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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ


INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

Corpos-em-arte:
O QUE PODEM OS CORPOS
NO PROCESSO DE VIVER O ?

BELEM PARÁ
2019
1

ÉRICA DE NAZARÉ MARÇAL ELMESCANY

Corpos-em-arte:
O QUE PODEM OS CORPOS
NO PROCESSO DE VIVER O ?

Tese apresentada ao Programa de Pós-


graduação em Psicologia (PPGP) do
Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas (IFCH) da Universidade
Federal do Pará, como requisito para
obtenção do título de Doutorado em
Psicologia.

Orientador: Prof. Dr. Pedro Paulo


Freire Piani.

BELEM PARÁ
2019
2

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo


com ISBD Sistema de Bibliotecas da Universidade Federal do Pará

Gerada automaticamente pelo módulo Ficat, mediante os dados fornecidos


pelo(a) autor(a)

E48c Elmescany, Érica de Nazaré Marçal.


Corpos-em-arte: : o que podem os corpos no processo de viver o morrer? / Érica
de Nazaré Marçal Elmescany, . 2019.
169 f. : il. color.

Orientador(a): Prof. Dr. Pedro Paulo Freire Piani


Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Instituto de Filosofia
e Ciências Humanas, Universidade Federal do Pará, Belém, 2019.

1. Corpo. 2. Arte. 3. Fragilidade. 4. Cuidado. 5. Cartografia. I. Título.

CDD 150
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4.3
O cuidado instaura um novo corpo

Figura 35: Tirai a pedra, Elmescany, 2017.


127

Tenho, no meu jardim, um pé de rosmaninho. Ele é, em tudo, igual a


todo os outropés de rosmaninho que há por este mundo. Aquele cheirinho
gostoso, quando a gente esbarra nas folhas; brancas, com uma gota de rosa,
milhares de florinhas, quando chega o tempo; e as abelhas sem contar que
ajuntam e zumbem. Gosto de me deitar na rede, perto dele, quando as noites
são frescas e há aquela brisa. Às vezes descubro que estou conversando com
ele e já cheguei mesmo a agradar as suas folhas, como se ele sentisse. Nunca
se s
Igual a todos os demais exceto uma coisa. Foi meu pai que me deu a
mudinha, galho lascado, faz tempo. Meu pai morreu. O rosmaninho guardou o
seu gesto. Como se, do arbusto, saíssem fios de memória que ligam a alguém
que já não está mais presente. Fios, claro, que ninguém vê. Só eu. Ou aquele
a quem eu quiser revelar este segredo.
O espaço em torno daquele rosmaninho é mágico - para mim, que vejo os
fios. Os amigos, que não sabem o segredo, sentem o perfume, vêem o verde. Se
eu lhes perguntar sobre o arbusto me dirão que o estão vendo. Sua fala me
repetirá sobre aquela presença silenciosa e fiel: o pé de rosmaninho. Mas
não sairá daí. A boca está prisioneira dos olhos. Pregada no chão. Faltam-
lhe as palavras que lhe permitiriam voar. Somente eu, a partir do rosmaninho,
poderei falar de uma ausência: alguém que não está ali, que já esteve. E da
planta pulo para um rosto; e me lembro de risos, alegrias, tristezas. É por
isto que o espaço em torno do rosmaninho é mágico. A memória faz a imaginação
voar, e ela enche o ar com coisas humanas, que têm a ver com a amizade e a
lealdade dos muitos anos vividos juntos.
Coisa bonita esta: que haja coisas que são mais que coisas; coisas que
nos fazem lembrar. A flor seca dentro do livro. Às vezes, um perfume que a
gente sente, andando na rua. E, lá no fundo, vem a estranha sensação de
estarmos ligados, por aquele perfume, a alguém, a algum lugar, longe, no
passado. O repicar de um sino, que me leva para mundos onde nunca estive. O
cantar de um galo, que nos vem de espaços que não mais existem. Ou um
brinquedo, uma boneca velha, esquecida. Uma comida, com gosto de saudade.

Sentir que algo está faltando, alguém, que o coração deseja, está longe. Mas
não basta a ausência. Há muitas coisas que se perderam e ficaram para trás,
das quais não sentimos saudade. É que a gente não amava. A saudade nasce
quando existe amor e ausência.
Quando as coisas despertam saudades e fazem brotar, no coração, a
memória do amor e o desejo da volta, dizemos que são sacramentos. Sacramento
é isto: sinal visível de uma ausência, símbolo que nos faz pensar em retorno .
Sacramento
Rubem Alves (1984)

A crônica de Rubem Alves revela uma pérola sobre a artesania dos


cuidados paliativos e sobre como o cuidado instaura um novo corpo. Os
corpos-rosmaninhos da menina esperança e da mulher-passarinho me
revelaram muitos segredos. A relação de cuidado que nos envolveu foi
mágica e sagrada. O processo de transformação e de consolo foi
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invisível aos olhos e convocou minha interioridade. Os detalhes, a


sutileza, o delicado, foram a base do memorial de espera construído
com gosto de saudade.
Os encontros inauguraram marcas em nossos corpos, fomos
transformados a todo instante; oisas
que são mais que coisas, são coisas que nos fazem
de cuidados se tornaram sacramentais. Deles brotaram fios de memórias
e palavras que permitiram voar, descobrir sentidos e formar um novo
corpo em nós. Ficamos ligadas pelo mundo das ausências.
Nessa experiencia nos tornamos parte uma das outras, guardiãs do
sagrado. Nós (eu, elas, o cuidado envolvido, os encontros) nos
transformamos em sacramentos. O convívio, os laços, a espera, os
territórios e paisagens afetivas entraram nas nossas vidas. A
sacramentalidade habitou entre nós.
Apoiada nessa experiência, reconheço os cuidados paliativos
semelhante a um trabalho de artesão, um processo de criação de
sacramentos, fio a fio, que leva tempo, que acompanha o ritmo e o
processo num outro espaço-tempo e se estabelece em encontros. Envolve
um olhar atento, um silêncio que guarda a intimidade e um investimento
naquilo que importa para o outro.
Manejado pela suavidade, esse modo de paliar instaura uma
qualidade de presença que aproxima forças e dá voz às expressões de
afetos. É uma tessitura marcada pela dinâmica de afetar e ser afetado
e pela busca de uma paisagem de acolhimento.
Os cuidados artesanais encontram ressonâncias no conceito sobre
Cuidados Paliativos mais atualizado da Organização Mundial da Saúde
(WHO, 2017).

Cuidado paliativo é uma abordagem que melhora a


qualidade de vida das pessoas (adulto, adolescente,
criança) e seus familiares quando enfrentam problemas
inerentes a uma doença fatal. Previne e alivia
sofrimento através da identificação precoce,
avaliação e tratamento da dor e outros problemas
sejam físicos, psicossocial ou espiritual (WHO,
2017).
129

O termo Paliativo em latim Palliare


e metaforicamente refere-se a acolher, acalmar, amparar, abrigar,
abrandar, numa alusão à essência dos cuidados paliativos. A palavra
manto em latim significa Pallium, capa ou manto de lã que cobre os
ombros, usado pelos antigos gregos e romanos. Lembra a figura da ovelha
sendo acolhida por seu pastor em seus ombros.
Inspirada no cuidado artesanal pensado por Oliveira (2016), no
contexto da saúde mental, busquei neste ato de criação ressaltar
aproximações desse modo de cuidar artesanal para a realidade vivida
em cuidados paliativos, levando em consideração que os seus
dispositivos terapêuticos também são afetados pela experiência
existencial de quem os propõe. É representado como um cuidado que não
objetiva tratar, mas aumentar a potência de agir dos corpos ao
valorizar o acolhimento e as verdades do corpo:

A artesania do cuidar, nesse sentido, revela uma


realidade flutuante, impermanente, que se faz e
refaz, representando uma escolha que resulta de uma
dilatação, nutrida do tempo, expressando nosso ato
criativo, nossa capacidade singular de inventar,
nossos e do mundo, um saber de uma confiança na vida
e na possibilidade de criarmos saídas, outros

(OLIVEIRA, 2016, p. 124).

Para Oliveira (2016, p. 112), esse modo de cuidado delicado


transborda pelos e
instaurando um modo de ser no mundo diante da doença e do sofrimento.
A sutileza do tempo vivido nos encontros se estende e vibra nos corpos,
onde novos afetos ganham força, a dor e o sofrimento ficam impregnados
de novos sentidos, e a atenção se direciona para o que está vivo dentro
de nós.
O tempo sutil é um tempo oportuno, algo novo que ultrapassa o
tempo dos relógios e acontece nos encontros, um tempo que acalma e
acalenta. Nele, o corpo todo é envolvido no processo da temporalidade
que não tem pressa (OLIVEIRA, 2016).
130

No encontro com a mulher-passarinho eu senti que seu silêncio e


lentidão me acalmaram. Eu diminui o meu passo e debrucei-me no seu
para me permitir envolver-me numa relação de confiança. Costurei
minhas experiencias com as suas e precisei reaprender o silêncio, as
respirações mais lentas, as pausas. Fui aprendendo a conspirar, com-
inspirar, respirar junto com ela. (Diário de implicação, 17 de março
de 2017).
Esse cuidado orgânico e flexível reconhece o saber e a potência
do corpo e está atento ao pulso vital, à vitalidade e à fragilidade.
Nesse processo é essencial estar presente e falar a linguagem do
sofrimento do outro, a fim de lhe transmitir segurança e confiança.
A sutileza, a delicadeza e a leveza ganham força no cuidado
artesanal daqueles que vivem na iminência da morte no contexto dos
cuidados paliativos, uma vez que a tessitura acontece na intimidade
das relações e repousa num olhar poético sobre a vida, no plano dos
tempos sutis e das paisagens acolhedoras. Para Oliveira (2016):

Construir uma paisagem acolhedora é mostrar-se


disponível ao outro com suas emoções, é proporcionar
a sensação de que naquele espaço-tempo, pode-se dizer
falar, calar, sorrir, estar (OLIVEIRA, 2016, p. 44).

Baseada nas reflexões de Oliveira (2016), Saunders (2018) e


Arantes (2016), considero que em cuidados paliativos, os cuidados
artesanais acompanham a poética da vida e são permeados por elementos
que os compõem: o acolhimento, a escuta sensível, atenção, formação
de vínculos, produção de intensidade na vida.
Para um mergulho na intensidade do vivido nesses cuidados
artesanais busco inspiração na concepção chamada por Bondía (2002) de
gesto de interrupção, para me referir a um modo de encontrar com o
outro, numa travessia de um antigo a um novo modo de viver:

A experiência, a possibilidade de que algo nos


aconteça ou nos toque, requer um gesto de
interrupção, um gesto que é quase impossível nos
131

tempos que correm: requer parar para pensar, parar


para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar,
olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar
para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos
detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo,
suspender a vontade, suspender o automatismo da ação,
cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e
os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender
a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do
encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo
e espaço (BONDÍA, 2002, p. 24).

Esse modo de viver proposto por Bondía (2002) tem sintonia com a
experiencia da artesania de cuidado no final da vida. O gesto de
interrupção se dá no espaço ritual e sagrado do encontro e o cuidado
acontece como uma experiência que nos toca e modifica algo em nós. É
um ato em defesa do silêncio, da lentidão e da espera, em favor do
cultivo da atenção e da delicadeza na arte do encontro.
A proximidade da morte foi uma mola propulsora para criação de
inúmeros gestos de interrupção na vida da mulher-passarinho e na vida
da menina-esperança. Diante da dor e do sofrimento elas encontraram
maneiras novas de mudar a rota da vida. novos caminhos, novos modos
de viver. Foi um encontro com a flexibilidade, a adaptabilidade, com
a delicadeza e com uma nova qualidade de atenção ao momento presente.
Nós pensávamos que a hora do passarinho havia chegado, mas eis
que ele respirou fundo e tomou uma decisão: voltar ao artesanato.
Pediu para ser levado para sua sala-ateliê. Ela quis sair de suas
paralisias. Eu propus que começássemos a pintar um manto juntas. Esse
manto era um tecido de cor branca, que era bem frágil e facilmente
desfiava, como era o seu corpo. Todo dia em que nos encontrávamos
surgia a ideia de algo novo para pintar. Começamos pintando uma pequena
flor. Aos poucos surgiam tantas outras flores, frutas, sorvete, pizza,
sol e chuva, até que um dia ela mesma se desenhou com sua cadeira de
rodas e começou a artesanar a trama da sua vida nos fios do invisível.
Não era um simples desenhar e pintar. Ela comunicava elementos do seu
cotidiano, seus desejos estavam impressos ali. Pintava as dores
escondidas no esquecimento. Mesmo que porventura os desenhos nada
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quisessem expressar, o ato de dar cor ao tecido já era transformador.


Sair de seu quarto, lutar para movimentar os pinceis, permitir-se
criar, pensar em algo novo (que fosse diferente de dor e do
sofrimento), sentir-se valorizada, tomar pequenas decisões, aos poucos
tudo isso foi se tornando um ato de potência de vida (Diário de
implicação, dia 16 de dezembro de 2017).
Na vida da menina-esperança, o banho foi um grande acontecimento,
um verdadeiro gesto de interrupção no cotidiano dela. Literalmente,
existiu um desacomodação nesse processo, os móveis do seu quarto e do
seu coração mudam de lugar. Ela acabava um banho e ficava esperando
pelo outro. Eu fui entendendo que se banhar lhe trazia o conforto de
ser lembrada. O banho lhe quarava a alma da solidão e do desamparo.
Era um dos poucos momentos que tinha seu filho por perto. (Diário de
implicação, dia 28 de setembro de 2018).

Eu vou fazer aqui exercício para o banho. Quando o


meu filho chega toda depressão e solidão vai embora.
Assim eu não me sinto tão só (Menina-esperança,
Encontro poético, 19 de julho de 2018).

Sai a mesa e a cadeira. Eles me puxam paro meio da


cama, eu já sentada. A mamãe vai para mangueira, a
minha cunhada, uma ou outra vai colocando a mangueira
nas minhas pernas por que a água é fria e eu faço o
resto, me lavo toda, cabelo. Eles tiram todo o
lençol, foca só colchão. No final eles enxugam todo
o quarto com o rodo para água não ir para o quarto
da mamãe. O único móvel que está se estragando é o
guarda-roupa porque ele é todo velho. Mas entre o
banho e o guarda roupa eu prefiro o banho. Eu me
sinto leve depois do banho. Esses dias tem sido muito
quente. Me sinto mais leve após o banho. Quando estou
sem tomar banho meu corpo fica travado. (Menina-
esperança, Encontro poético, 28 de setembro de 2018).

Saunders (2018) considera que essa atitude acolhedora de cuidar


no final da vida é velar atentamente com outro, estar de corpo e alma
atento às suas necessidades quando a morte se aproxima. Baseia-se no
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respeito e numa atenção cuidadosa à angústia dele, uma expectativa de


coragem, auxiliar a encontrar um novo sentido naquilo que está
acontecendo. Em suas
compreender qual tipo de dor lhe aflige, (...) e descobrir qual a

Quando ouvi essa palavra velar, no contexto dos cuidados


paliativos me recordei do dia em que a mulher-passarinho decidiu voar
à sua casa materna e gritou com coragem a sua decisão de onde gostaria
de morrer. A sua cuidadora, chamada abelha rainha, assistiu tudo em
silêncio, seus olhos não escondiam tamanho sofrimento. Só lhe restava
velar o passarinho até este momento. Entendi que amar também é deixar
partir.

Em um dos episódios de tamanha agonia o passarinho


chegou a gritar a vontade de voltar para casa da mãe.
Parecia querer viver o processo contrário: voltar a
ser criança, ao colo da mãe, às suas origens. (...)
A mulher-passarinho sentia que a morte estava perto.
Ela preferiu ir além. Talvez também quisesse poupar
a abelha rainha de vê-la partir. (...) O dia da
despedida foi inesquecível. A abelha estava com um
semblante desesperado ao ver a passarinho voar para
Viseu dia 11 de novembro de 2017. Andava de um lado
para o outro da casa, preparando tudo o que julgava
necessário para que ela ficasse bem. A sua cama
estava repleta de tudo o que ela jugava ser essencial
para a passarinho ter conforto: roupas, lençol,
fraudas, medicações, hidratantes. Mesmo diante da dor
da perda, assistia de perto aquela partida anunciada.
Doía o seu coração quando ela imagina as 8h de viagem
que a sua grande amiga e confidente iria enfrentar.
Tentou poupar-lhe de todo o modo desta agonia, mas
debruçada na janela da dor, o passarinho foi embora.
(Ato 2, Corpo inventado da mulher-passarinho, p. 35)

Saunders (2018) numa perspectiva de inspiração para uma vida em


cuidados paliativos -se à
atenção às dores físicas, às psicológicas, às sociais e às espirituais,
concebendo a dor de finitude como uma dor da ordem do indizível.
Nesse modo de pensar, Saunders (2018) considera as necessidades
das pessoas, e como elas gostariam de ser cuidada, aborda o cuidado
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não apenas com eficiência, mas com compaixão. Especificamente, a


questão da fé é proeminente na sua concepção sobre os cuidados
paliativos e destaca que, para cuidar da dimensão espiritual do outro
precisamos desenvolver a nossa sensibilidade e o próprio senso de
espiritualidade.
A menina-esperança me ensinou muito sobre a vida comum, com ela
entendi a fé de uma maneira diferentes. Ela tinha uma confiança
amorosa, a sua fé dava substancia às suas esperanças. Eu me
impressionava com sua determinação de seguir em frente com convicção
e de viver uma experiencia de eternidade ainda aqui nesta terra. Um
certo dia ela me confessou o desejo de arrumar uma mala. Foi como se
a (Diário de
implicação, 28 de março de 2018).

Quero também comprar uma mala grande para colocar


minhas coisas dentro quando eu ficar internada. Eu
colocaria meus remédios e tudo o que eu preciso. Na
grande só duas camisolinhas, 3 lençóis grossos, meu
sabonete, toalha, escova de dente, shampoo. Agora não
estou tendo mais paz, vira e meche estou tendo dor.
Quero me prevenir porque na hora do sufoco só está
eu e a mamãe. Aí tenho que ligar para todo mundo e
nem todo mundo está disponível. Ligo para 192, mas
as vezes demora. Eu já conheço quando é a dor que
tem que ir para o hospital: eu tenho que tomar
morfina, eu não falo muito, falo prendendo, fico mais
quieta (Menina-esperança, Encontro poético, 28
março/2018).

Diante disso, posso afirmar que na arte do encontro o corpo sofre


a ação de outro corpo. Os corpos de modificam e compõem com o outro.
E quando estamos presentes nos momentos sagrados da sua vida, vivemos
a experiência de nascer de novo, mesmo quando o corpo biológico está
morrendo. Os encontros germinaram encontros, onde um corpo morre e
outro nasce.

Dessa forma, cada encontro é a possibilidade de


criação e invenção de outros mundos. Dar visibilidade
a esse plano significa promover estratégias de
produção de saúde (outros mundos de ação de saúde e
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cuidado), como produção de encontros aumentativos de


potência que ampliam e produzem vida no sentido
intensivo, como forma de vida. Vida como criação e

Franco e Merhy (2013) defendem que as relações são fundamentais


na produção de cuidado e que o trabalho em saúde é sempre relacional
pois depende do trabalho vivo em ato. O mistério dos encontros
intervém sobre a produção da subjetividade, aumenta autoestima e
promove, criativamente, a autonomia para viver a vida.
Arantes (2016) considera que o encontro com alguém que está
morrendo envolve o conhecimento dos nossos limites e o que somos
capazes de fazer, até onde podemos ir. Por isso, precisamos estar
atentos a nós mesmos, ao nosso autocuidado.
Eu e a mulher-passarinho pintamos nossos corpos num manto.
Criamos e recriamos a nós mesmos. O manto foi um lugar para pensar,
imaginar, onde imprimimos contornos de nossa subjetividade. Um
território que se fez na alma. Foi possível nos aproximarmos da memória
amarga inscrita nos tecidos antigos da nossa história, memórias do
passado e presente. Memória da descoberta da doença, das perdas, das
privações, dos medos, sonhos e fantasias. Foi instaurado um espaço na
alma de apropriação de si, de verdade e de resistência. Um dos últimos
dias em que pintamos juntas ela revelou um desejo escondido: ela queria
voar (Diário de implicação, dia 20 de junho de 2017).

Assim, seu corpo artista, pouco a pouco se expandia


e pedia mais. Eis que nasce o desejo de sair da sala
e passear na rua. É um momento de passagem. A luz da
sala já não lhe basta. Mesmo na cadeira de rodas e
com todas as reais limitações, a mulher-passarinho
deseja alçar voos maiores. Sua vontade mais uma vez
é sustentada pela família. Todos saíram do lugar. O
passeio apareceu nos seus desenhos como um
acontecimento. Ela pinta a sua cadeira de rodas, uma
pizza e um sorvete para nos dizer que está tudo pronto
dentro de si, que está preparada para voar de dentro
para fora. O passeio feriu o corpo da mulher. Ela
saiu da sua zona de conforto. Seu corpo se permitiu
ser tocado pelo vento, o pôr-do-sol foi um colírio.
Sensações, cheiros, cores, movimentos, afetos,
136

sabores, toques. Caminhos diferentes percorridos.


Encontro com pessoas desconhecidas. Um pastel enorme
de queijo saboreado e um sorvete com gosto de mel.
Novas memórias para o seu corpo (Ato 3, Poética do
Lugar, p. 85)

Nessa experiê
em relevo e o câncer torna-se apenas uma parte da existência.
de novos encontros, certas máscaras
tornam-
A nossa potência é alterada pelos encontros que experimentamos.
As experiências se diluem nesse modo de cuidar que potencializa o
corpo frágil. Sobre isso, Oliveira (2016) traz uma reflexão
interessante ao destacar que:

em meio ao sofrer e adoecer, a saúde e/ou a vontade


de potência puderam vir à tona, narradas em
experiências de criação, expansão e disponibilidade
às ofertas, em que o simples pôde irrigar
afetivamente algo que estava adormecido. Já as
intensidades experimentadas nos encontros compuseram
um plano de consistência, em que afetos tomaram
corpo, delineando um território, no qual todos
puderam se situar no acontecimento (p. 57).

Arantes (2016) destaca que quando cuidamos também nos


reencontramos conosco mesmo num ato de fazer-se obra, em contínuo
estado de criação de si. Redimensionamos nossa existência e passamos
a nos questionar como eu estou vivendo a nossa vida? Desse modo,
entramos em contato com o que há de mais profundo em nós. Nosso olhar
sobre o mundo e os sentidos das coisas se torna novo e também buscamos
conhecer os nossos valores mais profundos. Assim, nos apropriarmos da
nossa própria vida para cuidar de quem está na iminência da morte.

Acompanhar alguém nesse momento é a experiência mais


íntima que podemos experimentar junto a outro ser
humano. Nada pode ser mais íntimo do que compartilhar
com alguém o processo ativo de morrer (...). Naquele
momento, buscaremos o sentido de estar ao lado de
quem está morrendo; que está morrendo buscará o
sentido de estar ali; virão questionamentos dos
137

pesos, dos fardos, dos medos, das culpas, das


verdades, das ilusões. Tudo ali, exposto de um jeito
verdadeiramente nu (ARANTES, 2016, p. 93).

Uma das potências desse tipo de cuidado está na possibilidade de


invenção e de retorno à interioridade que dele se instaura: invenção
de si, dos entornos e do mundo. A força que existe na relação íntima,
singular, urgente (porque a vida está terminando) ativa a criação de
novas possibilidades e projetos de vida, novas intensidades e
corporeidade e a recriação permanente do modo de agir e existir, que
contribui para que o morrer seja menos temível. Sobre isso, Merhy e
Ceccim (S/d) destacam que:

Um encontro cuidador pode ser o disparador de


autopoieses? (...) estamos dando partida a esse plano
da humanização a construção de práticas de saúde
cuja contemporaneidade esteja na atualização de
processos intensivos de viver a vida. Viver a vida,
não apenas sobreviver ou, acima de tudo, estar vivo,
apesar da ausência de prazer, de compartilhamento,
de potência de si e de produção de entornos criativos
e audazes. A potência de si e de produção de entornos
criativos e audazes é o viver intensamente a invenção
do vivo, ou seja, daquilo que afirma a criação ou
que põe a vida como obra de arte da existência (p.
8).

Quanto a isso, Rolnik (1993) afirma que quando nos deixamos


estranhar pelas marcas do nosso corpo e criamos novos sentidos, aumenta
o grau de potência de vida em nossa existência. O encontro contorna o
processo de criação de um novo corpo.
Lapoujade (2002) consideram o corpo como território de encontros,
aproximações delicadas, um estado de presença que favorecer o abrir
as portas do encontro. Diante disso, posso destacar que o cuidado
nasce do encontro entre-corpos e que esta capacidade de afetar e ser
afetado manifesta a potência de vida que habita em nós. Franco (2013),
consoante com esta ideia, descreve que:
138

Um encontro que produz tristeza, reduz a potência de


agir para o cuidado (...). Se o encontro produz
alegria, ele aumenta a potência vital, é o caso do
usuário que produz vida em si mesmo, fazendo
autocuidado, procurando interagir com o mundo,
socializar-se (p. 248).

Para Favre (2004), O corpo é um continuum existencial que se


constrói na experiência, ou seja, é um processo vivo que se constrói
juntamente com as experiências dos acontecimentos. Nos encontros, os
copos se entrelaçam em contínua corporificação. Os acontecimentos
produzem corpos.
Eu vivi uma relação de cuidado mútuo com a menina-esperança. Ela
sempre se preocupava com algumas situações da minha vida. Seu modo de
ver o mundo com esperança também me alcançava. Ela me via com
esperança. Ela se lançou a cuidar de mim também. Um dia em que lhes
partilhei alguns de meus sonhos ela me olhou nos olhos e me consolou
. Hoje ela me
ligou dizendo que estava com muita saudade e que resolve escrever o
que sentia para não ser traída pelo seu esquecimento e que tivesse a
oportunidade de me dizer no nosso próximo encontro (Diário de
implicação, 14 de janeiro de 2019).

A pessoa que morre está nua, liberta de todas as


vestes físicas, emocionais, sociais, familiares e
espirituais. E, por estar nua, consegue nos ver da
mesma forma. As pessoas que estão morrendo
desenvolvem uma habilidade única de ver. Estar ao
lado de alguém que está morrendo é desnudar-se também
(ARANTES, 2016, p. 93).

O cuidado cria em nós um novo corpo, em nossa existência, em


nosso modo de ser e agir. São estados inéditos vividos em nosso corpo,

(ROLNIK, 1993, p.2). Um corpo novo resultante de atravessamentos


toques, vozes, encontros e de um olhar cuidadoso.
139

A subjetividade assim compreendida como esse lugar


vivo (...) onde os encontros se processam e se
condensam, gerando novos mapas do vivido e novas
formas somato-existenciais (...) pode adoecer,
perder potência formativa, sofrer, se desorganizar,
doer muito, não aguentar (FAVRE, 2004, p. 2).

Geramos corpos e inventamos um certo pulso de vida. Os encontros


nos ferem e nos instauram numa abertura para reativar o afetivo e a
potência criadora em nossos territórios existenciais, numa atitude
ético e política de resgate da poesia do cotidiano como força promotora
de dignidade. Pelbart (2013) nos provoca a pensar na delicadeza das
potências de vida possíveis, mesmo diante de situações-limite:

Mesmo no campo de concentração, mas também nos


contextos brutais de nossa contemporaneidade, não se
trata da vida biológica nua e crua, ou da vida
vegetativa, mas dos gestos, maneiras, modos,
variações, resistências, por minúsculas e invisíveis
que pareçam: eis o que compõe uma vida; eis o que

descobrir, inventar (PELBART, 2013, p. 409).

Deste modo, adoto nesta pesquisa o encontro como um dispositivo


de cuidado artesanal para criar novos corpos que vivem em cuidados
paliativos. Ao me permitir ser encontrada, recebi e ofereci cuidado,
descansei no abraço, na escuta, na atenção. E novas potências foram
inventadas.

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