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A HISTORIA NOVA Jacques Le Goff PUC SP - ORIGINAL PTA,_O3 Cite 8 fo2 Jia Martins Fontes Sao Paulo 2001 260 | our Bors rente ncomalthusiana representado um grande papel na aplicagéio ‘quantitativas: outro exemplo das ambigtidades s- ‘Como quer que seja, o que esta em jogo é bastante ificar certas impaciéncias. Z ‘O destino do materialismo histérico tem em comum com todos ‘0s outros processos histéricos 0 fato de ndo ser um movimento con- tinuo, mas, ao contrario, pontuado por saltos sucessivos. Ora, pre cisamente sua confrontacdo/confluéncia (somada a outros fatores) ‘com a “historia nova’” é de natureza a suscitar tal salto. O severo esafio que Ihe foi imposto faz dela uma obriga¢ao. Contudo, ao mesmo tempo, a inovacdo técnica traz ao marxismo ferramentas pre- ciosas para o desenvolvimento da sua capacidade cientifica. Cabe ale utilizd-las, sem deixar de ser si mesmo. A renovacao, nesse do- Jomo em muitos outros, passa por certa volta as origens. Guy Bois 3.1. LeGot 278.279. Paysans de Languedoc (Paris, Flammar ns, trajets maraistes en anthropotosie (0p. cit. 13, P. Vilar, in Aujourd'hui Phistoire (Paris, Editions Soc aque, “Problemes théoriques de I JEAN-CLAUDE SCHMITT A historia dos marginais A historia eta, antes de tudo, obra de justificagao dos progres- sos da Fé ou da Razao, do poder mondrquico ou do poder burgués. Por isso, durante muito tempo ela se escreveu a partir do “‘centro”. Os papéis representados pelas elites do poder, da fortuna ou da cul- ria dos povos se fa na histéria’ dindstica, ¢ a historia religiosa na da Igreja ¢ rigos. Fora dos grandes autores e das letras eruditas nao ha~ iteratura. A partir do centro irradiava-se a verdade, a qual eram comparados todos os erros, desvios ou simples diferengas — por is- 50, 0 historiador podia legitimamente situar no centro sua ambigao de escrever uma hist6ria “‘auténtica”” e ‘total’’. O que escapava ao seu olhar era apenas “‘resto”” supérfluo, “‘sobrevivéncia”” anacroni- c cio” cuidadosamente entretido ou simples “‘ruido” sobre va falar (Michel de Certeau)!. UMA NOVA FACE DA HISTORIA. — ‘Uma espécie de “revolugdo copernicana’” afeta hoje a escrita da histéria. Ela é sensivel ha uns quinze anos, ainda que se tenha preparado de mais lor mente abandona- da, a perspectiva tré imitada por sua opti partir do centro, é ivel abarcar com o olhar uma sociedade inteira ¢ escrever sua histria de outro modo que re- 262 ‘JEAN-CLAUDE SCHMITT produzindo os discursos unanimistas dos detentores do poder. A Fompreensio brota da diferenca: é preciso, para tanto, que se cru- Zem miltiplos pontos de vista que revelam do objeto — considera- Go. dessa vez, a partir de suas margens ou do exterior — miiltiplas faces diferentes, reciprocamente ocultas. Essa tomada de consciéncia da relatividade das perspectivas cien- tificas ndo é prépria da histéria, j4 que também afeta — ¢ em pi meiro lugar — as ciéncias fisicas e matematicas pés-einsteinianas, ow antropologia, preocupada em evitar a acusagdo de “‘etnocen- trismo"; as ciéncias humanas conhecem, a seu modo, uma espécie de “‘descolonizagao” interna, que certamente tem a ver também.com (0s esforgos de emancipacao do terceiro mundo. =" "Por tras dessa historia invertida, ¢ ao mesmo tempo fragmen- tada — jd que, fazendo-se pelos indicios, ela multiplica os pontos de observagdo —, também surgem os problemas materiais ¢ a crise ide consciéncia da sociedade em que se escreve. Claro, essa nova his- toria se explica largamente pelo desenvolvimento progressivo da pré- pria disciplina, cada vez. mais orientada, a partir do perfodo entre fs duas guerras, no sentido de uma “‘histéria social”, preocupada ‘em analisar, nao raro com ajuda de métodos quantitativos, as dife- rencas de comportamento das massas. A simples critica dos docu- ‘mentos “seriais”, que ela utiliza, obriga a colocar o problema dos excluidos e dos mudos da hist6ria tradicional: como utilizar um re- gistro fiscal para reconstituir a populaco de uma cidade, quando dele s6 constam os nomes dos que pagavam efetivamente 0 impos- to? Qual era a proporgao dos que nada tinham ¢ qual era seu peso na vida da cidade? Todavia, o interesse dos historiadores pelas mar- ‘gens deve-se ainda mais, sem duivida, & evolucdo de sua prépria so- ciedade. J4 no século XIX e no inicio do século XX alguns historia dores debrucaram-se sobre os vagabundos ¢ os criminosos do pas- sado: eles sofriam a dupla inspiragdo de uma tradigdo literaria com viva inclinacdo pelo exotismo social — essa tradigdo remonta ao Re- rnascimento, tendo os romanticos Ihe dado nova vida — ¢ estudos juridicos e estatisticos sobre a criminalidade contemporanea. En- tretanto, pesava sobretudo 0 peso das massas desarraigadas pela revolucdo industrial, frescamente urbanizadas ¢ facilmente desqua- - Tificadas. Alids, colocava-se o problema de uma continuidade entre a arraia-mitida, 0 popolo minuto, das cidades do Antigo Regime ¢ a classe operdria do mundo capitalista vel uma mesma relagdo entre as dificuldades da econo- E sensi mia ocidental entre as duas guerras, os efeitos politicos e sociais da crise de 1929 — basta pensar em “*Vinhas da ira’” ou no teatro de Brecht — ¢ o desenvolvimento, sobretudo Hos Estados Unidos, dos A HISTORIA DOS MARGINAIS. 263 estudos sociolégicos sobre a ‘“‘marginalidade social’’. Sem diivida, entdo era cedo demais para que a nova historia social, ainda jovem, logo pudesse integrar as contribuigdes dessas pesquisas sociolégicas: podemos notar, a titulo de referéncia cronolégica, que a criagao dos ‘Annales, revista de histéria econdmica e social que iria desempenhar ‘um papel importantissimo no desenvolvimento das novas problema- ticas, também data de 1929. No entanto, depois da Segunda Guerra indial, mais precisamente a partir de 1968, impde-se nos estudos histéricos a mudanga de orientagdo de que falamos, ao mesmo tem- po que uma nova palavra, os ‘‘marginais””, dada pela primeira vez ¢ simultaneamente como substantivo na imprensa € nos trabalhos dos historiadores. Tal coincidéncia nao € tao freqiiente: ela merece ser explicada. Que é um marginal? simples uso dessa palavra evoca 0 poderoso movimento de contestagio que, primeiro nos Estados Unidos, depois na Europa, atingiu os valores mais bem estabelecidos da civilizagéo judaico- cristé, do mundo capitalista e, mais geralmente, das sociedades in- dustriais e burocréticas: sucessivamente, ‘‘beatniks”” e “hippies”, “comunidades” e ‘“ecologistas”” atacaram, em suas declaragdes © seus comportamentos, a moral sexual tradicional e a instituicao da familia, a ética do trabalho ¢ a ideologia do progresso, a lei do lucro, os desperdicios da sociedade de consumo e a polui¢do de uma indiistria invasora. Essa marginalidade consciente e contestataria — cujas formas variam da simples impertinéncia‘ou da ndo-violéncia dos pacifistas aos “‘acontecimentos”” de Maio de 1968 — apenas re~ vela ¢ denuncia, por vezes, tipos de marginalidade ou de excluséo menos abertamente provocadoras, cotidianamente suportadas e no voluntatias, porém muito mais importantes, tanto pela quantidade de pessoas a que concernem como pela amplitude da injustica so- cial, inerente ao funcionamento das sociedades, de que so 0 teste- munho vivo: dos guetos negros da América do Norte ¢ da Africa do Sul as favelas do Brasil e dos ‘*trabalhadores imigrados”” da Eu- ropa. Os dois fendmenos so distintos ¢ de escala bem diferente, ‘mas, em ditima andlise, o sistema que esta em questdo é 0 mesmo. Alids, *“tomadas de consciéncia’” e ‘‘tomadas de palavra”” ganham novas categorias: ““Black Power”? americano, movimentos feminis- tas e comités de presos denunciam cada vez mais abertamente as di- 264 JEAN-CLAUDE SCHMITT versas formas de exploracdo, de dominagio ¢ de exclusdo, que ¢s- tao na base da reproducdo da ordem social. Niveis diferentes sio incluidos na nogio de marginalidade Expressas em bloco, essas poucas observagdes tém como tinico objetivo recordar, primeiro, que 0 historiador, conscientemente ou no, faz para o passado as perguntas que sua prépria sociedade Ihe dirige. : las também mostram a dificuldade de uma definicdo abstrata dos fendmenos de marginalidade. Contudo, a priori, varias nogdes podem ser distinguidas: a de marginalidade, que implica um estatu= to mais ou menos formal no seio da sociedade ¢ traduz uma situa- ‘go que, pelo menos teoricamente, pode ser-transitéria; aquém da Mmarginalidade, a noo de integracao (ou reintegracdo) que indica ‘2 auséncia (ou a perda) de um estatuto marginal no seio da socieda~ de; ¢, ao contrario, além, a nogdo de exclustio, que assinala uma ruptura — as vezes ritualizada — em relacdo ao corpo social. ‘0 contetido dessas nodes é de ser apreendido. Contu- do, podemos notar, com Bronislaw Geremek, que elas dizem res- peito a dois planos de realidades sociais que no coincidem necessa- Fiamente: 0 dos valores socioculturais ¢ o das relagdes socioeco- némicas?. Um individuo ou um grupo pode participar das relagdes, de produgao, recusando as normas éticas de su do excluido da hierarquia dos valores dessa sociedade. ‘Uma sociedade dada pode codificar as passagens da condicao de marginal a de excluido dar-Ihes a forma de um ritual — procu- raremos ndo esquecer a importancia dada 4 nocdo de margem na anilise dos “‘ritos de passagem’” que, segundo A. van Gennep, com- preendem sucessivamente trés etapas: de separagdo, de margem ¢ de agregacao. z ‘Serd preciso refletir também sobre a mafieira como esas con- digdes so assumidas: serdo elas apenas suportadas — nesse caso, com que grau de consciéncia — ou voluntariamente procuradas? N&O se deveria distinguir a possibilidade de uma marginalida- idual, ao lado da existéncia de grupos marginais? =~ Enfim, toda marginalidade sera necessariamente considerada I, rejeitada ao nivel mais baixo da hierarquia de valores pelos que ‘am? Nao haverd também formas de marginalidade “po- sas"”? E evidente que essas interrogacdes carecem de signi nao forem postas prova das realidades, numa sociedade his A HISTORIA DOS MARGINAIS 265 dada. A escolha da Europa Ocidental do século XI ao XVIII se nos impde ao mesmo tempo por razdes de especializacdo pessoal e por- que, nesses tiltimos anos, importantes estudos fizeram avangar de modo consideravel, em particular nesse contexto, a histéria da mar- sinalidade. AS MARGENS DO MUNDO Nao é preciso discutir longamente aqui sobre a unidade rica da sociedade européia durante tao longo perfodo. Contentar- nos-emos-com notar a permanénci ao de certo nuimero de tracos estruturais: preponderdncia da agricultura sobre todas as demais at jcas; permanéncia das relacdes de pro- dugao caracterizadas, sobretudo, pela perenidade dos vinculos de dependéncias entre os homens; lento desenvolvimento, a século XF, das cidades e da economia artesanal e mercantil tAncia considerdvel, em todos os pontos, da religido ¢ do poder ideo- légico da Igreja; desenvolvimento do Estado desde o fim da Idade Média: Enfim, por uma série de ‘‘crises"” sucessivas que represen- tam sucessivas modificacdes de estruturas, novas relagdes de pro- ducdo — capitalistas — nascem dessa sociedade e se afirmam nos _ séculos XVIII ¢ XIX. As terras desconhecidas, um alimento para a imaginacao coletiva E essencial notar que esse mundo, durante muito tempo, soube- se limitado em seu espago. Para utilizar a palavra ‘‘margem”” em seu sentido original, esse espaco é “‘limitado"’. Ble & cercado de ter- ras e de mares desconhecidos, cujo conhecimento se esfuma progres- sivamente 4 medida que se afasta do centro: reservatotios de “‘mirabilig’’, de maravilhas e pr este, a Islandia, onde os aukores do século XII situam uma das pos- siveis bocas do purgatério, e ainda a Irlanda, 0 Pais de Gales, em {que os romanos corteses siquam o reino de Artur ¢ a demanda do Graal. Porque esse vago que cerca as terras seguras, do mesmo mo- do que a margem — exprestio dos copistas da Idade Média — cer- cao texto ¢ limita a pagina| alimenta uma imaginacao coletiva cu- jos excessos 0 descobrimerto progressivo da Terra nao consegue exaurir: ela povoa as costas|do oceano Indico (representado f do, em vez de aberto), 0 pals dos negros etiopes e, depois, as dias Ocidentais”” — nossas Américas —, de monstros que desafiam 266 JEAN-CLAUDE SCHMITT a raz (embora também sejam tidos como produtos da criagdo de Deus) ou de Bons Selvagens que parecem ignorar o Pecado. Na ver- dade, so suas fantasias que os europeus projetam nesse “‘horizon- te onirico” (Jacques Le Goff), mundo ao revés em que reinam 0 ouro, a abundancia e a liberdade sexual — nesse paraiso perdido, ‘a nudez, 0 incesto ¢ o erotismo so coisas “‘naturais’”?. Todavia, ‘esse jogo de espelhos nio é inocente: desde as margens do mundo le remete ao Amago dos conflitos religiosos e sociais das imagens que, viradas do lado correto, transformam-se em cenas de vilezas, nas acusagdes que visam os heréticos. Na penumbra de suas “‘ca- vernas” € no segredo das “‘seitas’”, irmaos ¢ irmés, filhos mies, ‘acaso no misturam seus sexos? Sem chegar a esses confins imagi- narios, 0 espaco conhece outros limites mais: como outrora a ““Ro- mania” se definia opondo-se aos barbaros, a cristandade ocidental, conforme as épocas, estd cercada de “pagai escandinavos, ‘0s htingaros da 2, sobretudo, de (os mugulmanos). Com esses tiltimos, nao hd contatos regulares, salvo, precisamente, nas margens geosrafi- cas ¢ culturais que constituem a Espanha, a Sicilia, a Terra Santa. Porém, a marginalidade logo se transforma em exclusdo: a cons magao da Reconquista espanhola a oeste, a perda dos Estados I tios do Oriente e o avango turco a leste apagam, na época moderna, (© vago das fronteiras medievais: com 0 “‘barbaresco”’, corsari saqueador do litoral, ndo h4, a partif de entdo, outro didlogo possi- vel senio o das armas. Fronteiras internas Margens, ou antes marches {marcas}, zonas fronteiras, para em- pregarmos uma expresso da época, 0 Ocidente conta sobretudo um niimero infinito delas no préprio interior de seu espago. Esse espa- 0 6 dos mais fragmentados: nao ha “economia de mercado” capaz de unificar todo o mundo conhecido, a despeito de um comércio distante mas que s6 envolverd produtos bem particulares, afifes de ‘mais nada as especiarias: Assim, a palavra “marche” (marca, fron- teira) tem iniimeras acepgdes, que mostram varios espacos justapos- tos ino tem suas marcas (na época carolingia, so zonas interme ‘conquistadas dos pagios e confiadas a um conde ou a um “‘marqués”), ¢ um simples dominio senhorial tem as suas, como atesta essa cléusula de uma doago do século XV! “Item cent arpens de bois, que haies, que buissons, que frisches, A HISTORIA DOS MARGINAIS 267 que Marches, etc.”"*. Avancando ou recuando sucessivamente a0 sabor da extensdo varidvel das culturas, essa fimbria de matos e bos- ques separa o mundo dos homens — aldeias e cidades — do mundo selvagem: a “‘inculta floresta’”” dos romanos corteses, 0 espago no domesticado, reftigio da caca, de seres demoniacos e de bandi mas a floresta é varada por clareiras onde trabalham os carvoeiros e rezam 0s eremitas retirados para o ‘“deserto”, esses marginais por exceléncia da cristandade medieval: em sua descrigao do Pais de Gales do século XII, Giraud de Bari diz explicitamente que os que vivern nessas clareiras, a maneira dos eremistas solitarios, vivem “A margem (in margine) das florestas”. E ‘Afhures a floresta cede fugar & landa e as montanhas. No en- tanto, também ai se anima toda uma vida marginal: a dos pastores, que levam os rebanhos dos aldedes, mas cujo isolamento prolonga- do, a companhia exclusiva de seus animais ¢ 0 conhecimento de um saber de que os demais séo exclufdos envolvem de um halo de mis- tério e levam a comportamentos anormais*: no inicio do século XIV, entre a Catalunha, a alta Ariége ¢ 0 Roussillon, os pastores divulgam, ao ritmo dos chocalhos e dos passos das ovelhas, a here- sia dos cétaros. Em sua vida sexual, os homens também se adaptam a época de “Pai patrdo””S na Sardenha contem- pordnea, a ide” € seu maior pecado. Mais perto dos locais habitados, nas margens das cidades ¢ das aldeias, eis enfim os moinhos que rodam na corrente do rio ou no vento das colinas. O moleiro, dono de um saber 5 tério ou, na maior parte dos casos, arrendatdrio da mais imponente ¢ mais poderosa maquina da sociedade tradicional, também” um. marginal’. Nao é um acaso 0 fato de, as vezes, ele se achar asso- ciado a heresia. Carlo Ginzburg péde reconstituir recentemetite, a partir dos arquivos da Inquisi¢ao italiana do século XVI, a cosmo- logia que um deles havia forjado, com empréstimos tomados, a0 mpo, das representagdes da cultura popular e das migalhas fa erudita que haviam chegado até ele”. Recusa e rejei¢do dos marginais XI ao século XIIL, a Europa Ocidental vive um con- junto de mutagdes econdmicas, demograficas, sociais ¢ intelectuais TE cambém cem arpentos de bosques, sebes, matos, terras incultas, marcas, ate. (NT) 268 JEAN-CLAUDE SCHMITT de primeira importancia. Os reajustes mais ou meno: festrutura social provocam novos fendmenos de marginalizaca também permitem a integragdo de todas as espécies de marginalida- des cujo papel ¢ essencial na constituigdo- dessa nova sociedade. ‘As‘cidades, focos de marginalidade na sociedade feudal Num mundo em que, desde o fim da Antiguidade ¢ as invasdes barbaras, o campo e as vastas extensdes florestais haviam recupera~ do todos os seus direitos, 0 renascimento das cidades é um aspecto essencial dessas mutacdes. Por suas atividades, sua aparén- jitantes, seu direito, a cidade é, antes de tudo, na si po margi porém, que os hi iguns marginais possam ter repre- des: ‘“pés pocirentos’” — comerciantes sentado na criagao das ci sem vinculos que perambulavam ao sabor das estradas —, estran- de eman- geiros, servos, fugitivos que depositavam suas esperan¢s cipagdo no “ar da cidade”. Em todo caso, o desenvol cidade estimula e supde a atividade de novos grupos social vvistos com grande suspeita, mas cuja pressio acaba subver- tendo a hierarquia social ¢ a escala de valores. ‘Na alta Idade Média jé pesavam sobre diversas atividades “‘ta- bus”? que subsistem apés 0 ano mil, carregando-se ao mesmo tem- po de novos contetidos sociais. No leque amplamente aberto dos icios urbanos, certas atividades sdo julgadas desonestas (merci- inhonesta), ainda que, concretamente, elas representem um na economia urbana. Sao as profissdes de acouguei- To, esquartejador de animais, carrasco, que péem em contato com © sangue. Em certas cidades, ¢ significativo que a casa do carrasco ada contra a muralha, mas do lado de fora da cidade. Os Jacionados & impureza também conhecem o mesmo des- também, os operdrios da indtis- parecem macula ‘éprio nome de tecelao torna-se sinoni- mo de herético. Oficios suscitados pelo desenvolvimento das trocas, _mas que supdem a manipulagdo corruptora do dinheiro, também inspiram desconfianga ¢ reprovacao: ss, sobretudo 0s istas, todos eles chamados de ““usurdrios”’. Pesa contra cles mais outra acusacdo: eles especulam com 0 tempo, vendem-no de certa forma, enquanto o tempo pertence a Deus. A cidade desen- volve outros comércios: o da prostituta, que encarna, aos olhos da A HISTORIA DOS MARGINAIS: 269 Igreja, 0 vicio da luxdria ¢ vende os encantos de seu corpo, obra de Deus. Ha, enfim, os que s6 vendem palavras e saber: primeiro, 0s homens de lei, os advogados, cujo comércio fraudulento ja ¢ de- nunciado por uma coleténea de adivinhas do século XV: ““Pergunta: Quem é a gente que vende mais caro no mundo © que todos os dias Ihes é dado? Resposta: (0 0 advogados e procuradores, que vendem caro sua pala ve No entanto, a acusagio diz respeito sobretudo aos * ue, estranhos as escolas monésticas e desprovidos de tém como de subsisténcia as gratificagdes de ‘A marginalidade desses mestres se inscreve néo apenas no contetido de seu pensamento — sabe-se 0 que custou a Abelardo —, mas tam- ‘bém no espaco de seu ensino: em Paris, tendo saido da ile deda ‘ou da escola do Chapitre Notre-Dame, mestres ¢ se espa- Tham em cima das pontes’, antes de conquistar a colina Sainte- Genevieve. A grande integracdo pelo trabalho Nascidas da cidade ou desenvolvidas por ela, a maioria dessas atividades ndo tarda, na verdade, a se integrar a seu sistema de va- lores. Antes de mais nada, gracas eclosdo de uma ideologia do trabalho. Mas embora esta per junto de categorias Giedade urbana, ela prépr zago e até a exclusio de outras categorias julgac de entdo} : O trabalho, como o entendemos hoje ¢ desde aquela époéa, até ento nao tinha nome. As palavras que mais se aproximavam-dele (labor, opus) acentuavam sobretudo a pena fisica e moral, conse- qiiéncia do Pecado ofiginal, ou na methor das feita a Deus de todo esforco (0 opus Dei, ges). Todavia, gracas ao recrudescimento dos intercambios comer- ciais, a uma maior divisdo do trabalho, sobretudo na cidade, A pres- so de novas categorias profissionais, logo se revela ter 0 trabalho Dai a po: prar o trabalho dos outros em troca de dinheiro. Dai também a ne- cessidade de reler as Escrituras para encontrar em So Paulo a legi-

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