sugere-se que o aumento da tempe- para melhorar a performance e capacidade funcional em in-
ratura corporal durante o exercício pode aumentar a ativi- divíduos com doença hepática, podendo ter alguma influên-
dade de enzimas hepáticas envolvidas no metabolismo do cia positiva direta, além da simples modificação dos níveis
etanol.19 de gordura no fígado. Parece também que a intensidade da
A atividade física moderada a vigorosa está associada in- atividade física é importante para prevenir a progressão da
versamente com mortalidade por todas as causas entre indi- doença, porém mais estudos são necessários para definir se o
víduos com história auto-relatada de doença hepática, sendo exercício físico pode restaurar a saúde hepática e qual seria a
que o uso de álcool e hepatite C parecem não influenciar quantidade e o tipo de exercício necessários.
essa relação. Ou seja, aumentos modestos na atividade física

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6 Interações entre exercício físico, álcool e fígado

Conflito De Interesses 14. Federico A, Cotticelli G, Festi D, Schiumerini R, Addolorato G, Fer-


rulli A et al. The effects of alcohol on gastrointestinal tract, liver and
Esse artigo é parte da Dissertação de Mestrado de Marina pâncreas: evidence-based sugestions for clinical management. Eur Rev
Silva de Lucca (UFV/MG). Os autores não possuem ligação Med Pharmacol Sci. 2015; 19:1922-40.
com indústrias do álcool, farmacêuticas ou esportivas, nem
conflitos de interesse com organizações que promovem au- 15. Schwartz JM, Reinus JF. Prevalence and Natural History of Alcoholic
xílio para o tratamento de dependência ao álcool. Esse traba- Liver Disease. Clin Liver Dis. 2012; 16: 659-66.
lho não foi financiado por indústrias das áreas mencionadas 16. González-Reimers E, Santolaria-Fernández F, Martín-González MC,
acima. Fernández-Rodrígues CM, Quintero-Platt G. Alcoholism: A systemic
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