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UEG – CAMPUS CAMPOS BELOS

Letras Português, Inglês e suas e suas respectivas literaturas

Deise Kelli, Marcio Pereira e Vinícius Braga 1

O amor: intertexto entre Carlos Drummond de Andrade e Bruno


Tolentino com um síntese em Camões.

Resumo:
No artigo que segue, procuramos tornar nítido a proximidade entre os poemas Os poderes
Infernais de Carlos Drummond de Andrade e o Como um presente? de Bruno Tolentino.
Ambos os poemas reproduzem o mesmo tema, diferindo-se apenas nos aspectos técnicos e
tonais os quais demonstramos ao longo da analise de maneira meticulosa, ressaltando a
posição um tanto quanto “otimista” de Tolentino diante da vida, em contraponto com a
irônica-agnóstica de Drummond. Explicamos que o termo “amor”, utilizado pelos dois poetas,
não é simplesmente o da clave homem-mulher, mas num sentido metafísico que submete a
vida a certa postura a qual mostramos que o eu-lírico de Bruno Tolentino se encontra de
acordo apesar das dificuldades da vida, suas contingências, assim como num soneto de
Camões e como Drummond é indiferente a isso tudo, mesmo estando cônscio.

Palavras-chave: Imitação, Carlos Drummond de Andrade, Bruno Tolentino, Amor e


Camões.

A noção de diálogo entre os textos literários está presente desde a antiguidade


clássica e sobretudo na Roma antiga, por volta dos primeiros e últimos séculos antes e despois
de Cristo, quando, com a recuperação da cultura grega antiga em Roma, ou melhor, uma
espécie de incorporação daquela cultura, os literatos dá época passaram a imitar diretamente
os antigos poetas gregos. Estabeleceu-se a regra básica de que um poeta só seria digno de ser

1
Vinicius Braga, Marcio Pereira e Deise Kelli, alunos do segundo período de
Letras Português, Inglês e suas e suas respectivas literaturas da Universidade Estadual de
Goiás – Campus Campos Belos- GO. Trabalho apresentado ao professor . Doutorando.
Edilson Alves de Sousa. Como forma de avaliação da matéria : Teoria Literária II.
27/11/2018. Contato: Vinyss32@gmail.com
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assim chamado, se este mostrasse que já havia de alguma forma incorporado as antigas
técnicas de composição. Então, a imitação dos grandes poetas tais quais Homero, Píndaro e
Safo etc., funcionavam, mais ou menos, como controle de qualidade da produção literária da
época, aquele que não imitava e mostrava na prática seu êxito técnico, não era digno de ser
saldado como poeta.
Então, é comum vermos textos de poetas daquela época que muito se assemelham
com textos de poetas gregos. Temos a famosa imitação de um poema de Safo feita pelo latino
Catulo em sua ode 51, além de incontáveis exemplos desse diálogo entre textos, como
imitações do poeta Horácio também à Safo, bem como referência ao próprio Homero em sua
“ Arte poética”; além do mais, se Roma havia de alguma forma incorporado à cultura grega,
com ela veio de brinde os deuses, por isso, nesse sentido, todas as referências mitológicas dos
poetas latinos fazem parte de um imenso diálogo com a tradição poética, um intertexto.
Não dá pra não citarmos o velho conceito, primordialmente platônico de Mimeses,
ou imitação, que segundo Aristóteles faz parte da própria constituição do homem ( de certa
forma, se pensarmos na educação grega antiga, em que se aprendia a ser cidadão por meio de
exemplos vindos do texto literário, perceberemos que a ideia de imitação como algo inerente a
alma humana, tornar-se-á cada vez mais nítida e precisa pois, a fundo, as ações do homem
grego eram sempre inspiradas num exemplo pronto do que seria uma exata forma de agir.
Mas, será que não foi sempre assim, e ainda o é? Ou seja, a imitação é mesmo parte da
estrutura do homem? ). Na história do Ocidente, a mimeses sempre foi presente na vida
humana até a virada do século XVIII pro XIX, isso de uma forma explícita e com orgulho de
quem o praticava; aqui não nos referimos apenas à literatura mas a todos os setores da vida
humana tais, como a formação moral, as virtudes e as outras artes. No caso da literatura, foi
sobretudo no século XIX que o uso dos modelos passou se diluir e ser subvertido com a ideia
do “ gênio”, que, de certa forma, não passou de uma espécie de ingênuo disfarce pois que os
autores ainda imitavam uns aos outros, as pessoas ainda imitam umas as outros mas de
alguma forma parecem não perceber ou fingem que não percebem.
Nos dias atuais, sobretudo pelo surgimento da crítica e teoria literária, isso que se
chamava de imitação passou a ser engolfado pelo o que é chamado de intertextualidade, isto é,
não só a imitação mas ela e as demais formas de comunicação entre os textos, de diálogo
entre os textos. E isso no século vinte que, embora devido o movimento modernista pareça ter
desaparecido por completo em nome das genialidades e originalidades de cada autor, é cada
vez mais forte seja como sátira, citação, hibridismo ou até diálogo explícito e direto entre os
textos, com a diferença que pra não parecer por demais “ obsoleto”, o termo imitação foi
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substituído por intertexto. Isso de certa forma já é como se o próprio conceito antigo também
houvesse sido atualizado com a modernidade, ou seja, ainda é a mesma coisa, só que com
nome diferente e mais abrangente ( se bem que tal abrangência pode advir simplesmente do
fato de que o sistema literário moderno não é mais como o antigo, novos gêneros surgiram, as
narrativas em prosa são exemplos ).
É possível identificar entre os autores do modernismo brasileiro muitas relações
de diálogo entre seus textos, pois como o movimento modernista tinha a pretensão de banir os
temas mais “canônicos” e que os poetas e prosadores concentrassem-se em situações mais
cotidianas, em temas “banais” do dia a dia, o que o modernismo fez foi criar uma outra
espécie de cânon próprio e dentre desse novo espaço de temas, os autores imitam, dialogam,
copiam e satirizam-se a si mesmos. Isso não é, claramente, muita originalidade, por isso
temos tantas, a título de exemplo, “ canções do exílio”, desde o romantismo até a do Murilo
Mendes, a do Drummond etc.; temos tantos poemas com temas da infância, dos malabares
com a sintaxe, das tentativas de reprodução em literatura a forma exata da fala coloquial em
determinadas regiões do país. Sem contar que à essa época, grandes nomes do modernismo
europeu como Ezra Pound e T.S.Eliot entre outros, estavam escrevendo poemas em que as
relações intertextuais não limitavam apenas a textos de seu tempo, mas com toda a tradição da
literatura ocidental. Tais autores não só escreviam poemas nessa linha mas também
pregavam-na como forma de formação do poeta, basta ver ensaios como “ Tradição e Talento
individual” em que T.S. Eliot atualiza a noção de formação literária e o paideuma de Ezra
Pound em que até autores da literatura oriental estão inclusos. Ou seja, o século XX foi o
século da profusão de intertextos, da necessidade de tradição pelos homens mais conscientes
literatura.
Para mostrar não só uma relação intertextual entre dois textos da literatura
brasileira moderna mas também o diálogo com temas considerados clássicos, selecionamos
dois sonetos dos por alguns considerados como maiores poetas brasileiros, o poema “ Os
poderes Infernais”, de Carlos Drummond de Andrade e o poema “ Como um Presente?”, de
Bruno Tolentino.
Segue a baixo o poema do Drummond:

1. O meu amor faísca na medula,


2. pois que na superfície ele anoitece.
3. Abre na escuridão sua quermesse.
4. É todo fome, e eis que repele a gula.

5. Sua escama de fel nunca se anula


6. e seu rangido nada tem de prece.
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7. Uma aranha invisível é que o tece.


8. O meu amor, paralisado, pula.

9. Pulula, ulula. Salve, lobo triste!


10. Quando eu secar, ele estará vivendo,
11. já não vive de mim, nele é que existe

12. o que sou, o que sobro, esmigalhado.


13. O meu amor é tudo que, morrendo,
14. não morre todo, e fica no ar, parado.

O poema é do livro “ A vida passada a limpo” que foi publicado pela primeira vez em
1959 no conjunto “ Poemas”, nessa coletânea de poemas, temos um Drummond maduro,
temática e formalmente. A uma primeira leitura, o poema pode sugerir-nos a ideia do amor
romântico, o amor de um homem por uma mulher, no caso, a impressão de um obscuro
testemunho do eu-lírico sabre seu amor por alguém. Mas se lermos mais detidamente, com
um horizonte de consciência um pouco mais amplo, também seguindo a pista deixada pelo
título muito provocador e sugestivo, teremos uma visão de um amor diferente, não tanto
comum as situações cotidianas. Ao fim, a impressão que nos dará o poema, é de que o termo “
O meu amor”, que abre e se repete no poema, trata-se em verdade de uma ironia obscura e
que este termo em verdade está substituindo uma outra palavra ou algo assim. Do primeiro ao
quarto verso o que temos é a introdução à expressão de uma espécie de encadeamento de
afirmações taxativas que irão ao fim dar num resultado “ lógico” , uma consequência. Como
os versos são ditos numa gravidade fora do comum para expressões tão estranhas como a do
primeiro verso, fica no ar a expectativa de um arremate irônico a qualquer momento, pois o
tom assim tão grave em versos onde a expressão “amor” aparece deslocada de seu sentido
comum, já introduz o leitor nesse ambiente de uma ironia sombria.
O verso 1 e 2, mostram que o “amor” do eu-lírico, como que pulsa no escuro, existe no
escuro, esse “escuro” pode-se intender como a dimensão íntima do eu-lírico, sua vida interior;
já a imagem do verso 3, nos sugere que esse “amor”, embora não se mostre para todos a sua
volta, antes se oculta no seu íntimo, floresce no interior como uma oferta generosa, uma
“quermesse”, ou seja, ele não é de um egocentrismo conscientemente mal, ao contrário, ele
quer entregar-se mas se barra em algo, como sugere o verso 4. Temos, nessa primeira estrofe,
a imagem de alguém que em silêncio leva consigo um amor, um florescimento de algo como
uma compaixão ou mera vontade de demonstração de afeto acumulado, mas que não se
entrega.
A segunda estrofe se em contraponto com a primeira, é impressionante, pois dá-nos a
impressão de uma “força obscura” que cresce no interior do eu-lírico. O verso 5, de certa
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forma, resume o que foi dito, ou comprime, na primeira estrofe, pois enfatiza a imagem do
amor que não transpõem a superfície do de si mesmo, ou do eu-lírico, pois que sua escama
nunca se anula, isto é, sua capa, sua máscara, sua superfície mesmo e então ele pulsa no
escuro mais não transpõem sua pele, não chega a entregar-se e isso o irrita, sua escama é de
fel. Os versos 6,7 e 8 são como um divisor de águas no poema, pois se até aqui víamos o
empasse entre o eu-lírico e o “seu amor” de uma forma mais íntima e próxima, como um
drama do eu-lírico, estes três versos começam a introduzir de maneira magistral a
“autonomia” do próprio “amor” que será explorada nos tercetos seguintes. Os versos 6,7 e 8,
ilustram o “amor” do eu-lírico como algo imprevisível pro próprio eu-lírico, entrando assim
num conflito sombrio em aquele tem o amor já não sabe mais onde o amor se inicia nem do
que ele é capaz, e ele é capaz de muitas coisas, pois, o seu amor, paralisado, pula. Este oitavo
verso, tecnicamente, é de uma perfeição ímpar, sua pertinência no poema faz com que
bruxuleie toda a gravidade, a seriedade empregada pelo autor até ali. Além disso, se
pensarmos na disposição das rimas, no caso ABBA, vemos que ele corresponde ao A, e
Drummond explora isso de maneira genial, pois do verso 5 até o verso 8, seu par na rima, há
duas um par de rimas no meu BB, o que faz com que o som do verso 5 ( A ) tenha um
intervalo logo até ser correspondido pelo verso 8 ( A ). Esse pequeno longo intervalo, em
conjunto com a acentuação do decassílabo regular e a seriedade com que é dito o poema até
aqui, causa uma impressão de ironia prazerosa muito forte, isso por que a suposta solenidade
com que o poema seguia até aqui, é quebrada, ou, ao menos, “rachada” com tal imagem
inusitada de um amor que “paralisado, pula.”. Mas o autor embora bruxuleando na gravidade
artificial que, no fundo apenas esconde seu imenso sarcasmo, ainda não chuta o balde no
início do verso 9, abertura do primeiro terceto, em que o leitor fica esperando uma total
abertura e entrega total a ironia tanto velada ao longo dos quartetos que, embora titubeante no
verso 8, ainda se arrasta no início do verso 9 com uma seriedade extremamente irônica: “
pulula, ulula”.
Na seguinte metade do verso 9, “ Salve, lobo triste!”, temos enfim a abertura total de
uma dicção acentuada e grave para uma quase gritada de ironia. É interessante acentuar um
aspecto técnico muito pertinente neste verso 9, a primeira metade, ainda grave, é feita em
células iâmbicas ( Pulula, ulula.), já essa segunda, como que fazendo jus a mudança repentina
de tonalidade, segue ritmada em trocaico ( Salve, lobo triste! ). Essa oposição rítmica confere
ao poema uma nova cara dali em diante, e, convenhamos, nem era preciso o ponto de
exclamação para notarmos quase que um grito se irrompendo.
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A partir dessa mudança de tonalidade, temos aqui um dos maiores sonetos do


modernismo brasileiro, o ritmo é de uma perfeição absurda, capaz de grudar na mente com
enorme facilidade. Sem falar na aparente simplicidade de sua construção, a fala flui de uma
tal forma que parece ser de uma espontaneidade momentânea, sem nenhuma dificuldade de
construção. Voltando agora ao tema, o “amor” que no segundo quarteto se fazia imprevisível
e maior que o eu-lírico, nesse trecho final é o próprio eu-lírico que toma consciência de si e da
sua pequenez diante de tal amor, a ponte de perceber, num tom como que de confissão, que
não é o “amor” que dele vive, mas o próprio eu-lírico é que você do amor. E este último
verso, ressalta o tamanho do amor que, mesmo se o eu secar, continuará vivendo, isso por ter
tomado autonomia e mesmo sua morte, se morre, não é acessível ao eu-lírico, menor que o
amor. Amor que quando parece desaparecer, reaparece mostrando que sempre esteve ali, no
ar, parado.
A pergunta que fica então é: o que é esse “amor” de que o poema fala? Para
investigarmos a resposta, tomemos um poema que é quase uma explicação desse soneto do
Drummond, o poema “Como um presente?”, de Bruno Tolentino:

O meu amor, rastilho atrás da sombra,


Não é coisa de fuga nem de fúria;
Cerco do ser, não subtrai nem soma
Sua torre severa, sem pergunta.

E quanto pode tudo arrisca e afronta


A sede universal e não se curva:
O meu amor maior, ramo de assombro,
É um salto obstinado contra o nunca.

Exercício do humano, não requer


Espaço além do seu, que mal acaba
Já recomeça e canta onde sequer

Um tom do mundo nunca pôde nada,


O meu amor: fagulha firme e extrema,
Encantação, fermentação terrena.

Pondo os dois sonetos assim de parelha, até fica parecendo que há uma competição
entre eles. Este poema do Tolentino foi escrito em 1962 e está presente no seu volume de
estreia “ Anunciação & outros reparos”, publicado pela primeira vez em 1963.
O soneto tecnicamente falando é bem diferente do de Drummond, sobretudo pelo uso
da técnica que seria uma das marcas mais fortes e que seria elevada posteriormente ao ápice
por Bruno Tolentino, o enjambement. Essa técnica confere ao poema um fluir esconso, um
discurso fugidio e, devido a dicção também escorregadia do jovem poeta, este poema também
é bem mais difícil. Difícil mesmo pois, apesar de toda influência de Drummond na lírica de
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Tolentino, o jovem bardo foi buscar o seu “diferencial” em Rilke, Cecília Meireles e,
sobretudo, no poeta italiano Eugénio Montale cuja dicção assim escorregadia ajudava na
criação de saia lírica hermética. Nisso, a influência de Drummond na poesia de Bruno
Tolentino, é mais pela temática metafísica de seus livros Claro enigma, fazendeiro no ar e o
próprio A vida passada a limpo. Além disso, Drummond era “poeta maior” e era bem comum
que os jovens poetas da época o imitasse.
Na segunda edição de seu livro de estreia em 1997, Tolentino comento num ensaio
que encerra o livro:

Desde minha primeira leitura de Drummond [...] no Outono de 1955, sua


lira metafísica me havia encurralado. Mas fora com a descoberta de nudez, à
abertura de sua mais recente coletânea dentre os Poemas de 1959, que me achara
convocado pela urgência de dar continuidade à poesia do pensamento como o vate
de Itabira a acabava de definir de uma vez por todas. Absolutamente intoxicado da
inimitável dicção daquela terceira fase do bardo, optei por uma espécie de
contraponto à voz reflexiva de Rilke e Montale – por uma improvável terceira voz
na fuga, [...]. Parecia-me em todo caso imperativo forjar uma contrapartida a uma
voz maior que pela terceira e poderosa vez consecutiva [...] parecia exigir dos
cultores do Verbo no idioma um adestramento à altura de seu desafio. O homem
Carlos Drummond de Andrade, entretanto, valorizava meus textos premiados
( inclusive os sofisticados e esotéricos sonetos ), o que não era a menor de minhas
dificuldades. Restava que sua nova obra-prima “passava a limpo” mais que “a vida” 2
de um mestre: claramente dava-nos e exigia-nos mais aos que pensávamos servir a
língua, de repente elevada ao seu mais alto cume deste lado de cá do “mar
português”3 [...]. ( TOLENTINO, Bruno. Anunciação & outros reparos. p. 287-288.
2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998 ).

Ainda no mesmo ensaio:

[...] à particularíssima melodia de câmara do exemplar terceto Estâncias-Elegia-


Nudez4 haveria que atrelar certamente a densidade polifônica subjacente à totalidade
das séries Selo de Minas-Os Lábios Cerrados, assim como Um boi vê os homens, A
um varão que acabou de nascer, Campo de Flores, ou mais tarde Ciclo, Inquérito,
Procura, ou mesmo A um hotel em demolição. [...] em definitivo seu último grande
livro seria A vida passada a limpo. ( p. 290-291 ).

Nesses comentários, percebe-se a exigência de Tolentino para consigo mesmo,


num empenho de elevar sua poética às alturas do Drummond metafísico dos poemas acima
citados. Em sua dicção, o jovem poeta assumiu pontos mais abstratos, utilizando metáforas
muito altas, com termos demasiado abstrato. Isso em conjunto com a já citada sintaxe
escorregadia, algo de Montale, fez de sua poesia primeira algo um tanto distante de linguagem
2
Refere-se a obra aqui citada “A vida passada a limpo”, publicada pela primeira vez na coletânea
“Poemas” em 1959, pela José Olympio.
3
Referência ao poema “Mar português” do livro “Mensagem” de Fernando Pessoa. No contexto
geral, a referência é ao poeta Fernando Pessoa mesmo.
4
Estes e os seguintes títulos são de poemas de Drummond.
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comum, talvez por isso o seu soneto não cause o encanto da coerência que nos causa o de
Drummond. Em verdade, o poema de Tolentino causa-nos um encanto mais formal, a beleza
de sua leveza e fluidez sintática e ainda as imagens mais românticas dão ao poema uma alta
beleza, mas que não tem a inovação coerente com o conteúdo como o do poeta a que ele
chama de Mestre. Talvez por isso o próprio Bruno Tolentino tenha criticado tanto sua
primeira poesia, por esse excesso de reflexão arrastada e abstrata que Manuel Bandeira
chamou de “ densidade sem necessidade” e Elizabeth Bishop de “modo tortuoso de complicar
as dificuldades”, o próprio Tolentino disse “fui poeta pior, perdoai”.
Baseando nos comentários do próprio poeta acima citados, sobretudo no último
em que ele explícita o como a leitura de A vida passada a limpo trouxe-lhe um desafio, a
ponto do poeta reconhecer este livro de um Drummond maduro como uma obra prima, não
fica difícil imaginar que o poema Como um presente? seja uma imitação direta do poema Os
poderes infernais. Aliás, se olharmos mais de perto, o poema até parece um contraponto
explicativo do de Drummond ( como se Drummond dissesse sobre “o seu amor” e em seguida
Tolentino disse sobre o dele). O intertexto aqui é claro tanto pela temática, pela forma
( embora dicções distintas, ambos escolheram o Soneto), pelo leitmotiv “ O meu amor” e, last
but not least, pelas próprias declarações do autor de tanto tentar cercar a alta poesia
drummondiana sem conseguir, o poema até parece uma resposta ao outro.
O significado dos poemas são em verdade o mesmo, diferem-se apenas na
tonalidade, pois o de Tolentino mantém um tom bem próximo do de Drummond apenas
durante os dois quartetos, já nós tercetos, incapaz de encadear um ritmo natural e alucinante
como o de Drummond, o eu-lírico de Tolentino segue com o ritmo guiado pela forma e os
enjambements. Além disso, há aí uma das marcas que perdurará por toda a obra de Tolentino
como uma de suas características mais marcantes e encantatórias: o eu que se encanta com a
realidade. Isso causa uma beleza ímpar que faz com que muitas vezes esquecemos do
conteúdo mesmo do poema, por conta dessa encantamento formal no sentido poundiano de
que um poema é belo não pelo que diz, mas pela forma do que diz. Aqui, a “forma” não se
restringe a mera métrica, acentuação ou ser soneto, mas da maneira elaborada ou não em que
o eu-lírico diz o poema. No caso do Tolentino, seu eu é sofisticadamente elaborado ( um eu
não tão elaborado, seria algo como o de Adélia Prado, Mário Quintana etc. Onde o poeta
simplesmente fala o poema com um eu mais próximo possível de sua linguagem mesmo,
instantaneamente para expressar o fugacidade da percepção. Drummond era assim no início,
depois foi se elaborando ). Sobre o soneto do Tolentino, cabe colocar apenas que é de
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acentuação regular perfeita, e que os enjambements não se destoam do metro devido a


harmonia da construção do “discurso”.
Se os poemas de Bruno Tolentino e Carlos Drummond de Andrade falam da
mesma coisa, que coisa é essa afinal? Retomemos aqui aquela pergunta deixada na estrada “ o
que é esse amor de os poemas falam?”. Havíamos dito que não se trata do amor “homem-
mulher”. Bom, o amor aqui é o amor de que somos feitos e que em nós existe apenas para
darmos ao próximo. Simbolicamente, o amor é o sem motivo, o sem razão, ao contrário do
ódio que, se existe, é por algum motivo em particular ou um encadeamento de motivos que
condessam no ódio mesmo. Já o amor não precisa de razão, ele simplesmente é, como o Deus
no cristianismo que não está sujeito a pergunta “por que?”, ele na verdade abrange os por quês
e é por isso que a resposta à pergunta “por que Deus criou a existência” é respondida com: por
amor. Isto é, não tem motivo, ele simplesmente ama. Nesse sentido, o homem também criado
à sua imagem e semelhança, é feito de amor, feito pra não procurar motivos, simplesmente
amar, dar-se, entregar-se ao próximo. Este é um dos temas mais caros da literatura universal,
foi esse o último apelo de T.S.Eliot em seu The wasted land: “que foi que nós demos?/ Meu
amigo, sangue a agitar-me o coração/ A tremenda ousadia de um instante de entrega/ Que
tempos de prudência jamais revogarão/ Foi por isto, c só por isto, que existimos”, só pra isso
existimos, para “ ser para”. Mas essa entrega de si, em tempos modernos como o nosso, soa
um tanto quanto estranha. Nossa vida é corrida e quase nunca se há tempo para quase nada,
uma época de muito egoísmo em que cada um se tranca em si mesmo escondendo a chave,
por timidez, por medo de ser a si mesmo e desagradar o gosto médio, pela falta da tremenda
ousadia de um instante de entrega, isso para o qual nós fomos criados e que pulsa em cada um
de nós mesmo se o tentamos omitir, ou se preferimos não ligar como nos versos de Cecilia
Meireles “ Todos ouvimos, longe, o apelo do anjo/ e todos somos pura flor de vento...”.
O poema de Drummond, é de alguém que, embora consciente desse amor, embora
sabendo que se vive dele, é um eu que ainda não deixou o egoísmo, o orgulho e se comporta
como o ser humano médio que acha isso normal e justifica dizendo “ todo mundo é assim”,
por isso Drummond é irônico, por não ter coragem pregar esse amor, numa atitude agnóstica
de quem sente, vê e assim que as coisas são assim, mas se reduz a sentir, ver e, como um bom
poeta brasileiro moderno, ironizar, ser sarcástico. Já Bruno Tolentino, na contramão, assume a
postura de quem sabe que é assim, vê que é assim, sente que é assim e assume pra vida não
pregando-o, mas mostrando ao longo de toda sua obra que é assim, sem render-se a modismos
modernos, pois pra ele, isso é a realidade: “ o meu amor: fagulha firme e extrema/ encarnação,
fermentação terrena”. Essa imagem do amor como fermentação da vida resume tudo, sem
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contar que apesar dos dois poetas utilizaram o termo “ o meu amor”, no caso de Bruno
Tolentino, esse meu parece tornar apenas um instrumento retórico do poema, que assume ares
universais. É até estranho pensar que neste caso, Drummond fica sendo o romântico-irônico-
melancólico trancado em si sem coragem de entregar-se por causa das “correntes” modernas,
enquanto Tolentino assume-se como um poeta lúcido que assume a custa tudo, inclusive o da
consciência de que toda consolação que a mente quer é feita de entregar-se, nem que pra isso
seja preciso dar as costas ao contingente, desprender-se das correntes e cantar em altura
universal.
Camões sabia:
Transforma-se o amador na cousa amada,
por virtude do muito imaginar;
não tenho logo mais que desejar,
pois em mim tenho a parte desejada.

Se nela está minha alma transformada,


que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
pois consigo tal alma está liada.

Mas esta linda e pura semidéia,


que, como o acidente em seu sujeito,
assim co’a alma minha se conforma,

está no pensamento como idéia;


[e] o vivo e puro amor de que sou feito,
como matéria simples busca a forma.

Neste soneto Camões diz de maneira simples e direta o que os dois anteriores,
entre volteios de metáforas e imagética moderna, dizem. Mais, ele ainda introduz a imagem
da matéria caótica que se transfigura através da alma, da forma que a ordene em sua pureza. O
mais interessante é que neste soneto de Camões, à idéia da matéria sujeita a alma que a
modela está ilustrada de uma forma tão bem sucedida, que não incomoda o fato de o poeta
está utilizando conceitos puramente abstratos e de abstração de terceiro grau, isto é,
metafísicos. A imagem da matéria que busca a forma é uma das mais belas da literatura
universal, é a mesma do ser que é feito de amor e, tomando consciência disso, entrega-se a
busca da forma para a qual se foi criado. Nesse sentido, este poema mais se semelha ao de
Tolentino, pois ambos os autores estão filosoficamente de acordo em serem feitos de amor,
além de utilizarem imagens mais abstratas, embora tecnicamente o soneto de Drummond seja
mais classicamente acentuado. Enfim, vemos que neste intertexto, o eu-lírico de Drummond
ao perceber-se feito de amor e nobreza disso tudo, recai na ironia e vê tudo isso como poderes
infernais, com muito sarcasmo. Já Tolentino, maravilhado, se pergunta: como um presente?
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Referências:

TOLENTINO, Bruno. Anunciação & outros reparos. 2. ed. Rio de Janeiro:


Topbooks, 1998.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova


Fronteira, 2007.

CAMÕES, Luiz de. Sonetos. São Paulo: Klick editora, 1998.

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