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UNIVERSIDADE FEDERAL
DO RIO DE JANEIRO
PROGRAMA DE PÓS‐
GRADUAÇÃO EM
ARQUITETURA
FACULDADE DE
ARQUITETURA E
URBANISMO
2020
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA
NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO:
RELAÇÕES ENTRE A TEORIA, A PRÁTICA E A INDÚSTRIA CULTURAL
Tese de doutorado
ANA CRISTINA CSEPCSÉNYI
Orientadora: D. Sc. Rosina Trevisan M. Ribeiro.
Coorientadora: D. Sc. Flávia Brito do Nascimento
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO
PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO:
RELAÇÕES ENTRE A TEORIA, A PRÁTICA E A
INDÚSTRIA CULTURAL
POR ANA CRISTINA CSEPCSÉNYI
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós‐
graduação em Arquitetura, Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo, da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título
de Doutor em Ciências em Arquitetura. A Tese se insere na
Área de Concentração de Restauração e Gestão do
Patrimônio, na Linha de Pesquisa de mesmo nome e no
Projeto de Pesquisa de Conservação, Restauração E
Revitalização Do Patrimônio Arquitetônico.
Orientadora: D. Sc. Rosina Trevisan M. Ribeiro.
Coorientadora: D. Sc. Flávia Brito do Nascimento
Rio de Janeiro
Julho de 2020
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA DO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO:
RELAÇÕES ENTRE A TEORIA, A PRÁTICA E A INDÚSTRIA CULTURAL
ANA CRISTINA CSEPCSÉNYI
Orientadora: D. Sc. Rosina Trevisan M. Ribeiro
Coorientadora D. Sc. Flávia Brito do Nascimento
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós‐graduação em Arquitetura,
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor
em Ciências em Arquitetura. A Tese se insere na Área de Concentração de
Restauração e Gestão do Patrimônio, na Linha de Pesquisa de mesmo nome e
no Projeto de Pesquisa de Conservação, Restauração e Revitalização do
Patrimônio Arquitetônico.
Aprovada por:
_________________________________________
Presidente, Prof. D. Sc. Rosina Trevisan M. Ribeiro
_________________________________________
Prof. D. Sc. Flávia Brito do Nascimento
_________________________________________
Prof. D. Sc. Lia Motta
_________________________________________
Prof. D. Sc. Nelson Pôrto Ribeiro
_________________________________________
Prof. D. Sc. Fabíola do Valle Zonno
_________________________________________
Prof. D. Sc. Ethel Pinheiro Santana
Rio de Janeiro
Julho de 2020
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Csepcsényi, Ana Cristina.
C958 A intervenção contemporânea do patrimônio arquitetônico:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural/ Ana Cristina
Csepcsényi. – Rio de Janeiro: UFRJ/ FAU, 2020.
xv, 311f.: il.; 29,7 cm.
Orientadora: Rosina Trevisan M. Ribeiro.
Coorientadora: Flávia Brito do Nascimento.
Tese (doutorado) – UFRJ/ Faculdade de Arquitetura e Urbanismo/
Programa de Pós‐graduação em Arquitetura, 2020.
Referências Bibliográficas: f. 264‐274.
1. Construção Civil. 2. Edifícios – Conservação e restauração. 3.
Patrimônio Arquitetônico. I. Ribeiro, Rosina Trevisan M. II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo, Programa de Pós‐graduação em Arquitetura. III. Título.
CDD 720.288
iii
‐ “Benzinho”...
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O presente trabalho foi realizado durante os últimos 24 meses com o apoio da
Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de
Janeiro (FAPERJ); contou ainda, nos meses anteriores, com o apoio da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES)
– Código de Financiamento 001.
Vale pontuar que a presente pesquisa foi finalizada em março de 2020, tendo
os processos de aprovação e formalização se estendido por conta da pandemia
do Novo Corona Vírus até o mês de julho.
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vi
RESUMO
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA DO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
RELAÇÕES ENTRE A TEORIA, A PRÁTICA E A INDÚSTRIA CULTURAL
ANA CRISTINA CSEPCSÉNYI
Orientadora: D. Sc. Rosina Trevisan M. Ribeiro
Coorientadora: D. Sc. Flávia Brito do Nascimento
Resumo de Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós‐graduação em
Arquitetura, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título
de Doutor em Ciências em Arquitetura.
A hipótese aventada aqui é que a prática contemporânea de intervenção no
patrimônio arquitetônico no Brasil, condicionada pela indústria cultural,
justifica‐se em um discurso que fomenta e reitera o distanciamento teórico,
podendo comprometer o bem como referência para a preservação. Afim de
discuti‐la, são estudados os casos das intervenções no Museu de Arte do Rio de
Janeiro (MAR) e na Praça do Trem, selecionadas por serem objetos típicos do
vii
interesse da indústria cultural e por terem ocorrido em um ambiente de sua
influência, os megaeventos na cidade do Rio de Janeiro, além de serem ações
cujas relações socioculturais já se encontram consolidadas. Elas são analisadas
criticamente quanto à coerência em relação aos postulados teóricos
recorrentes e aos conceitos e entendimentos contemporâneos essenciais do
campo disciplinar da restauração. O resultado verificado é que as incoerências
são principalmente a superficialidade e a falta de coesão, que decorrem de
interferências tais como: a “desvalorização” e a descontextualizacão do Projeto
de Intervenção; a carência de sensibilização quanto ao valor patrimonial; e a
incapacidade de criar na preexistência, preservando‐a como referência cultural.
As causas desse fenômeno envolvem pressões de ordem política por
visibilidade, associadas às demandas da indústria cultural por autonomia e
minimização das exigências e limitações, assim como a deficiência de
capacitação profissional. Desse modo, considera‐se que a intervenção, imersa
na dinâmica da industrialização da cultura, é submetida ao seu processo
produtivo homogeneizador estruturado em dissonâncias que não encontram
profundo e coeso respaldo na teoria do campo disciplinar. Assim, ela produz
um discurso que não é prioritariamente o da preexistência, ameaçando sua
condição como referência memorial de práticas sociais e identitárias. Em
contrapartida, se a intervenção promove um discurso que ressignifica o
patrimônio arquitetônico criativamente, conjugando novas experiências e
significados preexistentes sem submetê‐los, ela agrega outras possibilidades de
identificação que são particulares à “presentificação do passado” na
contemporaneidade.
PALAVRAS‐CHAVES: preservação; intervenção; patrimônio arquitetônico;
indústria cultural.
Rio de Janeiro
Julho de 2020
viii
ABSTRACT
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA DO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
RELAÇÕES ENTRE A TEORIA, A PRÁTICA E A INDÚSTRIA CULTURAL
ANA CRISTINA CSEPCSÉNYI
Orientadora: D. Sc. Rosina Trevisan M. Ribeiro
Coorientadora: D. Sc. Flávia Brito do Nascimento
Abstract de Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós‐graduação em
Arquitetura, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título
de Doutor em Ciências em Arquitetura.
The hypothesis suggested herein is that the contemporary practice of
architectural heritage intervention in Brazil conditioned by the cultural industry
is justified in a discourse that fosters and reiterates theoretical distance, which
may compromise heritage as a reference for preservation. In order to discuss
this, cases of interventions at the Museum of Art of Rio de Janeiro (MAR) and
the Train Square (Praça do Trem) are assessed, selected for being typical
ix
objects of interest to the cultural industry and for having occurred in an
environment of their influence, namely mega events in the city of Rio de
Janeiro, in addition to being actions whose socio‐cultural relations are already
consolidated. They are critically analyzed for consistency concerning recurring
theoretical postulates and contemporary essential concepts and
understandings of the disciplinary field of restoration. The verified result is that
the inconsistencies comprise mainly superficiality and lack of cohesion, which
result from interferences such as “devaluation” and the decontextualization of
the Intervention Project, a lack of awareness of equity value and the inability to
create in preexistence, preserving it as a cultural reference. The causes of this
phenomenon involve political pressure due to visibility, associated with cultural
industry demands for autonomy and minimization of requirements and
limitations, as well as lack of professional training. Thus, the intervention is
considered as immersed in the dynamics of a culture industrialization,
subjected to its homogenizing production process structured in dissonances
that do not find deep and cohesive support in the theory of the disciplinary
field. Thus, it produces a discourse that is not primarily that of preexistence,
threatening its condition as a memorial reference for social and identity
practices. On the other hand, if the intervention promotes a discourse that
creatively resignifies architectural heritage, combining new experiences and
preexisting meanings without subduing them, it adds other identification
possibilities particular to the “presentification of the past” in contemporary
times.
Kew‐words: preservation; intervention; architectural heritage; cultural industry
Rio de Janeiro
Julho de 2020
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO | 1
1. CONCEITOS PARA INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO
PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO | 10
1.1 Patrimônio arquitetônico contemporâneo | 20
1.2 Intervenção contemporânea no patrimônio arquitetônico | 29
1.2.1 Homogeneização e diversidade cultural | 38
1.3 Identidade cultural | 43
1.4 Valor patrimonial | 50
1.5 Considerações parciais | 60
2. A PRÁTICA BRASILEIRA DE INTERVENÇÃO NO
PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO | 66
2.1 A Política do Patrimônio Cultural Material | 72
2.1.1 Significação do patrimônio arquitetônico, intervenção e valor
patrimonial | 73
2.1.2 Representação sociocultural e identidade cultural | 83
2.2 Indústria cultural e Estado na prática da intervenção nacional | 92
2.2.1 Dissonâncias da indústria cultural | 102
2.3 Agentes, interesses e interferências | 111
2.4 Considerações parciais | 125
xi
3. A TEORIA PARA INTERVENÇÃO NO PATRIMÔNIO
ARQUITETÔNICO | 134
3.1 Teoria de restauração “moderna” | 135
3.2 Teoria de restauração contemporânea | 148
3.3 Posturas teóricas na prática brasileira | 158
3.3.1 Cartas patrimoniais | 168
3.4 Considerações parciais | 173
4. A TEORIA NA PRÁTICA DA INTERVENÇÃO NO
PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NOS MEGAEVENTOS | 179
4.1 Megaeventos e patrimônio no Rio de Janeiro | 184
4.2 Intervenções nos megaeventos do Rio | 192
4.2.1 Museu de Arte do Rio de Janeiro | 197
4.2.2 Praça do Trem | 228
4.3 Considerações parciais | 254
CONSIDERAÇÕES FINAIS | 258
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS | 264
APÊNDICES | 275
Cartas e declarações internacionais segundo o ICOMOS | 276
ANEXOS | 278
Anexo I –Tendências de intervenção segundo Nahas (2015) | 279
Anexo II – Fragmento do projeto da Bernardes Jacobsen Arquitetura para o
conjunto do MAR | 282
Anexo III – Fragmento do projeto da Velatura Restaurações para o conjunto
da Praça do Trem | 292
LISTA DE QUADROS | XII
LISTA DE FIGURAS | XIII
xii
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 ‐ Premissas básicas das correntes teóricas italianas moderna e
contemporâneas de restauração do patrimônio | 173
Quadro 2‐ Produtos do Projeto de Intervenção | 193
Quadro 3 ‐ Postulados e tópicos operacionais | 195
Quadro 4 ‐ Intervenções no MAR quanto à coerência teórica, em relação ao
parâmetro “postural” | 221
Quadro 5 ‐ Intervenção no MAR, em relação às correntes Teóricas
contemporâneas | 223
Quadro 6 ‐ Intervenção no MAR, quanto à coerência teórica, em relação ao
parâmetro “conceitual” | 227
Quadro 7 ‐ Intervenções na Praça do Trem, quanto à coerência teórica, em
relação ao parâmetro “postural” | 246
Quadro 8 ‐ Intervenção na Praça do Trem, em relação às correntes teóricas
contemporâneas | 248
Quadro 9 ‐ Intervenção na Praça do Trem quanto à coerência teórica, em
relação ao parâmetro “conceitual” | 253
xiii
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Fundação Universitária José Bonifácio | 157
Figura 2 – Casarão na Rua Ibituruna, 81 | 157
Figura 3 – Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular | 157
Figura 4 – Antigo Armazém, atual Memorial da Resistência de São Paulo | 158
Figura 5 – Estação Júlio Prestes. | 158
Figura 6 – Estação da Luz | 158
Figura 7 – Forte Santo Amaro da Barra Grande | 159
Figura 8 – Forte São João de Bertioga | 159
Figura 9 – Igreja Madre de Deus | 159
Figura 10 – Edifício Chantecler | 160
Figura 11 – Paço Alfândega Shopping | 160
Figura 12 – Localização dos estudos de caso | 188
Figura 13 – Museu de Arte do Rio | 197
Figura 14 – Localização do conjunto do MAR | 198
Figura 15 – Edifícios protegidos | 198
Figura 16 – Datação da obra verificada na estrutura do torreão | 200
Figura 17 – Fachada frontal | 200
Figura 18 – Plantas baixas do projeto original digitalizadas | 200
Figura 19 – Fachada lateral (voltada para o mar) e fachada posterior; destaque
para o terraço colateral | 201
Figura 20 – Fachada frontal e lateral degradas | 202
Figura 21 – Vista do interior do 3º pavimento | 202
Figura 22 – Assoalho | 202
Figura 23 – Piso em ladrilho hidráulico decorado | 202
xiv
Figuras 24 e 25 – À esquerda, boiseries remanescentes; à direita, vestígios dos
perdidos | 203
Figura 26 – Forro e sancas | 203
Figura 27 – Fachadas lateral e frontal restauradas | 206
Figura 28 – Vista do interior do 2º pavimento após demolições | 207
Figuras 29 e 30 – À esquerda, demolição das alvenarias e lajes do segmento
posterior do corpo central; à direita, hall construído | 207
Figura 31 – Hall original no térreo preservado | 208
Figura 32 – Pilar restaurado | 208
Figura 33 – Reserva técnica no térreo; ao fundo vedação das esquadrias no
intradorso dos vãos | 208
Figura 34 – Reconstrução de telheiro frontal na cobertura | 208
Figuras 35 e 36 – À esquerda, vedação translúcida no segmento chanfrado da
sala de exposição; à direita, posterior acréscimo de painel acartonado | 209
Figuras 37 e 38 – Esquadrias no hall preservado no térreo | 209
Figuras 39 e 40 – À esquerda, vista do interior da passarela de saída; à direita e
destacada, sua vista externa | 210
Figuras 41 e 42 – À esquerda, interior da passarela de acesso ao novo hall; à
direita, sua vista externa na fachada posterior | 210
Figuras 43 e 44 – À esquerda, plataforma de embarque; à direita a marquise | 211
Figuras 45 e 46 – À esquerda, painéis decorados junto às abóbodas; à direita,
painéis posteriormente removidos | 211
Figuras 47 e 48 – Segmentos da marquise contíguos às fachadas laterais do
edifício da Polícia | 212
Figura 49 – Marquise contígua à fachada posterior do prédio da Polícia | 212
Figuras 50 e 51 – À esquerda, extremidade da marquise junto ao Palacete e, à
direita, contígua à Escola do Olhar | 213
Figuras 52 e 53 – Vestígios do possível estaleiro do séc. VIII | 214
Figura 54 – Pilotis da fachada frontal do antigo prédio da Polícia | 214
Figura 55 – Fachada frontal da Escola do Olhar | 215
Figura 56 – Praça Mauá com vista do MAR ao fundo e à esquerda | 215
Figura 57 – Vista da Praça Mauá e do Museu do Amanhã a partir da cobertura
da Escola do Olhar | 216
Figura 58 – Vista da Praça entre os prédios do MAR | 216
Figura 59 – Em destaque, vista da marquise do Terminal entre os prédios do
conjunto do MAR | 219
Figura 60 – Vista da fachada posterior do conjunto do MAR | 220
Figura 61 – Vista frontal do Prédio 2, à direita, e Galpão 3, à esquerda | 228
Figura 62 – Localização do conjunto da Praça do Trem | 228
Figura 63 – Edifícios protegidos | 229
Figura 64 – Fachada frontal original | 230
Figura 65 – Planta do complexo | 231
Figura 66 – Fachada frontal após ampliação | 231
Figura 67 – Destaque do acréscimo em uma lateral no pavimento superior | 231
Figuras 68 e 69 – Fachada e interior do prédio em arruinamento | 232
Figura 70 – Proposta para circulação vertical no térreo | 234
Figura 71 – Proposta para circulação vertical no pavimento superior | 234
Figura 72 – Fachada frontal após intervenção | 235
Figuras 73 e 74 – Hall no térreo e no pavimento superior, climatizado (à parte)
e com revestimento cerâmico | 235
Figuras 75 e 76 – Nave do Conhecimento | 236
Figuras 77 e 78 – Museu Cidade Olímpica | 236
Figura 79 – Vedação do vão e execução de esquadria diversos do projetado | 236
xv
Figura 80 – Vista da cobertura em telhas metálicas, a partir da passarela da
estação de trem | 236
Figura 81 – Piso não restaurado | 237
Figuras 82 e 83 – Pinturas decorativas não restauradas | 237
Figura 84 – Planta do complexo | 237
Figuras 85 e 86 – Fachadas frontal e posterior do Galpão 3 | 238
Figuras 87 e 88 – Fachadas frontal e posterior do Galpão 4 | 238
Figuras 89 e 90 – Fachada frontal do Galpão 3 e vista interna | 240
Figura 91 – Fachadas posteriores dos Galpões 3 e 4 executadas | 240
Figura 92 – Fechamento lateral contíguo ao beiral do Galpão 4 | 240
Figura 93 – Praça do Trem e Estádio “Engenhão” | 241
Figura 94 – Fachadas frontais dos Galpões 3, 4 e fachada lateral do Prédio 2 |
245
Figura 95 – Fachadas posteriores dos Galpões 3 e 4 | 245
Figura 96 – Show na Praça do Trem | 252
Figura 97 – Maratona de games na Nave do Conhecimento | 252
INTRODUÇÃO
A preservação do patrimônio cultural, na contemporaneidade, está imersa nas
mudanças em escala mundial influenciadas pela globalização e caracterizadas
por avanços tecnológicos que aumentaram a velocidade das comunicações e dos
deslocamentos, intensificaram transações econômicas e afetaram as relações
socioculturais de então. Nessa conjuntura, a cultura é industrializada em um
processo pré‐determinado de produção e consumo, o que envolve a preservação
do patrimônio cultural construído, neste caso, no âmbito da indústria do turismo
patrimonial.
Por sua vez, a preservação do patrimônio edificado abarca diversas atividades
que visam à sua salvaguarda. Uma delas é a intervenção direta, que deve ser
uma iniciativa planejada, desenvolvida e controlada para restituir a integridade
física do bem e sua funcionalidade, além da continuidade de seus significados e
valores patrimoniais. Sendo assim, ela abrange a ação de restauro da matéria
histórica e também de arquitetura, necessária às adaptações e à criação que
viabilizam seu uso. A intervenção no patrimônio arquitetônico é um
empreendimento de caráter técnico, sensível aos aspectos socioculturais da
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
2
preservação, mas também está inserida no contexto político e econômico atual,
que envolve a indústria cultural.
Com efeito, no Brasil o desafio da prática da intervenção no patrimônio
arquitetônico tem condicionantes particulares, sendo afligido por vários fatores
que afetam a preservação do bem. O exercício profissional nesse setor,
principalmente no que tange à proposição da intervenção, permite observar
diversos fatores que influenciam a tomada de decisão para a intervenção. Entre
esses, está o problema do distanciamento entre a teoria do campo disciplinar de
restauração e a prática da intervenção no patrimônio arquitetônico1. Teoria essa
reconhecida pela história e pela crítica da preservação, que estabelece princípios
teóricos, metodológicos e técnico‐operacionais, e que, na prática
contemporânea nacional, é vinculada preponderantemente ao restauro italiano,
na forma dos postulados estabelecidos por Cesare Brandi (na metade do século
XX) e da Carta de Veneza (1964), segundo Beatriz Kühl (2008). Nesse caso, a
questão é que a superficialidade ou mesmo a incoerência da intervenção, em
relação aos fundamentos teóricos, podem comprometer o bem na qualidade de
referência de prática social, de memória e de identidade cultural, conforme
estabelece a Constituição de 1988. Entendem‐se como superficialidade e
incoerência os distanciamentos em relação a esses princípios que incorrem no
1
Vale ressaltar que se reconhece que a teoria e a prática se relacionam de forma
fragmentada e não absoluta. A teoria não deixa de ser uma prática social que se refere a
um objeto e a uma realidade. Do mesmo modo, a prática não é exclusivamente empírica,
pois é permeada por conhecimentos teóricos. Todavia, considerou‐se justo empregar
esses termos como “antíteses”, a fim de utilizar‐se uma linguagem corrente mais
acessível e direta para a discussão do problema.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
3
seu uso pontual ou contraditório, de modo que a teoria deixa de ser o
fundamento que orienta a intervenção de forma concatenada.
Na presente pesquisa, o objeto de discussão é a intervenção contemporânea no
patrimônio arquitetônico isolado – edificação. A dimensão temporal é a da
contemporaneidade estabelecida a partir da globalização e da industrialização
da cultura (pertinente a esse período), por esses fenômenos possuírem grande
impacto sobre as dinâmicas socioculturais de então. A dimensão espacial é a do
panorama ocidental da intervenção no patrimônio arquitetônico e,
especialmente, o ambiente da prática nacional.
Os objetivos específicos, por sua vez, são:
Também se estabelece a compreensão da identidade cultural em relação aos
múltiplos processos de significação e identificação com o patrimônio
arquitetônico para a intervenção na contemporaneidade. Com esse fim, são
empregadas as considerações de Stuart Hall, sociólogo que, em seu estudo sobre
a cultura e a identidade cultural, foca as perspectivas étnicas, e as reflexões de
autores da área de preservação, como Françoise Choay, que destaca as relações
que envolvem o consumo do patrimônio nesse panorama, e Laurajane Smith,
que ressalta em sua recente publicação a consciência dos grupos sociais nos usos
atuais do patrimônio.
Define‐se ainda se o entendimento de valor patrimonial do consagrado Alois
Riegl, contextualizado à dinâmica contemporânea de intervenção, por meio de
autores como Paolo Marconi, arquiteto e teórico ativista no debate italiano
contemporâneo da teoria do restauro, Ignasi de Solà‐Morales e Françoise Choay.
Nascimento e a geógrafa Simone Scifoni, que discutem as mudanças ocorridas
na preservação nacional nas últimas décadas do séc. XX e neste século.
Nesse panorama da prática da intervenção são ainda pontuados os papéis da
indústria cultural e do Estado, a ela associado, identificando‐se características
comuns e dissonâncias recorrentes. Os autores brasileiros selecionados para isso
são o sociólogo José Carlos G. Durand, que discute a política e a economia da
cultura nacional, a arquiteta Marcia Sant’Anna e a filósofa Otília Arantes, ambas
envolvidas com a preservação dos centros urbanos no âmbito da industrialização
da cultura, e as arquitetas Beatriz Kühl e Patrícia Nahas, dedicadas ao estudo da
intervenção no patrimônio arquitetônico.
Com base nessa revisão, enumeram‐se os principais agentes envolvidos com a
prática contemporânea da intervenção no patrimônio arquitetônico em âmbito
nacional, seus interesses, além das interferências e pressões recorrentes que
implicam o distanciamento teórico da prática da intervenção.
No quarto capítulo, estuda‐se particularmente a intervenção contemporânea no
patrimônio arquitetônico, no ambiente típico de influência da indústria cultural,
conformado pelos megaeventos. A metodologia empregada para isso é uma
estratégia qualitativa, o instrumento é o estudo de caso de intervenções, que
representa uma amostra da relação entre a indústria cultural, a prática atual da
intervenção no patrimônio arquitetônico e a teoria. O recorte geográfico
estabelecido para os casos é o da cidade do Rio de Janeiro, em função de os
megaeventos ali ocorridos configurarem um ambiente típico de influência da
indústria cultural. O recorte temporal é o de intervenções empreendidas a partir
da preparação da cidade para os megaeventos: dos Jogos Pan‐americanos de
2007 até os Jogos Olímpicos de 2016.
Alinhado com essas premissas, define‐se ainda que os estudos de caso são de
intervenções em edifícios protegidos de médio e grande porte, cujo uso
estabelecido com a intervenção é o de equipamento cultural, dado que essas são
características peculiares de atração para a indústria cultural. Ademais, para a
criação de um grupo de edifícios com atributos mais semelhantes, de modo a
favorecer a análise e a comparação das intervenções, são excluídas edificações
de tipologias muito diversas. Dessa triagem, são selecionados dois casos para
estudo: o Museu de Arte do Rio de Janeiro (MAR), localizado na Praça Mauá
(Região Portuária) e a Praça do Trem, que abriga a Nave do Conhecimento e o
Museu Cidade Olímpica, localizada no bairro do Engenho de Dentro (Região do
Méier).
Nesse capítulo, em primeiro lugar, enumeram‐se as características das ações
influenciadas pela indústria cultural na preservação do patrimônio cultural,
relacionando‐as com as operações de produção dos megaeventos, pontuadas
por intermédio do autor Michael Hall. Reforça‐se a influência sistematizada da
indústria cultural, por meio dos processos produtivos midiáticos para o
consumo, destacando‐se seu impacto no patrimônio arquitetônico. Para tanto,
emprega‐se a correlação com o emblemático edifício‐evento, subsidiada pela
reflexão do historiador Gerard Monnier, que discute a história da arquitetura e
o patrimônio.
Consecutivamente, a metodologia para os estudos de casos é detalhada, sendo
definidos os critérios de observação das intervenções para análise crítica. Por
conseguinte, são apresentados os dados coletados e as análises de cada estudo
de caso. Posteriormente, essas análises são confrontadas e enunciam‐se
algumas considerações.
Na conclusão da tese, confirma‐se a hipótese de que, à medida que a
intervenção é imersa na dinâmica de influência da indústria cultural, ela também
é submetida ao seu processo produtivo homogeneizador caracterizado pelo
novo, pela imagem fragmentada, pela imposição do uso, pelo fachadismo e pela
musealização. Essas e outras dissonâncias não encontram assertivo respaldo na
teoria do campo disciplinar da restauração e constroem um discurso que é
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
9
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
10
Neste capítulo, a discussão sobre a relação entre a teoria do campo disciplinar
da restauração e a prática da intervenção contemporânea, no patrimônio
arquitetônico, atém‐se aos entendimentos e os conceitos essenciais e atuais
para a intervenção.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
11
Ao discutir‐se a dinâmica contemporânea de intervenção para preservação do
patrimônio arquitetônico, é necessário, antes, situar tal processo no dado
panorama sociocultural. Para isso, destacam‐se dois fenômenos: a globalização
e a industrialização da cultura.
Boaventura de Sousa Santos (2002) afirma que a globalização não é um evento
natural e espontâneo, mas o resultado de decisões políticas, no âmbito da
economia neoliberal, que podem ter datas e autorias identificadas3. Decisões
essas tomadas em uma conjuntura propícia, na qual se intensifica em escala
mundial a disseminação dos sistemas de produção e finanças, dos meios de
comunicação e informação, assim como dos deslocamentos em massa. O autor
ressalta que o próprio termo criado para identificar o fenômeno – “globalização”
– tem uma intencionalidade, é de fácil assimilação, tornando‐se familiar
mundialmente4.
2
Ainda quanto ao início da globalização, pode‐se ponderar que a Era das Grandes
Navegações também foi um fenômeno de integração em escala mundial. Todavia, Néstor
García Canclini (2007, p. 41‐42) defende que esse foi um antecedente à
“transnacionalização” que ocorreu na metade do século XX. Porque, mesmo que as
Grandes Navegações tivessem nações mediadoras e promovessem a
“internacionalização” da economia e da cultura, sua escala foi menor, se comparada à
globalização.
3
Como observação rápida, pontua‐se que o neoliberalismo econômico é um sistema
baseado na liberalização da economia a partir da desregulamentação, do livre comércio,
de privatizações e do corte de despesas sociais governamentais, entre outras
características, de modo a que a redução fiscal promova o estímulo à produtividade e a
geração de emprego e renda. Assim, a globalização se presta a esses interesses. As
primeiras potências mundiais a adotar o neoliberalismo econômico foram o Reino unido,
em 1980, os EUA, em 1982 e a Alemanha, em 1983. No Brasil, o governo Collor foi o
primeiro a assumir esse sistema.
4
Santos (2002, p. 25) destaca que o fenômeno também foi designado por diferentes
termos por vários autores, como: “formação global”, por Chase‐Dunn (1991); “sistema
global”, por Sklair (1991); processo global”, por Friedman (1994); “modernidades
globais”, por Featherstone et al (1995); e “cidades globais”, por Sassen (1991, 1994) e
Fortuna (1997).
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
12
Contudo, Santos (2002) ressalta que o termo também carrega um peso
semântico atrelado à ideia de homogeneização e uniformização sustentada,
inclusive, pelos teóricos iniciais da globalização. Isso induz o entendimento de
que esse seria um “fenômeno linear” e “monolítico”. No entanto, segundo o
autor, a globalização se dissemina com diferentes alcances e intensidades pelo
mundo, gerando distintos resultados em diferentes culturas. Ela combina “[...] a
universalização e a eliminação das fronteiras nacionais, por um lado; o
particularismo, a diversidade local, a identidade étnica e o regresso ao
comunitarismo, por outro.” (SANTOS, 2002, p. 49). Talvez por essa ambivalência,
a concepção inicial do fenômeno como gerador de homogeneização e
uniformização prevaleça ainda hoje, sobretudo quanto mais é apropriado de
maneira coletiva e se aproxima da linguagem comum.
Quanto à organização social e cultural vigentes com a globalização, Santos (2002,
p. 44‐50) defende dois pontos de vista principais. O primeiro é que se vivem
“contextos menos corporativistas”, nos quais orientações políticas identitárias
perdem força e as questões de classe são menos institucionalizadas. Para o
autor, tal condição é uma consequência da política neoliberal, que provoca
esvaziamento das doutrinas políticas e de classes. O segundo ponto de vista é de
que a globalização promove uma mudança “de ênfase nas ciências sociais”,
passando “dos fenômenos socioeconômicos para os fenômenos culturais”. Ou
seja, processos que associam integração e intenção.
Canclini (2010, p. 131) (publicado originalmente em 1985) afirma que
reconhecer a “interculturalidade transnacional” decorrente da globalização é
compreender que a cultura não é necessariamente singular em seus grupos, nem
unificada. Portanto, não cabe mais estudar na cultura “apenas a diferença, mas
também a hibridação”. Este é o desafio contemporâneo, para o autor, pois a
5
Os deslocamentos populacionais na globalização têm variadas durações e são mais
heterogêneos do que os movimentos migratórios que ocorreram na primeira metade do
século XX, normalmente associados a conflitos e crises econômicas, movendo grandes
contingentes populacionais de forma definitiva.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
13
Canclini (2007, p. 44‐45) entende que a globalização associa “[...] processos de
homogeneização e, ao mesmo tempo, de fragmentação articulada do mundo,
que reordenam as diferenças e as desigualdades sem suprimi‐las.” Portanto,
assim como Santos (2002), o autor reforça que as relações socioculturais da
globalização podem ser interculturais, mas também diversas.
Fredric Jameson (1985, p. 22), por sua vez, ressalta o impacto promovido pelos
avanços tecnológicos das comunicações e das informações no panorama
sociocultural global contemporâneo, como promotor de uma nova relação das
pessoas com o tempo. Isso porque a velocidade e o constante fluxo de dados
criam a sensação de um “presente perpétuo”, conformado a todo o momento.
Logo, não há futuro nem passado, mas uma continuidade temporal que resulta
em uma condição “esquizofrênica” de fragmentação e perpetuação do tempo.
Nesse contexto de perda do passado e descrédito do futuro, o autor defende
que a cultura não é mais o palco de lutas de classe de antes, pois ocorre uma
aliança de classes estruturada para e pelo consumo. A atenção antes atribuída à
esfera da produção é deslocada para o consumo, à medida que o valor de uso se
sobrepõe ao valor de trabalho conferido ao produto ou à ação. Diante disso e
tendo em vista que, segundo Jameson (2000, p. 271), “nenhuma sociedade pode
funcionar eficientemente sem o mercado”, pois este é parte da “natureza
humana”, a cultura institucionaliza‐se como produto mercadológico e sua
industrialização (que já vinha sendo construída desde o início do século XX) se
consolida. A cultura que é para o consumo (mercado) é uma cultura de massa6.
Para Jameson (1985), esse momento de significativas mudanças socioculturais
conforma a pós‐modernidade. Ela é aqui observada como um código
6
O processo de industrialização da cultura é identificado inicialmente pelo agente
“indústria cultural”, segundo Theodor Adorno (1903‐1969) e Max Horkheimer (1895‐
1973), conhecidos teóricos da escola de Frankfurt, na obra Dialética do Esclarecimento
(1944). Os autores observaram a forma de produção industrial da cultura para as massas
no nazismo alemão e no cinema americano.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
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14
identificador dessas transformações7. Uma delas, que cabe aqui pontuar, é que
a cultura, antes estigmatizada pelo “domínio canônico do modernismo”, cuja
preocupação intelectual social era voltada para o moral e para o ético, mas agora
se volta para o estético (JAMESON, 2000, p. 317). Dessa forma, o “populismo
estético” torna‐se um critério para a produção de mercadorias (JAMESON, 2000,
p. 28).
Portanto, no âmbito da cultura de massa, a imagem se impõe como a mercadoria
a ser consumida, em substituição ao produto. A imagem, que é um fragmento
do presente, é propagada pela mídia viabilizada pelas novas tecnologias e
comunicações. Jameson (2000, p. 279) defende que essa imagem é um signo do
irreal, um “pastiche”, um “simulacro” do comportamento social e cultural que
pretende a experiência da igualdade e celebra a liberdade da autorreprodução
da sociedade midiática de consumo. Isso porque é na suposta liberdade de
escolha que se estabelece a relação “simbiótica” do mercado da cultura com a
mídia. Ainda que a liberdade e a igualdade sejam almejadas, não se pode obtê‐
las como a experiência de escolha dentro de um universo de imagens pré‐
determinadas. O mercado raramente tem algo a ver com liberdade de escolha,
haja vista que o controle social imposto com o consumo, no processo de
industrialização cultural, está mais em sua estrutura “totalizante” do que na
ideologia de mercado, que é mais próxima do Estado.
Contudo, Debord (2003) salienta que a espetacularização na pós‐modernidade
não se define somente como um conjunto avassalador de imagens para o
consumo. Para o autor, existe uma relação social que se estabelece com a
imagem como intermediadora, na qual o espetáculo é o resultado, mas também
7
Convém ressaltar que a discussão sobre a pós‐modernidade abre múltiplas frentes de
reflexão e análise. Na presente pesquisa, sua abordagem se dá exclusivamente na
qualidade de indicadora das mudanças nas relações socioculturais do panorama
contemporâneo da intervenção para preservação do patrimônio cultural. Por esse
motivo, opta‐se por não se aprofundar mais o tema.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
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15
é o processo. Logo, há também um fetichismo pelo próprio processo de
produção. Ou, como Jameson (2000, p. 282) identifica, “o consumo do próprio
processo de consumo”.
David Harvey (2008, p. 8) (publicado originalmente em 1989), por seu lado,
constrói uma análise em parte semelhante à feita por Jameson (1985, 2000).
Harvey também discute o tema da nova temporalidade que modifica as relações
socioculturais. O autor afirma que os avanços das comunicações, dos
deslocamentos populacionais e dos sistemas de produção na globalização
implicam a sensação de queda das barreiras espaciais e de aceleração do tempo.
Essa condição impele a um tratamento peculiar do passado, pois rompe a
continuidade histórica à medida que se pilha a história e se absorve tudo o que
nela se “classifica como aspecto do presente”. Tal "compressão do tempo e
espaço" promove uma percepção não linear da história e impacta na cultura,
haja vista que, de maneira geral, ela não é isolada e autossuficiente, e cria um
ambiente que consome referências culturais para atualizá‐las, “presentificá‐las”
(HARVEY, 2008, p. 58).
Por sua vez, os instrumentos de produção dessas referências são as novas
tecnologias e comunicações, produzindo a necessidade e o desejo do consumo
da cultura, na pós‐modernidade, por meio de narrativas culturais constituídas
por imagens e signos para o instantâneo e constante impacto8. Em função disso,
há uma profusão de imagens e signos efêmeros, fragmentados pela
descontinuidade. Segundo o autor, um “modo particular de experimentar,
interpretar e ser no mundo”, cuja consequência para a cultura é a falta de
profundidade e de rigor teórico. (HARVEY, 2008, p. 56).
Essa superficialidade cultural pode ser relacionada com o que Paul François
Lyotard (2009) (publicado originalmente de 1979) afirma ser a crise dos grandes
discursos de legitimação. Não obstante, essa pode ser alusiva a falas de Debord
(2003, p. 163), referindo‐se à “minimização das grandes ideologias coletivas”; de
Santos (2002), sobre as questões de classe serem menos institucionalizadas, de
Jameson (2000), sobre a cultura não ser mais o palco de lutas de classe de antes;
e, ainda, de Harvey (2008), sobre o Estado enfraquecer os movimentos de classe.
Lyotard defende que a pós‐modernidade é o estado da cultura após as
transformações decorrentes da conjuntura de incredulidade, em relação aos
8
Segundo Harvey (2008, p. 178), a economia na pós‐modernidade é um estágio do
capitalismo posterior ao estágio de simples acumulação, sendo identificada como
"acumulação flexível" e caracterizada pelo trabalho e capital altamente móveis
(organizados conforme a mobilidade geográfica) e flexíveis (ordenados com produção
rápida e consumo rápido, de acordo com as respostas dos mercados). O Estado tem a
função de regulador junto ao mercado, protegendo os interesses nacionais e atraindo o
capital global.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
16
grandes relatos (ou metanarrativas), nos quais a ciência se apoia na
modernidade9.
Lyotard (2009) ainda defende que a perda de credibilidade dos grandes relatos
leva ao incremento dos pequenos relatos, viabilizados e legitimados pelo
desenvolvimento da tecnologia. Nesse contexto, o autor salienta que a
“informatização das sociedades” pode tornar‐se um instrumento de “controle e
regulamentação do sistema de mercado”, “exclusivamente regido pelo princípio
do desempenho” (LYOTARD, 2009, p. 119). Ou seja, um mecanismo de controle
que se “autolegitima”.
No contexto da gama de práticas que passaram a vigorar com a industrialização
da cultura, Sharon Zukin (2000, p. 96) acrescenta a esse consumo na pós‐
modernidade, que se dá por meio do fragmento, da imagem e do efêmero, outra
característica: o consumo do espaço. “A circulação de imagens para consumo
visual é inseparável das estruturas centralizadas do poder econômico.” Sendo
assim, elas têm a capacidade de “imprimir perspectivas múltiplas”, inclusive
sobre a paisagem. A autora destaca que as paisagens recentes são modificadas
para consumo imagético e convertidas para o entretenimento que, por sua vez,
abarca as paisagens históricas, em função de seu forte apelo para o consumo
9
Lyotard (2009, p. 23) faz uma retrospectiva esquemática de discursos sobre a sociedade
que eram exemplos desses grandes relatos, de forma a reforçar seu entendimento
quanto à perda da base teórica das lutas de classes. Para o autor, no marxismo e suas
variações, visa‐se a um nivelamento que implica a ausência de lutas de classe; já nos
países liberais, as lutas de classe são transformadas em regulação do sistema.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
17
cultural10. Assim, a industrialização da cultura engloba o patrimônio cultural e a
sua preservação em seu processo produtivo mercantil, que nesse caso é o da
indústria do turismo cultural.
Sobre essa assimilação do patrimônio cultural pela indústria, Ignasi de Solà‐
Morales (1998) reforça que o turismo cultural emprega práticas que influenciam
as relações entre os bens e as pessoas, promovendo experiências prefiguradas
na forma de como se vê e como se aprecia a arquitetura histórica. Antes, a
indústria do turismo patrimonial promovia uma visão centrada nos
monumentos; hoje, existe um novo modo de ver o patrimônio como conjunto
de experiências culturais (comida, música, paisagens, etc.). É a “multiplicação de
olhares” para a “multiplicação da circulação de imagens” (SOLÀ‐MORALES, 1998,
p. 8).
Retomando David Harvey (2008, p. 269), o autor afirma, tal como Fredric
Jameson (2000), que a industrialização da cultura é um processo inerente à
sociedade. Segundo Harvey, a cultura produz “códigos de valores e significados
sociais” e o capital e as mercadorias são “portadores primários de códigos
culturais”. Logo, o processo de circulação desses itens – o comércio – é uma
prática cultural, mesmo que essas mercadorias sejam “especiais” ou constituam
um “sistema de signos”. Conforme essa reflexão, o patrimônio cultural e, por sua
vez, o patrimônio arquitetônico enquadram‐se como “mercadorias especiais”.
Na esfera da proteção dos interesses coletivos globais, a Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) promove tratados
internacionais de cooperação baseados em direitos humanos e valores comuns
a serem observados pelos Estados signatários, no sentido de proteger e
conservar o patrimônio cultural. Entre esses tratados, está a Declaração
10
Para Zukin (2000), na industrialização cultural imposta às “cidades mais antigas”, o
consumo é mais específico, consistindo na apropriação cultural da paisagem que
emprega o “enobrecimento”. Uma nova ordem espacial socialmente construída, didática
para o consumo visual e determinada ao ambiente. Ver item: 2.2 Indústria cultural e
Estado na prática da intervenção nacional.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
18
[...] é necessário reforçar a cooperação e a solidariedade
internacionais destinadas a permitir que todos os países,
em particular os países em desenvolvimento e os países
em transição, estabeleçam indústrias culturais viáveis e
competitivas nos planos nacional e internacional.
(UNESCO, 2002, grifo nosso).
Por outro lado, a industrialização da cultura se estrutura em um processo
produtivo para o consumo. Logo, a cultura é considerada uma fonte econômica,
havendo, no entanto, ressalvas da UNESCO quanto a isso.
Frente às mudanças econômicas e tecnológicas atuais,
que abrem vastas perspectivas para a criação e a
inovação, deve‐se prestar uma particular atenção à
diversidade da oferta criativa, ao justo reconhecimento
dos direitos dos autores e artistas, assim como ao
caráter específico dos bens e serviços culturais que, na
medida em que são portadores de identidade, de
valores e sentido, não devem ser considerados como
mercadorias ou bens de consumo como os demais.
(UNESCO, 2002).
Sendo assim, o patrimônio arquitetônico, como bem cultural portador de vários
significados, não é um bem de consumo comum. Portanto, deve ser assim
compreendido para que a sua industrialização seja “viável” e “competitiva”,
conforme frisado pela UNESCO.
Ainda no contexto do “viável”, cabe destacar os documentos produzidos pelo
International Conuncil of Monuments and Sites (ICOMOS), no sentido de orientar
políticas públicas e, inclusive, práticas de intervenção no patrimônio. Essa é uma
associação civil não governamental ligada à Organização das Nações Unidas
(ONU), por intermédio da UNESCO; entre seus documentos de alcance
11
A UNESCO estabelece três tipos de instrumentos legais: “Convenções” internacionais,
que são adotadas pela Conferência Geral e estão sujeitas à ratificação, aceitação ou
adesão dos Estados‐Membros; “Recomendações”, que são semelhantes às Convenções,
mas que não estão sujeitas à ratificação; e “Declarações”, que também são adotadas por
Conferência Geral e não estão sujeitas à ratificação, mas, estabelecem princípios
universais. Ver a respeito: http://portal.unesco.org/fr/ev.php‐
URL_ID=23772&URL_DO=DO_TOPIC&URL_SECTION=201.html
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
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19
internacional12 está a Carta internacional do México de Turismo Cultural (1999,
p. 1, tradução nossa). Ela registra um crescente reconhecimento do turismo
como uma “[...] força positiva que promove a conservação do patrimônio natural
e cultural.” “O turismo pode abranger as características econômicas do
patrimônio e usá‐las para sua conservação, criando recursos, desenvolvendo e
influenciado políticas educativas 13 .” Todavia, também é destacado no
documento que a indústria do turismo, na preservação do patrimônio, precisa
ser bem gerida.
A Declaração de Délhi Sobre Patrimônio e Democracia (2017, p. 1, tradução
nossa) ressalta que o turismo na preservação constitui um “recurso
fundamental” para a melhoria da qualidade de vida e “coesão social”,
fomentando o desenvolvimento econômico em escala global. Por outro lado, a
Declaração de Paris Sobre Patrimônio como Promotor de Desenvolvimento
(2011) salienta:
Os efeitos da globalização nas sociedades manifestam‐
se no atrito de seus valores, identidades e diversidade
cultural e do seu patrimônio tangível e intangível, no
sentido mais lato. Portanto, a relação entre
desenvolvimento e patrimônio deve ser examinada.
(THE PARIS DECLARATION ON HERITAGE..., 2011, p. 1,
tradução nossa) 14.
Com base nesse recorte, observa‐se que instituições de referência para a
preservação reconhecem a industrialização da cultura e, particularmente, a
indústria do turismo cultural como elementos da preservação contemporânea,
que têm potenciais positivos e negativos. Elas impactam no processo de
intervenção no patrimônio arquitetônico, configurando desafios que vão além
das dificuldades estruturais inerentes ao próprio processo de intervenção, e
12
As Cartas patrimoniais internacionais aprovadas por Assembleia Geral do ICOMOS são,
até então, 18 documentos que abordam diferentes temáticas. Ver apêndices, quadro 10:
Cartas patrimoniais internacionais ICOMOS. Há ainda outros documentos do ICOMOS,
que têm alcance internacional: as Resoluções e Declarações. Além desses, existem Cartas
adotadas por Comitês Nacionais. Vale salientar que um equívoco frequente é tomar
documentos de cunho regional ou Declarações e Deliberações como referência para
países que não os subscrevem. As Cartas, Resoluções e Declarações internacionais, assim
como documentos nacionais, são retomadas ao longo desta pesquisa sob diferentes
enfoques.
13
“Le tourisme peut saisir les caractéristiques économiques du patrimoine et les utiliser
pour sa conservation en créant des ressources, en développant l'éducation et en
infléchissant la politique.”
14
“The effects of globalisation on societies are manifested in the attrition of their values,
identities and cultural diversity, and of their tangible and intangible heritage, in the
broadest sense. Therefore, the relationship between development and heritage must be
examined.”
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
20
Cesare Brandi (2004, p. 30) afirma que o reconhecimento de um objeto a ser
preservado pressupõe uma revelação, e deve‐se visar com a preservação
“conservar para o futuro a possibilidade desta revelação”. Logo, pode‐se dizer
que o reconhecimento é a percepção de que o objeto é uma referência para
preservação, ou seja, que se vincula a memórias coletivas e significações. A
revelação é a percepção das memórias e significações do objeto. Para o autor,
essa possibilidade de percepção deve perdurar com a ação de preservação do
patrimônio cultural.
15
Ver item: 2.2 Indústria cultural e Estado na prática da intervenção nacional, onde essa
discussão é aprofundada, sendo contextualizada à realidade brasileira.
16
A Carta de Veneza (1964) foi redigida no II Congresso Internacional de Arquitetos e de
Técnicos de Monumentos Históricos, em 1964. O termo empregado para definir o que é
patrimônio, no artigo 1° do documento, é “monumento histórico”: “A noção de
monumento histórico compreende a criação arquitetônica isolada, bem como o sítio
urbano ou rural que é testemunho de uma civilização particular, de uma evolução
significativa ou de um acontecimento histórico. Estende‐se não só às grandes criações,
mas também às obras modestas, que tenham adquirido com o tempo, uma significação
cultural.”
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
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21
como marco dessa fase da preservação é a Convenção para a Proteção do
Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, estabelecida pela UNESCO em 197217.
Com efeito, o patrimônio cultural nesse período já havia se consolidado como
importante fonte memorial e os métodos científicos para a sua preservação já
haviam sido estabelecidos. Todavia, com a globalização e a industrialização da
cultura, o panorama sociocultural se modificou intensamente nas últimas
décadas do século XX. Isso implicou transformações na preservação e,
consequentemente, no processo de intervenção no patrimônio arquitetônico,
cuja função principal é salvaguardar o bem como referência para a preservação.
Choay (2005, p. 21) identifica esse período de mudanças como o momento da
terceira revolução, a “eletrotelemática”, cuja característica é a dependência da
sociedade das novas tecnologias de comunicação 18 . Nessa conjuntura de
transformação, a sociedade é a “tribo midiática” e a preservação do patrimônio
cultural é uma de suas “palavras‐chave”, conforme publicado pela autora
originalmente em 1982 (CHOAY, 2006, p. 11). Isso porque há uma sensibilização
e expansão global do objeto – patrimônio cultural – mobilizada por uma
consternação solidária coletiva pela preservação. Essa “valorização excessiva dos
testemunhos do passado” torna‐se uma imposição identificada como
“fetichismo do patrimônio” (CHOAY, 2005, p. 23). Em outros termos, uma
17
Segundo a Convenção para Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural da
UNESCO (1972), o patrimônio cultural abarca: “[...] – os monumentos: obras
arquitetônicas, esculturas ou pinturas monumentais, objetos ou estruturas
arqueológicas, inscrições, grutas e conjuntos de valor universal excepcional do ponto de
vista da história, da arte ou da ciência; – os conjuntos: grupos de construções isoladas ou
reunidas, que, por sua arquitetura, unidade ou integração à paisagem, têm valor
universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência; – os sítios: obras
do homem ou obras conjugadas do homem e da natureza, bem como áreas, que incluem
os sítios arqueológicos, de valor universal excepcional do ponto de vista histórico,
estético, etnológico ou antropológico.”
18
Françoise Choay (2005, p. 20‐21) discute a evolução do entendimento do que é
patrimônio cultural e lista três momentos de grandes mudanças culturais que a
influenciaram. O momento inicial é a primeira “revolução cultural”, ocorrida com o
Renascimento. Nele, o patrimônio cultural era concretizado na forma e no significado do
monumento, e sua finalidade primordial era representar o ideal de beleza. A segunda
revolução cultural foi experimentada por meio da Revolução Industrial, que, de maneira
geral, conferiu ao patrimônio “uma proteção de tipo museológico”. Nesse período, a
designação de “monumento histórico” ganhou destaque, sendo difundida inclusive fora
da Europa. O monumento histórico se estabeleceu então como essencialmente derivado
da Arqueologia e da história erudita da Arquitetura, assim congregando
progressivamente “todas as formas da arte de edificar” (CHOAY, 2006, p. 12). Choay
(2005) também aponta a Revolução Francesa como um momento marcante nesse
processo, quando, pela primeira vez, o termo foi empregado e o instituto do
tombamento é criado, sob a égide do reconhecimento de valores que constroem o
patrimônio nacional.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
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22
particularização correlata à preservação do “fetichismo” pelo consumo cultural
discutido por Guy Debord (2003), já citado anteriormente.
Uma das consequências desse fetichismo, para Choay (2005, p. 27) é a
“permanente inflação” do patrimônio cultural 19 . Um “complexo de Noé”
decorrente de “[...] um mundo de edifícios modestos, nem memoráveis nem
prestigiosos, reconhecidos e valorizados por novas disciplinas [...].” Essa
ampliação das tipologias categorizadas como patrimônio histórico propaga, em
escala mundial, referências ocidentais. Além disso, contribui para uma
“expansão ecumênica das práticas patrimoniais” que são pensamentos e valores
dessas mesmas referências. Portanto, não se importando com “[...] seleções e
classificações e em visar uma exaustão simbólica, a despeito da heterogeneidade
das culturas, das utilizações e dos tempos a que pertencem os bens
acumulados.” Dessa forma, a autora entende que esse é um “culto” ao
patrimônio cuja natureza e forma se transformaram em razão da “[...] expansão
generalizada das suas zonas de difusão, do seu corpus e do seu público [...].”
(CHOAY, 2006, p. 182‐212). Ou seja, a preservação modifica‐se com ampliação
do que é o patrimônio e das relações que se estabelecem com ele, com sua
expansão numérica e, consequentemente, com a alteração da forma de
preservar.
François Hartog (2006) também discute a relação que se estabelece com o
passado, em face aos processos de globalização e de industrialização cultural, na
construção da compreensão contemporânea do patrimônio. O autor defende
que há na atualidade uma demanda pelo passado, uma “busca de raízes
obcecada pela memória”, pois “[...] o passado atrai mais que a história; a
presença do passado, a evocação e a emoção predominam sobre a tomada de
distância e a mediação.” Sendo assim, um meio para obtenção dessa emoção
nostálgica é a experimentação do patrimônio cultural que decorre do contato e
da fruição do bem. (HARTOG, 2006, p. 270‐272). Tal demanda pelo passado é
condizente com a conjuntura de perda de referências decorrente do declínio dos
grandes discursos de legitimação, identificada anteriormente por Jameson
(2000) e Lyotard (2009).
19
Ver texto introdutório do capítulo 2. A Prática brasileira de intervenção no patrimônio
arquitetônico, em que se contesta essa visão no âmbito da realidade nacional.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
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CSEPCSÉNYI, ANA.
23
Todavia, Hartog (2006, p. 270‐272) salienta que essa “ardente” consternação
pelo patrimônio cultural é um “sinal de ruptura” e não de continuidade do
passado, pois o patrimônio não se baseia nessa ininterrupção. “O patrimônio é
uma maneira de viver as rupturas, de reconhecê‐las e reduzi‐las, [...].” Enfim, o
autor enfatiza a “categoria do presente”, porque à medida que a
patrimonialização se promove ou é promovida como um “imperativo”
mobilizado pelo “dever da memória”, torna‐se “[...] um traço distintivo do
momento que nós vivemos ou acabamos de viver [...].” Ela é parte do que nos
define na atualidade, uma manifestação do presente, marca de nosso tempo,
um “presentismo”. A onipotência desse presente é determinante, pois este
fabrica “cotidianamente o passado e o futuro do qual ele tem necessidade”.
Dessa forma, o patrimônio é “[...] trabalhado pela aceleração: é preciso fazer
rápido antes que seja muito tarde, antes que a noite caia e o hoje tenha
desaparecido completamente.”
Compete ressaltar que a UNESCO, ao longo do tempo, também passa a admitir
bens que não são representantes da tradição europeia na lista de Patrimônio
Mundial, justificando‐se inclusive com o reconhecimento da diversidade do
patrimônio cultural20. Isso é mais uma evidência da ampliação da compreensão
do patrimônio arquitetônico, pois é uma quebra de paradigma, segundo Maria
Cecília Londres Fonseca (2009). Para ela,
20
Essa orientação é ressaltada na Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural de
2002. “A cultura adquire formas diversas através do tempo e do espaço. Essa diversidade
se manifesta na originalidade e na pluralidade de identidades que caracterizam os grupos
e as sociedades que compõem a humanidade. Fonte de intercâmbios, de inovação e de
criatividade, a diversidade cultural é, para o gênero humano, tão necessária como a
diversidade biológica para a natureza. Nesse sentido, constitui o patrimônio comum da
humanidade e deve ser reconhecida e consolidada em benefício das gerações presentes
e futuras.” (UNESCO, 2002).
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
24
[...] ter aspectos de sua cultura, até então considerada
por olhares externos como tosca, primitiva ou exótica,
reconhecidos como patrimônio mundial, contribui para
inserir um país ou um grupo social na comunidade
internacional, com benefícios não só políticos, mas
também econômicos. (FONSECA, 2009, p. 72).
Outra evidência da ruptura dessa fronteira espacial dos padrões europeus é a
Declaração internacional elaborada na Conferência de Nara (1994) 21 . O
documento registra a legitimidade internacional conferida aos patrimônios de
outras culturas e promove a diversidade da expressão cultural.
Diante disso, observa‐se que a compreensão do patrimônio cultural não só se
amplia, no que se refere ao campo de proteção, como também ganha
complexidade. Particularmente em relação ao patrimônio arquitetônico, que na
atualidade compreende o patrimônio rural, vernacular, industrial, arqueológico
e outros, há uma evolução decisiva em sua compreensão: o reconhecimento da
natureza intangível do bem tangível.
Nesse contexto, um tema pertinente é o lugar de memória. Ainda que não seja
exclusivo do patrimônio arquitetônico, ele tem em seu cerne a intangibilidade
do patrimônio, inclusive do tangível. Pierre Nora (1993) (publicado
originalmente em 1984) reflete sobre essa questão, baseando‐se na condição
francesa de exaltação do passado nacional, mesma exaltação discutida por
Choay (2005) e Hartog (2006). Nora afirma que, nessa dinâmica, a história
consagra lugares para a constituição da consciência nacional, visto que a
memória não é mais praticada como antes 22 . Esses lugares de história são
vestígios e testemunhos da memória, pois a memória correlata a eles não é
espontânea ou natural, mas uma “memória‐arquivo”, uma “memória
historicizada” que é construída com um discurso de uma “memória‐dever”
21
A Declaração de Nara é uma das 16 Declarações ou Resoluções de âmbito internacional
reconhecidas pelo ICOMOS até então. Ver apêndices, quadro 11: Declarações e
resoluções patrimoniais internacionais ICOMOS.
22
Nora (1993, p. 8) afirma, em 1981, que o “fim das sociedades‐memória” na era
industrial decorre do declínio de hábitos e tradições que “[...] asseguravam a passagem
regular do passado para o futuro, ou indicavam o que se deveria reter do passado para
preparar o futuro; [...].” Em entrevista à Ana Cláudia Brefe (1999, p. 21), quase duas
décadas depois, o autor esclarece que o desparecimento da “história memória” – a
história memorial fruto de um processo autônomo e espontâneo ‐, não foi intempestivo,
mas sim “[...] de um luto, de uma presença fantasmagórica, trata‐se de um espectro da
antiga França [...].” A partir daí, segundo Nora (1993, p. 11), a História na França assume
o papel de formação da consciência nacional e consequentemente da identidade cultural
nacional, iniciando‐se a “idade historiográfica” francesa. Ou seja, no período em que seu
“registro” deixa de ser espontâneo e torna‐se uma construção, a memória se diferencia
da história e a história torna‐se “uma construção conceitual do tempo e do poder”
(CHOAY, 2006, p. 219).
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25
(NORA, 1993, p. 17‐18). Semelhante ao “dever de memória” de Hartog (2006, p.
266), que é uma “ardente obrigação” mobilizadora pela preservação do
patrimônio.
Portanto, é necessária uma “vontade de memória” para conformar o lugar de
memória. (NORA, 1993, p. 22). Essa é somada ao “espaço”, ou ao “gesto”, ou à
“imagem”, ou ainda ao “objeto” que se torna suporte para a memória. O lugar
de memória tem, além do simbolismo, materialidade e funcionalidade
simultaneamente e em diferentes proporções. (NORA, 1993, p. 9).
Mas o que os faz lugares de memória é aquilo pelo que,
exatamente, eles escapam da história. [...] Nesse
sentido, o lugar de memória é um lugar duplo; um lugar
de excesso, fechado sobre si mesmo, fechado sobre sua
identidade, e recolhido sobre seu nome, mas
constantemente aberto sobre a extensão de suas
significações. (NORA, 1993, p. 27).
De tal modo, o atributo estruturador do lugar de memória é sua significação.
Nesse sentido, Francisco Santiago Júnior (2015, p. 262) defende que, sendo
necessária a vontade de memória para que haja um lugar de memória, este, “[...]
em vez de um ritual de uma sociedade com memória fraturada, é um exercício
múltiplo de formação dos passados das diversas comunidades políticas.”
Lugar de memória, portanto: toda unidade significativa,
de ordem material ou ideal, que a vontade dos homens
ou o trabalho do tempo converteu em elemento
simbólico do patrimônio memorial de uma comunidade
qualquer [...] (NORA, 1992, p. 20 apud SANTIAGO
JÚNIOR, 2015, p. 268) 23.
Tratando particularmente do lugar de memória material, Nora atualiza sua
definição, em entrevista a Ana Cláudia Brefe (1999), afirmando que esse não
pode ser reduzido a um objeto material. O lugar de memória tem o objetivo de
23
Obra não consultada: NORA, P. Comment écrire l’historie de France? In: NORA, P.
(Org.). Les Lieux de Mémoire III: Les France 1 conflits et partages. Paris: Gallimard, 1992,
pp. 11‐32.
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26
Sendo assim, o lugar de memória construído parte de um objeto material, mas
basicamente é imaterial, pode ser vinculado a um patrimônio cultural tangível,
mas tem caráter intangível. O entendimento do que é de fato o lugar de
memória, no campo do patrimônio arquitetônico, excede a estrutura, passa pela
legitimação da vontade de memória e baseia‐se em sua significação.
A Declaração de San Antonio (1996), que discute particularmente o continente
americano. Ela ressalta que, além da evidência material, o patrimônio tem uma
profunda mensagem espiritual manifestada por meio de costumes e tradições.
Desse modo, essas características intangíveis do patrimônio são parte do
patrimônio tangível.
A Carta de Itinerários Culturais de Québec (2008, p. 2, tradução nossa) registra
que as características intangíveis do patrimônio contribuem para fornecer
sentido e significado aos “[...] elementos tangíveis, que representam o
testemunho patrimonial e a conformação física de sua existência.”
Por sua vez, a Declaração de Xi’an Sobre a Conservação do Entorno Edificado,
Sítios e Áreas do Patrimônio Cultural (2005) salienta a intangibilidade do
patrimônio arquitetônico em relação ao seu foco de discussão. Ela destaca que
o entorno é um “[...] meio característico seja de natureza reduzida ou extensa,
que forma parte de – ou contribui para – seu significado e caráter peculiar24.”
24
Entre os documentos anteriores à década de 1980 que abordam a questão do entorno
do bem, está a Recomendação de Nairóbi (1976, p. 3) da UNESCO, que trata o entorno
como “ambiência”, relacionando o vínculo do bem com o espaço, com os laços sociais e
culturais. “Dessa maneira, todos os elementos válidos, incluídas as atividades humanas,
desde as mais modestas, têm, em relação ao conjunto, uma significação que é preciso
respeitar.” Um meio de respeitá‐la e também proteger essa ambiência de “acréscimos
supérfluos e de transformações abusivas”.
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27
(DECLARAÇÃO DE XI’AN..., 2005).
Portanto, o entorno da edificação histórica é dotado de dimensões intangíveis,
além das tangíveis, que também contribuem para a significação do patrimônio
arquitetônico. Com efeito,
Significação que, segundo o glossário dos recentes Princípios para a Conservação
do Patrimônio Construído em Madeira (2017), de Nova Delhi, são:
Tal entendimento está em consonância com a Declaração de Delhi Sobre
Patrimônio e Democracia (2017, p. 3, tradução nossa), que reflete uma
abordagem mais diversificada e complexa da significação do patrimônio,
enfatizando sua dimensão “multicultural e multidimensional”.
Ultrapassando a esfera da significação do patrimônio arquitetônico, mas ainda
no contexto de seu caráter intangível, cabe pontuar o entendimento do
patrimônio construído como "Spiritu loci". Discutido na correspondente
Declaração de Québec de (2008), dedicada ao patrimônio urbano, o espírito do
lugar é o sentido constituído por elementos intangíveis e tangíveis conferido por
“vários atores sociais”26.
25
“[...] los valores patrimoniales estéticos, históricos, arqueológicos, antropológicos,
científicos, tecnológicos, sociales, espirituales u otros intangibles de una estructura o sitio
para pasadas, presentes o futuras generaciones.”
26
Cabe pontuar que “genius loci” é o termo de conotação religiosa empregado na
Antiguidade Clássica para designar tudo que se relaciona com o lugar. Christian Norberg‐
Schulz adotou a sentença "espírito do lugar", na teoria da arquitetura, como uma
abordagem fenomenológica do ambiente e da interação entre lugar e identidade. Aldo
Rossi empregou esse termo de maneira semelhante.
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relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
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28
O espírito do lugar testemunha o horizonte das experimentações do patrimônio
e, consecutivamente, das relações dos grupos sociais com este, bem como
enfatiza a importância das dinâmicas de caráter local.
Dado que geralmente as comunidades locais estão mais
bem posicionadas para compreender o espírito do lugar,
sobretudo no caso de grupos culturais tradicionais, nós
afirmamos que são também aquelas melhor equipadas
para sua salvaguarda e que estas devem estar
intimamente associadas em todos os esforços para
preservar e transmitir o espírito do lugar. (DECLARAÇÃO
DE QUÉBEC ..., 2008).
O espírito do lugar é posteriormente pontuado em outro documento, a Carta de
La Valeta (2011), também dedicada ao patrimônio urbano. Essa Carta discute
outra compreensão do patrimônio ainda relacionada à intangibilidade do
patrimônio tangível, a de paisagem cultural. Ela engloba manifestações da
interação humana integradas com o ambiente natural, que valorizam a relação
entre a natureza e a cultura, contemplando, consequentemente, diferentes tipos
de bens construídos. A paisagem cultural foi juridicamente reconhecida na
preservação com sua inclusão na Convenção do Patrimônio Mundial Cultural e
Natural da UNESCO.
das características físicas do bem (sendo tanto tangível quanto intangível),
passando pelo que representa e para quem representa.
Com efeito, o patrimônio é capital cultural para a sociedade e configura‐se, nesse
panorama, como intermediador de novas relações de significação e
experimentação. Tratando‐se particularmente do patrimônio arquitetônico
como objeto de significação, ele é capital social para os grupos sociais locais que
se relacionam com o bem, sendo, por outro lado, como objeto de
experimentação, mercado da indústria cultural. Isso, guardando‐se as devidas
proporções de quão imprecisos esses termos podem ser, anuncia a abrangência
da compreensão do patrimônio arquitetônico e, ao mesmo tempo, a
especificidade das relações sociais que o envolvem na contemporaneidade.
Outro termo vinculado ao de intervenção é o de conservação, que também pode
assumir diferentes sentidos. Kühl (2008, p. 73‐75) afirma que, na Inglaterra,
emprega‐se a palavra conservação, pois restauração assume uma conotação
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relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
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30
negativa, decorrente da “repercussão do pensamento ruskiano”27. Já na Itália, a
sentença conservação é utilizada de forma semelhante à de preservação no
Brasil, ou seja, compreendendo ações mais amplas para a perpetuação do
patrimônio. Todavia, a palavra conservação também é correlata à ação que
pretende a permanência da matéria do bem, “distinta da manutenção e do
restauro”. A autora destaca que Roberto Pane (1971 apud KÜHL, 2008) assegura
a diferença entre conservação e restauração, essencialmente por meio da
quantidade e não da qualidade da ação.
27
John Ruskin (1819 ‐ 1900) defende que a arquitetura histórica é um elo de ligação com
o passado e, por isso, não deve ser tocada, sob o perigo de ser corrompida. No entanto,
o autor reconhece a necessidade de impedir a degradação do monumento, desde que a
intervenção seja “invisível”. Para Ruskin, a restauração é uma destruição do monumento.
(RUSKIN, 2008). William Morris, com base na teoria de Ruskin, promove o movimento
“Anti‐restauro”, na Inglaterra.
28
“[…] at preserving from decay those materials that contribute to the physical structure
of a work.”
29
Para autores que defendem a linha teórica da “Conservação Integral”, a conservação
se torna restauração. Ver item: 3.2 Teoria de restauração contemporânea.
30
"La Conservación es la actividad que consiste en adoptar medidas para que un bien
determinado experimente el menor número de alteraciones por el mayor tiempo posible."
31
Salvador Viñas (2003) grafa a palavra restauração com letras maiúscula e minúscula,
de modo a diferenciar os termos.
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relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
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31
autor, a diferença entre restauração e conservação, na prática, está na condição
de que uma produz resultados perceptíveis e a outra não.
No Brasil, conservação e restauração são termos empregados de forma quase
indistinta. A conservação do patrimônio arquitetônico é uma ação do âmbito da
restauração, em menor escala ou menos agressiva e invasiva 32 . Esse
entendimento é semelhante à compreensão do italiano Roberto Pane, citada
anteriormente, e também é reforçado por Ruth Zein e Anita Di Marco (2007, p.
8): “[...] sob um prisma mais detalhado, se executadas e planejadas para um
curto ou longo prazo, as medidas de conservação podem ser inseridas dentro do
contexto da Preservação, [...].”
Por sua vez, a definição de restauração provavelmente mais conhecida é a de
Cesare Brandi (2004, p. 30), que remete à década de 1960, de que esta “[...]
constitui o momento metodológico do reconhecimento da obra de arte, na sua
consistência física e na sua dúplice polaridade estética e histórica, com vistas a
sua transmissão para o futuro.” A citação já sinalizava, na metade do século XX,
um dos princípios do autor: a dialética entre as instâncias históricas e estéticas33.
Entretanto, o termo restauração já havia sido cunhado antes por diversos outros
autores.
Na Carta de Veneza (1964), já referida como um documento emblemático para
a preservação do patrimônio, a ação de restauração é descrita no artigo 9º como
uma operação indispensável e excepcional. Ela deve assegurar a compreensão
do patrimônio como um documento e ser precedida de estudos sobre o bem,
seguida de conjecturas cujo limite é a hipótese. Além disso, a Carta destaca que,
para a restauração, deve‐se preservar o autêntico e zelar pela permanência e
32
Vale frisar que a operação de manutenção é uma ação comum. Ela deve ser periódica,
visar à prevenção da deterioração do bem e à garantia do uso, portanto, não se refere ao
ato de restauração em si. Por outro lado, a manutenção implica reparos “pequenos, mas
significativos”, ações técnicas e sistemáticas que visam mitigar “situações de risco tanto
para os usuários quanto para o próprio imóvel”. Para isso, é essencial que se tenha
profundo conhecimento a respeito do bem. (ZEIN; DI MARCO, 2007, p. 9). Tais itens
somam‐se ainda a conhecimentos específicos do campo disciplinar da restauração.
Afinal, mesmo que a manutenção se dê com ações ordinárias que preservam o
patrimônio (como pinturas, limpezas rotineiras, etc.), elas precisam ser planejadas,
especificadas e ordenadas, incluindo também nesse processo a definição da logística
pertinente a tais tarefas. As ações de manutenção no patrimônio arquitetônico devem
constar no documento normalmente denominado Caderno de Manutenção, que pode
ser desenvolvido juntamente com o Projeto de Intervenção para preservação do bem ou
pelo responsável pelas obras de intervenção. (Em ambas as situações, o Caderno de
Manutenção precisa ser condizente com quaisquer modificações das Especificações
Técnicas Detalhadas de Materiais Serviços que possam ter ocorrido no transcurso das
obras.)
33
Ver item: 3.2 Teoria de restauração contemporânea, em que essa dialética é discutida.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
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32
pela ênfase das características que conferem importância estética e histórica ao
patrimônio.
De fato, a compreensão contemporânea do patrimônio arquitetônico se baseia
no que sua tangibilidade representa como estrutura edificada e também na
significação de sua intangibilidade, que é dinâmica e multidimensional. Em razão
disso, a ação de restauro do bem, como Carbonara a compreende, não se
resume à sua materialidade histórica. Ela é mais ampla, abarca ações necessárias
à preservação, à gestão, ao uso do patrimônio e, por conseguinte, não
necessariamente se dissocia do que lhe confere nova funcionalidade, nem
mesmo da imagem, do fragmento e do novo, quando utilizados com o intuito de
valorizar a significação conferida à preexistência.
Viñas (2003, p. 23‐24, tradução nossa) se aproxima de Carbonara (1998), no
ponto em que compreende a “Restauração” como conjunto de ações mais
amplo. Contudo, o autor acrescenta à discussão a afirmação de que a amplitude
contemporânea do conceito “[...] representa um problema substancial ao tentar
entender a Restauração como disciplina.” Para evitar‐se esse problema, tem se
assumido tacitamente que existem bens aos quais se confere maior “interesse
cultural” do que outros (VIÑAS, 2003, p. 35, tradução nossa). Logo, caberia a
esses bens o rigor técnico da restauração.
Esse é outro entendimento equivocado, segundo Carbonara (1998). Os grandes
monumentos não são os exclusivamente destinados ao restauro e os de menor
importância não são exclusivamente destinados à reabilitação. Para o autor, essa
crença só teria valia caso o valor econômico do bem fosse o preponderante na
34
Na Itália dos anos 1970, o termo reabilitação “[...] nasce com fortes conotações
políticas e demandas sociais, para as classes populares, até aquele momento, exclusivo
das elites econômico e cultural.” (CARBONARA, 1998, p. 14‐15, tradução nossa). No
manual de elaboração de projetos de preservação do patrimônio cultural produzido pelo
IPHAN, o termo reabilitação é vinculado a um novo uso proposto ao patrimônio
edificado. O termo revitalização é vinculado às ações projetadas para áreas urbanas.
(IPHAN, 2005).
35
Essa reflexão gera discussão no tocante às tendências teóricas mais contemporâneas.
A “Conservação Pura” é uma das atuais derivações do “Restauro Crítico” e estabelece
que o novo na intervenção de preservação do patrimônio é separado da ação de
restauração. Ver item seguinte: 3.2 Teoria da restauração contemporânea.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
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33
preservação, não o valor cultural. Por outro lado, o valor mercantil (econômico)
da arquitetura histórica não deve definir a ação no patrimônio, porque ele impõe
decisões à intervenção que não necessariamente priorizam a preservação do
bem.
Carbonara (2012, p. 4‐5, tradução nossa) sustenta que restauro significa “[...]
primeiro e acima de tudo, um trabalho direto em uma peça e até mesmo sua
mudança, sempre sob rigorosa análise técnico‐científica, histórica e crítica
[...]36.” Esse trabalho é um evento traumático para qualquer patrimônio e, ao
empreendê‐lo, não deve ser conduzido como outra operação que não constitua
efetivamente uma ação de restauro. Ou seja, a iniciativa deve ser comprometida
com o rigor técnico pertinente ao campo teórico da restauração, não se valendo
de quaisquer outras designações para justificar a dispensa desse rigor. Segundo
o autor, os outros termos são operações que vão além do restauro, porque
comumente estabelecem “um novo e diferente exercício de design”, um novo
desenho à preexistência. Sendo assim, a historicidade do patrimônio se reduz a
um “simples fundo, uma espécie de citação da antiguidade”. Nessas
circunstâncias, o que se quer transmitir é um “[...] novo projeto em um contexto
antigo... dessa maneira, a dialética entre passado e presente se restringe a uma
relação de mera coexistência, que reduz a preexistência ao papel de pré‐texto,
[...].” (CARBONARA, 2013, p. 12, tradução nossa)37.
Ademais, cabe enfatizar que sentenças como reabilitação ou revitalização têm
sido empregadas como amparo e justificativa para ações que não utilizam o
mesmo rigor de uma operação que se propõe como restauro (tal como
Carbonara o entende). “São termos que refletem posturas conceituais
inadequadas, pois se afastam das razões que motivaram a preservação e que
procuram distanciar‐se do conceito de restauro [...]” (KÜHL, 2008, p. 207). Com
efeito, ainda que essas ações empreguem a restauração da matéria
remanescente do bem, elas propõem um “novo” projeto que se impõe
minimizando a preexistência, subvertendo‐a em um “pano de fundo”.
Segundo Zein e Di Marco (2007, p. 9‐10), essas operações significam uma
“rearquitetura”, pois impõem ao bem uma nova proposta arquitetônica que
prioriza demolições e acréscimos “[...] exteriores ao edifício original (anexos) ou
interiores ao mesmo, em graus de intervenção variáveis, conforme a situação e
a oportunidade [...].”
36
“[...] need to be explained: ‘restoration’ meaning, first and foremost, a direct work on
a piece and even a change of a piece, always under strict technical‐scientific and
historical‐critical supervision; [...].”
37
"[...] nuovo progetto all’interno di un contesto antico… in questo modo, la dialettica fra
passato e presente si restring ad un rapport di mera coestensività, che reduce la
preesistenza ad un ruolo letteralmente di pre‐testo, […]."
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34
Em face disso, assume‐se que qualquer ação no patrimônio cultural,
independentemente de sua importância, deve ser orientada pela prevalência da
historicidade da preexistência e por sua significação, devendo, portanto, mirar o
rigor técnico e teórico da restauração de modo a resguardá‐lo como referência
para a preservação. Tal operação não necessariamente se restringe à ação na
matéria original do bem, mas em seu resultado deve prevalecer a preexistência.
Se a operação implica a proposição de um novo desenho da preexistência, uma
nova arquitetura em que, por exemplo, o ímpeto pela imagem espetáculo
predomina, ela minimiza a preexistência, que se torna um fundo para o novo.
Nesse caso, tal prática é mais próxima de uma de operação de reabilitação do
que de restauro, ainda que preserve o bem, conforme o entendimento que se
tem de preservação no Brasil, podendo, inclusive, em seu próprio contexto,
denotar qualidade.
Não obstante, uma condição que, de fato, contribui para a dificuldade de se
estabelecer tal entendimento é a percepção da existência de diferentes escalas
de interesse cultural do patrimônio. Néstor García Canclini (1994, p. 96‐97),
assim como Viñas (2003), ressalta essa “hierarquia dos capitais culturais”.
Ainda no contexto da pluralidade dos termos empregados para designar a ação
de preservação do patrimônio, Ignasi de Solà‐Morales (1998, p. 9‐10, tradução
nossa) acrescenta que isso é “um indiscutível indício do pluralismo” das formas
de percepção do objeto arquitetônico na contemporaneidade. Uma delas
consiste na ênfase da visualização na apreensão do patrimônio arquitetônico. “O
processo de substituição da realidade pelas suas imagens e o modo de ver os
monumentos e os lugares, tende igualmente a dissolver‐se em um imaginário
[...] 38 .”Um “efeito parque temático”, que reúne a realidade e suas
representações dela, e que tende a “[...] validar posições abertas,
multissignificativas, inclusive experimentais no tratamento do património
construído39.”
38
“En el processo de sustitución de la realidad por sus imágenes, el modo de ver los
monumentos y los lugares tiende también a disolverse en un imaginário [...].”
39
“[...] validar posiciones abiertas, multisignificantes, incluso experimentales en el
tratamiento del patrimonio construido.”
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35
Dessa maneira, para o autor, mesmo que o patrimônio seja mediado por
ferramentas geradoras de consumo cultural, existe o encontro e a interpretação
do indivíduo com o bem. A possibilidade dessa confluência interpretativa, não
prefigurada, permite um processo de sensibilização quanto à arquitetura
histórica para a ação direta no bem, visando à sua preservação como referência
cultural.
Com base nessa nova relação estabelecida com o bem, sentenças empregadas
para designar a ação direta no patrimônio para a sua preservação, como
restauração, reabilitação ou revitalização, podem ser substituídas por um termo
mais recente – intervenção41. Ela tem como chave metodológica a arquitetura
do próprio edifício existente, observada em um processo de percepção analógico
e de interpretação da preexistência, por meio de associações e da identificação
de características dominantes. Assim, a intervenção constrói com elementos o
equilíbrio sensível entre diferenças e repetições. (SOLÀ‐MORALES, 2006).
Contudo, Solà‐Morales (2006) ressalta, em sua coletânea de artigos publicados
originalmente na década de 1980, que paradigmas interpretativos amplos da
arquitetura histórica não se sustentam, haja vista a crise de modelos universais
da contemporaneidade. Sendo assim, ainda que os dispositivos analíticos para o
conhecimento aprofundado do bem tenham avançado em tecnologia, eles são
insuficientes para definir a intervenção. A sensibilização à arquitetura histórica
para a intervenção parte desse conhecimento, mas ainda é necessária a
interpretação.
40
“Si algo se puede considerarse positivo de la situación cultural contemporánea es que
se ha pasado de los sistemas de valores definidos, legitimados, establecidos por los
poderes a una situación re‐flexiva en la que el juicio sobre una experiencia, unas imágenes
o una conducta no viene dado de forma predeterminada sino que exige un proceso de
elaboración a través de la confrontación de individuos o grupos, a través de
interpretaciones.”
41
O manual para desenvolvimento de projetos de preservação do patrimônio cultural,
elaborado pelo (IPHAN, 2005), destaca que o Projeto de Intervenção no patrimônio
edificado abarca “[...] qualquer ação em benefício do Bem cultural nas áreas de
Identificação, Proteção, Conservação e Promoção.”
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36
A compreensão dos fenômenos artísticos, que têm suas
origens na linguística formalista, tornou possível
conhecer com maior precisão condições em que o
significado pode transformar‐se, metamorfosear‐se por
meio de relações estruturais. (SOLÀ‐MORALES, 2006, p.
50, tradução nossa)42.
Logo, esse processo de percepção analógico complexo e sensível do objeto
arquitetônico histórico, pelo confronto da diferença e da semelhança, constrói
significações possíveis e aleatórias dessa preexistência. Todavia, esse não se
presta, por si só, a “[...] evitar o risco do projeto e, neste caso, o risco de figuração
às novas estruturas linguísticas que a intervenção irá introduzir.” (SOLÀ‐
MORALES, 2006, p. 48, tradução nossa)43.
Ou seja, a intervenção deve reconhecer a significação do preexistente e ainda
das novas articulações propostas. No caso do patrimônio arquitetônico, esse
processo envolve abordar a edificação preexistente fisicamente e se relacionar
“visual e espacialmente” com ela, até interpretar profunda e globalmente o
objeto histórico. Dessa forma, fundamenta‐se a construção da relação entre a
arquitetura preexistente e a “nova arquitetônica” em uma relação baseada nos
significados conferidos à arquitetura histórica e à intencionalidade promovida
com a intervenção. (SOLÀ‐MORALES, 2006, p. 35).
Solà‐Morales (2006, p. 15) ressalta o dilema da intervenção no bem construído,
que incorre em um contínuo desafio de interpretação de uma obra de
arquitetura já existente e de um “novo discurso” que essa mesma arquitetura
passa a expor com tal operação. Essa mudança constante se dá porque a
intervenção no patrimônio arquitetônico também envolve questões de
arquitetura, que não são abstratas e que não podem ser “[...] formuladas de uma
42
“La comprensión lingüística de los fenómenos artísticos, que tiene su origen en la
lingüística formalista, ha permitido conocer con mayor precisión las condiciones por las
que la significación puede desplazarse, transformarse, metamorfosearse a través de
relaciones estructurales”.
43
“[...] no permite eludir e riesgo del proyecto y en este caso el riesgo de la figuración y
de las nuevas estructuras linguísticas que la intervención va a introducir.”
44
“La intervención como operación estética es la propuesta imaginativa, arbitraria y libre
por la cual se intenta no sólo reconocer las estructuras significativas del material histórico
existente sino su utilización como pauta analógica del nuevo artefacto edificado.”
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
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vez por todas, são problemas concretos sobre estruturas concretas.” Assim, “[...]
a lição da arquitetura do passado está no diálogo com a arquitetura do
presente.” (SOLÀ‐MORALES, 2006, p. 32, tradução nossa)45.
Solà‐Morales (2006) ainda enfatiza que o autor da intervenção deve se
posicionar de forma responsável e lúcida. Isso pode parecer deveras óbvio, haja
vista que a responsabilidade e a lucidez devem ser condutas adotadas para
qualquer situação profissional. Todavia, tratando‐se do patrimônio
arquitetônico, a responsabilidade e a lucidez também requerem coerência
teórica frente às inúmeras demandas envolvidas no processo de intervenção.
Entre elas, as que têm a arquitetura histórica como referência para preservação,
mas que também observam as articulações do objeto funcional arquitetônico.
Em especial, porque é sobre a matéria do bem que se intervém e qualquer ação,
por menos invasiva que seja, implica a modificação ou a perda dessa matéria,
que já se degrada progressivamente.
Com base nessa reflexão e na compreensão atual do patrimônio arquitetônico,
reconhece‐se que a intervenção neste deve considerar fundamentalmente as
significações formais e intangíveis do bem, bem como os processos de
experimentação que derivam do contato e da fruição. Para isso, a significação
conferida pelos grupos locais vinculados ao bem é um dado essencial.
Uma dessas questões é a da homogeneização. Arjun Appadurai (2004) aborda
esse tema, originalmente em 1996, a partir da transnacionalidade, reforçando
que globalização não se traduz em homogeneização cultural. O autor defende
que sempre existiram deslocamentos espaciais e comércio, que impactaram nas
formações da sociedade; logo, tais processos não são em si historicamente
novidade. Na conjuntura da globalização, o novo que modifica as interações
culturais é a "[...] disjuntura entre esses processos e os discursos e práticas
mediados pelos meios de comunicação de massas [...]” (APPADURAI, 2004, p.
263). Isso porque a experiência midiática que conforma o processo de produtivo
da indústria cultural de então, agencia a cultura para o consumo, empregando
“instrumentos de homogeneização” (APPADURAI, 2004, p. 63). Dessa forma,
manifestações culturais globais acabam por assumir formas locais e a localidade
é promovida, dissimulando interesses globais.
Essas duas condições antagônicas do sistema de produção da cultura
industrializada – diversidade versus homogeneização – têm repercussões na
preservação cultural contemporânea e, por sua vez, no processo de intervenção
no patrimônio arquitetônico.
De maneira semelhante, Carlos Fortuna e Augusto Silva (2002) reforçam que o
processo produtivo industrializado da cultura tem por base,
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39
Portanto, o impacto da industrialização da cultura advém da hegemonização da
produção e do consumo, em grande escala. A indústria cultural ganha forma
incorporando “elementos culturais e simbólicos na sua cadeia de valor”,
estabelecendo‐se como uma força singular do sistema de produção. Assim, ela
é responsável por ações que provocam a “[...] transformação de uma realidade
‘local’ numa presença planetária.” (FORTUNA; SILVA, 2002, p. 437‐439). Nessa
condição, a realidade local é modificada, perde características que eram sua
fonte de atração – a diversidade –, e ganha características globais – homogêneas
–, pertinentes aos interesses da indústria e, logo, ao seu sistema de produção.
Entretanto,
Um elemento de tensão ou um paradoxo, a diversidade é o ponto de atração
para o “empreendimento” cultural e, por sua vez, para a intervenção no
patrimônio arquitetônico imersa nessa conjuntura. Ela é o início do processo
produtivo cíclico cuja consequência é, frequentemente, a homogeneização.
Pode‐se então aventar que essa é uma ambivalência congênita da preservação
no âmbito da industrialização da cultura.
Entretanto, Fortuna e Silva (2002, p. 438‐439) são contundentes em refutar a
teoria de que a expansão da industrialização da cultura resultaria na
“modelagem das mentes e dos comportamentos padronizados”. Segundo os
autores, “[...] nem a influência sobre os receptores é tão automática, nem o
resultado da interseção dessa influência com a ação dos receptores é tão
uniforme.” Sendo assim, a pressão para homogeneização decorrente da
hegemonia desse processo produtivo é um fator de redução da diversidade,
“mas não a anula imediatamente”. Afinal, “[...] a integração dos grupos sociais
no sistema de produção cultural mundial traz consigo (dada a riqueza cultural
que informa os grupos e dada a não passividade dos receptores) forças de
heterogeneização.”
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40
Essa “não passividade” também é discutida por Boaventura de Souza Santos
(2001). Em sua reflexão, o autor reconhece a existência de configurações
culturais que podem ser identificadas como “[...] transnacionais ou cujas origens
nacionais são relativamente irrelevantes pelo fato de circularem pelo mundo,
mais ou menos desenraizadas das culturas nacionais.” (SANTOS, 2002, p. 46‐47).
“As práticas sociais hoje são simultaneamente globais e locais. É preciso
amplificar a inteligibilidade entre as diferentes práticas, [...].” Todavia, para isso
é preciso buscar o que “temos direito” sendo “[...] a voz ante os silenciamentos,
que o nosso sistema social/político/econômico cria.” (SANTOS, 2001, p. 18‐19).
Ou seja, a cultura na atualidade é, em parte, transnacional e o requisito para ser
“diferente” nessa conjuntura é, antes, ser “igual”. A igualdade de condições
estruturais torna‐se o instrumento para negociação da diferença.
Transpondo essa discussão ao contexto particular da intervenção no patrimônio
arquitetônico, para resguardar‐se a diversidade em meio à industrialização da
cultura, é preciso que também exista certa paridade de condições socioculturais
e econômicas entre os grupos sociais que se relacionam com o bem. Caso
permaneçam disparidades acentuadas, a afirmação do regional/local frente às
ações homogeneizantes promovidas nesse processo produtivo resume‐se ao
antagonismo entre o local e o global. Em última instância, isso significa a
oposição entre o econômico e o cultural na intervenção, no lugar do que deveria
ser primordialmente uma questão sociocultural de interlocução e negociação
entre as igualdades e as diferenças.
Ainda no âmbito desses antagonismos, Néstor García Canclini (2007, p. 22),
assim como Appadurai (2004) e Fortuna e Silva (2002), reafirma que a
industrialização da cultura contemporânea tem o potencial de desestruturar a
“produção cultural endógena”, pois possui “[...] a capacidade de homogeneizar
e ao mesmo tempo contemplar de forma articulada as diversidades setoriais e
regionais.” Em face disso, o autor entende que as “culturas periféricas” têm duas
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41
Entretanto, o próprio autor faz uma ressalva quanto a esse entendimento:
Canclini (2007, 2010), assim como Santos (2001, 2002), entende que o processo
produtivo de industrialização da cultura emprega instrumentos
homogeneizantes, mas a hibridação da interculturalidade é mais próxima do
reordenamento das diferenças culturais, do que de sua supressão. Para o autor,
“[...] em meio às tendências globalizadoras, os atores sociais podem estabelecer
novas interconexões entre culturas e circuitos que potencializem as iniciativas
sociais.” Dessa forma, criando “novos espaços de intermediação intercultural”,
novas práticas culturais de estímulo à diversidade, à heterogeneidade. Para isso
é preciso compreender a globalização, em seu vínculo com a interculturalidade,
e empreender “[...] políticas de integração supranacional e comportamentos
cidadãos [...].” (CANCLINI, 2007, p. 28‐29).
Não obstante, Canclini (1994, p. 100‐101) também ressalta que, no âmbito da
preservação, o patrimônio popular pode ser particularmente vulnerável às
“necessidades de acumulação econômica e reprodução da força de trabalho”.
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42
Nesse caso, convém pontuar que o patrimônio arquitetônico que costuma ser
mais próximo do popular é a arquitetura dos conjuntos históricos urbanos47.
O aumento da competição em condições de crise coagiu
os capitalistas a darem muito mais atenção às vantagens
localizacionais relativas, precisamente porque a
diminuição de barreiras espaciais dá aos capitalistas o
poder de explorar, com bom proveito, minúsculas
diferenciações espaciais. (HARVEY, 2008, p. 265).
Também com esse enfoque, Harvey (2015, p. 3, tradução nossa) aborda
especificamente a preservação e defende que “[...] não devemos recuar nem ao
brilho caloroso do ‘localismo’ nem às trivialidades ‘universais’ da globalização48.”
Para isso, o autor propõe que a preservação deveria se organizar em uma nova
concepção espacial denominada “escala”. Esta seria uma classificação
hierárquica (local, nacional, continental e global) baseada no impacto ou nas
relações da sociedade com esses bens. A partir dela se estabeleceria a
construção de um referencial teórico a respeito de como a preservação deveria
comportar‐se.
Com efeito, a proposição de Harvey de uma nova teoria para a preservação do
patrimônio correspondente à sua noção de “escala” não é o mais relevante aqui.
Em realidade, um bem pode ser apropriado por diferentes grupos sociais de
variadas formas. Ele pode ser um prosaico objeto de consumo global, para
alguns, e ser assumido por sua significação local particular e simbólica, por
outros. Nesse caso, o mais importante é a sua abordagem acerca das relações
que se estabelecem com o patrimônio transcendendo, em parte, a polarização
espacial.
47
A questão da arquitetura popular preservada é retomada no contexto nacional no
capítulo seguinte. Ver item: 2.1.2 Representação sociocultural e identidade cultural.
48
“[…] we must not retreat either towards the warm glow of ‘localism’, or to bland
‘universal’ platitudes of globalization.”
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43
Com base nessas reflexões pode‐se dizer que as características típicas (locais) de
um patrimônio arquitetônico são o foco de atração para a produção
industrializada da cultura. Por conseguinte, a intervenção mobilizada por essa
dinâmica emprega instrumentos para o consumo cultural com potencial
homogeneizante. Ou seja, ela demanda certa diversidade como ponto de
atração, mas a reduz com um repertório da intervenção comum49.
Em contrapartida, também se pode afirmar que não há uma intervenção no
patrimônio arquitetônico tão homogeneizante e global, assim como não existe
um patrimônio cultural que tenha vocação exclusiva para a apreciação local.
Logo, a classificação global versus local, ou mesmo a rotulagem cultura
homogênea versus cultura diversa (plural) tratam de diferenças “fluidas”.
Retomando a afirmação de Canclini (2007), de que a nova ordem cultural
intercultural ou transnacional exige a criação de novos comportamentos
cidadãos e a interlocução entre esses, entende‐se que é preciso que a
intervenção no patrimônio arquitetônico também se acomode a esse processo.
A intervenção pode produzir imagens e/ou experiências, além de preservar a
historicidade e a significação. Uma das condições para isso é integrar mais ampla
e profundamente os grupos sociais que conferem significação ao bem. Outra
condição é que, em face disso, deve‐se reavaliar e readaptar práticas e políticas,
de modo a que a intervenção seja atenta às novas relações socioculturais.
Entretanto, para isso é necessário que haja condições estruturais igualitárias
entre os grupos sociais envolvidos nesse processo, a fim de que possam negociar
a diferença em meio à industrialização da cultura.
49
Exemplos de práticas homogeneizantes da indústria cultural na intervenção no
patrimônio arquitetônico brasileiro são discutidos particularmente no capítulo seguinte,
abarcando questões como o fachadismo, a gentrificação, a imposição de um uso e do
novo à preexistência. Ver item: 2.2.1 Dissonâncias da indústria cultural.
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44
Laurajane Smith (2006, p. 275, tradução nossa) parte da compreensão
contemporânea da inalienável natureza intangível do patrimônio arquitetônico,
afirmando que “toda memória praticada e todos os usos” integram um processo
mais amplo, no qual o patrimônio é o promotor de experiências sociais e
emocionais. Um instrumento de comunicação em processos ativos socialmente
e interativos, que fortalecem laços de pertencimento com o bem e geram senso
de comunidade.
Segundo Smith (2006, p. 307, tradução nossa), esses “processos patrimoniais”
são investidos de um poder político, pois “[...] o patrimônio é usado para sinalizar
e demarcar momentos de identificação e criação de valor, ou recreação e
negociação 50 .” Desse modo, a significação do patrimônio não é apenas
sociocultural, mas também sociopolítica. Sua natureza política se evidencia,
principalmente, quando o patrimônio passa a ser instrumento de negociação de
práticas que envolvem valores e identidades. Ou seja, quando o bem é
reconhecido como autoexpressão e se adquire a autoconsciência de que a sua
prática social é um instrumento unificador da identidade cultural desses grupos,
uma chave do discurso identitário.
Tal exercício é vital para a manutenção da identidade cultural dos grupos sociais,
pois, se os símbolos e significados das suas memórias lhe são suprimidos, sua
identidade é ameaçada. Ademais, se o patrimônio é “uma maneira explícita e
ativa de negociar mudanças culturais e sociais”, ele também é um meio de
buscar a representação cultural desses grupos e comunidades. Em vista disso,
compreende‐se que a significação e a identificação com o patrimônio cultural
pode ser um instrumento para se reafirmar, e igualmente, para se desafiar a
posição dos grupos no mundo. (SMITH, 2006, p. 5, tradução nossa).
Contudo, Smith (2006, p. 274, tradução nossa) ressalta que o discurso identitário
vinculado ao patrimônio não é somente o dos grupos sociais e comunidades; ele
também é um discurso oficial empregado como estratégia de controle e poder.
Nesse caso, o discurso “autorizado do patrimônio” é promovido pelo Estado e
mantém o foco em objetos, lugares e paisagens a serem reverenciados e
protegidos. Bens que, segundo a autora, promovem historicamente valores
ocidentais, correlatos às características estéticas e monumentais do patrimônio
arquitetônico. Um discurso erudito e institucionalizado baseado na natureza
tangível, “morta e paradoxalmente conservável” do patrimônio, que é dirigido
tanto aos populares quanto aos técnicos, de modo a promover um patrimônio
julgado, mediado e viabilizado como instrumento de controle.
50
“[…] of heritage and ways in which this is used to signal and demarcate moments of
identity and value creation or recreation and negotiation.”
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45
Nessas circunstâncias, o discurso do patrimônio pode ser compreendido como
uma experiência limitada da preservação, porque outras formas de identificação
são obscurecidas e a diversidade cultural é frequentemente ignorada. A
significação que é propagada oficialmente costuma ocorrer sem negociação,
prejudicando ideias alternativas e ignorando identidades culturais
“subnacionais”. (SMITH, 2006). Por outro lado, por vezes, o discurso oficial
Segundo Smith (2006, p. 299, tradução nossa), isso pode ser observado no
esforço de técnicos ativamente mobilizados para “[...] viabilizar práticas
inclusivas que reconheçam a diversidade das experiências patrimoniais52.” Como
visto antes, se o patrimônio cultural é um discurso político, ele também é uma
ferramenta de oposição e subversão ao discurso oficial do patrimônio, que se
torna “aberto à contestação”.
Ou seja, há movimentos da sociedade que se organizam no sentido de obter
representação cultural junto ao projeto de preservação cultural da nação.
Ademais, a diversidade convém ao Estado, inclusive, no que tange ao processo
de industrialização cultural. No entanto, a participação de novos agentes nos
processos de preservação do patrimônio arquitetônico é, sobretudo, coerente
com o entendimento atual de sua dimensão intangível conferida,
51
“[…] constructs not only a particular definition of heritage, but also an authorized
mentality, which is deployed to understand and deal with certain social problems centred
on claims to identity.”
52
“[...] who actively work to facilitate the broadening of the definition of heritage, and to
develop inclusive practices that acknowledge the diversity of heritage experiences.”
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46
principalmente, pelos grupos sociais locais. Cabe a ressalva de que condições
estruturais culturais, políticas e econômicas são variáveis essenciais desse
processo.
Diálogo hoje em dia recusado a um público que [...] se
deixa iludir pela promessa de uma semantização fácil.
Valor histórico: será o adjetivo histórico pertinente para
qualificar o resíduo de visões e de espetáculos
fragmentados e efêmeros, de que nenhum
enquadramento cronológico adquirido permite fixar o
lugar na continuidade do tempo e dos acontecimentos?
(CHOAY, 2006, p. 199).
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47
Por certo, a análise de Choay permite observar que a experimentação do
patrimônio arquitetônico contemporâneo, mediada por imagens de uma
narrativa cujo foco é o consumo, constrói uma identificação continuamente
alimentada para perpetuar passados no presente. Com base nisso, pode‐se
ponderar que as intervenções no patrimônio arquitetônico, imersas nesse
panorama de influência dos meios digitais de armazenamento memorial para o
consumo visual, são viabilizadas por experiências mais genéricas do que
autorais. Elas têm o potencial de promover identidades culturais superficiais que
normalmente são provisórias, à medida que não perduram como referências
coletivas sociais, a não ser, talvez, de status de consumo. Trata‐se, portanto, de
identidades culturais que podem ser identificadas como globais.
Tal reflexão é condizente com a afirmação de Sharon Zukin (2000) de que as
cidades antigas (ou o patrimônio construído) da pós‐modernidade detêm a
possibilidade de gerar identidades alternativas.
A pós‐modernidade oferece uma chance de escolha de
uma identidade, a partir da imagem eletrônica e das
comunicações de massa, da imagem manufaturada do
consumo doméstico e da imagem projetada da
arquitetura vernacular. (ZUKIN, 2000, p. 101).
Com efeito, conforme afirma Stuart Hall (2006b), a identidade cultural não é fixa,
inata ao lugar, exclusiva ao suporte, ou mesmo ao momento histórico.
Existe sempre algo "imaginário" ou fantasiado sobre sua
unidade. Ela permanece sempre incompleta, está
sempre “em processo”’, sempre “sendo formada”. [...]
Assim, em vez de falar da identidade como uma coisa
acabada, deveríamos falar de identificação, e vê‐la como
um processo em andamento. (HALL, 2006b, p. 37‐38).
Desse modo, pode‐se ponderar, tal como Choay (2005, 2006) o faz, que, no
âmbito do consumo cultural da preservação, as dinâmicas de industrialização da
cultura podem influenciar a identificação viabilizada pelo patrimônio. Todavia,
Hall (2006b) faz uma ressalva a esse respeito:
De fato, é improvável que a globalização destrua identidades culturais nacionais,
sobretudo porque ela não é um fenômeno homogêneo e linear, e impacta
diferentes culturas de diferentes formas.
Conforme a reflexão de Carlos Fortuna e Augusto Silva (2002) discutida no item
anterior, não há uma homogeneização cultural absoluta; logo, igualmente não
existe uma identidade cultural global absoluta. Nesse contexto, Hall (2006b, p.
77‐78) declara que “[...] ao invés de pensar no global como ‘substituindo’ o local
seria mais acurado pensar numa nova articulação entre ‘o global’ e ‘o local’.”
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49
Com base nas reflexões desses autores, verifica‐se que a significação do
patrimônio arquitetônico e a identificação que dela decorre são intimamente
vinculadas à intervenção. Por sua vez, ambas são afetadas na
contemporaneidade, principalmente em dois aspectos: como prática ativa
política, pelo desejo de representação cultural; e como prática mais “passiva”,
pelo desejo de consumo cultural. Nesse panorama, as intervenções mobilizadas
no âmbito da industrialização da cultura podem conformar identidades culturais
globais, que têm características genéricas, partilhadas pelo consumo. Isso
ocorre, sobretudo, quando as intervenções não contam com a participação
popular, ou quando o processo de “negociação” (articulação entre os grupos
sociais que se relacionam com o patrimônio) não se faz em igualdade de
condições estruturais socioculturais e também econômicas.
No entanto, convém frisar que a intervenção no patrimônio arquitetônico não
transforma completamente a identidade cultural local em uma identidade
global. Não há uma globalização absoluta; logo, não há uma identidade cultural
global absoluta, os laços de identificação dos grupos sociais permanecem,
particularmente quando construídos por meio da prática social. Sendo assim, o
envolvimento das comunidades locais no processo de intervenção é também um
meio de preservar as práticas sociais desse patrimônio e resguardar a identidade
cultural local vinculada ao bem53.
53
Um documento internacional que registra tal entendimento é a Declaração de Florença
(2014), sobre patrimônio e paisagem como valores humanos. Ela ressalta que devem ser
planejadas atividades de promoção do papel das comunidades, de modo a reforçar as
“identidades comunitárias” frente às mudanças promovidas pela indústria turística.
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50
Em vista disso, pode‐se entender que o patrimônio arquitetônico é capital social
para os grupos que se relacionam mais intimamente com ele (locais/regionais),
porque dispõe de potencial para novas funções estratégicas e torna‐se meio para
viabilizar e legitimar aspirações políticas e sociais. Por outro lado, o patrimônio
arquitetônico também é uma “mercadoria especial” para a indústria cultural, à
medida que se torna objeto de experimentação (contato e fruição) para os
demais grupos sociais (globais/interculturais). Nesse caso, evidencia‐se seu
potencial sendo o de instrumento para viabilização de aspirações de consumo.
Ambas as condições do patrimônio podem ser legitimadas no âmbito da
intervenção contemporânea.
Esse tema tem sido debatido há algum tempo, gerando extensa bibliografia, na
qual uma referência é recorrente – Alois Riegl (2014), autor que estabeleceu no
54
Conforme o Manual de Elaboração de Projetos de Preservação do Patrimônio Cultural
do IPHAN (2005), que estabelece os produtos que compõem Projeto de Intervenção. (Ver
quadro 2 – Produtos do Projeto de Intervenção, no item 4.3 Intervenções nos
megaeventos do Rio.)
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51
início do século XX as premissas para a atribuição de valores aos bens55. Seu
postulado de que o valor do monumento não é inerente e, sim, imputado foi
consagrado, mantendo‐se como uma ferramenta conceitual ainda atual 56 . A
valoração atribuída é contextualizada, pois é referente a um agente, a um lugar
e a um tempo, logo, não sendo, por conseguinte, fixa e estável, mas atrelada à
realidade sociocultural e também política do(s) grupo(s) sociais que se
relacionam com o bem naquele momento.
Riegl (2014) também propõe uma classificação para os valores a serem
conferidos ao patrimônio, que podem ser, inclusive, simultâneos. Eles se
relacionam intimamente com o processo de intervenção no patrimônio
arquitetônico e adquirem nuances particulares com a globalização e a
industrialização da cultura. Essas questões são pontuadas ao longo da descrição
da classificação e aprofundadas ao longo do documento. Tal classificação é
ordenada tomando‐se como base o “valor de memória” (ou “valor
rememorativo”), que se divide em outros três:
O “valor de comemoração” ou “valor rememorativo intencionado” é atribuído
pela conformação original do monumento. As características referentes ao seu
momento de criação se destacam e, consequentemente, tenta‐se impedir a sua
degradação. Essa valoração é exclusiva dos monumentos memoriais. (RIEGL,
2014).
O “valor histórico” é atribuído ao monumento por ser um representante de
determinado estágio da produção humana. Os traços originais que o
documentam se destacam e, por conseguinte, não se pretende alterá‐los com a
55
A origem dos valores patrimoniais remonta ao Renascimento, quando “iniciou‐se a
verdadeira preservação dos monumentos”, o despertar do interesse para a preservação
com o desenvolvimento e a aplicação de medidas para sua proteção. Nesse período, os
monumentos “não volíveis” ou “não Intencionais” – criados sem a intenção de serem
associados aos símbolos ou significados (dado que estes são atribuídos ao longo do
tempo) ‐, possuíam dois valores: valor de obra de arte – absoluto e restrito a
determinadas condições específicas – e o valor histórico – inerente à sua antiguidade.
“Pode‐se mesmo dizer que o valor de arte inicialmente era o valor determinante, e o
valor histórico, que já havia sido de fato real e único, passou ao segundo plano.” A partir
do séc. XIX, verifica‐se que em toda obra de arte há, além do valor artístico, o valor
histórico pertinente à sua historicidade intrínseca, pois esta representa um dado
momento da evolução das artes plásticas. (RIEGL, 2014, p. 42‐43).
56
Uma exceção à valoração não‐inerente é a conferida aos monumentos “volíveis” ou
“intencionados” – obras que tratam de acontecimentos a serem imortalizados –, cujo
valor é outorgado pelo autor da obra (RIEGL, 2014, p. 36).
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52
Portanto, ao reconhecer‐se a prevalência do valor histórico sobre os outros, a
intervenção no patrimônio arquitetônico aspira, frente às demais demandas
para a preservação do bem, a conservar o “documento” como o mais inalterado
possível.
Logo, quando se reconhece a prevalência do valor de antiguidade no patrimônio
arquitetônico, a intervenção não deve empregar restituições e acréscimos para
revogar sua degradação, ou mesmo supressões para restabelecer sua forma
original. Não se deseja manter o estado inalterado, nem resgatar um estado
anterior.
Riegl (2014, p. 54) ainda ressalta que o valor de antiguidade não se dissocia do
valor histórico. Ele é mais “simples”, à medida que não se aproxima de critérios
de base científica como o valor histórico. Em função disso, o autor orienta que,
para promover‐se o conhecimento histórico científico, “[...] devem ser
conquistadas cada vez mais classes sociais para o culto do valor de antiguidade,
antes que, com a sua ajuda, a grande massa esteja madura para o culto do valor
histórico.” (RIEGL, 2014, p. 73).
Ignasi de Solà‐Morales (2006, p. 37‐38, tradução nossa) entende que o valor de
antiguidade de Riegl é uma apreciação do velho como manifestação da
passagem do tempo, que promove uma “satisfação puramente psicológica” –
57
Kühl (2008, p. 64) destaca que, para Riegl, os monumentos históricos eram quaisquer
obras cuja antiguidade fosse superior a 60 anos, “[...] (que equivale ao distanciamento
crítico de duas gerações), contrapondo‐se assim às políticas de preservação que se
voltavam apenas aos objetos de excepcional relevância histórica e artística.”
58
Riegl ainda esclarece que o valor de antiguidade é uma evolução direta do antigo valor
histórico da Renascença. “O valor histórico, aderido de forma indissolúvel ao individual,
transformou‐se pouco a pouco em um valor evolutivo, indiferente ao individual, visto
como objeto. Esse valor evolutivo é o valor de antiguidade, [...] que pode ser definido
como o produto lógico do valor histórico que o precedeu quatro séculos atrás.” (RIEGL,
2014, p. 44).
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53
Nesse mesmo sentido, Paolo Marconi (1993) defende que, sendo o valor de
antiguidade mais acessível do que o valor histórico, ele tem crescido em
apreciação na atualidade. Todavia, o autor afirma que o culto contemporâneo
desse valor preza pela forma em dissolução, pois preserva a imagem que carece
de unidade, ou seja, preserva a degradação. Assim, a prevalência dessa
valoração implica não conservar/restaurar o bem. O patrimônio é abandonado
“à própria sorte” ou “embalsamado como um cadáver” 59 . Ao contrário de
quando há mediação entre o valor de antiguidade e o valor histórico e os
“monumentos são vivos” 60. (MARCONI, 1993, p. 43, tradução nossa).
Os três valores apresentados por Riegl (2014) são relacionados à percepção da
história no monumento. Em contrapartida, o autor propõe ainda outro grupo, o
de valores, “valores de contemporaneidade”, que são divididos em três tipos:
O “valor de uso”, ou “valor utilitário”, ou “valor instrumental” é atribuído pelo
uso do monumento. As condições materiais de utilização prática se destacam;
por conta disso, devem ser atendidas as exigências que viabilizam o uso do
monumento, independentemente da forma como ele é feito. Essa valoração é
latente em todos os monumentos em uso61. (RIEGL, 2014). Vale ainda pontuar
que o valor de uso não se refere ao valor mercantil do patrimônio.
Sobre o tema, Cesare Brandi (2004, p. 30) ressalta que a instância da utilidade
“[...] não poderá ser levada em consideração de forma isolada para a obra de
arte, mas tão só com base na consistência física e nas duas instâncias
fundamentais [histórica e estética] [...].” Portanto, para o autor, o valor de uso
não deve prevalecer sobre os demais valores atribuídos à arquitetura histórica,
haja vista que a intervenção deve ser condicionada pelo patrimônio, e não o
contrário.
59
As correntes teóricas contemporâneas do campo disciplinar da restauração abordam
determinados valores de forma mais enfática do que a definida inicialmente por Riegl.
Marconi é defensor veemente de uma dessas correntes teóricas contemporâneas e
critica enfaticamente a abordagem do valor de antiguidade. Ver item: 3.2 Teoria de
restauração contemporânea.
60
Beatriz Kühl esclarece (em nota de tradução) que os termos “monumentos vivos” e
“monumentos mortos” eram comuns no final do século XIX, sendo empregados para
designar, respectivamente, os edifícios ainda em uso e as ruínas. Já na Carta de Veneza
(1964), todos os monumentos são compreendidos como vivos (GIOVANNONI, 2013, p.
185).
61
Todavia, o “valor de uso” não necessariamente incide sobre os monumentos “volíveis”
ou “intencionados” (RIEGL, 2014, p. 36).
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
54
A arquitetura é a única, por entre as artes maiores, cuja
utilização faz parte integrante duma relação complexa e
aí participa com as suas finalidades estética e simbólica,
mais difíceis de apreender nos casos dos edifícios
históricos órfãos do destino prático que lhes deu
existência. (CHOAY, 2006, p. 201).
Em consonância com a citação de Françoise Choay (2006, p. 201), reconhece‐se
que o uso da arquitetura histórica ao longo de sua existência não costuma ser o
mesmo projetado inicialmente. Essa condicionante natural da arquitetura é mais
um fator complicador para a operação de intervenção no patrimônio edificado.
Sobretudo, porque, em meio às dinâmicas da industrialização da cultura, as
intervenções no patrimônio arquitetônico têm, por vezes, um caráter
utilitarista62.
O “valor artístico” ou “valor de arte” é atribuído pela expressão artística da obra
antiga. Ele está em constante mutação, não havendo um cânone artístico
permanente. O que confere significação artística ao monumento se destaca; por
conseguinte, prima‐se pela conservação do estado do bem, ou ainda por sua
restauração. O “valor de arte” é dividido em: “elementar” ou de “novidade”
(existe em qualquer obra de arte nova) e “relativo” (não é um valor objetivo ou
de validade permanente). (RIEGL, 2014, p. 70‐71).
O “valor de novidade” é atribuído pelo aspecto de novo do monumento,
destacando‐se a integridade perene das características do bem. Assim, não há
interesse por traços de degradação, de modo que se pretende, dentro dos
limites do filologicamente possível e correto, devolver a fisionomia perdida ao
monumento63. Essa valoração “sempre foi o valor de arte das grandes massas”.
(RIEGL, 2014, p. 71).
Marconi (1993, p. 43, tradução nossa) afirma que o valor de novidade é “[...] um
culto vital e benéfico, perfeitamente conjugado com o culto do valor histórico
[...]” 64, pois é tarefa do arquiteto construir o novo na preexistência. Contudo, o
autor defende que são necessárias atitudes diferentes para casos diferentes, no
sentido de articular‐se às expectativas do público e à expertise do restaurador.
A preservação contemporânea do patrimônio tem se aproximado, de maneira
geral, mais do universo do novo do que do antigo, tendendo “[...] a um aumento
62
Ver item: 2.2.1 Dissonâncias da indústria cultural, quando se discute a questão no
âmbito da intervenção no patrimônio arquitetônico no Brasil.
63
Filologia: “Estudo científico especializado na análise de manuscritos e outros
documentos antigos.” Definição enunciada em: (http://michaelis.uol.com.br/moderno‐
portugues/busca/portugues‐brasileiro/filologia/).
64
“[...] un culto vitale e benefico, perfettamente conjugabile col culto del valore storico
[...].”
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
55
direto, desejado, decisivo e coerente, não tanto na forma, mas nas bases
geradoras, [...]65.” Em face disso, o autor defende que é preciso interpretar as
várias frases escritas no bem e restituir sua capacidade de comunicar‐se com a
sociedade. (MARCONI, 1993, p. 198, tradução nossa).
Em resumo, Riegl propõe uma forma de valorar a arquitetura histórica
observando o bem e as suas relações com os grupos sociais no tempo, o que
condiz com o entendimento contemporâneo do patrimônio arquitetônico. Por
sua vez, para o autor, a definição do valor patrimonial da arquitetura histórica é
o cerne das decisões para a intervenção, pois envolve os processos de
significação do bem.
Nesse mesmo sentido, Salvador Viñas (2003) ressalta que, para a valoração, é
preciso compreender o bem de todas as maneiras possíveis, estando‐se atento
não só aos aspectos técnicos da edificação, mas também aos aspectos simbólicos
atribuídos pelo público. Baseado nisso, o autor propõe quatro grupos de valores:
“valores autoculturais”, “valores de identificação coletiva”, “valores ideológicos”
e “valores sentimentais pessoais”.
Outro exemplo de classificação de valores é a proposta por Ulpiano Meneses
(2009, p. 35‐37): “valores cognitivos” (oportunidade relevante de
conhecimento), “valores formais” (atributos formais ou estéticos capazes de
aguçar a percepção), “valores afetivos” (relativos à memória), “valores
pragmáticos” (qualidade de uso) e “valores éticos” (interações sociais).
Por certo, há propostas de tipologias de valoração patrimonial definidas por
diversos autores e, inclusive, registradas em alguns documentos de referência67.
65
“[...] tende come ad um direto, voluto, deciso incremento, coerente peró non tanto nelle
forme, ma nelle basi generative, [...].”
66
Ver item: 2.2.1 Dissonâncias da indústria cultural, quando se discute a questão no
âmbito da intervenção no patrimônio arquitetônico no Brasil.
67
O ICOMOS registra uma proposta de tipologias de valores patrimoniais em documento,
adotado por Comitê Nacional, a Carta para a Conservação dos Locais de Património
Cultural de Valor, da Nova Zelândia, redigida em 2010. A Carta de Burra, também um
documento definido por Comitê Nacional, no caso, da Austrália, criada em 1979 e
atualizada sucessivamente em 1981, 1988 e 1999, apresenta um entendimento anterior
no mesmo sentido.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
56
Contudo, L. Harald Fredheim e Manal Khalaf (2016) ressaltam que várias dessas
classificações de valores são criticadas por serem incompletas ou mesmo longas,
e ainda assim serem insuficientes para abarcar as mudanças dos valores com o
tempo. Isso se dá principalmente porque tais classificações não costumam
prever a diversidade das representações patrimoniais.
Fredheim e Khalaf (2016, p. 12, tradução nossa) também afirmam que a
atribuição de um valor preponderante, ou a resultante de vários valores, é a
identificação e/ou afirmação do significado do patrimônio traduzido em
“declaração de significância”. Entretanto, os autores ressaltam que essa
declaração “raramente” é explicitada no conjunto de documentos que subsidiam
as definições da intervenção, dificultando a racionalização e a interlocução entre
as decisões. Segundo os autores, as falhas na valoração que provocam tal
condição decorrem de entendimentos incompletos sobre o bem e da
insuficiência ou inadequação de estruturas para avaliar a significância de
patrimônios que, em sua própria natureza, são “complexos”.
De fato, independentemente das variadas classificações de valores, o processo
prático de valoração do patrimônio arquitetônico para a intervenção é mais
complexo do que pode parecer de antemão. Beatriz Kühl (2008) enfatiza isso e
reforça que o reconhecimento do bem deve ser feito todas as vezes que se
retorna a ele, portanto, a cada novo processo de intervenção. Todavia, isso pode
ser um desafio, tendo em vista fatores como prazos, recursos financeiros e
técnicos insuficientes, além da carência de valorização do Projeto de Intervenção
como elemento fundamental para a iniciativa68.
Em parte, em função dessas dificuldades, há quem alegue que o processo de
valoração é aleatório e, por isso, se abstém de sua definição. Entretanto,
Marconi (1993) defende que tal justificativa é superficial e motivada pelo desejo
de não correr o risco de errar. Por certo, a valoração não é uma ação estatística,
mas sim subjetiva. Ela envolve a sensibilização para o reconhecimento da
significação do patrimônio conferida pelos grupos e também de suas
características formais. Desse modo, a valoração pode ser considerada um juízo
interpretativo que sobrepõe significações.
68
Os agentes envolvidos no processo de intervenção, as pressões e as interferências a
que podem ser submetidos são detalhados sob o enfoque particular da prática nacional.
Ver item: 2.3 Agentes, interesses e interferências.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
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57
compreensão particular e diversa da significação do patrimônio e a intervenção
pode resguardar a manutenção dessa significação.
Choay (2006, p. 218) destaca que o valor imagético “[...] parece ser hoje em dia
a verdade do valor de antiguidade e de um culto que corresponderia, de fato, à
contemplação e à celebração de uma identidade do homem69.” Uma identidade
cultural que é vinculada às formas rápidas e imediatas de reconhecimento e
identificação. Segundo a autora, esse é um culto do patrimônio distante do
discutido por Riegl, que,
Um culto modificado do patrimônio, no qual “[...] a novidade e a diferente
natureza de um valor induzido pelo desenvolvimento da indústria cultural e de
que Riegl não tinha podido prever a emergência: o valor econômico do
patrimônio histórico.” (CHOAY, 2006, p. 211).
69
A identidade do homem a que Choay (2006) se refere é baseada emblematicamente
na imagem, na figura que aparece refletida no espelho segundo a metáfora proposta pela
autora, citada anteriormente.
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58
Sobre a questão da valoração para intervenção ainda vale salientar que, entre os
documentos de caráter internacional produzidos a partir da década de 1980, por
exemplo, 70 há Cartas e Declarações que pontuam orientações sobre o processo
de valoração do patrimônio cultural. O Documento de Nara Sobre Autenticidade
(1994) reitera que as ações necessárias à intervenção são fundamentadas no
respeito aos valores sociais e culturais atribuídos ao patrimônio por todas as
sociedades. Além disso, enuncia que a valoração não é um critério fixo, devendo
ser apoiada em profundas e verossímeis fontes de pesquisa artísticas, históricas,
sociais e científicas a respeito do bem, de suas transformações e significados.
A Declaração de San Antonio (1996), que trata da autenticidade na preservação
nas Américas, ressalta que a valoração do patrimônio deve ser atribuída por
meio de estudos da história da edificação e também pela compreensão das
“tradições intangíveis” vinculadas a ela, ou seja, pelos valores testemunhais e
documentais. Além disso, a Declaração pontua a necessidade de dispor de
conhecimentos específicos para a apuração da variedade de potenciais valores
atribuídos ao patrimônio.
Sendo assim, a valoração do patrimônio é instrumentalizada por pesquisas em
diversos ramos do conhecimento, resultando no estabelecimento de valores
formais e intangíveis, os quais equivalem às significações conferidas a esse
patrimônio. Nesse mesmo contexto, a Declaração de Xi’an (2005), sobre a
conservação do entorno edificado, sítios e áreas do patrimônio cultural, destaca
que valores tangíveis e intangíveis podem ser “[...] valores sociais, espirituais,
70
Conforme já citado, a década de 1980 é um possível marco da globalização em função
da dissolução do bloco soviético.
71
“Historic research and surveys of the physical fabric are not enough to identify the full
significance of a heritage site, since only the concerned communities that have a stake in
the site can contribute to the understanding and expression of the deeper values of the
site as an anchor to their cultural identity.”
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
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59
A Declaração de Florença Sobre Patrimônio e Paisagem Como Valores Humanos
(2014) baseia‐se no entendimento de que a diversidade cultural é intermediada
por valores patrimoniais e paisagísticos. O documento afirma que o conceito de
paisagem é um novo paradigma construído na preservação e registra diversos
instrumentos para a salvaguarda e o respeito aos "valores humanos" do
patrimônio cultural, com o fim de proteger o espírito de lugar e a identidade
cultural de vários grupos sociais. Entre eles, orienta e reconhece a necessidade
do engajamento das comunidades locais para a identificação dos valores
patrimoniais atribuídos.
Nesse contexto, cabe apontar outro tipo de valor do patrimônio registrado em
documento internacional, o valor universal. Ainda que sua origem seja anterior
aos documentos citados, o valor universal foi recentemente redefinido nas
Diretrizes Operacionais para a Implementação da Convenção do Patrimônio
Mundial, da UNESCO (2008)72.
Valor universal excepcional é uma significação cultural
e/ou natural que é tão excepcional que transcende os
limites de sua importância comum para gerações
presentes e futuras de toda a humanidade. (UNESCO,
2008, p. 14, tradução nossa)73.
No que tange ao processo de intervenção no patrimônio arquitetônico, o
reconhecimento do valor universal pode ser associado à legitimação de
apropriações de valor transnacional/intercultural, intimamente associadas à
industrialização da cultura. Isso se dá mesmo que os valores inicialmente
atribuídos aos bens sejam atrelados à cultura local e às características únicas e
peculiares do patrimônio.
72
Esse tratado internacional de cooperação firmado pelos Estados signatários
instrumentaliza a Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural
(1972). Esta caracterizou como valor universal o excepcional valor de determinados
patrimônios culturais, “sob o ponto de vista da história, da arte ou da ciência”. Baseado
nesse reconhecimento e na inclusão do patrimônio na lista de patrimônio mundial, passa
a ser então conferida assistência para a proteção e gestão eficaz em variados aspectos
da preservação desse bem.
73
“Outstanding universal value means cultural and/or natural significance which is so
exceptional as to transcend national boundaries and to be of common importance for
present and future generations of all humanity.”
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
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60
globalização e da industrialização cultural. Nesse universo, o cerne da questão
passa a ser uma essencial sensibilização para tal processo. Os valores devem ser
apurados por meio de uma ampla gama de informações a respeito do bem e das
relações vinculadas a ele. Portanto, baseados no seu conhecimento aprofundado
e no reconhecimento das significações conferidas pelos respectivos grupos que
se apropriam do bem. A valoração do patrimônio arquitetônico é a percepção
daquilo que o bem simboliza, o entendimento de sua intangibilidade e da
tangibilidade do documento histórico. Sua importância é fundamental, mas,
para que a valoração guie de forma coesa as decisões da intervenção, é
necessário que ela seja definida claramente.
Nesse panorama, a cultura também é uma mercadoria (ainda que “especial”) e
a indústria cultural estrutura‐se como uma força de mercado. O fetichismo pelo
consumo cultural é propagado em escala mundial, por meio da imagem, que é
um fragmento do tempo contínuo transformado em realidade. O consumo visual
é fomentado pela novidade, disso decorrendo uma profusão de imagens
efêmeras e estéticas próprias do espetáculo, que é simultaneamente processo e
resultado. Esse ciclo se assemelha a um exercício de liberdade de escolha, mas
está mais próximo de um condicionamento, pois advém do discurso da mídia.
No âmbito do consumo do espaço, a indústria cultural agencia a preservação do
patrimônio cultural por meio do turismo cultural, inclusive, com potencial para
promover desenvolvimento social e econômico. Com isso, o turismo de
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
61
patrimônio passa a ser mais estruturado em experiências entre as pessoas e o
bem, e menos no monumento isolado.
Objetivamente, algumas das implicações mais importantes da globalização e da
industrialização da cultura, para intervenção no patrimônio arquitetônico estão
correlacionadas à universalização cultural (interculturalidade
transnacional/hibridação) e à diversidade cultural (individualização). Esses
processos “antagônicos” têm escala global e são acirrados por diferenças
estruturais sociais, políticas e econômicas. Sendo assim, não são uniformes nem
lineares, pois possuem distintos alcances. Em linhas gerais, tais dinâmicas
representam parte do processo produtivo da cultura contemporânea e, por sua
vez, tornam‐se inerentes à prática da preservação e de intervenção no
patrimônio arquitetônico no mundo. Isso fica mais evidente a seguir.
Para isso, vale salientar que, com a industrialização da cultura e as modificações
nas relações socioculturais da pós‐modernidade, a preservação do patrimônio
cultural passa a ser envolvida em um crescente e incisivo interesse. Os principais
fatores que contribuem para isso são o fetichismo do patrimônio e o desejo de
“presentificação” do passado.
Nesse contexto, a compreensão do patrimônio arquitetônico de maneira geral
amplia‐se, afastando‐se dos padrões europeus e adquirindo maior diversidade.
Ela passa a abarcar ou acentuar características como a intangibilidade, a
significação como lugar de memória e, inclusive, em relação ao entorno. A
significação do bem torna‐se mais dinâmica e intercultural, a exemplo de
categorias patrimoniais como o “espírito do lugar”. Não obstante, no cerne dessa
compreensão do patrimônio arquitetônico multidimensional e dinâmica, há uma
faceta como objeto de experimentação e consumo cultural. Em face dessas
novas formas de percepção do patrimônio arquitetônico, também há novas
maneiras de intervir para sua preservação.
A intervenção visa à preservação do patrimônio arquitetônico e abrange tanto o
restauro, quanto a reabilitação, ou outras designações similares. Os
entendimentos de restauro e reabilitação adotados aqui são os de Carbonara
(1998, 2012), que os diferencia com base na observação do valor e da
significação da preexistência. O restauro é um conjunto de ações cuja meta é a
preservação, promovendo a preexistência e seu valor patrimonial. A reabilitação
(ou qualquer um dos outros termos semelhantes) é a iniciativa mais próxima da
construção de uma nova narrativa sobre a preexistência. A intervenção no
patrimônio arquitetônico tem o intuito de viabilizar sua preservação,
compreendendo a ação na matéria histórica remanescente, assim como também
abarcando o novo, vinculado à preexistência. Tal ação deve ser orientada pelo
mesmo rigor teórico e técnico do campo disciplinar da restauração,
independentemente da importância do bem. Esse rigor condiciona o tipo de
ação a ser tomada, de acordo com a significação do patrimônio.
Assim, a intervenção no patrimônio arquitetônico é uma iniciativa que pretende
resgatar a significação, a integridade física do bem, conferir‐lhe funcionalidade
e estabelecer um exercício criativo, visando à sua salvaguarda como referência
histórica e identitária para a preservação. Para isso, a intervenção não deve
dissociar a intangibilidade da tangibilidade do patrimônio arquitetônico e deve
ainda reconhecer os processos de significação e experimentação que ocorrem
por seu intermédio. Esses novos processos experimentais do usuário podem ser
mediados, no âmbito da industrialização da cultura, por ferramentas como a
imagem, o fragmento, o novo, etc., que são parte da intangibilidade do
patrimônio arquitetônico na contemporaneidade.
da intervenção ignora a significação local/regional da arquitetura histórica, ele é
incoerente em relação ao seu processo metodológico de desenvolvimento e
constrói uma nova narrativa que pode ser vinculada ao consumo e empregar
práticas homogeneizantes.
Ainda quanto à interpretação da preexistência para a intervenção no patrimônio
arquitetônico, outro ponto que se sobressai na apuração das significações do
bem é o processo de identificação e construção da identidade cultural pelos
grupos sociais. Sendo assim, é oportuno retomar o conceito de identidade
cultural relacionado à intervenção.
A identificação e a consecutiva construção da identidade cultural por meio do
patrimônio arquitetônico são exercícios de prática social que, na construção de
um discurso político, se legitimam politicamente com a autoconsciência e a
negociação coletiva. As identidades culturais locais, por exemplo, são
construções de grupos sociais que guardam relações mais “íntimas” com o bem,
peculiares e diversas. Elas mobilizam discursos que podem ser ferramentas para
alcance de representatividade, ou mesmo para a oposição e subversão a outros
discursos. É o caso dos discursos do Estado, que promovem identidades
nacionais baseadas em uma memória ideológica nacional, por vezes, estruturada
em valores historicamente estéticos e monumentais, eruditos e
institucionalizados.
Nesse contexto, é possível que a identidade cultural local mude, em parte, à
medida que o processo de reconhecimento e identificação não é fixo e,
sobretudo, quando a identificação com o patrimônio não é um processo político
de prática social do bem. Todavia, a desidentificação dos grupos locais é
improvável, à medida que invariavelmente há algo de local nessa identidade, de
modo que ela não se torna uma identidade global/intercultural absoluta.
Com efeito, as práticas sociopolíticas (de afirmação) e/ou socioeconômicas (de
consumo) vigentes no “exercício” do patrimônio pelos grupos sociais podem ser
simultâneas, uma não necessariamente exclui a outra. Essas relações sociais com
o patrimônio arquitetônico não são incorretas ou ilegítimas, mas diferentes, e
ocorrem de acordo com a dinâmica cultural contemporânea.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
64
Objetivamente, as implicações da compreensão das identidades culturais para o
processo de intervenção no patrimônio arquitetônico passam pela sensibilização
a respeito das múltiplas nuances de identificação com o bem, ampliando
consequentemente os agentes envolvidos nesse processo. Isso condiz com o
reconhecimento contemporâneo da dimensão intangível e da significação da
arquitetura histórica de valor patrimonial.
Logo, a intervenção contemporânea no patrimônio arquitetônico deve ater‐se à
significação ativa que envolve o pertencimento, a identificação, a prática política
e o desejo por representatividade, todos esses fatores relacionados à identidade
local. No entanto, também estará atenta às experiências dinâmicas que resultam
em identidade intercultural, uma vez que a intervenção se encontra imersa
nesse panorama que é estruturalmente desigual e heterogêneo em sua
distribuição no espaço. Ademais, quando não há paridade de condições sociais,
políticas e econômicas de interlocução e negociação das igualdades e diferenças,
é preciso buscar alternativas que resguardem a diversidade cultural para futuros
processos de negociação, tais como a sensibilização para a preservação e a
participação popular no processo de intervenção.
Por sua vez, a apuração da significação do tangível e do intangível no patrimônio
arquitetônico compõe a atribuição da valoração patrimonial, que é uma das
bases para a intervenção. Sendo assim, é oportuno pontuar os principais pontos
que balizam sua definição.
As implicações do panorama contemporâneo da preservação para a valoração
patrimonial, necessária à intervenção no patrimônio arquitetônico, passam pelo
entendimento desta como múltipla e dinâmica. Na prática, a valoração é um
processo complexo e técnico que deve ser somado a um exercício de
sensibilidade e interpretação.
Com base na definição dos entendimentos e dos conceitos essenciais para
intervenção no patrimônio arquitetônico, pode‐se considerar que essa é uma
ação no bem, mas destina‐se à sociedade, inclusive com potencial de promover
desenvolvimento social e econômico. Sob essa perspectiva, a arquitetura de
valor histórico também é objeto de consumo visual, não somente pelo que há
de histórico nela, mas também pelo que há de contemporâneo, construído para
o impacto. Desse modo, a intervenção abarca a ação de restauro propriamente
dita e também o novo, inserido no contexto da nova funcionalidade da
preexistência.
É preciso estar cauteloso aos prós e contras do consumo do patrimônio, que é
uma realidade contemporânea advinda da globalização e da industrialização da
cultura e, portanto, influente na intervenção no patrimônio construído. Assim,
uma intervenção que promove um discurso atento à preexistência é
metodologicamente coerente, pois se baseia primordialmente nos significados
locais/regionais atribuídos ao bem, associados à identidade cultural local. Dessa
forma, a intervenção assegura a preservação do bem na qualidade de referência
identitária e histórica; além disso, resguarda a diversidade. Todavia, se a
intervenção agencia um novo discurso, um novo projeto, ignorando os
significados locais, ela é incoerente em relação a esse mesmo processo
metodológico.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
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66
2. A PRÁTICA BRASILEIRA DE
INTERVENÇÃO NO PATRIMÔNIO
ARQUITETÔNICO
Neste capítulo, a discussão sobre a relação ente a teoria do campo disciplinar da
restauração e a prática da intervenção contemporânea no patrimônio
arquitetônico prioriza os conceitos e entendimentos essenciais dessa atividade
em âmbito nacional, observando as condicionantes específicas de nossa
realidade.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
67
Uma delas é a ampliação da compreensão do patrimônio cultural em âmbito
nacional e, por sua vez, do patrimônio arquitetônico, influenciada pela
globalização e pela industrialização da cultura. Para isso, a Carta de Veneza
(1964) é um ponto de partida, pois representa a consolidação da restauração
como campo disciplinar. A referida Carta promove, entre outras premissas, a
compreensão do patrimônio cultural como documento, como representação da
arquitetura modesta (não só a monumental) e como conjunto (não só a
arquitetura isolada).
Leonardo Castriota (2007, p. 17) afirma que, no Brasil, desde Veneza (1964), “[...]
o tipo de objeto a ser protegido muda, passando do monumento isolado aos
grupos de edificações históricas, à paisagem urbana e aos espaços públicos.”
Uma valorização do processo de formação da cidade mediante a qual, quanto
mais a compreensão do que é patrimônio cultural se amplia, mais se reduz a
categoria do monumento histórico e se amplia a categoria do conjunto histórico.
Com efeito, a noção de patrimônio como monumento no âmbito nacional se
altera, mas, ainda durante algum tempo, atém‐se a características muito
peculiares74. Flávia do Nascimento (2016, p. 126) ressalta que o entendimento
do patrimônio cultural como documento testemunhal da história, promovido na
Carta de Veneza (1964), afasta‐se do argumento da “monumentalidade”, da
74
Neste ponto é oportuno retroceder a um período anterior da discussão e ater‐se ao
projeto de preservação formalizado no Decreto‐Lei nº 25 de 30 de Novembro de 1937.
Ele constituiu a primeira regulamentação do Estado para o patrimônio cultural no Brasil.
O Decreto organizou a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional e institui o
tombamento de bens culturais com a inscrição destes em quatro Livros de Tombo: Livro
de Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico; Livro de Tombo Histórico; Livro de
Tombo das Belas‐Artes; Livro de Tombo das Artes Aplicadas (trata da arte erudita).
(BRASIL. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, 1937).
Esse projeto, segundo José Gonçalves (1996, p. 28) foi uma estratégia de estruturação de
uma memória coletiva nacional no regime do Estado Novo, que garantiu a preservação
do patrimônio arquitetônico, mas mostrou‐se anacrônico, pois empregou durante mais
de vinte anos uma proposta orientada para a preservação de arquiteturas históricas e
religiosas que eram “alegorias” de “valores classificados como ‘nacionais’”. O autor
afirma que o objetivo então era “[...] a valorização do ‘tradicional’ e do ‘regional’ na
construção de uma imagem nacionalista singular do Brasil”, “[...] ainda que isto fosse
feito através do vocabulário das vanguardas modernistas europeias.” (GONÇALVES,
1996, p. 41‐42).
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Nesse contexto, Lia Motta (2000) destaca que um marco no processo de
valorização documental da arquitetura histórica, em detrimento do
estético/estilístico de outrora, é o parecer do arquiteto Luís Fernando Franco, do
IPHAN, emitido em 1984, sobre o tombamento de Laguna (SC). Nascimento
(2016) acrescenta que outras iniciativas se sucederam espelhadas nessa: Cuiabá
(MS), Natividade (GO), Pirenópolis (GO) e São Francisco do Sul (SC).
Por sua vez, Nascimento (2016) afirma que a compreensão do patrimônio
cultural como representação da arquitetura mais diversa, difundida na Carta de
Veneza (1964), foi incrementada pela da multiplicação dos órgãos estaduais de
proteção, no início da década de 1980. Dessa forma, estes ocupam um vazio de
atuação da esfera federal, contribuindo para a “repatriação” de exemplares que
antes eram desconsiderados76.
Em consonância com esse movimento, Maria Cecília Londres Fonseca (2009)
destaca que, na Constituição de 1988, segmentos das “sociedades folcloristas”,
“movimentos negros e de defesa dos direitos dos indígenas” e “grupos de
75
Já na segunda metade da década de 1980, com o término da ditadura militar e em meio
à redemocratização vem se desenhando um processo de reestruturação da preservação
nacional.
76
Cabe salientar que já existiam representações de serviços de preservação em estados
pioneiros desde a década de 1920. (KÜHL, 2008).
77
Gonçalves (1996, p. 41‐42) afirma que, durante os regimes autoritários, a
administração pública na área de preservação composta por intelectuais modernistas,
contribuiu para que esse “ideal” nacionalista perdurasse.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
69
De fato, a Constituição é um marco simbólico da mudança na preservação
contemporânea do patrimônio cultural nacional. Nesse sentido, vale ressaltar
que uma de suas contribuições para a ampliação da compreensão do patrimônio
cultural e para a sua diversidade é a categoria de patrimônio cultural imaterial79.
Mesmo que esta não se refira diretamente ao patrimônio arquitetônico, seu
precoce entendimento colabora expressivamente para o reconhecimento da
significação imaterial do patrimônio arquitetônico, discutida mais a seguir.
Por outro lado, na década de 1990, isso em parte se modifica. Lia Motta (2000)
defende que a preservação do patrimônio construído em conjuntos urbanos
passa a sofrer a influência do modelo de preservação globalizado, que retoma o
destaque das características do objeto e da imagem reverenciados na
preservação nacional de outrora. Como pontuado antes, esses valores visuais
(fachadísticos e estéticos) são substituídos entre os anos de 1970 e 1990 pelo
valor documental, o valor das leituras de informações do território e que a
materialidade dos objetos pode conter. Sendo assim, tal conjuntura representa
Nas dinâmicas da globalização e da industrialização da cultura, o consumo visual
do patrimônio arquitetônico é promovido pelo signo e pela efemeridade. A
78
Fonseca (2005, p. 44‐64) defende que o projeto de preservação instituído com o
Decreto‐Lei 25 de 1937, que perdurou durante décadas empregando práticas
“restritivas”, tecnicistas e elitistas orientadas menos nos significados e mais no “objeto”,
no “belo” e no “excepcional” (expressão de uma arquitetura histórica selecionada como
símbolo da memória nacional no âmbito da construção da identidade brasileira, mas
referente a grupos sociais de “tradição europeia”), foi um “instrumento ideológico de
legitimação do poder estatal” do Estado Novo (1937‐1946); cujas consequências para a
sociedade foram mais severas do que “[...] a mera exclusão de ‘tipos’ de bens culturais
desse repertório [...]”, pois perpetuou a estrutura social excludente e hierarquizada dos
colonizadores. (FONSECA, 2009, p. 65‐67).
79
“Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e
imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à
identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira,
[...]” (BRASIL. CONSTITUIÇÃO (1988), 2017, p. 164). Por sua vez, o Decreto‐Lei nº
3.551/2000 institui o Registro dos Bens Culturais de Natureza Imaterial e cria o Programa
Nacional do Patrimônio Imaterial (BRASIL. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, 2000). Isso
ocorre antes mesmo da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial
da UNESCO de 2003.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
70
revalorização do objeto e da imagem, em detrimento dos significados do
patrimônio material, é uma abordagem que se distancia do rigor historiográfico.
Todavia, as práticas da indústria cultual em âmbito nacional são bastante
específicas e serão detalhadas mais a seguir, relacionadas ao processo de
intervenção no patrimônio arquitetônico.
Não obstante, ações mais recentes na preservação nacional também evidenciam
a ampliação da compreensão do patrimônio arquitetônico, bem como de sua
expansão numérica. Nesses casos, mais orientadas no sentido da compreensão
de seu significado e conscientes do papel dos grupos sociais nesse processo. Um
exemplo é o Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC), de 2000, a
categoria de Paisagem Cultural Brasileira, de 2009, e outro ainda mais recente,
a Política do Patrimônio Cultural Material (PPCM) de 2018, que são retomados
no item seguinte deste capítulo.
Outra discussão promovida no capítulo anterior como um fator conjuntural das
novas relações socioculturais da pós‐modernidade que contribui para a
ampliação da compreensão do patrimônio é o desejo pelo passado. Gonçalves
(2015) reconhece que essa dinâmica contemporânea mobiliza em direção à
preservação do patrimônio cultural, à medida que promove um desejo pelo
passado.
É provável que esteja em jogo um trabalho coletivo de
mediar e equilibrar contradições em nosso modo
contemporâneo de representar o tempo, uma
concepção na qual o futuro já não brilha como o foco
das esperanças utópicas, e o passado é preservado ou
reconstruído na vã expectativa de parar o tempo.
(GONÇALVES, 2015, p. 218).
Para Gonçalves, há uma interrupção da continuidade histórica decorrente da
sensação de aceleração do tempo, assim como discutido anteriormente por
David Harvey (2008) e Fredric Jameson (1985). No entanto, segundo Gonçalves
(2015), tal interrupção ocorre devido à impressão de que o futuro já não parece
ser longínquo e rico de possibilidades, logo ele se abrevia e se tornar presente,
impelindo em direção ao passado, à preservação do passado.
A mobilização pelo passado também é afirmada por Françoise Choay (2005) e
François Hartog (2006). No entanto, Hartog observa que ela resulta em um
processo de “presentificação” do patrimônio cultural. Além disso, com base nos
apontamentos apresentados sobre as peculiaridades da ampliação do
patrimônio na realidade nacional, pode‐se ponderar que a mobilização pelo
passado caracterizada por esses autores é mais cumulativa do que a verificada
na preservação brasileira.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
71
Ademais, pode‐se também ponderar que nosso desejo pelo passado é mais
conciliatório. O “dever de memória” no Brasil é diverso do que Hartog defendia.
Ele é mobilizado pelo dever de reaver memórias preteridas, um direito à
memória que foi subjugada por políticas de preservação anteriores, que
conteplavam um tipo de bem específico para preservação.
Nesse contexto, Gonçalves (2015, p. 220) ressalta que a assimilação do
patrimônio imaterial em grande escala na preservação implicou “[...] uma
intensificação dos usos do vocabulário da moderna antropologia social e cultural
[...]”; no lugar do “[...] vocabulário da história, e especialmente da história da
arte e da arquitetura, que eram centrais na construção discursiva do
patrimônio80.” Isso culmina na reivindicação pelo reconhecimento e pelo registro
de bens associados às “culturas populares”.
Portanto, pode‐se dizer que o processo de sensibilização pelo passado na
contemporaneidade, em âmbito nacional, não chega a se assemelhar à escala
verificada na Europa. Não vivemos no Brasil uma verdadeira obsessão pela
memória e uma ânsia fetichista mobilizadora para preservação, isto já foi
apontado por diversos autores. Inclusive, reivindicações por representatividade
ainda são observadas na preservação do patrimônio cultural e isso é retomado
e aprofundado no contexto da intervenção no patrimônio arquitetônico, como
ser verá mais a seguir.
80
Nascimento (2016) destaca a influência da historiografia da França (Escola dos
“Analles”) na preservação do período de redemocratização.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
72
[...] a superação de uma visão exclusivamente centrada
nos “fatos memoráveis” da história oficial nacional; o
reconhecimento de uma memória plural, representativa
de diversos grupos que compõem a sociedade brasileira;
a desvinculação do valor cultural ao caráter excepcional
ou monumental dos bens, valor agora identificado nos
portadores de referência à ação, memória e identidade
dos diversos grupos sociais; a inclusão dos bens
intangíveis como uma nova categoria de patrimônio a
ser protegida e reconhecida; o entendimento do
patrimônio natural como uma natureza incorporada à
memória social e parte da vida humana; e, finalmente, a
tutela do patrimônio compartilhada entre os poderes
públicos e a comunidade. (NASCIMENTO; SCIFONI, 2010,
p. 46).
Convém ressaltar que a política nacional de cultura e a proteção do patrimônio
histórico e cultural são competências do Ministério da Cultura. O IPHAN é a
autarquia federal responsável pela preservação do patrimônio cultural brasileiro
que tem, entre outras, a função de elaborar as políticas públicas do setor de
preservação, desenvolvendo programas e projetos, na forma de planos e de
diversas modalidades de atos normativos.
A Política do Patrimônio Cultural Material é um documento elaborado na forma
de normatização. Ela estabelece critérios e diretrizes para a preservação e,
consecutivamente, para o processo de intervenção. O PPCM foi desenvolvido
com a participação da comunidade por meio de consulta pública e está em
processo de consolidação, sobretudo porque ainda carece que sejam criados
vários outros instrumentos complementares.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
73
O PPCM registra, entre seus cinco objetivos específicos, o de “[...] precisar os
entendimentos institucionais sobre termos ou conceitos específicos aplicáveis à
preservação do patrimônio cultural de natureza material; [...].” Esse caráter
orientador e operacional do documento “[...] busca promover de forma coerente
e concertada a preservação do patrimônio cultural material.” (IPHAN, 2018, p.
32‐33). Tal prerrogativa se alinha com o cerne da presente pesquisa, que é a
coerência da prática da intervenção contemporânea no patrimônio
arquitetônico, em relação ao referencial teórico do campo disciplinar da
restauração.
Imbuído dessa mobilização pela citada coerência da preservação do patrimônio
material, o PPCM deixa clara a intenção de atualizar diretrizes e premissas
adotadas pela autarquia. Isso é observado ao longo do documento, mas pode‐se
dizer que é mais representativo na ênfase conferida à significação do patrimônio
material e, principalmente, no entendimento desta como um processo
sociocultural essencial para a preservação. O órgão viabiliza a adoção dessa
postura por meio de transformações em sua estrutura e afirma, no citado
documento, que eles abandonaram
Essa reestruturação do IPHAN é condizente com uma visão mais ampla e atual
da preservação, atenta aos processos de significação do patrimônio material e a
gestão desses processos. Além disso, contribui para a minimização da divisão
entre bens materiais e imateriais.
Sendo assim, o PPCM estabelece como premissas:
I. As ações e atividades relacionadas com a preservação
do patrimônio cultural material devem compreender e
considerar o Presente;
II. As ações e atividades devem considerar a
indissociabilidade entre as dimensões materiais e
imateriais do Patrimônio Cultural;
III. As ações e atividades devem partir da leitura do
território e da compreensão das dinâmicas políticas,
econômicas, sociais e culturais ali existentes;
IV. As ações e atividades devem buscar promover a
articulação institucional com diferentes níveis de
governo e sociedade;
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
74
No que diz respeito ao patrimônio arquitetônico, em particular, a segunda e a
terceira premissas evidenciam o alinhamento do PPCM com as discussões acerca
da compreensão contemporânea desse patrimônio e, por conseguinte, com as
Cartas, Declarações e Resoluções patrimoniais de caráter internacional. Quanto
ao processo de intervenção, a quinta premissa é mais expressiva, pois registra a
atenção quanto à sustentabilidade da significação conferida pelos grupos sociais
locais, essencial para a diversidade cultural. Essas premissas se relacionam em
especial com dois dos dezoito princípios estabelecidos no PPCM: o “Princípio do
Respeito às Diversidades Locais e Regionais” e o “Princípio da
Indissociabilidade”, que trata da não separação entre os bens culturais materiais
e as “comunidades que os têm como referência.” (IPHAN, 2018, p. 31‐32)81.
Ainda no que tange à definição da compreensão contemporânea do patrimônio
material nacional, o PPCM formaliza no artigo 21 “categorias específicas de bens
culturais materiais” (IPHAN, 2018, p. 36). Entre elas, as que podem carecer de
esclarecimentos e se relacionam com o patrimônio arquitetônico são as
“categorias” de “Paisagem Cultural Brasileira” e de “Lugar de Memória” 82.
81
O glossário do PPCM define “referência cultural” como “(1) Entendimento aplicável ao
patrimônio cultural. (2) São os sentidos e valores, de importância diferenciada, atribuídos
aos diversos domínios e práticas da vida social e que, por isso mesmo, se constituem em
marcos de identidade e memória para determinado grupo social.” (IPHAN, 2018, p. 57).
O registro do patrimônio como referência cultural está também na Constituição de 1988
no já citado “Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza
material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência
à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade
brasileira, [...]” (BRASIL. CONSTITUIÇÃO (1988), 2017, p. 164). Todavia, o entendimento
de referência cultural já havia sido estabelecido em 1975 pelo antigo Centro Nacional de
Referência Cultural (CNRC) (que não compunha o IPHAN à época, nem o Ministério da
Cultura). Em 1979, a ideia é adotada pelo IPHAN e tratada como conceito pela instituição
no final da década de 1990. (MOTTA, 2017). O determinante sobre a compreensão de
referência cultural é o vínculo entre a significação memorial, correlata à historicidade do
bem, e a significação identitária dos grupos sociais.
82
Lia Motta (2017, p. 217) ressalta que a Constituição Federal de 1988 “[...] além de
abrigar o instrumento do tombamento como forma de proteção do patrimônio, permitiu
outras formas de acautelamento dos bens culturais.” Sendo assim, a “[...] inclusão no
Livro de Registro de Lugares ou na Chancela da Paisagem Cultural [...]” também são
recursos para proteção de referências culturais para preservação.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
75
Entretanto, as ações do programa de Paisagem Cultural foram interrompidas em
2015 e excluídas da Carta de Serviços ao Cidadão (descrição dos serviços
oferecidos pela instituição)84. A revisão da Portaria de 2009 do IPHAN, que es‐
tabelece a chancela da Paisagem Cultural Brasileira, consta no PPCM. De fato, a
Paisagem Cultural é uma “categoria” atual de patrimônio, contudo também é
um instrumento complexo. No âmbito da intervenção no patrimônio
arquitetônico, pode‐se antecipar uma potencial dificuldade de articulação entre
as ações que envolvem vários agentes, principalmente no caso da iniciativa
privada.
Quanto ao Lugar de Memória, sua presença no documento que registra a política
para o patrimônio material reforça a orientação deste pela significação do bem.
Ela é o atributo estruturador do lugar de memória e sua definição é um
instrumento para proteção de bens materiais, justificada na significação e não
necessariamente na sua integridade. Para a “categoria” de Lugar de Memória de
patrimônio material, o PPCM estabelece também no artigo 21 que sejam
83
A portaria nº 127, de 30 de abril de 2009 estabelece no “Art. 1°. Paisagem Cultural
Brasileira é uma porção peculiar do território nacional, representativa do processo de
interação do homem com o meio natural, à qual a vida e a ciência humana imprimiram
marcas ou atribuíram valores.” (IPHAN, 2009).
84
O memorando nº 384/2015 do IPHAN, afirma a necessidade de “[...] redefinição de
papéis em relação às instâncias do IPHAN que abrem processo administrativo, o
instruem, efetivam parcerias, conduzem à formulação do Plano de Gestão, monitoram a
realização de ações acordadas, etc.; se deve por não haver audiência pública para
validação do Plano de Gestão; e outros.” (IPHAN, 2015).
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relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
76
Com efeito, os critérios de seleção do que preservar devem ser alinhados,
independentemente de categorizações, com os avanços contemporâneos da
preservação. No âmbito da seleção e tombamento do patrimônio material, o
PPCM estabelece critérios para isso no artigo 3185.
Critério I: Representar a capacidade criativa dos grupos
formadores da sociedade brasileira, com expressivo
nível simbólico ou expressivo grau de habilidade
artística, técnica ou científica;
Critério II: Representar um evidente intercâmbio de
ideias e valores dos grupos formadores da sociedade
brasileira;
Critério III: Representar uma tradição cultural viva ou
desaparecida que exemplifica grupos formadores da
sociedade brasileira;
Critério IV: Representar ou ilustrar um estágio
significativo de grupos formadores da sociedade
brasileira;
Critério V: Representar a interação humana com o meio
ambiente, com expressivo nível simbólico ou expressivo
grau de habilidade artística, técnica ou científica;
Critério VI: Representar modalidades da produção
artística oriunda de um saber advindo da tradição
popular e da vivência do indivíduo em seu grupo social;
Critério VII: Representar modalidades da produção
artística que se orientam para o registro ou
representação de eventos, com expressivo valor
simbólico, da história nacional;
Critério VIII: Representar modalidades da produção
artística ou científica que se orientam para a criação de
objetos, de peças e/ou construções úteis ao brasileiro
em sua vida cotidiana. (IPHAN, 2018, p. 39).
85
O tombamento no Brasil é um procedimento administrativo do Estado sobre a
propriedade privada e pública que, no caso da esfera federal de proteção, culmina com
a inscrição do bem em um dos Livros de Tombo já citados. O tombamento pode ser
voluntário ou compulsório, e ocorre principalmente por ato do poder executivo. Também
pode se dar pelo poder legislativo, que processa o tombamento conforme as normas
urbanísticas presentes nos Planos Diretores municipais, ou conforme a indicação de
preservação de bens por meio de Decretos. Mas, o tombamento ainda pode ser um ato
do poder judiciário, embora seja menos frequente. Nesse caso, ele ocorre por intermédio
de ação que pode ser coletiva, popular ou civil. (CORONA; GROSSI, 2011).
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77
Convém assinalar que os critérios de seleção do patrimônio cultural foram
criticados intensamente nas últimas décadas. Scifoni (2015, p. 136‐137), por
exemplo, ressalta a necessidade de sua atualização, em razão de os técnicos do
IPHAN ainda priorizarem “[...] valores formais, estéticos, estilísticos e
arquitetônicos [...].” Segundo a autora, nem mesmo os avanços conquistados
com a Constituição de 1988 “[...] superam a ideia de um patrimônio vinculado a
fatos memoráveis da história brasileira, ou seja, uma visão celebrativa e pouco
crítica do passado [...]”, que implicou a perda de inúmeros bens representativos.
Tal conjuntura ainda é agravada por conflitos de interesses políticos e
econômico‐imobiliários. Scifoni afirma que essa “fragilidade” das instituições
públicas da área da preservação é também observada na carência de recursos
para as ações físicas no patrimônio e para a reinserção deste no tecido social.
Em função disso, Scifoni (2016, p. 54‐55) sustenta que o Brasil apresenta um
conjunto “extremamente desigual do que se afirma ser memória coletiva”,
conformando um “passivo patrimonial” que é fruto de um deficit de bens a
serem preservados por carência de “reconhecimento e proteção”.
Ruth Zein e Anita Di Marco (2008, p. 9) também asseguram a necessidade de
corrigir os critérios de seleção do patrimônio. Elas reivindicam novos parâmetros
de escolha e proteção do patrimônio para uma compreensão mais ampla deste,
que contemple suas articulações e significações em processos práticos de
preservação, aproximando mais os grupos sociais dos patrimônios materiais.
Além disso, também requerem que esses critérios sejam debatidos
abundantemente e declarados de maneira explicita.
Embora essas críticas sejam anteriores à publicação da “recente” Política, elas
apontam para um “modus operandi” da preservação, particularmente
pertinente às ações no patrimônio arquitetônico (inclusive da intervenção
propriamente dita), que não se interrompe de imediato com o PPCM. De fato, a
Política consolida oficialmente mudanças que, como pontuado na introdução
deste capítulo, vinham sendo estabelecidas progressivamente na preservação
ao longo dos anos. Contudo, os critérios de seleção do patrimônio material
constantes no PPCM carecem de ser declarados mais explicitamente, pois
favorecem uma abordagem ainda mais tecnicista do que relacional.
Sendo assim, pode‐se ponderar que, por algum tempo, talvez, seja temerário
que o termo “expressivo”, registrado repetidamente nos critérios de seleção do
patrimônio material no PPCM, possa ser tomado, inclusive no processo de
intervenção, como um eufemismo do “excepcional”, vinculado à exacerbação da
forma e da estética na preservação do patrimônio arquitetônico de outrora. Em
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
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78
contrapartida, entende‐se que a tarefa de atualizar e explicitar claramente esses
critérios constitui um desafio persistente para a preservação.
Nesse contexto, Lia Motta e AnaLucia Thompson (2012, p. 174‐175) afirmam que
a atribuição de valor às áreas de entorno dos bens é “tão importante quanto
aquele de tombamento”, tanto para informar quanto para se promover a
“legitimidade” da preservação do patrimônio. As autoras ressaltam que tal
atribuição é uma empreitada complexa. No caso dos bens tombados situados
em áreas urbanas, envolve, por exemplo, “[...] a participação de múltiplos
agentes sociais, diferentes legislações, projetos urbanísticos e interesses
econômicos em jogo, e ainda a necessidade da limitação ao direito de
propriedade em nome do interesse cultural coletivo.” No caso dos bens em áreas
rurais, “[...] muitas vezes a complexidade se dá em função da escala territorial
que deve ser alcançada para a preservação da ambiência do bem.”
Sendo assim, a definição de novos instrumentos que assegurem ao processo de
intervenção uma melhor articulação com às demais ações que compõem a
iniciativa pode viabilizar a prática orientada pelo reconhecimento da significação
do patrimônio arquitetônico quanto à sua ambiência. Haja vista que, tal como
citado em relação às Paisagens Culturais, essa integração é um desafio,
especialmente em se tratando da intervenção no âmbito da iniciativa privada.
No contexto da articulação, os artigos 33 e 34 do PPCM registram o interesse
pela implementação de um “Pacto de Preservação” que envolva diversos órgãos
públicos, instituições e agentes, de modo a configurar “diretrizes para a elabo‐
ração ou a atualização de instrumentos de atuação” e “princípios e diretrizes que
subsidiem os processos e ações de Normatização e Conservação.” (IPHAN, 2018,
p. 39).
86
Lia Motta e AnaLucia Thompson (2012, p. 175) afirmam que o termo “entorno” foi
cunhado no Brasil pelos técnicos do IPHAN, na década de 1970. Ele “era então um
neologismo” e pode ser referido também por outras denominações como “vizinhança”,
“tutela” ou principalmente hoje, “ambiência”.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
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79
Outro ponto correlato à significação do patrimônio cultural é a gestão/impacto
dos processos promovidos pela indústria do turismo cultural. Este tema é
abordado em Cartas e Declarações internacionais, conforme citado no capítulo
anterior. Todavia, o PPCM somente pontua a necessidade da compatibilidade do
turismo cultural para a sustentabilidade da significação conferida pelos grupos
sociais ao patrimônio material. Compreende‐se que a indústria cultural é um
agente de desenvolvimento e que o consumo cultural do patrimônio
arquitetônico, intermediado por uma experimentação de significação
multicultural e de caráter mais global, é uma construção sociocultural
contemporânea. Entretanto, ela também pode empregar ações nocivas, como,
por exemplo, a diversidade cultural.
Ele também enuncia, no artigo 39, os conteúdos que essas normativas para a
intervenção deverão abranger:
I. Marcos legais vigentes;
II. Valores, atributos e características a serem
preservados;
III. Objetivos da norma;
IV. Áreas e/ou setores de preservação, quando aplicável;
V. Diretrizes gerais de preservação;
VI. Critérios específicos de preservação; e
VII. Condições de aplicabilidade, operacionalização e
monitoramento da norma. (IPHAN, 2018, p. 40).
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
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80
O mesmo artigo 39 registra que as normativas a serem desenvolvidas devem
pretender a integração dos valores patrimoniais de forma mais abrangente, “que
respeite e dialogue com contexto local” (IPHAN, 2018, p. 40). Dessa forma, o
PPCM se alinha com os pressupostos sobre o tema, constantes nos documentos
internacionais. Isto também aparece consignado em sua definição de valor:
Significação atribuída, pelos diversos grupos formadores
da sociedade brasileira, aos bens culturais tomados
individualmente ou em conjunto, e que são
representativos de suas práticas sociais, memórias e
identidades. (IPHAN, 2018, p. 58).
Portanto, o PPCM relaciona ao valor do patrimônio material duas condições
essenciais: a diversidade e a prática social, inclusive na sua definição do processo
de valoração.
O PPCM também reforça o caráter mutável do valor patrimonial, relacionando‐
o com as dinâmicas culturais e baseando‐o no diálogo com os grupos sociais. Isto
é coerente com a compreensão de que a valoração precisa ser reapurada a cada
intervenção, à medida que as significações e práticas dos grupos sociais podem
variar no tempo e no território. Além disso, como já defendido, a intervenção é
um exercício criativo do arquiteto restaurador; logo, o bem pode ter sido
87
Ver item: 2.3 Agentes, interesses e interferências, em que se discute a carência de
capacitação profissional dos agentes envolvidos com o processo de intervenção no
patrimônio arquitetônico.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
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81
ressignificado com uma ação anterior. Isto também é considerado no PPCM em
um dos dezoito princípios, o “Princípio da Ressignificação” (IPHAN, 2018, p. 31).
Contudo, nesse contexto, um tópico do PPCM que suscita dúvida é o
enquadramento da valoração em “categorias de pensamento
institucionalizado”. O processamento da valoração para bens edificados já foi
criticado antes por ser uma atividade tecnicista. Em especial, por manter uma
associação com valores artístico‐históricos, distanciando‐se da significação
contemporânea do patrimônio material. Lia Motta (2017), por exemplo, afirma
que,
Ulpiano Meneses (2009) faz uma afirmação semelhante:
Para corrigir essa prática anacrônica, segundo Meneses (2009, p. 30), deve‐se
introduzir outros critérios de valor para os bens que sejam baseados no
“potencial de interlocução” com a sociedade e, sobremaneira, com os
interlocutores locais. Mesmo que a apuração da valoração se encontre nas mãos
de técnicos, o valor atribuído não deve ser academicista e intelectualista. Ele é
baseado nas características físicas do bem, mas também na significação,
principalmente a conferida pelo grupo local, cujas memórias, laços de
identificação e práticas sociais são mais profundos. Portanto, a valoração do
patrimônio arquitetônico mais em consonância com seu entendimento
ampliado leva em conta a sua imaterialidade. Porém, convém acrescentar a
orientação de Leonardo Castriota (2011), segundo o qual deve‐se evitar cair em
“posturas ingênuas e dogmáticas”. O autor salienta que a questão do valor tem
sido uma constante na preservação nacional,
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
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82
Todavia, uma das dificuldades de aferir a valoração ao patrimônio arquitetônico
para o processo de intervenção é a carência de estruturas que permitam
conformar pesquisas junto à população local. As oportunidades de empregar
métodos que envolvam a participação popular, como entrevistas qualitativas,
são raras na prática da iniciativa privada nacional. Essas ações se restringem,
normalmente, aos setores públicos; ainda assim, mesmo estes podem ter
dificuldades de mobilização, sobretudo em contextos em que ocorre a
minimização da atuação dos órgãos de preservação.
Em função disso, os valores citados nas intervenções no patrimônio
arquitetônico no Brasil são frequentemente tecnicistas ou genéricos e
superficiais. Por vezes, até anacrônicos, nos casos que são repetições de valores
aferidos quando da proteção/tombamento do bem, sem a devida verificação de
possíveis processos de ressignificação. Ademais, o desconhecimento ou a
insensibilização dos profissionais envolvidos com o processo de intervenção no
patrimônio arquitetônico, a respeito da valoração vinculada impreterivelmente
às significações dos bens, e não exclusivamente às suas características materiais,
também contribui para essas incoerências88.
88
Ver item: 2.3 Agentes, interesses e interferências.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
83
Por sua vez, um ponto crucial de qualquer política contemporânea de
preservação é sua capacidade de viabilizar “funções estratégicas” do patrimônio
cultural, como, por exemplo, o desenvolvimento econômico e social, sem se
dissociar de sua função primária que é a preservação do bem. Associar
demandas em que o patrimônio arquitetônico é instrumento de legitimação de
aspirações sociopolíticas e de consumo cultural é uma tarefa árdua – sobretudo
quando não se oferecem aos respectivos grupos sociais, de forma ampla e
irrestrita, condições estruturais (culturais e econômicas) para a realização dessas
aspirações.
Tomando‐se por base essa reflexão, entende‐se que, para o Estado e para os
intelectuais responsáveis pela política de preservação nacional, o patrimônio
arquitetônico não é uma arquitetura isolada no tempo e no espaço, nem isolada
de seus “atributos” culturais, políticos e também econômicos. O patrimônio
arquitetônico não é somente um edifício, um lugar, um instrumento de
rememoração, ou ainda de reivindicação. Ele não é exclusivamente objeto de
consumo do turismo cultural global, nem unicamente material ou imaterial. É
um patrimônio arquitetônico que se pretende plural, por conjugar todas essas
condições. Assim, o processo de intervenção nesse patrimônio é um dos
momentos envolvidos com a preservação do bem, no qual se pretende a
viabilização adequada da ação física que o resguarda como referência histórica
e identidade, mas também de diversas outras demandas.
Por sua vez, a questão da participação popular na preservação do patrimônio
arquitetônico não se resume ao processo de pesquisa para a intervenção. Na
recente Política do Patrimônio Cultural Material, a valorização do papel dos
grupos sociais fica registrada já em um dos seus dezoito princípios, o da
“Participação Ativa”: “Deve ser assegurada à sociedade a participação ativa na
elaboração de estratégias para a preservação do Patrimônio Cultural Material.”
(IPHAN, 2018, p. 31). O PPCM também destaca que as diversas formas de
“manifestações culturais e práticas sociais” contribuem para a preservação do
bem. Nesse mesmo contexto, o artigo 30 ressalta que o IPHAN deve evitar o
tombamento de bens materiais que “não sejam passíveis de fruição cultural”.
(IPHAN, 2018, p. 39‐44). Ou seja, bens materiais inacessíveis fisicamente e que,
portanto, não podem ser usufruídos.
Em prol da participação social, o artigo 60 destaca que devem ser igualmente
estimuladas ações e atividades de interpretação, promoção e difusão do
patrimônio material “[...] direcionadas a todos os tipos de públicos e adequadas
ao ambiente em que o patrimônio está inserido.” (IPHAN, 2018, p. 45). De acordo
com as seguintes finalidades, segundo o artigo 59:
Com efeito, a Política do Patrimônio Cultural Material nacional registra uma
disposição oficial em reconhecer o vínculo indissolvível entre a significação e os
grupos sociais, acolhendo sua participação na preservação. Esse posicionamento
novamente se alinha às orientações de Cartas e Declarações internacionais.
Ademais, vale salientar que tal estímulo à participação já existiu com maior ou
menor destaque na preservação nacional, empregando para isso visões e
estratégias distintas. Entre os programas e ações vigentes com essa finalidade
está a gestão participativa do patrimônio cultural brasileiro, que opera com
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relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
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85
Conselhos Consultivos do Patrimônio Cultural e Câmaras Setoriais desde 2014,
além de audiências públicas, conferências, fóruns e outros89.
Contudo, também já existiam críticas à forma como a inclusão social vinha sendo
tratada na preservação nacional. Simone Scifoni (2016, p. 57‐59) destaca que a
participação dos grupos sociais na preservação não se traduz em “medir ou aferir
valores atribuídos socialmente”, não se resume à coleta de dados ou opiniões,
ou mesmo de “audiências públicas” ou “consultas públicas”. Afinal, “[...] estes
mecanismos não garantem necessariamente um processo de interlocução.” Para
a autora, as políticas de preservação devem considerar as dinâmicas culturais,
sociais e também econômicas próprias de cada lugar, pois os objetos se
modificaram. Em face disso, é necessário o estabelecimento de novas formas de
atuação “[...] mais adequadas às especificidades de cada tipo de realidade.” “Há
experiências, instrumentos e estratégias próprias que permitem promover
processos de envolvimento, diálogo e interlocução com os grupos sociais
vinculados ao patrimônio.”
Nesse mesmo sentido, Maria Cecília Londres Fonseca (2009, p. 67) advoga que
devem ser empregados novos instrumentos de preservação e de promoção que,
além de identificar e documentar as ações, viabilizam “[...] a reapropriação
simbólica e, em alguns casos, econômica e funcional dos bens preservados.” Em
seu texto, que data originalmente de 1994, a autora já defendia que, apenas
quando o “caráter dinâmico e ativo de qualquer apropriação social” é
incorporado efetivamente à política do Estado, se pode falar de “política pública”
(FONSECA, 2005, p. 45). Mais tarde, ela acrescenta que é preciso o
reconhecimento “[...] dos ‘direitos culturais’ de diferentes grupos que compõem
uma sociedade, entre eles o direito à memória, ao acesso à cultura e à liberdade
de criar, como também reconhecimento de que produzir e consumir cultura [...]”
(FONSECA, 2009, p. 76).
O reconhecimento dos grupos sociais, não só como produtores de cultura, mas
também como consumidores, é um desafio da “política pública” que perdura.
No âmbito da Política brasileira de preservação do patrimônio material, de fato,
novos instrumentos foram propostos ou retomados em prol da prática social, da
participação popular e da representatividade, como as Paisagens Culturais e os
Lugares de Memória. Isso demonstra uma preocupação em viabilizar uma
“reapropriação simbólica”. No entanto, as críticas e reflexões de Simoni Scifoni
(2016) e de Fonseca (2005, 2009) se prestam a questionar a representação
89
Atualmente, a Portaria nº 224 de 30 de abril de 2014 institui a Câmara Setorial do
Patrimônio Imaterial e a Câmara Setorial de Arquitetura e Urbanismo, que tem o objetivo
de aprofundar as discussões a respeito do patrimônio cultural com a sociedade. (IPHAN,
2014). A criação de conselhos técnicos e câmaras setoriais com esse intuito já foi
implantada outras vezes ao longo da história da preservação brasileira.
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popular “ativa” e, portanto, a diversidade dos grupos sociais nos processos que
envolvem a preservação do patrimônio construído.
No caso particular da intervenção no patrimônio arquitetônico, o conhecimento
e a sensibilização quanto às práticas sociais dos grupos as favorecem, as
legitimam politicamente e lhes conferem sustentabilidade. Além disso, elas
consolidam laços de identidade cultural que se conformam, por meio dos
significados do patrimônio arquitetônico. Ulpiano Meneses (1984) reflete sobre
essa questão, partindo do papel da memória como suporte fundamental para o
processo de identificação. Para o autor, essa interação é mais de
reconhecimento do que de conhecimento, pois ela é inerente à vida psíquica e
social cotidiana.
Por sua vez, no panorama das relações socioculturais da pós‐modernidade, o
reconhecimento do patrimônio construído ocorre por meio de uma
experimentação que converge para a “mera contemplação”. Tal apreensão,
limitada à visão, poderia ser denominada como “voyeurismo cultural”. Uma “[...]
perspectiva que esvazia usos antigos e torna anacrônicas as práticas anteriores
[...].” (MENESES, 2009, p. 28). Esse é um processo de reconhecimento e
significação do patrimônio, no qual
Essa é uma dinâmica pertinente às práticas da industrialização da cultura, e
Meneses a identifica, em entrevista à Luciana Heymann e Aline Lacerda (2011),
como uma exigência de mercado para o incremento da preservação do
patrimônio. Contudo, o autor defende que a mobilização pela preservação não
se resume ao mercado, mas sim a uma demanda por identidade. Para Meneses
este é um período no qual as reivindicações por “[...] justiça social – salário,
saúde, condições materiais de vida – estão sendo progressivamente substituídas
por reivindicações por reconhecimento, reivindicações identitárias.”
(HEYMANN, LACERDA, 2011, p. 430). Tal condição é consistente com o processo
de minimização das lutas de classe, observado na conjuntura da globalização e
da pós‐modernidade, por Boaventura de Souza Santos (2002), por Fredric
Jameson (2000) e por Paul François Lyotard (2009).
Na reflexão do autor, a especulação imobiliária “não é razão suficiente para gerar
tal resistência” (MENESES, 2009, p. 34). Ademais, Meneses (1984) acrescenta
que os grupos sociais, pouco representados no universo do patrimônio material,
são maioria no universo do patrimônio imaterial, onde a diversidade cultural se
destaca.
Um dos fatores responsável por isso é que a preservação dos bens edificados
ainda tem sido baseada em valores aferidos de forma tecnicista e distante dos
significados conferidos pelos grupos sociais, mais próximos ao patrimônio. Dessa
forma, os grupos sociais podem não se ver representados pela arquitetura
preservada, cuja natureza é normalmente monumental ou não vernacular.
José Gonçalves (2015, p. 220) também afirma que as “culturas populares” não
costumam ter sua arquitetura assumida como manifestação cultural. Nesse
mesmo contexto, cabe retomar Néstor García Canclini (1994, p. 96‐97), que
afirma que existe uma “hierarquia dos capitais culturais” na preservação, a qual
um tipo de representação do patrimônio “vale mais” do que outro. Isso ocorre
mesmo em um país que assume um discurso de legitimação democrática das
manifestações culturas representativas.
Essas condições podem explicar, em parte, o distanciamento de certos grupos
sociais para com a arquitetura preservada. Entretanto, isso não quer dizer que
toda arquitetura monumental será fadada a tal distanciamento. Há fatos
históricos e práticas sociais de grupos populares locais que podem ser, mesmo
sob essas circunstâncias, muito sólidas. No entanto, ao passo que se preserva
um “capital cultural” hierarquizado, conforme ressalta Canclini, e que se carece
de recursos para preservação, como costuma ocorrer na realidade nacional,
pode‐se conformar uma patrimonialização excludente, cujo reflexo é a não
representação de grupos sociais.
Revendo a afirmação de Scifoni (2016, p. 54‐55) de que o Brasil apresenta um
conjunto “extremamente desigual do que se afirma ser memória coletiva”,
estabelecendo um “passivo patrimonial” que é fruto de um deficit de bens a
serem preservados por carência de “reconhecimento e proteção”; pode‐se
ponderar que, em se tratando do patrimônio arquitetônico, ele seria um deficit
representacional, referente à produção construtiva das classes mais populares.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
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Por conseguinte, se carece de representatividade, é comum que também se
necessite da identificação desses grupos sociais, haja vista que podem ter
dificuldades de se apropriar (reconhecer e se identificar) com o patrimônio que
é “ditado” – o preservado normalmente. Logo, a identidade cultural local dos
grupos sociais mais populares, que se conforma pela identificação com o
patrimônio arquitetônico, pode ser frágil.
O PPCM enfatiza que as práticas locais conferem “sustentabilidade” ao bem, mas
deve‐se considerar que a identidade cultural local construída pela identificação
com o patrimônio arquitetônico, sobretudo o popular, merece atenção
particular. Atenção que, durante algum tempo, foi conferida pelo IPHAN ao
patrimônio imaterial.
A reflexão de Ortiz se opõe à de Laurajane Smith (2006), acerca da preservação
na Austrália (presente no capítulo anterior), na qual a autora reforça a condução
direta do Estado na construção da identidade nacional, inclusive, por vezes,
contrariando intelectuais (“técnicos”). A análise de Smith se assemelha mais à
de Meneses (2009, p. 33), que observa a identidade cultural nacional como uma
ação institucional baseada em um discurso que reivindica uma memória
ideológica comum, pretendendo uma “[...] integração supostamente
harmoniosa, que neutralize os conflitos e mascare as contradições90.”
Com efeito, pode‐se dizer que no Brasil o projeto de identidade cultural nacional
contemporâneo tem assumido reivindicações por representatividade cultural,
originárias em movimentos da sociedade, tal como afirma François Hartog
(2006) em relação à Europa (no capítulo anterior). Conforme já ressaltado, ao
longo da história da preservação nacional, diversas tipologias arquitetônicas
90
Meneses (1984, p. 34) destaca duas características da memória. A primeira é que ela é
seletiva, pois é “um mecanismo de esquecimento programado”. A segunda é que pode
ser “induzida”, “forjada”. Estas condições seriam comuns tanto para a memória
individual, quanto para a memória “artificial coletiva”. Logo, a identidade cultural
também pode ser elaborada e construída – assim como a identidade cultural nacional.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
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89
foram desprestigiadas no âmbito do projeto de identidade nacional, como a
arquitetura eclética, a arquitetura industrial, entre outras.
Nesse sentido, observa‐se no PPCM a atenção particular conferida (no Título III)
ao tratamento de temas específicos como patrimônio arquitetônico da rede
ferroviária, o patrimônio material de povos indígenas, povos e comunidades
tradicionais de matriz africana e outros. Os artigos 22, 23 e 25, sobre a prioridade
dos bens a preservar, registram que devem ser elaboradas “Listas Indicativas”
de bens a serem reconhecidos, conforme referências conferidas pelas
comunidades locais e de acordo com a normatização que ainda será produzida.
(IPHAN, 2018, p. 36). Isso representa um passo em direção ao ressarcimento de
representações arquitetônicas preteridas, mobilizado por um dever de memória
conciliatório que é defendido na presente pesquisa.
Por outro lado, a identidade cultural nacional e a local não são as únicas no
panorama contemporâneo91. Como discutido no capítulo anterior, a identidade
global/intercultural é conformada por significações do patrimônio arquitetônico
que são mais dinâmicas e híbridas. Ela se relaciona aos novos agentes e
interesses incorporados à dinâmica da intervenção, por influência da
globalização e da industrialização da cultura. Sendo assim, uma das questões
envolvidas com o tema é a homogeneização cultural promovida com a
industrialização da cultura. A esse respeito, assume‐se aqui, que mesmo que a
indústria cultural não promova a desidentificação absoluta dos grupos sociais,
ela pode afetar a identidade cultural local. Como, por exemplo, se a identidade
cultural local for frágil, como pode ocorrer em âmbito nacional com os grupos
sociais mais populares que se relacionam com o patrimônio arquitetônico, ela
pode ser suscetível aos processos de homogeneização cultural. Isso se
manifesta, sobretudo, quando a identificação com o patrimônio arquitetônico
não é um processo político seguro e consolidado de prática social do bem.
Por outro lado, cabe reiterar que, assim como o fetichismo mobilizador pela
preservação e o dever de memória cumulativo, já discutidos, não ocorrem no
Brasil na mesma escala que na Europa; a identidade genérica ou global,
conforme Françoise Choay (2006) estabelece em sua obra publicada
originalmente em 1982, também não ocorre. Ortiz (2007), do mesmo modo que
Boaventura de Souza Santos (2002) citado no capítulo anterior, distingue
globalização de uniformidade. Ortiz (2007, p. 17) afirma que dimensões como o
local ou o nacional são níveis que podem ser “redefinidos” com a globalização,
91
A Carta de Brasília (1995, p. 2), que é um documento regional do Cone Sul sobre
autenticidade, ressalta a existência de múltiplas identidades culturais vinculadas ao
patrimônio, inclusive conflitantes. Ela afirma: “[...] identidade, que é mutável e dinâmica
e que pode adaptar, valorizar, desvalorizar e revalorizar os aspectos formais e os
conteúdos simbólicos de nossos patrimônios.”
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
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90
não desaparecidos. O autor reconhece, por exemplo, a minimização de alguns
“grandes relatos” na pós‐modernidade, assim como Paul Lyotard (2009)
defende, mas enfatiza a “[...] emergência de novos relatos totalizadores e a
reatualização de antigos relatos.” As interações não são arbitrárias na
globalização 92,
[...] o discurso sobre a diversidade oculta questões como
a desigualdade. Sobretudo quando nos movemos no
interior de um universo no qual a assimetria entre
países, classes sociais e etnias é insofismável. (ORTIZ,
2007, p. 14).
Tal como já definido, a diversidade é um ponto de atração para a indústria e o
discurso de defesa dessa mesma diversidade pode soar superficial, à medida que
ainda não galgamos equidade de condições para que os grupos sociais exerçam
práticas culturais sociopolíticas e socioeconômicas de negociação das
“diferenças”. Ou seja, o manejo da hibridação cultural, assim como advogam
Boaventura de Souza Santos (2001, 2002) e Néstor García Canclini (2007).
Com efeito, a significação conferida ao patrimônio arquitetônico é uma bússola
para a intervenção. Por sua vez, o reconhecimento das identidades culturais
envolvidas com a intervenção e resultantes dela pressupõe a legitimação do
papel dos grupos sociais nesse processo de significação. Dado que, a identidade
cultural se constitui em um discurso político, à medida que o bem se torna uma
92
Renato Ortiz (2007) ressalta sua preferência pelo termo “mundialização” no que se
refere ao universo da cultura. Para o autor, a globalização é mais pertinente ao universo
da economia e da tecnologia. Isso porque a concepção de mundo é mais ampla e salienta
a diversidade das culturas, mesmo no contexto da globalização.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
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91
ferramenta de busca por representatividade. Um discurso de negociação que,
inclusive, pode ser de oposição e subversão a outros discursos, como o que
promove a identidade cultural global ou que institui a identidade nacional.
Sendo assim, a intervenção pode se direcionar para a legitimação de aspirações
sociopolíticas e/ou para a viabilização do desejo de consumo.
A intervenção orientada pela identidade cultural local legitima a intervenção do
ponto de vista social, além de teórico‐disciplinar. Não obstante, a prática social
pelo grupo é um discurso político “de” e “por” representatividade; de modo que,
reforçá‐la com a intervenção a legitima também sob o ponto de vista político.
A intervenção que reconhece os interesses da indústria cultural promove uma
experiência da arquitetura histórica superficial e rápida, para o grande público
consumidor. A vivência do patrimônio é mais orientada na quantidade e menos
no que é “vivenciado”. Nesse processo tenciona‐se uma identificação provisória,
que não permanece como referência coletiva social; ela é individual e está
atrelada ao “status” adquirido pelo consumo. É uma identidade global, pois há
nela certo desligamento do espaço físico, sobretudo da escala local.
Com base nisso, entende‐se que para os grupos sociais o patrimônio
arquitetônico, em meio à intervenção, é o suporte de significados e práticas
sociais, processo de identificação e via de reconhecimento de aspirações
sociopolíticas e também econômicas. Para os grupos sociais imersos em
dinâmicas interculturais, o patrimônio arquitetônico é mais próximo de um
suporte de experiências, cujo atrativo é sua peculiaridade. A identificação é
promovida por meio de ferramentas para o consumo.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
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92
Conforme discutido no capítulo anterior, a industrialização da cultura estrutura
parte das dinâmicas culturais contemporâneas e tem pontos positivos e
negativos para a preservação. Por isso, o papel, os interesses e as práticas da
indústria cultural vinculadas ao turismo patrimonial, particularmente em relação
ao processo de intervenção no patrimônio arquitetônico brasileiro, são
debatidos aqui.
Para isso, parte‐se da afirmação de José Gonçalves (2007, p. 240) de que o
patrimônio é, ao mesmo tempo, condição e efeito da industrialização da cultura
na preservação, pois um não existiria sem o outro na contemporaneidade. Para
o autor, o interesse particular da indústria do turismo cultural, “[...] embora
representado tendencialmente de forma negativa e destrutiva, parece ser, na
verdade, uma das fontes para a existência social e cultural do patrimônio.” De
maneira semelhante, Ulpiano Meneses (2009, p. 38) sustenta que o valor
cultural de um bem não se opõe ao seu valor econômico. Segundo ele, “[...] não
há qualquer antagonismo. Há uma dimensão econômica no bem cultural, assim
como uma dimensão cultural no bem econômico.”
É acerca dessa dimensão econômica do patrimônio que a indústria cultural atua
para a mercantilização de seu produto, que, nesse caso, é a preservação do
patrimônio arquitetônico. Como qualquer indústria, ela organiza sua cadeia
produtiva identificando ou criando uma demanda e mediando ou viabilizando o
consumo desta demanda, em um ciclo de produção serial em grande escala. Esse
processo produtivo é caracterizado pela mobilidade e pelo alcance global, além
da produção acelerada que visa ao consumo rápido, superficial, visual e
imagético/estético, característicos da acumulação efêmera da pós‐
modernidade, discutida por Fredric Jameson (2000) e Guy Debord (2003).
José Carlos Durand (2013) afirma que, no setor da cultura nacional, de modo
geral, os recursos que financiam esse sistema produtivo têm origem mista. Os
públicos advêm de financiamentos, fundo perdido (subvenção), ou incentivos
fiscais. Nestes últimos, incorrem os patrocínios corporativos, que são estratégias
de mercado, não uma ação de caráter individual familiar como mecenato
(doações financeiras de vulto) de outros tempos. As ações de mecenato privado
no Brasil são inexpressivas se comparadas a outras partes do mundo. Fora os
fomentos de origem estatal, há ainda as receitas diretas da indústria cultural;
todavia, mesmo nesse segmento, existem incentivos fiscais para o
empreendedor do setor cultural. Assim, a indústria cultural no setor do turismo
patrimonial nacional opera principalmente com fundos públicos oriundos de
financiamentos e renúncias fiscais.
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93
No caso dos programas vigentes do IPHAN, os que preveem recursos para a
preservação, sobretudo do patrimônio arquitetônico, são: o PAC Cidades
Históricas, o Programa Nacional de Apoio à Cultura (PRONAC) e o Financiamento
para Recuperação de Imóveis Privados. Esse último, até o presente momento,
está somente em vigor na região Nordeste do país. Novos convênios estão
suspensos em razão da reformulação do programa93. O Pronac, mais conhecido
como Lei Rouanet (Lei nº 8.313, de 23 de dezembro de 1991), é a principal fonte
de financiamento da cultura no Brasil e representa um dos principais
mecanismos de viabilização da preservação do patrimônio arquitetônico.
Contudo, faz‐se necessário esclarecer que, ao se analisar os valores conferidos
ao PRONAC, no período de um ciclo dos gastos públicos em cultura (de 2007 a
2016), se verifica que, mesmo com o aumento do Produto Interno Bruto (PIB),
houve redução do valor destinado aos projetos no setor. Tal diminuição foi
proporcionalmente mais acentuada para os projetos da área da preservação.
(BEM, et al., 2017). Ademais, Durand (2013, p. 29) ressalta que os
financiamentos de ações culturais promovidos pelo Estado brasileiro
representam (à época) “não mais que 1% dos orçamentos públicos”. A maior
parte (cerca de dois terços) do capital que circula no setor da cultura não tem
origem nos financiamentos promovidos pelo Estado, e sim no consumidor de
cultura, de acordo com indicadores do governo 94 . Portanto, mesmo que
especificamente no setor da preservação do patrimônio cultural o capital público
seja maior, é notório que esses investimentos ainda são insuficientes frente à
demanda que se acumula para a preservação do patrimônio arquitetônico
brasileiro.
Outrossim, embora a maior parte do capital no setor da cultura nacional
provenha do consumidor desse mercado, não cabe transferir esse dado para o
turismo cultural patrimonial. Pode‐se dizer que, de maneira geral, não há no
Brasil uma prática constante de consumo do patrimônio cultural, ao menos na
escala existente em outros países. O consumo do patrimônio cultural
93
Outros programas vigentes que preveem recursos para preservação do patrimônio
cultural por meio do IPHAN são: o de Preservação de Acervos, o Programa Nacional do
Patrimônio Imaterial (PNPI) e o Programa de Promoção do Artesanato de Tradição
Cultural (Promoart). Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/855
94
O Estado brasileiro dá início, a partir de 2004, a uma infraestrutura de informação para
levantar dados acerca de “[...] equipamentos culturais, dispêndio familiar em cultura,
gastos dos três níveis de governo, entre outros”, mediante convênios entre o Ministério
da Cultura (MinC), o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e o Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Estes indicadores são convencionados
internacionalmente, viabilizando comparações entre países. São insumos construídos
sob as perspectivas da produção e do consumo cultural, úteis às organizações privadas e
ao governo para avaliar o desempenho e planejar ações para a cultura. (DURAND, 2013,
p. 124).
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94
Com efeito, a indústria cultural brasileira, no que se refere ao patrimônio
arquitetônico, apresenta algumas características diversas das disseminadas
globalmente, ainda que empregue o mesmo modelo adotado na Europa e no
resto do mundo. Um padrão que é baseado na associação da indústria cultural
com o capital imobiliário, promovendo desenvolvimento por meio da
valorização de áreas urbanas degradadas e da atração de empreendedores.
Desse modo, ele abarca os centros históricos urbanos e, por sua vez, a
arquitetura de valor patrimonial em um processo de “enobrecimento” e de
consumo no âmbito da cidade empreendimento. Essa é a paisagem urbana da
pós‐modernidade discutida por Sharon Zukin (2000) no capítulo anterior, e a
qual Otília Arantes (2002, p. 51) identifica como a “cidade‐empresa‐cultural” 95.
Esse modelo opera normalmente com projetos de maior porte e também
integra a esse sistema grandes equipamentos culturais (museus, centros
culturais, etc.), que podem ser edifícios históricos. Uma ação planejada
estrategicamente, viabilizada pelos meios “persuasivos da cultura arquitetônica
da imagem”, segundo Arantes (2002, p. 61). Nessa operação, a arquitetura
emblemática é a “isca ou imagem publicitária” que compõe um espetáculo de
alto valor agregado, voltado para o exterior (ARANTES, 2002, p. 29).
Nesse momento, convém tecer alguns apontamentos quanto ao custo social (no
que se refere particularmente à gentrificação), vinculado ao modelo globalizado
da indústria cultural na preservação do patrimônio construído. Mesmo que este
seja um tema mais associado ao âmbito urbano, ele também se relaciona com a
edificação histórica. Para isso, destaca‐se que Arantes (2002, p. 16‐17) associa
diretamente o processo de gentrificação ao conceito de “revitalização urbana”
96. Segundo a autora, esse é um “empreendimento de comunicação e produção”
95
Arantes (2002, p. 67) declara que a cultura foi “revista como a fronteira dos processos
industriais do futuro”, e a “cidade‐empresa” é o principal item dessa indústria cultural
que é estruturada no setor terciário, construindo o capitalismo da cultura ou o
“culturalismo de mercado”.
96
Otília Arantes (2002, p. 17) afirma que o conceito de “revitalização urbana”,
reinaugurado na Europa no final do século passado, tem como base as propostas de
revitalização originadas na “cidade‐empreendimento” dos anos de 1960, norte‐
americanas e parisienses.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
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95
grupos, pois o valor de uso da habitação é trocado pelo benefício econômico.
Logo, a revitalização urbana envolve um alto custo social, que mantém a
acumulação de riqueza das estruturas dominantes. O “[...] capital cultural forja
não somente seu futuro privilegiado, mas reduz o futuro das áreas menos
favorecidas” (ARANTES, 2002, p. 28).
Esse custo social envolve outras perdas. A prática social vinculada a esse
patrimônio é enfraquecida ou eliminada, à medida que o respectivo grupo social
é deslocado de seu território. A perda do modo de vida singular de uma
comunidade é deveras impactante, sendo ressaltada nos Princípios de La
Valletta para a Salvaguarda e Gestão de Cidades e Conjuntos Urbanos Históricos
(2011). Ela registra, nesses casos,
Esse panorama é salientado na Carta de Petrópolis.
Portanto, a gentrificação impõe também a esses grupos, além do custo social,
um custo político. No entanto, vale frisar que o termo gentrificação na
atualidade se ampliou, segundo Silvana Rubino (2009, p. 26). Quando se aborda
o processo de construção da paisagem urbana contemporânea, ele não é mais
limitado “às cidades globais”. Sendo assim, alguns aspectos do conceito original
de gentrificação que envolviam a alteração do espaço construído, o processo de
ressignificação baseado em um “bota abaixo”, a destruição das relações sociais
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
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Portanto, a mobilização promovida pela indústria cultural é, de maneira geral,
destinada a uma classe com potencial de consumo. A preservação de grandes
equipamentos culturais históricos se relaciona com essa perspectiva, também
reproduzindo uma estrutura social desigual. O consumo cultural do patrimônio
arquitetônico promove e é promovido por seu valor mercadológico
mundializado, sob o signo fetichista do status social. Arantes (2002) acrescenta
que o consumo promovido pela indústria cultural é controle social. Jameson
(2000) completa: o consumo visual da pós‐modernidade é controle social
baseado em uma estrutura totalizante.
Logo, quando o Estado financia a indústria em prol de um potencial
desenvolvimento econômico e social, ele pode estar acentuando ainda mais
diferenças já vigentes, pois o foco da indústria na preservação brasileira é muito
particular. Contudo, essa classe social que consome o patrimônio enobrecido
das áreas antigas da cidade não é hegemônica, segundo Rubino (2009). A autora
destaca o estudo de Criekingen (que aborda também o Brasil), o qual afirma que
97
Neil Smith (2007, p. 19) defende que, ao observar‐se a gentrificação de forma mais
ampla e menos ideológica, pode‐se identificá‐la como o reflexo de um impulso de
“reestruturação urbana” que também é resultado de renovação urbana. Segundo o
autor, a reestruturação urbana é um processo de “rediferenciação do espaço
geográfico”, cuja natureza é a “acumulação e expansão do capital”. “Em um nível mais
básico, é o deslocamento do capital para a construção de paisagens suburbanas e o
consequente surgimento de um ‘rent gap’ que cria a oportunidade econômica para a
reestruturação das áreas urbanas centrais. A desvalorização da área central cria a
oportunidade para a revalorização desta parte “subdesenvolvida” do espaço urbano.”
(SMITH, 2007, p. 22). Um comportamento cíclico do mercado de “alternância de
investimento”, no qual os investimentos são atraídos pelo “estoque de imóveis vagos,
subestimados ou com usos pouco lucrativos”. Os agentes desses processos são as
indústrias imobiliária e cultural, em uma ação de base mais econômica do que cultural.
(SMITH N., 2000 apud RUBINO, 2009, p. 27‐28). Em contrapartida, Rubino (2009),
defende que a dinâmica identificada por Neil Smith adequa‐se aos EUA, mas é pouco
análoga à realidade brasileira.
Obra não consultada: SMITH, Neil. The new urban frontier. Gentrification and teh
revanchista city. Londo/New York: Routledge, 2000.
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relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
97
essa classe não é rica. Ela é mais abastada e escolarizada do que a população
local deslocada com o enobrecimento das áreas degradadas. “É o capital
cultural, mais do que apenas o econômico que parece nortear escolhas e
classificações.” (CRIEKINGEN, 2006, p. 31 apud RUBINO, 2009)98.
Marcia Sant’Anna (2004a, p. 330) também discute intervenções mobilizadas pela
indústria cultural, neste caso, exclusivamente em sítios urbanos no Brasil. A
autora analisa intervenções que ocorreram nas cidades de Salvador, Rio de
Janeiro e São Paulo, a partir da década de 90, e as identifica como operações de
reabilitação urbana “[...] estratégicas no âmbito da economia, do
desenvolvimento urbano e da comunicação social.” Ações de preservação que
foram conduzidas como empreendimentos, empregando formas sistêmicas de
gestão e desenvolvimento, nas esferas econômicas e administrativas.
Entretanto, Sant’Anna (2004a) reitera que o problema nesse panorama não é
submeter o patrimônio às estratégias de mercado, mas sim submetê‐lo
completamente a elas, pois o patrimônio cultural possui uma função social.
É principalmente esse papel social do patrimônio arquitetônico que pode ser
ameaçado na dinâmica da indústria cultural. Sant’Anna (2004b, p. 164) afirma
que nas iniciativas de sua análise, as ações de “dinamização da economia” foram
empreendidas por meio do estímulo às atividades econômicas e imobiliárias. A
autora ressalta, inclusive, que o “controle do uso do espaço público” foi
conjugado com o uso habitacional, de modo a promover o “desenvolvimento
urbano e social” (SANTANA, 2004a, p. 330)99. Todavia, pode‐se ponderar que
essas ações tenham sido orientadas mais pela necessidade de conferir
sustentabilidade ao empreendimento, do que pelos custos sociais inerentes aos
processos de enobrecimento dos sítios históricos.
98
Obra não consultada: VAN CRIEKINGEN, Mathieu. A cidade revive! Formas, políticas e
impactos da revitalização residencial em Bruxelas. De volta à cidade: dos processos de
gentrificação às políticas de "revitalização" dos centros urbanos, p. 89, 2006.
99
O estímulo ao uso residencial nas áreas urbanas históricas brasileiras ocorre
principalmente no final da década de 90.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
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98
Com efeito, Sant’Anna (2004a, p. 330) defende que, de modo geral, a chave dos
discursos desses empreendimentos não veio a ser a função social do patrimônio
construído. Os “objetivos educativos e de formação cultural não foram centrais”.
Até porque, segundo a autora, as ações não foram mobilizadas pelos órgãos de
preservação, mas sim realizadas por “[...] instâncias responsáveis por programas
de desenvolvimento econômico, execução de obras públicas, urbanização e
habitação.”
De fato, os processos mobilizados pela indústria cultural que promovem o
desenvolvimento social e econômico de sítios históricos empobrecidos e
degradados passam pela imposição de estratégias de mercado que visam ao
enobrecimento, de modo a atrair o consumo. Nesse contexto, a gentrificação e
a supervalorização imagética do patrimônio arquitetônico podem ser
recorrentes. Ademais, os resultados dessas operações são, por vezes, diversos,
implicando, inclusive, a insustentabilidade do desenvolvimento e,
consequentemente, a degradação desse patrimônio que sofreu intervenção.
Por outro lado, Sant’Anna (2004b) ressalta que não houve um incremento
generalizado do interesse imobiliário por áreas ou por imóveis antigos, em razão,
principalmente, das dificuldades de financiamento nesse mercado. O patrimônio
arquitetônico urbano brasileiro não se tornou com a globalização um
investimento do público comum. Igualmente, a proteção de uma edificação não
acarreta necessariamente o incremento de seu valor econômico. Isso porque a
inalienabilidade do bem arquitetônico pode ser associada às restrições e aos
altos custos envolvidos nos processos de preservação100.
100
Cabe esclarecer que o artigo 22 do Decreto Lei nº 25 de 1937, que declarava o direito
à preferência do Estado no caso da alienação onerosa de bens tombados, foi revogado
pela Lei n º 13.105, de 2015. A esse respeito o IPHAN declara: “O bem, móvel e/ou imóvel,
pertencente à pessoa física e/ou à pessoa jurídica de direito privado, objeto de
tombamento, não terá sua propriedade alterada e nem precisará ser desapropriado. O
importante é que esse mantenha as características que possuía quando da data do seu
tombamento. O proprietário, inclusive, poderá alugar ou vender o imóvel [...]. Por outro
lado, quando se tratar de bem tombado que pertença à União, aos estados e municípios,
os mesmos poderão somente ser transferidos entre as entidades de mesma natureza,
[...].” (IPHAN, [s.d.])
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relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
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Assim, o modelo globalizado da indústria cultural em nossa realidade, financiado
pelo capital público que investe em projetos de grande porte em sítios históricos
urbanos e/ou grandes equipamentos culturais históricos, tem uma abrangência
restrita. Embora aqui se reproduza a mesma prática de competição global
mobilizadora de especulação imobiliária, na qual o fetichismo promovido com a
espetacularização do patrimônio arquitetônico se encerra normalmente.
Simone Scifoni (2015), a exemplo de Sant’Anna (2004), afirma que o modelo
globalizado de preservação do patrimônio material promovido pela indústria
cultural, no Brasil, privilegia
[...] a hipervalorização da arquitetura e do estilo artístico
em detrimento de outros valores do patrimônio,
principalmente aqueles que contextualizam os bens no
seu universo contraditório e conflituoso da história e
dos processos sociais. Isso acaba por produzir um
patrimônio cultural fetichizado, que se explica em si
mesmo, unicamente pela técnica ou pela estética.
(SCIFONI, 2015, p. 131).
Com efeito, as cidades empresa‐culturais brasileiras são ações concentradas e
distribuídas desigualmente no território nacional. Scifoni (2015, p. 135) destaca
que os investimentos públicos em intervenções urbanas nas cidades de São
Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Recife são a “[...] expressão da natureza
desigual existente no universo da produção e reprodução da cultura e, portanto,
do patrimônio.”
Com base nisso, entende‐se que a indústria cultural no âmbito da preservação
do patrimônio não representa uma força motriz da economia nacional, porém
seu impacto é representativo. Ainda mais se levando em conta que o capital
público financia parte da preservação do patrimônio arquitetônico por
intermédio desse modelo.
No panorama específico de atuação da indústria cultural na preservação do
patrimônio arquitetônico brasileiro, o potencial de desenvolvimento
socioeconômico registrado em documentos e Cartas patrimoniais internacionais
pode ser deveras dualista. Isso se dá, sobretudo, porque ele é construído por
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
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100
meio de vários processos associados com custos negativos a alguns grupos
sociais.
Retomando Néstor García Canclini (1994, p. 100), há contradições na
mercantilização do patrimônio arquitetônico, mas a exploração do ambiente
patrimonial deriva de vários tipos de indústria, entre elas a do turismo e a
imobiliária. Estas têm em comum a utilização do patrimônio “sob a ótica setorial
e competitiva” e são mais destrutivas ao patrimônio cultural quando o Estado,
neoliberal, não desempenha suas funções como regulador, por meio de
Independentemente do quão “enérgico” deve ser o Estado nesse contexto, lhe
cabe a ele a função de regulador, estabelecendo as diretrizes gerais pelas quais
a indústria cultural deve se pautar e mediando as contradições entre os
interesses envolvidos. Para Durand (2013, p. 39), o Estado brasileiro deve
promover o monitoramento das atividades da indústria cultural, conhecendo o
mercado quanto aos seus efeitos positivos e negativos, “[...] de modo a
estabelecer o que pode ser feito para reforçar os primeiros e refrear os demais.”
Além disso, também cabe ao Estado neoliberal a função de fomentador,
articulando ações entre o público e a iniciativa privada, financiando e/ou
estimulando investimentos. Tal condição é também expressa na Declaração
Universal Sobre a Diversidade Cultural, já citada no primeiro capítulo da
pesquisa.
Quanto à função do Estado como fomentador, Durand (2013, p. 143) enfatiza
que planejar a política e a economia do patrimônio cultural não é reduzir a
questão aos incentivos fiscais e às “estratégias mercadológicas”. Elas têm mais a
ver com o retorno advindo com o prestígio e/ou o valor agregado da ação
engajada política ou socialmente, que configura o chamado marketing cultural.
Por outro lado, o autor defende que é essencial que o Estado tenha uma postura
gerencial da cultura como mercado, definindo o que “[...] merece ficar como
está, existindo espontaneamente sem necessidade de estímulo, ajuda ou
intervenção.” (DURAND, 2013, p. 35).
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
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101
Nessa matéria, é indispensável distinguir aquilo que, em
cada região ou localidade, está sendo suficientemente
bem resolvido pela indústria cultural, ou por
manifestações espontâneas da população, e aquilo que,
com base em critérios defensáveis, o governo deve
encorajar. (DURAND, 2013, p. 26).
Durand (2013, p. 142) afirma que o Brasil comporta uma “sólida indústria
cultural”, desde que haja uma visão mais sistêmica da gestão cultural, que é “[...]
algo mais do que simplesmente promover eventos e restaurar sítios históricos.”
A condição elementar para isso é que a mercantilização da cultura não deve ser
considerada, de antemão, como opressiva ou emancipadora. Ela é construída
socialmente por um poder de chancela que é “[...] tanto mais legítimo quanto
menos a gestão cultural for vista como instrumento de proselitismo político ou
a serviço do lucro econômico privado.” O proselitismo provoca a associação da
gestão à “burocracia e controle estatal”, ao passo que o lucro é associado à
massificação e uma eventual “ameaça à autonomia”. (DURAND, 2013, 128).
Nesse contexto, o autor destaca os principais entraves na gestão da política
pública cultural nacional:
No caso da Política de Patrimônio Cultural Material nacional, pode‐se observar a
atenção do IPHAN quanto à citada desarticulação institucional, na quarta
premissa e no Princípio da Transversalidade. Quanto aos fomentos, o PPCM
afirma no artigo 53 que realizará ações e atividades com a finalidade de: “III.
Otimizar os investimentos públicos, fomentando ações articuladas e colaborati‐
vas com entes públicos e privados [...]” (IPHAN, 2018, p. 43).
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
102
Quanto aos custos socioculturais e também políticos comuns às atividades da
indústria cultural na preservação do patrimônio arquitetônico, o PPCM registra
no artigo 55 que as ações devem, entre outras finalidades:
Diante disso, entende‐se que, para a indústria cultural no Brasil, o patrimônio
arquitetônico dos grandes centros urbanos é uma “mercadoria” destinada ao
consumo cultural e ao lazer de um público regional/nacional e internacional,
dotado de poder aquisitivo suficiente para o consumo nessas emblemáticas
cidades empreendimento enobrecidas. Submetido a tal dinâmica, o patrimônio
arquitetônico também é mercado para o Estado, na função de articulador e
fomentador de investimentos, pois a indústria cultural é um agente que tem
potencial de promover desenvolvimento socioeconômico e cultural. Na função
de regulador, o patrimônio arquitetônico representa, para o Estado, memória e
significação que devem ser resguardadas, tolhendo‐se práticas que sejam
nocivas, como algumas dissonâncias da indústria cultural, particulares ao âmbito
da intervenção, que serão discutidas a seguir.
O modelo de atuação da indústria cultural, no âmbito da intervenção no
patrimônio arquitetônico no Brasil, vale‐se de práticas que têm o potencial de
causar prejuízos ao bem na qualidade de referência para a preservação. Essas
práticas são aqui identificadas como dissonâncias.
o edifício com uma cenografia por meio de reconstruções e reproduções, de
modo que se inviabilize o diálogo com o presente.
Se não se preserva o edifício como um todo, interior e
exterior, que não são coisas desconexas, perde‐se tudo
isso. Destroem‐se dados históricos relevantes e deixa‐se
a obra esvaziada de sua capacidade de funcionar como
efetivo suporte material do conhecimento e da
memória. (KÜHL, 2008, p. 217).
No entanto, o fachadismo é recorrente em intervenções em nossa realidade. Ele
é assumido no contexto de condutas menos exigentes e, por conseguinte, menos
criteriosas; sobretudo em edificações de menor notoriedade ou
representatividade, protegidas principalmente como elementos de conjuntos
históricos urbanos, visando à preservação da ambiência urbana. Essa conduta,
embora corroborada por órgãos de preservação (pois normalmente se vincula
ao nível de proteção), implica a supressão das referências históricas no interior
das edificações, conforme citado. Isso pode afetar a significação do patrimônio,
no que se refere às relações dos grupos sociais com o edifício e com o território
em que este se encontra. Um exemplo é o que ocorre quando são acrescidos
novos pavimentos ao interior das edificações em sítios urbanos. O adensamento
resultante promove uma mudança na forma de uso do bem, que repercute nas
práticas sociais da edificação e do espaço público contíguo.
De fato, tanto o fachadismo quanto a museificação são lapsos na intervenção de
assimilação qualitativa do passado e de seus produtos. Eles tomam o lugar da
compreensão teórico‐crítica da história da arquitetura e da teoria da restauração
e acometem danos ao bem como referência. São dissonâncias da prática que
podem ser tomadas como uma reincidência anacrônica de políticas de
preservação anteriores e que também vão ao encontro do desejo de consumo
superficial e rápido pela imagem e pelo patrimônio estetizado e estereotipado.
Em suma, um fenômeno mais próximo ao contexto atual das relações
socioculturais da pós‐modernidade e da industrialização da cultura.
Outra dissonância favorecida pela indústria cultural na prática da intervenção no
patrimônio arquitetônico se refere ao uso. Efetivamente, a utilização prática
desse tipo de bem é indispensável à sua conservação, e isto já é consagrado na
preservação. No entanto, a questão do uso do patrimônio é mais complexa do
parece de antemão. O objeto da intervenção é
[...] uma resposta a uma questão que é sucessivamente
proposta. O edifício já existe, tem demandas
particulares à sua “manutenção” e foi construído
atendendo a um programa de necessidades que não
necessariamente é o mesmo da atualidade.
(CSEPCSÉNYI, 2006, p. 148).
Contudo, a definição do uso da arquitetura de valor histórico na intervenção não
pode se resumir à viabilidade utilitária. De fato, o uso é uma das principais
condições para a viabilidade financeira do empreendimento; além disso, ele
insere a arquitetura de valor patrimonial no tecido social da cidade. No entanto,
o patrimônio arquitetônico é uma referência histórica e identitária, não constitui
uma edificação comum. Priorizar as demandas pertinentes ao seu uso, sobre as
demais que cabem à intervenção, pode resultar em perdas à significação e à
integridade do bem. O uso é um meio e não a finalidade da intervenção,
conforme afirma Kühl (2008).
Sendo assim, o uso deve ser adequado àquele bem em particular e para sua
compatibildade devem se considerar as caracteristicas e os significados
conferidos à edificação e ao território em que esse está inserido. “O êxito em
relação à nova destinação de uso de uma preexistência histórica advém da
correta relação entre seus valores materiais e imateriais e seus valores
funcionais.” (NAHAS, 2015, p. 230).
Sobre a definição dessa “nova destinação”, Patrícia Nahas (2015, p. 231) destaca
que na prática, na Itália, antes do desenvolvimento da proposta de intervenção,
quando se reconhece o patrimônio, se prima por identificar qual o uso seria o
mais adequado àquele bem, “[...] de modo que a sua conservação e restauração
implique a menor modificação do texto original.” A autora contrapõe tal
condição à prática brasileira e afirma que aqui a intervenção, frequentemente,
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
105
já parte de um novo uso pré‐estabelecido pelo proprietário do bem. Uso que,
por vezes, é incompatível com as características da edificação histórica.
Vale salientar que os “limites aceitáveis” do patrimônio arquitetônico envolvem
questões específicas, como, por exemplo, exigências e solicitações de legislações
particulares, as de segurança, de instalações prediais, etc. Isso se impõe, em
especial, quando são usos que implicam a concentração de público.
Há ainda outro extremo na questão da definição do uso do patrimônio na
intervenção, que se dá quando essa declaração não acontece, embora seja
patente que a ação direta de intervenção não deve ser executada sem que o uso
do bem esteja definido. Isso ocorre principalmente em ações promovidas pela
iniciativa pública e premidas por interesses políticos. Nesses casos, o novo uso
da edificação não é definido ou é um uso provisório. Tal condição implica
normalmente o desenvolvimento de projetos genéricos e ações mal planejadas,
que geram retrabalho, novas intervenções no bem com potencial perda da
matéria da arquitetura histórica e acréscimos de custos e prazos.
Na prática de atuações recentes, só vez por outra se
verifica maior consciência e sensibilidade nas propostas
e nas operações, tanto na escala urbana, quanto em
edificações isoladas. O que se observa, em geral, é a
absoluta prevalência de critérios ditados pelo uso, para
obter maiores lucros, para aparecer nos meios de
comunicação, e guiados por interesses setoriais e
imediatistas. (KÜHL, 2008, p. 207).
Com efeito, a mudança de uso do bem na prática de intervenção no patrimônio
arquitetônico em nossa realidade costuma ser subestimada ou manipulada. A
“imposição” de um uso ao bem é comum da prática na iniciativa privada
representada pela figura do proprietário do imóvel, mas também é promovida
pelo Estado. A definição do uso deve ocorrer como um processo de continuidade
respeitosa na existência do bem.
Cabe ainda relembrar que não basta que o novo uso seja
apenas “nominalmente” compatível, pois, por exemplo,
muitos usos ditos “culturais” têm desnaturado bens
culturais. Ou seja, um uso voltado à cultura não assegura
que o edifício seja preservado; e, inversamente, um
projeto de supermercado, que leve em conta as
características do edifício e não confunda os fins com os
meios, pode ser adequado. (KÜHL, 2008, p. 211).
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
106
É equivocado compreender o uso cultural como o único possível e “digno” para
o patrimônio arquitetônico, de qualquer porte. Todavia, esse uso é recorrente,
sobretudo nos casos de edifícios históricos de maiores dimensões, em iniciativas
financiadas pelo Estado. Conforme já discutido, os usos correlatos ao consumo
cultural são parte do processo produtivo da indústria cultural nos centros
urbanos. A repetição dessa fórmula homogeneizante dificulta a manutenção de
usos diversificados que sustentam o uso habitacional, que, por sua vez, contribui
para minimizar o custo social desse modelo. Outrossim, essa carência de
democratização dos usos redunda também em custos culturais e políticos
infligidos aos grupos sociais. No entanto, investir em grandes equipamentos
culturais históricos, além de ser uma estratégia do mercado imobiliário de
enobrecimento do lugar, também é uma estratégia política por visibilidade e
notoriedade. Nesse sentido, vale destacar a reflexão de Gérard Monnier (2006,
2009) sobre os equipamentos culturais e a indústria cultural.
Hoje, os teatros, casas de ópera, auditórios, centros de
convenção, estádios, piscinas são os lugares – objeto de
uma comunicação intensa, que ultrapassa os objetivos
econômicos da própria atividade, que fixa a identidade
do edifício e que possui uma função política. Com efeito,
essa comunicação é não apenas proporcional ao seu
papel social, mas é também necessária para justificar o
investimento dos políticos e das administrações, assim
como dos orçamentos, tanto para o setor público
quanto para o setor privado, na produção e na gestão do
equipamento. A cultura e o esporte, organizados
segundo a lógica do espetáculo e de sua economia, têm
um peso na relação das instituições com os
equipamentos e a infraestrutura. (MONNIER, 2009, p.
12).
Para Monnier (2006, p. 16), esse é um “modelo brilhante para as instituições
culturais”, sob o escopo da indústria cultural101. Na “lógica do espetáculo”, o
equipamento cultural é um “instrumento” de entretenimento que deve “[...]
impor‐se no espaço social, face à concorrência dos instrumentos tecnológicos do
101
Uma referência nesse sentido é o Centro Georges Pompidou, um centro cultural
construído em 1977 na França, que teve repercussão mundial. Jean Baudrillard (1991, p.
82‐83) discute os efeitos decorrentes da instalação desse centro cultural no bairro de
Beaubourg, onde foi feito um “[...] verniz – limpeza da fachada, desinfecção, ‘design snob’
e higiênico [...].” Ele o chamou de “efeito Beaubourg”, fenômeno que se dá quando o
equipamento cultural é tratado somente como um “invólucro arquitetônico” e à medida
que a experimentação que se faz desse é “de dissuasão” (desconfortável). Sendo assim,
a arquitetura torna‐se uma “máquina de produzir vazio”, logo, o efeito é a tradução de
uma contradição. O continente espetacular minimiza antecipadamente o conteúdo
cultural experimentado pelas massas. Isso é resultado de uma cultura de simulação
contraditória, em relação ao conteúdo instrutivo e formativo que justificaria o espaço
como sendo para todos.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
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consumo cultural em domicílio.” Nessa conjuntura, o “monumento histórico é
adaptado à produção de espetáculos”, como um programa de impacto e
visibilidade que pretende uma “recepção” particular. O que pode levar ao [...]
enfraquecimento da recepção da identidade arquitetônica e a um
desvanecimento de seu valor próprio; [...].” (MONNIER, 2009, p. 11‐15).
Ou seja, nesse ambiente de influência da indústria cultural, a intervenção no
patrimônio arquitetônico constrói com o uso cultural uma experimentação
temática da arquitetura de valor histórico, que é basicamente resultante do
tratamento midiático e espetacular para o consumo das massas. Uma narrativa
homogeneizada que pode levar à minimização da preexistência.
Cabe ainda pontuar a afirmação de Françoise Benhamou (2016, p. 55) acerca da
dimensão econômica dos grandes equipamentos culturais patrimoniais na
França. A autora defende que as atividades culturais promovidas nesses edifícios
históricos são “por natureza pouco rentáveis” e, em geral, insuficientes para
cobrir as despesas de funcionamento da edificação 102 . De fato, esse tipo de
patrimônio requer receitas consideráveis para suprir seus custos de
conservação. Sendo assim, os investimentos em grandes equipamentos culturais
históricos ocorrem comumente mais motivados por interesses sociais e políticos,
do que necessariamente econômicos.
102
Segundo Benhamou (2016, p. 63), a gestão de equipamentos culturais históricos
costuma carecer de ações que possibilitem geração de fundos, ou mesmo que permitam
“[...] engendrar atividades econômicas e força de atração na concorrência patrimonial
internacional.” A sustentabilidade econômica desse tipo de empreendimento envolve a
gestão pública eficiente de demandas como acesso e oferta, conjugados a bens e
serviços, além do essencial entendimento do “patrimônio vivo” que cria “elos sociais” e
alimenta a “criatividade”. (BENHAMOU, 2016, p. 88).
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
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108
Mais uma dissonância vinculada à indústria cultural, na prática da intervenção
no patrimônio arquitetônico, é o peso conferido ao novo como ferramenta de
impacto. Sobre esta questão, dois aspectos são fundamentais. O primeiro se
refere à aparência de recém‐construída conferida à edificação histórica na
intervenção. O “rejuvenescimento” das superfícies do bem, conforme Kühl
(2004, 2008) discute, relaciona‐se com a minimização dos valores da passagem
do tempo e vai ao encontro de um valor “estético” que, por sua vez, se sobressai
ao da antiguidade. O aspecto novo, vibrante, é impactante e se associa ao
consumo da imagem. Valores imagéticos são enaltecidos pela indústria cultural
para o consumo das massas. Por sua vez, a “decadência” infligida pelo tempo ao
bem não costuma ser um atrativo para as dinâmicas desse mercado em âmbito
nacional.
Alois Riegl (2014), no início do século XX, já chamava a atenção para o fato de
que o valor de novidade é o valor das massas. Em função disso, estas deveriam
ser sensibilizadas para o valor histórico (acadêmico e técnico) dos monumentos.
De modo a que houvesse o amadurecimento para, então, se alcançar o
reconhecimento do valor de antiguidade de maneira mais ampla. Nesse sentido,
Kühl (2008) afirma que se deve
Educar, nesse caso, parece estar mais próximo de uma abordagem que acomode
o olhar para o edifício histórico, do que necessariamente educação patrimonial.
De qualquer forma, parece pouco provável que a ênfase conferida ao valor de
novidade na intervenção no patrimônio arquitetônico, sob esse aspecto
particular de observação, afete a identificação conferida pelos grupos locais. Ela
103
No Brasil, o rejuvenescimento das fachadas é recorrente e se conforma por meio do
emprego de tons intensos na pintura, valendo‐se normalmente de prospecções
estratigráficas para justificá‐los. Esta postura ignora o conhecimento de que os
pigmentos de época não eram tão impactantes como os de hoje e que os tons verificados
nas prospecções podem ter se alterado, por camadas de material acumulado que os
intensificam. Outro exemplo é o rejuvenescimento “forçado” das superfícies pétreas,
haja vista que as correções de danos como manchas, que empregam métodos pouco
invasivos, costumam ser menos eficientes. Sendo assim, são utilizados materiais e
métodos agressivos às superfícies das pedras, implicando a perda de matéria para a
remoção das manchas, conferindo o aspecto novo.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
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109
O segundo aspecto do enfoque que pode ser conferido ao novo na intervenção
contemporânea no patrimônio arquitetônico, no contexto de influência da
indústria cultural, é mais complexo. Ele se dá no âmbito da adequação do bem
ao novo uso e, por extensão à sua nova funcionalidade, que ocorre na forma de
acréscimos. Tal condição faz parte do problema a ser criativamente respondido
pelo arquiteto. Claudia Cunha (2010) destaca isso:
Sendo assim, o novo nesse processo pode ampliar a significação conferida ao
bem, conforme discutido por Paolo Marconi (1993). Contudo, o autor também
ressalta que, nessa tarefa do arquiteto, a intervenção tem sido mais mobilizada
pelo novo do que pelo antigo. Ou seja, o novo na intervenção no patrimônio
arquitetônico tem se sobressaído à preexistência.
Nahas (2015, p. 345) identifica essa dinâmica em intervenções no patrimônio
arquitetônico no Brasil, por meio do estudo de obras realizadas nas três últimas
décadas104. Para a autora, há um conflito contemporâneo da preservação entre
“permanência e mudança, antigo e novo”, que tem pendido cada vez mais para
o protagonismo do novo sobre o antigo. Conforme enuncia, “[...] a conservação
deixou de ser o mote principal da ação de ‘restauro’ e passou a ser uma
coadjuvante na intervenção. O projeto do novo guia a modificação do antigo com
o argumento de ‘atualizar’ o monumento.” (NAHAS, 2015, p. 271).
O ambiente típico em que o novo é “imposto” à preexistência na intervenção é
o influenciado pela indústria cultural. Neste caso, o novo tem como prerrogativa
o impacto e a imagem emblemática para o consumo. Isso ressalta a diferença
entre a nova funcionalidade e a restauração do patrimônio arquitetônico em si.
Nesse contexto, Ruth Zein e Anita di Marco (2008) afirmam que
104
A análise de Patrícia Nahas (2015) é retomada no capítulo seguinte, quando são
discutidas as posturas teóricas adotas nas intervenções estudadas pela autora. Ver item:
3.3 Posturas teóricas na prática brasileira.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
110
[...] as obras não são preservadas apenas por si mesmas,
mas também por serem signos de outras coisas; não
basta que falem do passado, mas devem testemunhar a
favor de uma construção conceitual do presente,
fazendo sentido dentro de um discurso essencialmente
contemporâneo. (ZEIN; DI MARCO, 2008, p. 3).
Esse discurso é próprio da atual maneira de ver o passado e atuar em sua
preservação. Entende‐se que o novo pode ressignificar o bem. Todavia, se
predomina sobre a preexistência, ele tem potencial de infligir prejuízos à
significação do patrimônio arquitetônico correlata aos grupos sociais que lhe são
mais próximos e lhe conferem diversidade. Ademais, se o novo for deveras
necessário à intervenção, a ponto de sua imposição à preexistência ser essencial,
é provável que tal uso seja incompatível com o bem, pois prevalece sobre este.
Assim, o novo que se caracteriza como uma dissonância da indústria cultural, na
prática da intervenção no patrimônio arquitetônico, também tem potencial
homogeneizante, assim como o uso cultural, o fachadismo e a museificação.
Como visto antes, a homogeneização na dinâmica da intervenção influenciada
pelo processo produtivo industrializado da cultura causa prejuízos ao bem como
referência para preservação.
A imprudência em relação aos monumentos históricos e
a seus aspectos documentais resulta na perda de um
valor fundamental, que é diversidade, a multiplicidade.
Perda de multiplicidade que nega um preceito que
deveria estar presente na vida em geral, que é a
tolerância. Preservar apenas aquilo que parece
proveitoso a alguns em um dado momento, é a
subversão desse preceito. (KÜHL, 2006, p. 35).
A supressão do passado na intervenção, decorrente da perda de sua diversidade,
também é identificada por Solà‐Morales (1998, p. 6, tradução nossa), que
acrescenta: a “suspensão” das “particularidades” do patrimônio implica “valores
transhistóricos”. Ou seja, valores que perpassam a historicidade do patrimônio
e se relacionam com a interculturalidade. Por outro lado, como entendido nesta
pesquisa, não existe uma homogeneização completa e global. Contudo, a
hibridação cultural na intervenção impacta os aspectos da significação
contemporânea do patrimônio arquitetônico.
Ademais, não se pode contar com a “assertividade dos receptores”, de Carlos
Fortuna e Augusto Silva (2002), para zelar pela heterogeneidade na intervenção
no patrimônio arquitetônico, em meio às dinâmicas da indústria cultural em
nossa realidade. Porque, de modo geral, os grupos sociais que se relacionam
mais intimamente com o bem não costumam ter condições estruturais para
assumir uma atitude ativa politicamente, nem sua participação no processo de
intervenção é assegurada. Conforme enuncia Boaventura de Souza Santos
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
111
(2001) e, de maneira semelhante, Renato Ortiz (2007), para a diversidade há
ainda que se discutir a igualdade.
Nesse contexto, cabe retomar Françoise Choay (2005, p. 38‐39), que afirma a
necessidade de se romper com “[...] o economismo do patrimônio
reconvertendo e adaptando os edifícios e os meios museificados para utilizações
contemporâneas vivas, [...]”, portanto, mais heterogêneas. Dessa forma,
enfrenta‐se o que a autora chamou de “[...] pedagogia do turismo mundialista e
a sua propensão para apagar as diferenças.”
Por certo, a atuação da indústria cultural na preservação do patrimônio
arquitetônico no Brasil tem repercussões na intervenção. Sobre isso, entende‐se
que na contemporaneidade a significação do patrimônio é multidimensional e
dinâmica e envolve novos processos de experimentação e significação. Quando
estes são assumidos na intervenção de forma criativa e respeitosa, como
programas de alcances e demandas complementares, vêm a ser legitimados.
Inclusive, as experiências podem ter um caráter mais global/intercultural e
podem ser viabilizadas por ferramentas mais próximas ao consumo, que
empregam a imagem, o novo, etc.
Todavia, se a intervenção estabelece um novo discurso que minimiza ou ignora
o discurso da preexistência, este se torna coadjuvante. Nesse caso, a parte da
significação do bem que é a que lhe confere diversidade (seus valores e
significados locais ou regionais) não é prioritária. Logo, o discurso que se institui
tende a ser comum (homogeneizado). Ademais, se o discurso da intervenção
ignora os significados da preexistência, ele é incoerente em relação ao seu
processo de desenvolvimento estabelecido no campo disciplinar teórico da
restauração e coloca o bem em risco como referência histórica e identitária para
a preservação.
quais são submetidos, correlacionados ao problema do distanciamento teórico
da prática da intervenção105.
De antemão, a título de facilitar a reflexão e para além de qualquer julgamento,
pode‐se dividir os principais envolvidos no processo de intervenção no
patrimônio arquitetônico em nossa realidade em dois grupos: um do domínio do
público, que abarca a Fiscalização representada pelos órgãos de proteção e os
grupos sociais que se relacionam com o bem; e outro do domínio privado, que
se relaciona com o desenvolvimento do empreendimento – intervenção –,
envolvendo o empreendedor, o projetista e o construtor.
No domínio do público:
Órgãos de preservação /Fiscalização
Os órgãos de preservação têm a função de fiscalizar o processo de intervenção
no patrimônio arquitetônico. Quando há simultaneidade de tombamentos entre
as instâncias de proteção, na prática se trabalha com as regulamentações e
orientações dos respectivos órgãos para aprovação dos projetos. No entanto,
quem acompanha normalmente todo o processo de intervenção no patrimônio
(obra) é a instituição que têm mais restrições para preservação daquele bem.
Contudo, isso pode variar, cabendo então a fiscalização à instância superior. O
PPCM registra as competências, no caso do IPHAN, do Sistema de Fiscalização e
Autorização – “fiscalis”.
Pode‐se afirmar que o interesse do órgão de proteção na intervenção é,
impreterivelmente, a preservação do patrimônio cultural pelo resguardo de sua
integridade e de seus significados, práticas sociais e identidades. Ou seja, as
condições que o conformam como referência cultural.
105
Teoria essa reconhecida pela história e pela crítica da preservação, que estabelece
princípios teóricos, metodológicos e técnico operacionais, que são discutidos no capítulo
seguinte: 3. A teoria para intervenção no patrimônio arquitetônico, inclusive no âmbito
nacional.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
113
Para isso, também é necessária a preocupação com a viabilização da iniciativa,
além da observação da qualidade de projetos e obras, que, por sua vez, implica
a coerência destas em relação aos referenciais teóricos e técnicos. Nesse
sentido, o órgão de preservação, na contemporaneidade, deve estar atento a
interferências correlatas à definição da intervenção como a prevalência de
valores estéticos/estilísticos e “tecnicistas”, característicos de práticas
anacrônicas, a primazia da imagem do novo, em detrimento à preexistência, etc.
O PPCM registra, no artigo 54, que na realização de ações de “Conservação” o
IPHAN deve buscar:
suas tarefas106. Essas interferências têm sido reforçadas por diversos autores.
Entre eles, José Carlos Durand (2013), que ressalta o deficit de investimentos na
preservação do patrimônio cultural nacional, além de um deficit relativo ao
quadro técnico da estrutura organizacional do principal órgão de preservação
federal, que é o IPHAN. Enfim, no panorama contemporâneo da preservação
nacional, a “desvalorização” da autarquia é latente, e essa conjuntura acaba por
contribuir, ainda que indiretamente, para o distanciamento entre a teoria e a
prática da intervenção no patrimônio.
Grupos sociais
Aqui se consideram os grupos sociais como os membros da sociedade que se
relacionam com o bem, conferindo‐lhe sua condição de referência para
preservação (exclusive os órgãos de preservação, já abordados, bem como os
agentes envolvidos diretamente com o desenvolvimento da intervenção,
tratados mais a seguir).
Logo, os interesses dos grupos sociais no âmbito da intervenção no patrimônio
arquitetônico abarcam, além da própria preservação do bem, a salvaguarda de
suas práticas sociais, memoriais e seus laços de identidade cultural. Desse modo,
a prática social como discurso político é um dos objetos de atenção dos grupos
sociais, principalmente os locais. Inclusive, como reivindicação por
representatividade em relação à arquitetura mais popular, “não patrimoniável”.
Nesse caso, as pressões ou interferências que são impostas aos grupos sociais
que, por sua vez, contribuem para o distanciamento teórico da prática da
intervenção, são fatores que dificultam a participação e a representatividade
desses.
Outro interesse dos grupos sociais na intervenção é seu potencial de promover
desenvolvimento econômico, social e cultural. Com efeito, quando essas
iniciativas são conduzidas de forma sustentável, elas incrementam a geração de
renda. Todavia, uma das interferências nesse processo que afeta os grupos
sociais locais é o deslocamento imposto pela valorização imobiliária. Isso ocorre
principalmente em grandes projetos de reurbanização, mobilizados pela
106
A recente Carta de Fortaleza (2017) registra que a continuidade do trabalho de
salvaguarda do IPHAN “[...] encontra‐se, atualmente, ameaçada pela crescente
insuficiência de estrutura institucional, recursos humanos e financeiros; pela ausência de
qualificação técnica apropriada de alguns ocupantes de cargos estratégicos e de gestão;
[...].”
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
115
indústria cultural, que interrompem práticas sociais relacionadas com o bem e
com o território, incorrendo em severos custos sociais, políticos e culturais e
contribuindo para o distanciamento entre a teoria e a prática.
Por último, outro interesse dos grupos sociais na intervenção é o do consumo
cultural. O direito de “produzir e consumir cultura”, conforme afirma Fonseca
(2009, p. 76), deve ser irrestrito a todos os grupos sociais. Assim, as discrepâncias
estruturais econômicas e também socioculturais de nosso país são impedimento
para esse tipo de “prática social” do patrimônio que também gera identificação.
Por outro lado, o direcionamento da intervenção para o consumo pode
contribuir para a incoerência da intervenção em relação à teoria.
Portanto, a contribuição mais significativa que os grupos sociais locais e regionais
acrescentam à coerência da intervenção é a sua participação neste processo. Por
isso, seu eventual desinteresse pode ser uma interferência que favorece o
distanciamento teórico dessa ação. De modo geral, as pressões e interferências
nesse sentido são da ordem da desarticulação entre as esferas de proteção, da
descontinuidade de programas, da carência de recursos financeiros, etc. Ou seja,
da insuficiência de interesses políticos e técnicos.
No domínio do privado:
Empreendedor
O empreendedor é um dos agentes envolvidos no processo de intervenção. Seu
interesse é a viabilização do empreendimento. Ele pode ser um agente privado
ou público proprietário ou não do bem. Quando a iniciativa é pública, o
empreendedor é representado pelo respectivo setor de governo. Quando é
privada, ela também acaba por envolver o capital público oriundo de programas
de incentivo à cultura ou de renúncia fiscal, conforme visto anteriormente.
Patrícia Nahas (2015) identifica o perfil do empreendedor na intervenção no
patrimônio arquitetônico em âmbito nacional:
A solicitação para a intervenção em uma preexistência,
nas últimas três décadas no Brasil, está associada ao
setor público, em geral aos órgãos municipais. Em
menor escala, vemos a iniciativa privada, como, por
exemplo, a Fundação Roberto Marinho, operando em
prol do patrimônio nacional. (NAHAS, 2015, p. 244).
Cabe ressaltar que essa pode ser a realidade, tratando‐se de intervenções de
médio e grande porte. Para o empreendedor desses segmentos, tanto da
iniciativa pública quanto da iniciativa privada, o marketing cultural advindo com
a ação de preservação do patrimônio arquitetônico é um fator de interesse. E o
uso escolhido para o bem é uma condição decisiva, inclusive no que se refere à
visibilidade da iniciativa. Ele é normalmente pré‐determinado por demandas
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
116
Assim, o empreendedor desse porte costuma ter, no âmbito da definição da
intervenção, especial interesse em ferramentas que visam ao consumo cultural,
como a imagem/estética, fragmento da história e da arquitetura do patrimônio
/ dimensão plástico‐formal para visibilidade, e como o novo para o impacto. No
âmbito da gestão do processo de intervenção, ele tem como interesse a
qualidade das ações de projeto, de planejamento, de controle e de execução da
intervenção; correlatas aos custos e prazos necessários à viabilização do
empreendimento.
Ainda no âmbito da gestão, as interferências promovidas pelo empreendedor
público ou privado, que podem ser associadas ao problema do distanciamento
teórico na prática da intervenção, são normalmente da ordem da carência da
gestão sistêmica. No caso da atuação do empreendedor público, pode‐se dizer
que uma interferência é a minimização da atuação dos órgãos de preservação
do patrimônio. No caso de obras privadas, uma interferência recorrente na
gestão é a prática de fragmentar e desarticular etapas de intervenção, a fim de
viabilizá‐la. Embora essa estratégia possa ser menos danosa do que deixar de
prover a intervenção, ela também contribui para uma menor eficiência do
processo, já que pode implicar a duplicação de custos de mobilização ou mesmo
de serviços; afora os potenciais danos à matéria original do bem.
Tal conjuntura não é exclusiva das obras. A desvalorização do Projeto de
Intervenção é outra interferência promovida pelo empreendedor, no âmbito da
gestão, e também abarca as tomadas de decisão para a intervenção. Isso ocorre
principalmente quando o Projeto é visto como uma ação burocrática, sendo
contratado somente os produtos exigidos pelos órgãos de preservação, às vezes
à mão de obra não especializada. Assim, ele fica comprimido entre as fases de
um projeto global e, portanto, descontextualizado de sua função. Nessa
conjuntura, os processos de investigação a respeito da significação conferida por
grupos sociais locais não ocorrem. Por conseguinte, o projeto acaba por ser
superficial ou sistematicamente subutilizado. Essas interferências são da ordem
da carência de sensibilidade quanto à relevância do Projeto de Intervenção e,
por fim, da importância da preservação do patrimônio arquitetônico.
Ressaltamos que existem vantagens e desvantagens em
intervenções que têm clientes públicos e/ou privados:
com os primeiros, existe a facilidade de tramitação dos
projetos para aprovação dentro dos órgãos de tutela
(quando é o caso), e o valor de investimento geralmente
é mais alto. Por outro lado, existe a burocracia dos entes
administrativos da qual os arquitetos estão livres
quando trabalham com clientes privados. Os clientes
públicos também detêm os meios de manutenção do
monumento mais eficazes, pois podem instituir leis e
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
117
Sendo assim, a postura do empreendedor assume considerável relação com a
coerência teórica da intervenção. De modo que sua atuação também sofre
interferências. No caso da iniciativa privada, em particular dos proprietários de
bens de pequeno porte, a carência de recursos para demandas de conservação,
que já implicam custos significativos para essa realidade, ou mesmo para as
intervenções de maior monta, representam uma aguda interferência. Nessas
condições, a intervenção não ocorre e o bem fica entregue à degradação, ou
ocorre de maneira amadora, à revelia de qualquer coerência teórica e técnica.
Não obstante, Maria Cecília Londres Fonseca (2005, p. 38‐40) chama a atenção
para o fato de que os interesses do proprietário privado, na intervenção no
patrimônio arquitetônico, são premidos pelo “duplo exercício de propriedade”.
A autora frisa que “[...] os bens tombados se convertem, em certo sentido, em
propriedades da nação, embora não percam seu caráter de mercadorias
apropriáveis individualmente.” O Estado utiliza o poder coercitivo por meio de
ação mais direta imposta pela obrigação legal estabelecida no Código Civil
Brasileiro, no qual o “[...] direito de propriedade sobre as coisas não se pode
contrapor a outros valores, não econômicos, de interesse geral, e, por isso, o
exercício desse direito é tutelado pela administração pública.” Isso gera “[...]
uma série de problemas, pois o exercício de um tipo de propriedade limita
necessariamente o exercício do outro.” Tal fato ocorre, sobretudo, porque o
bem para pequenos proprietários também costuma ser meio de subsistência e
único patrimônio financeiro.
Arquiteto/projetista
O arquiteto é outro dos agentes envolvidos no processo de intervenção no
patrimônio arquitetônico. Ele é responsável pelo desenvolvimento do Projeto de
Intervenção, cabendo‐lhe planejar e acompanhar sua execução, de forma atenta
à logística intricada e também à pós‐execução. Esse é um projeto complexo que
infere sobre sistemas construtivos e materiais diferenciados, custos elevados,
prazos estendidos e mão de obra especializada.
O arquiteto tem como interesses mais imediatos as informações necessárias à
sua tarefa de projetar, de acordo com a fundamentação teórica a respeito da
arquitetura e da restauração. Esta última estabelece que, para a intervenção, é
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
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metodologicamente necessária a atribuição do valor patrimonial ao bem, com o
reconhecimento da significação conferida pelos grupos sociais locais, somada à
sua significação material. Tal interpretação do patrimônio costuma ser um
desafio à prática do projetista na realidade nacional, sobretudo, no âmbito da
iniciativa privada. Como já citado, não são normalmente disponibilizadas verbas
nem prazos para a pesquisa junto aos grupos sociais, quando se desenvolve o
Projeto de Intervenção. Essa é uma interferência da ordem da carência de
sensibilização quanto à importância dessa demanda, tanto da parte do
empreendedor, conforme já discutido, quanto da parte do projetista.
Em função disso, a apuração da significação junto aos grupos sociais acaba por
ser pouco reconhecida e pouco trabalhada, como um dado contundente para a
intervenção. Ademais, a insuficiência de conhecimento sobre a significação do
bem e do seu território contribui para a atribuição de valores genéricos,
superficiais e também tecnicistas. Tal dinâmica configura uma flagrante
interferência que contribui para o distanciamento teórico da prática da
intervenção, em relação ao campo disciplinar da restauração, a que o arquiteto
é submetido ou, por vezes, promove.
De fato, o processo de desenvolvimento do Projeto de Intervenção abrange
diversos produtos que não existem em um Projeto de Arquitetura comum. Entre
os que têm especial correlação com a coerência teórica da intervenção, estão os
referentes às etapas de Conhecimento do Bem e de Diagnóstico, que fornecem
informações acerca da edificação e de seu estado de conservação. Incluam‐se
ainda as Especificações Técnicas de Materiais e Serviços que descrevem o
conjunto de operações e procedimentos de execução, especificam materiais,
técnicas, etc.107. Esses e outros produtos que compõem o Projeto de Intervenção
tratam de ações que são particulares ao âmbito da restauração e também de
outras necessárias ao empreendimento de intervenção no patrimônio
arquitetônico.
107
Ver quadro 2 – Produtos do Projeto de Intervenção, no item: 4.3 Intervenções nos
megaeventos do Rio, em que são listados os produtos que compõem um Projeto de
Intervenção, de acordo com o Manual de projetos do IPHAN (IPHAN, 2005).
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
119
agravados. (CSEPCSÉNYI, 2006, p. 153).
Por certo, interferências que impactem na coerência desses produtos podem
implicar o retrabalho na intervenção e perdas à matéria original do bem,
constituindo ameaça potencial ao patrimônio na qualidade de referência para a
preservação. Logo, a coerência teórica, bem como a qualidade técnica do Projeto
de Intervenção devem ser interesses do projetista. Isso se aplica igualmente à
gestão estratégica sistêmica do projeto e também da intervenção propriamente
dita, abarcando ações de planejamento e de controle, atentas ao
sequenciamento, ritmo e demandas particulares desse empreendimento
especial 108 . Interferências nessa gestão também podem contribuir para o
distanciamento teórico da intervenção.
Falhas de projeto que costumam envolver diretrizes desconexas, especificações,
orçamentos e cronogramas inadequados, entre outros 110 . Portanto, várias
informações e decisões que devem compor o Projeto de Intervenção e são
frequentemente ignoradas ou postergadas para a etapa das obras. Nessas
intervenções incoerentes, ou mesmo superficiais em relação ao campo teórico
disciplinar, o conhecimento deixa de oferecer coerência, confiabilidade e coesão
à prática, que passa a ser quase unicamente empírica. Em meio a essa dinâmica,
a intervenção pode ser contraditória por se apoiar em juízos equivocados, ou
omissos, direcionados ao senso comum e abstendo‐se da crítica; ou, ainda,
subjetivos, dirigidos a atender ao desejo de vontade. Ou seja, interferências e
pressões que são da ordem de interesses outros, que não priorizam a
preservação do bem como referência cultural. Consequentemente, conforme já
citado, isso aumenta custos e prazos e pode infligir perda ao patrimônio.
Ainda no âmbito da gestão dos recursos, um dos interesses do projetista deve
ser que os diversos agentes envolvidos nesse processo de produção possuam
especialização, no setor e em outros contíguos, e que sejam agregados desde as
fases mais precoces, de acordo com a compreensão global multidisciplinar e
110
A Política de Patrimônio Cultural Material registra no artigo 52: “São instrumentos de
Conservação e Gestão do patrimônio cultural material: I. As Diretrizes de Conservação;
II. Os Planos de Conservação; e III. Os Diagnósticos e projetos específicos.” (IPHAN, 2018,
p. 43).
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
121
sistêmica da intervenção, já apregoada nas Cartas patrimoniais há algum
tempo111. Conforme Beatriz Kühl (2006) afirma,
Dessa forma, é fundamental a capacitação técnica no sentido da especialização
dos profissionais envolvidos com a intervenção no patrimônio arquitetônico.
Capacitação que, de fato, é imprescindível ao exercício de qualquer atividade
profissional. No entanto, no caso da formação do arquiteto em nossa realidade,
principal agente responsável pelo desenvolvimento do Projeto de Intervenção,
[...] não há uma efetiva compreensão das características
do restauro como campo disciplinar e dos instrumentos
que lhe são próprios; a formação que está sendo
oferecida aos futuros arquitetos‐urbanistas é, desse
modo, no geral, insuficiente para abordar os problemas
extremamente complexos colocados por obras e por
ambientes de interesse para a preservação, que exigem
preparo e consciência da necessidade de trabalhar de
maneira fundamentada e por meio de processos
multidisciplinares. (FARAH, 2012, p. 263).
Contudo, Ana Farah (2012) ressalva que a obrigatoriedade dos conteúdos de
preservação no curso de graduação de Arquitetura é recente, de 1996. Ademais,
a carga horária também é reduzida. Sobre esse tema, Kühl (2008, p. 112) defende
111
A Carta de Veneza (1964) já registrava o caráter multidisciplinar da ação de restauro.
“A conservação e a restauração dos monumentos constituem uma disciplina que reclama
a colaboração de todas as ciências e técnicas que possam contribuir para o estudo e a
salvaguarda do patrimônio monumental.”
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
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122
que a restauração do patrimônio arquitetônico “[...] é campo de alta formação,
em que deveria ser exigida uma preparação de pós‐graduação, como ocorre com
a medicina.”
Nesse contexto, Nahas (2015, p. 251) acrescenta que, mesmo na Itália, “que tem
como tradição o ensino de restauro”, vem se debatendo o tema da formação do
arquiteto. Já no Brasil, esse debate parece ser incipiente, quando se observa que,
de modo geral, a formação teórica do corpo técnico costuma ser insuficiente na
prática profissional do setor, inclusive na pós‐graduação. A relação entre a teoria
e a prática se mostra deveras frágil, sobretudo, tratando‐se de conhecimentos
operacionais específicos como aqueles sobre materiais e sistemas construtivos
históricos e, consequentemente, técnicas de intervenção. Em função disso, itens
de suma importância no Projeto de Intervenção, que são produtos de expertise,
como as Especificações Técnicas de Materiais e Serviços, apresentam
frequentemente baixa qualidade e, portanto, incoerência ou superficialidade
técnica.
Construtor
O construtor é o interveniente envolvido com a execução propriamente dita da
intervenção. Seus interesses mais imediatos são as condições para essa
empreitada e os recursos que possam reduzir custos, prazos e mão de obra, além
de assegurar a qualidade dos serviços.
Com efeito, Kühl (2008, p. 112) afirma que em nossa realidade “[...] tampouco
existe um quadro suficiente de mão‐de‐obra e de empresas verdadeiramente
qualificadas para trabalhar no setor, [...].” Vários fatores colaboram para a
contratação de mão de obra pouco capacitada. Nesse caso, vale pontuar a
questão da Lei 8666/93 do Governo Federal, que regulamenta contratos da
administração pública. Essa lei tem sido interpretada como se a condição
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
123
exclusiva para a contratação do construtor fosse o menor preço da proposta112.
Outros expedientes podem ser tomados para conciliar custo, técnica e
qualidade, como a exigência de Atestados Técnicos de capacitação, nos Termos
de Referência. Entretanto, essa estratégia pode redundar na chamada “licitação
fracassada”, que ocorre quando todos os interessados são desclassificados. Tal
fato também pode ser uma evidencia da baixa capacitação dos prestadores de
serviços.
Nesse sentido, convém ressaltar que os custos apropriados pelo projeto devem
ser adequados, de modo a que exigências restritivas constante dos Termos
encontrem respaldo na remuneração condizente às obras e à especialização das
empresas. Caso não sejam adequados, pode não haver interessados nesses
processos de contratação, conformando a chamada “licitação deserta”.
A Lei 8666/93 também favorece outra interferência que afeta a coerência teórica
da intervenção: a contratação de obras com o Projeto de Intervenção em nível
somente de projeto básico. O projeto nessa fase é deveras superficial para a
definição e detalhamento de serviços que requerem tamanha especialização,
como os de restauro, ainda mais para uma apropriação adequada dos custos. Em
nossa realidade, os orçamentos nos Projetos de Intervenção costumam
apresentar diversos problemas, inclusive, decorrentes, inclusive, da inexistência
de insumos específicos nas tabelas requeridas nos sistemas de contratação
pública.
Essa conjuntura de interferência para a coerência teórica da intervenção se
agrava com a criação do Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC),
implemento pela Lei 12.462 de 04 de agosto de 2011, em caráter provisório,
como instrumento mais adequado à celeridade necessária às contratações para
a realização da Copa das Confederações e do Mundo, de 2013 e 2014, e das
Olimpíadas e Paraolimpíadas, de 2016. O instrumento sofreu vários acréscimos,
por meio de lei e de medida provisória, e permaneceu vigente, estabelecendo
no art. 9º a “contratação integrada”, que abarca, na execução de obras e serviços
de engenharia, a elaboração e o desenvolvimento dos projetos básico e
executivo (BRASIL. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, 2011). Ou seja, é necessário
somente o anteprojeto para a contratação de obras.
112
LEI 8666 de 21/06/1993 regulamenta o artigo 37, inciso XXI, da Constituição Federal,
institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras
providências.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
124
malsucedidas que implicam o retrabalho, a perda da matéria remanescente do
patrimônio, novos custos (inclusive do capital público financiador) e a dilatação
de prazos (que já são longos pela natureza artesanal e intricada das ações).
Já as causas para tal dinâmica podem ser diversas e abranger pressões de ordem
econômica, no caso do empreendedor privado, no sentido de buscar a
viabilização financeira da intervenção e, no caso do projetista e do construtor,
no intuito de reduzir custos. Pode ainda haver pressões de ordem político‐
populista, no caso de órgãos de preservação premidos para reduzir exigências e
limitações, projetistas e mesmo construtores, no sentido de priorizar decisões
que conferem visibilidade à intervenção, sobretudo em se tratando de
empreendimentos públicos de maior monta.
Essas condições podem extrapolar o caráter executivo e assumir uma dimensão
que não é condizente com o exercício profissional. Nesses casos, a intervenção
no patrimônio arquitetônico pode ser guiada por juízos antiéticos, tendenciosos,
direcionados a atender aos interesses que não têm como premissa a preservação
do patrimônio como referência e ocorrem em detrimento à coerência
teórica/técnica do campo disciplinar. Interesses e interferências que ocorrem na
prática da intervenção, implicando perigos ao patrimônio listados por Flávio
Carsalade (2007, p. 98):
“Perigo historicista” ocorre quando o contexto é colocado no lugar do
texto, ou seja, quando se tenta entender o bem patrimonial não como
ele se apresenta hoje, mas como “ele era e se portava no contexto onde
ele nasceu”.
“Perigo psicológico” ocorre quando se tenta interpretar a intenção do
autor ou o espírito da época, “[...] em uma forma de cogenialidade que
é mais pretensiosa do que possível.”
“Perigo objetivista” ocorre quando se procura derivar o sentido do bem
a ser interpretado fundamentado apenas nele próprio, “tornando‐o
independente do autor, do contexto e do intérprete”.
“Perigo relativista” é próximo ao historicista e ocorre quando “[...]
obliteramos nosso modo próprio de interpretação pela tentação de
relativizar sempre a obra ao seu contexto original.”
“Perigo subjetivista” ocorre quando prevalece a interpretação do
restaurador no processo de intervenção, minimizando a historicidade
do bem para fazer valer sua própria intencionalidade.
“Perigo positivista” ocorre quando se tenta utilizar na intervenção
apenas o método científico.
“Perigo idealista” ocorre quando prevalece o culto à imagem ou à
matéria “[...] como se elas fossem, respectivamente, os centros da
expressão artística ou da historicidade do objeto.”
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
125
“Perigo do senso comum” ocorre quando a superficialidade do gosto ou
do juízo comum prevalece na intervenção.
De todos estes, o perigo historicista é o associado pelo autor às dinâmicas da
indústria cultural, por conduzir a uma “apropriação excessivamente setorial”,
com potencial de promover o fachadismo e a homogeneização (CARSALADE,
2007, p. 98). No entanto, o perigo subjetivista, por sua intencionalidade, o perigo
idealista, pelo culto à imagem, e o perigo do senso comum, pelo interesse
direcionado ao público, também têm profunda relação com as posturas
contemporâneas de intervenção no patrimônio arquitetônico, praticadas pela
indústria cultural. Com efeito, os perigos e interferências, ou seja, as vicissitudes
do exercício profissional permeiam a prática dos diversos intervenientes
envolvidos no processo de intervenção do patrimônio arquitetônico.
Em face desse entendimento, a intervenção contemporânea precisa legitimar a
significação da arquitetura histórica e do seu entorno, conferida pelos grupos
sociais em suas práticas sociais e identidades culturais, bem como a integridade
física da edificação. Além disso, ela ainda precisa observar processos de
significação do patrimônio arquitetônico que compreendem conexões com o
consumo e a experimentação multicultural.
Para isso, a valoração patrimonial para a intervenção deve ser construída por
meio de pesquisas quanto à materialidade do bem e quanto à sua
imaterialidade. Assim, compreendendo a imaterialidade como o conjunto de
significações mais amplo, que abarca práticas sociais e construções outras, além
das memórias, como expectativas, afirmações, etc. Logo, a valoração deve ser
reconhecida em sua mutabilidade e também em sua multiplicidade, ocorrendo
em seu tempo e em seu lugar.
Por conseguinte, ela também envolve processos de ressignificação decorrentes
de intervenções anteriores no patrimônio arquitetônico. Dessa forma, o
processo de valoração deve primar pelo contato com o grupo “de
pertencimento” dessa arquitetura, de modo a afastar‐se da supervalorização
estilística tecnicista e também dos valores generalistas (que não são particulares
àquele bem) ou superficiais (que não são claramente definidos). Todos eles são
incoerentes em relação ao referencial teórico e metodológico do campo
disciplinar da restauração.
Nesse sentido, um ponto acerca da valoração que merece ser mais bem definido
no PPCM é o que se entende como “pensamento institucionalizado sobre o
tema”. Outros pontos que também demandam de atenção são os referentes à
seleção dos patrimônios arquitetônicos a serem protegidos e os meios
necessários para que as novas formas de percepção do patrimônio arquitetônico
se traduzam em novas formas de intervir.
Essa carência de identificação é agravada pelo tratamento tecnicista conferido
aos bens, que enfatiza valores historicamente estéticos e monumentais, eruditos
e institucionalizados. Distantes, portanto, de significados que podem ser
atribuídos pelos grupos sociais locais. Assim, estes podem não se ver
representados por essa arquitetura. De fato, de maneira geral, a produção
arquitetônica das classes mais populares não costuma ganhar o mesmo espaço
na hierarquia da patrimonialização, que a produção dos segmentos sociais mais
abastados. Isso se efetiva, sobretudo, quando se carece de recursos financeiros
para preservação do patrimônio, quando há desarticulação entre esferas de
preservação ou falhas de gestão, etc. Ademais, essa conjuntura não se dissocia
das questões estruturais econômicas e também das discrepâncias estruturais
socioculturais de nosso país.
Em face disso, pode‐se ponderar que existe um deficit representacional na
preservação do patrimônio arquitetônico no Brasil, que se refere à arquitetura
de valor patrimonial das classes mais populares. Cabe a ressalva de que esse não
é um deficit quantitativo. O patrimônio material, no caso do bem isolado (não
em conjunto), é o mais numeroso dos bens tombados pela esfera federal de
proteção, representando 74% do total, segundo dados de 2018 constantes no
documento que encaminha o PPCM (IPHAN, 2018, p. 17)113.
Tal conjuntura nacional aponta para certa fragilidade das identidades culturais
locais/regionais, construídas por meio da identificação desses grupos sociais
com o patrimônio arquitetônico. A identidade cultural local/regional é, em si, um
discurso político representacional; quando a identificação com o bem não é um
processo de prática social e política, a identidade torna‐se vulnerável à
hibridação cultural. Sendo assim, a intervenção no patrimônio arquitetônico
113
Segundo o artigo 18 do PPCM, entre os bens culturais imóveis, do ponto de vista
territorial e relacional, está o “I. Bem isolado, quando a sua materialidade compreende
um componente em uma unidade territorial;” (IPHAN, 2018, p. 36).
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
128
deve legitimar esse processo de identificação, por meio da manutenção e do
estímulo às práticas desses segmentos sociais.
Apesar dessa condição, não se pode deixar de reconhecer que na atualidade há
maior representatividade social na preservação brasileira. E, por sua vez, maior
diversidade do patrimônio cultural. Destaca‐se que, quanto mais peculiar e
diverso for o patrimônio, mais ele é atrativo para a indústria cultural. Maria
Cecília Londres Fonseca (2009) assinala que é exatamente no contexto do
patrimônio plural, ou seja, da diversidade cultural, que se estabelece o desafio
atual para a preservação. Não só à difusão do patrimônio cultural, mas também
à sua constituição, proteção e gestão.
Objetivamente, a intervenção no patrimônio arquitetônico no Brasil envolve a
imaterialidade e a prática social, inclusive como discurso político por
representatividade. Por outro lado, grupos sociais ainda enfrentam dificuldades
para serem reconhecidos como produtores de cultura autoconscientes e
também como seus consumidores, ou seja, sofrem dificuldades de praticar
social, política e economicamente o patrimônio arquitetônico. Porque, este
ainda é valorado por suas características materiais, afastando‐se de sua
significação.
No âmbito da dinâmica contemporânea nacional de intervenção no patrimônio
arquitetônico, é oportuno reforçar o papel da indústria cultural, bem como do
Estado, identificando características comuns da prática da intervenção nesse
universo, assim como dissonâncias recorrentes.
A indústria cultural é um agente privado do processo de produção que, no Brasil,
utiliza capital de origem público. Nesse contexto, a “mercantilização” do
patrimônio é operada pela indústria do turismo cultural, que tem o potencial de
promover desenvolvimento econômico e social. Todavia, ela emprega um
modelo de preservação globalizado e hegemônico, cujos investimentos são
concentrados em sítios urbanos e grandes equipamentos culturais, inclusive
históricos. Normalmente, áreas degradadas onde o capital imobiliário promove
“enobrecimento”, mobilizando usos e atividades comerciais culturais.
Tais ações constroem um cenário – a “cidade empreendimento” –, no qual a
arquitetura de valor patrimonial é uma imagem que serve como ferramenta de
atração desse lugar destinado ao consumo visual, superficial e rápido. Por sua
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
129
vez, essa imagem espetacular do patrimônio contribui para a construção da
imagem da cidade contemporânea.
O modelo costuma ter um alto custo social e cultural, por força da gentrificação
e da minimização ou extinção das práticas sociais dos grupos que são deslocados,
pela ausência de usos que subsidiem a moradia e/ou pela especulação
imobiliária. Por outro lado, quando o uso residencial e os demais usos
diversificados necessários à sua existência são promovidos como uma estratégia
de sustentabilidade do empreendimento, são frequentemente destinados a uma
população de maior poder aquisitivo, de modo a viabilizar o consumo. Essa
estrutura de produção seriada da indústria cultural (que promove
“enobrecimento” e atrai consumidores “enobrecidos”) é uma força totalizante
de mercado, cuja função econômica impacta na geração de renda e serviço,
entre outros.
Entre as dissonâncias dos processos produtivos da indústria cultural, atreladas
às intervenções no patrimônio arquitetônico brasileiro, estão a museificação e o
fachadismo. Essas dissonâncias, que já foram comuns no vocabulário da
preservação brasileira de outrora, são revigoradas pelos interesses da indústria
cultural. Ao passo que elas desvinculam a arquitetura de valor patrimonial, de
parte de suas características físicas e de suas relações com o lugar, causando
prejuízos ao documento histórico e à sua significação.
Outra dissonância é o emprego do uso cultural, inserido no processo produtivo
da indústria, como estratégia política por visibilidade, não tendo
necessariamente a prerrogativa da compatibilidade com o bem. Quando isso
acontece, o novo uso pode se tornar um fator de alto impacto à significação e à
integridade do patrimônio.
O novo pode ser outra dissonância da indústria cultural. O novo referente ao
aspecto rejuvenescido da edificação histórica conferido com a intervenção
possui um impacto imagético atrativo para as massas e para o consumo. Por sua
vez, o novo relativo ao acréscimo à preexistência, decorrente da adequação à
nova funcionalidade, pode assumir grande importância na imagem do bem.
Nessas circunstâncias, ele dispõe do potencial de prevalecer sobre a
preexistência, tornando‐a “pano de fundo” e minimizando sua significação.
Com efeito, a intervenção deve ser um interesse coletivo, pois o patrimônio
cultural é capital social. Caso contrário, o potencial de desenvolvimento social
que a indústria cultural pode propiciar restringe‐se às dissonâncias
características das ações direcionadas por seus interesses, podendo causar
prejuízos ao patrimônio arquitetônico e aos grupos sociais locais.
Objetivamente, a indústria cultural emprega ações de preservação voltadas para
seus interesses, que são bastante típicas e impactantes no panorama
contemporâneo dos grandes centros históricos urbanos nacionais. Essas ações
provocam uma experimentação do patrimônio arquitetônico que é
primordialmente um diálogo superficial, construído por meio de uma linguagem
baseada em signos midiáticos. Imagens voltadas para o consumo visual, que
destacam normalmente características materiais do bem. Nesse sentido, à
medida que o consumo cultural do patrimônio arquitetônico promove e é
promovido pelo fetichismo do status de consumo “mundializado”, com um
discurso homogeneizado de caráter intercultural, se propicia uma identificação
genérica e também se reduz o repertório das intervenções. Isso ocorre,
sobretudo, na ausência de condições estruturais econômicas e culturais para o
posicionamento dos grupos sociais, no sentido de “negociarem” a “diferenciação
cultural”.
Se o patrimônio arquitetônico não for um meio para o discurso político, a
representação cultural e a prática social, as práticas da indústria cultural podem
prevalecer sobre a preexistência. Entretanto, ainda que a intervenção seja
influenciada pela indústria, o patrimônio arquitetônico não é comprometido na
qualidade de referência identitária e histórica, caso o discurso que prevaleça
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
131
Os primeiros são os órgãos de preservação: seu papel na intervenção pode ser
resumido ao de orientador e fiscalizador para a adequada ação física de
preservação do bem. Seus interesses são a salvaguarda do patrimônio, pela
manutenção dos significados e valores atribuídos, em consonância com as
demandas da edificação quanto à funcionalidade/manutenção. Por sua vez, sua
ação pode ser submetida a algumas interferências, como pressões de ordem
política, carência de infraestrutura, etc., que podem contribuir para o
distanciamento em relação à teoria. Por outro lado, esse mesmo agente pode
promover interferências na prática da intervenção que causam efeito
semelhante, à medida que promovem uma compreensão anacrônica do
patrimônio, voltada primordialmente para o objeto (uma valoração tecnicista).
Outro agente envolvido no processo de intervenção são os grupos sociais. Eles
são os sujeitos da preservação, como Lia Motta (2017) os identifica; são os
grupos sociais que conferem ao bem a sua condição de referência para
preservação. Seus interesses envolvem, entre outros, a ação física no bem que
favorece a prática social, o reconhecimento da representatividade, a própria
participação nesse processo, o desenvolvimento socioeconômico, bem como a
experimentação do patrimônio como prática de consumo. A interferência a que
grupos sociais podem ser submetidos quando da intervenção, que contribui para
o distanciamento entre a prática e a teoria, é a inviabilização e o desestímulo às
suas práticas, além da carência de representatividade. Por outro lado, a
interferência que os grupos sociais podem promover é a não participação nesses
processos, fruto de “desinteresse” que pode, por exemplo, ser motivado por um
tratamento hierarquizado do patrimônio arquitetônico.
O empreendedor também é um agente no processo de intervenção. Ele pode ser
representado pelo pequeno proprietário, cujo papel é conservar “seu”
patrimônio. Nesse caso, seus interesses vão desde a obtenção de fundos para tal
demanda até a utilização do bem de acordo com suas expectativas. A principal
interferência a que pode ser submetido no processo de intervenção é a carência
de subsídios para efetivar a preservação do bem. Por sua vez, a interferência que
pode promover é deixar intencionalmente a edificação à degradação, ou
executar uma intervenção de forma arbitrária, motivada por desconhecimento
ou pelo entendimento do patrimônio como uma obrigação legal.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
132
O projetista e o construtor também são agentes na intervenção. O patrimônio
arquitetônico para eles é um interveniente interno do processo, um dado a ser
trabalhado. Seus interesses devem ser planejar e executar a intervenção de
forma eficiente. As interferências que tais agentes costumam promover são: a
carência de conhecimento sobre o bem, de competência técnica a respeito do
referencial teórico de restauração e de arquitetura, por conseguinte, a
insuficiência de sensibilização quanto ao patrimônio e de visão sistêmica da
gestão do projeto e da obra. As interferências a que eles podem ser submetidos
na intervenção, contribuindo para o distanciamento entre a teoria e a prática,
são: pressões de ordem política, a “desvalorização” do Projeto de intervenção
(por meio da insuficiência de prazos e custos para o desenvolvimento de
pesquisas acerca da significação do bem e do conhecimento do bem, por
exemplo), entre outras.
Com base no esboço do panorama nacional contemporâneo no qual ocorre a
intervenção no patrimônio arquitetônico e no entendimento de conceitos
fundamentais a essa prática, considera‐se que a compreensão atual do
patrimônio arquitetônico ainda precisa ser consolidada. A recente formalização
do entendimento do patrimônio arquitetônico, verificada no PPCM, não deve ser
assimilada de forma tão imediata em âmbito nacional. Isso, porque o
tombamento e a valoração do patrimônio arquitetônico ainda se baseiam
preponderantemente nas características materiais e estéticas da arquitetura
histórica; por sua vez, a intervenção também reflete tal condição.
Com efeito, a dinâmica da prática em nossa realidade, por vezes, inviabiliza ou
dificulta a absorção desses entendimentos traduzidos em condutas. Para que a
intervenção seja coerente em relação à teoria e salvaguarde o bem como
referência para preservação, é essencial favorecer a apuração da sua significação
e tomá‐la como a diretriz de todo o processo. Além disso, para a legitimidade da
intervenção é preciso que existam condições estruturais culturais equitativas
que permitam e favoreçam o posicionamento político dos grupos sociais, no
sentido de buscar o reconhecimento de representações culturais do patrimônio
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
133
Neste capítulo, a discussão sobre a relação ente a teoria do campo disciplinar da
restauração e a prática contemporânea da intervenção, no patrimônio
arquitetônico, atém‐se ao referencial teórico essencial reconhecido pela história
e pela crítica da preservação, que estabelece princípios teóricos, metodológicos
e técnico operacionais, comuns a essa prática. Para isso, identificam‐se os
principais postulados contemporâneos para intervenção no patrimônio
arquitetônico e caracterizam‐se as posturas e distanciamentos teóricos
recorrentes na prática da intervenção em âmbito nacional.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
135
de John Ruskin116, na Inglaterra, e do “Restauro Estilístico”, de Viollet Le Duc117,
na França.
O “Restauro Crítico” ou “Restauro Criativo” tem início após a Segunda Guerra
Mundial, na Itália, baseado principalmente nas reflexões de Roberto Pane (1897
– 1987) e Renato Bonelli (1911‐2004), que primavam por “uma solução estética
ao problema de conservação”, segundo Giovanni Carbonara (1998, p. 18,
tradução nossa). Beatriz Kühl (2008) ainda acrescenta como as bases do
“Restauro Crítico” as reflexões de Pane e Bonelli e as de Paul Philippot. No
entanto, o “Restauro Crítico” foi realmente consagrado por outro autor: Cesare
Brandi (1906‐1988), com a chamada “Teoria da Restauração”, uma coletânea de
ensaios publicada inicialmente em 1963.
A Teoria de Brandi é estruturada em um processo crítico e operacional abalizado
por “décadas de formulações teóricas” do autor, associadas à sua experiência
didática e prática no campo do restauro. Em função da inequívoca consistência
e da articulação de seus postulados, mesmo que sua Teoria seja ambientada
principalmente no contexto do restauro de obras de arte, ela “[...] não é mera
extensão de suas formulações no campo estético ou vice‐versa.” (KÜHL, 2008, p.
68‐72). Com efeito, apesar de questionamentos pontuais de alguns autores, é
irrefutável a ingerência da teoria de Brandi no campo da arquitetura. Sendo
assim, toma‐se aqui o termo “obra de arte”, empregado pelo autor, como uma
designação que abrange o patrimônio arquitetônico.
Brandi (1954, p. 42‐52 apud KÜHL, 2008, p. 76) 118 defende em sua Teoria que o
restauro, antes de ser um problema técnico, é um problema metodológico que
requer um olhar crítico – uma “crítica filológica” – precedente à definição da
ação técnica. Portanto, tal método estrutura‐se no juízo construído por meio da
análise do documento, que é o bem. Assim como já salientava Bonelli (1959 apud
116
John Ruskin (1819 ‐ 1900) (ver nota de rodapé nº 27) combate as ideias de Viollet Le
Duc.
117
Viollet Le Duc (1814‐1879) é um dos primeiros teóricos que introduz método à
restauração. Ele prega o conhecimento estilístico e o conhecimento do bem por meio de
levantamentos detalhados, evitando‐se a hipótese. Além disso, manifesta sua apreciação
pelo gótico em detrimento ao classicismo, defendendo a complementação de uma obra
mutilada, a fim de conferir coerência, lógica e dar valor histórico ao edifício. Afirma que
se deve restaurar não somente a aparência do monumento, mas também sua estrutura.
(VIOLLET‐LE‐DUC, 2006). A principal crítica feita ao autor é a complementação da
preexistência com a criação de novos elementos. “Este pesado retrato deve, no entanto,
ser matizado: ele não seria assim se não fosse o contexto intelectual da época e se não
se recordasse o estado de degradação no qual se encontravam então em França a maior
parte dos monumentos incriminados.” (CHOAY, 2006, p. 131).
118
Obra não consultada: BRANDI, C. “L’Institut Central pour la Restauration d’Oeuveres
d’Art a Rome”, Gazette des Beausx‐Arts, 1954, vol. 43.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
137
Por conta desse reconhecimento, o autor estabelece dois princípios básicos. No
primeiro, ele identifica duas instâncias principais que incidem sobre o bem: a
“instância estética”, que corresponde à “articidade” humana, e a “instância
histórica”, que corresponde à realização humana vinculada a “[...] certo tempo
e lugar e que em certo tempo e lugar se encontra.” (BRANDI, 2004, p. 29). No
segundo princípio, ele salienta a condição da “unidade potencial” do bem, que
se desdobra em dois corolários que explicam, além desse conceito, os de “falso
histórico” e “falso artístico”, ambos intimamente associados ao primeiro
princípio. (BRANDI, 2004, p. 33).
Portanto, o restauro deve pretender “o restabelecimento da unidade potencial”
do bem com as condições de que não se incorra em um “falso artístico ou um
falso histórico” e não se remova a evidência dessa unidade agregada ao longo da
existência do bem. Em face disso, deve‐se observar atenta e criticamente as
instâncias histórica e estética que deverão nortear tal ação. “A contemporização
119
Obra não consultada: BONELLI, R. Architettura e restauro. Venezia: Neri Pozza, 1959.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
138
entre as duas instâncias representa a dialética da restauração, [...].” (BRANDI,
2004, p. 33).
Nesse sentido crítico, Kühl (2008) enfatiza a premência do processo de
conhecimento e reconhecimento do patrimônio para a intervenção, cuja
definição não é um ato arbitrário e individual próximo do empirismo de outras
épocas, que também é condenado por Brandi. O bem deve ser investigado e
questionado rigorosamente como um conjunto, além do processo que o
produziu. Para a intervenção, é necessário um pensamento crítico e um
julgamento fundamentado em premissas, não em “regras” (KÜHL, 2010, p. 296).
Ainda no que tange ao empirismo, Brandi (2004, p. 128) reforça que, para o
restauro de um bem mutilado e fragmentado, a intervenção não poderá ser
conduzida pela suposição de similaridade. A “analogia” não pode ser um guia
para a recomposição dos fragmentos mais relevantes para a unidade potencial
do bem. A dedução implica o risco de incoerências históricas que podem,
inclusive, se sobrepor às perdas estéticas. Contudo, no caso de elementos não
essenciais à unidade potencial do bem, como, exemplo os que são repetitivos, a
similaridade pode ser o parâmetro para intervenção. De fato, as interrupções
formais nos bens são lacunas que percebemos espontaneamente como
esquemas de “figura e de fundo”. A lacuna destaca‐se como figura na imagem,
que passa a ser o fundo. Sendo assim, a solução para o problema de seu
tratamento é preponderantemente teórica. O refazimento para o
preenchimento das lacunas, quanto à instância estética, é admissível caso
“indique o alcançar de uma nova unidade artística” (BRANDI, 2004, 88).
No que concerne ao refazimento para o preenchimento das lacunas, quanto à
instância histórica, Brandi (2004) o discute em duas circunstâncias. A primeira é
aquela em que a intervenção reproduz uma configuração anterior,
representando um falso histórico que “não pode jamais ser admissível”. O
refazimento é reprodução que acaba por “[...] replasmar a obra, intervir no
processo criativo de maneira análoga ao modo como se desenrolou o processo
criativo originário, refundir o velho e o novo de modo a não distingui‐los [...].” A
segunda é aquela em que o refazimento “[...] quer absorver e transvasar sem
resíduos a obra preexistente.” Para o autor, esse processo é seguramente
legítimo em relação ao aspecto histórico, à medida que é um “[...] testemunho
autêntico do presente de um fazer humano [...]”, logo, identificável como tal,
sem poluir a obra. (BRANDI, 2004, p. 73‐74).
Ao contrário do refazimento, a adição é um acréscimo ao bem executado
nitidamente com a marca de seu tempo. Do ponto de vista da instância histórica,
a adição passa a ser um “novo testemunho do fazer humano”. Todavia, esse
“testemunho” pode ser um registro pouco qualificado, um acréscimo espúrio de
execução e conformação pobres, que dificulta a leitura e/ou a funcionalidade do
bem, atestando contra ele. Desse modo, se não resta dúvida de que a adição não
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
139
acrescenta valor ao bem, deve‐se demoli‐la sem deixar traços de sua existência.
No âmbito da abordagem histórica, a remoção se insere “igualmente na história”
do bem e por isso deve ser justificada e registrada. (BRANDI, 2004, 71).
Não obstante, a conduta a ser adotada no processo de intervenção no
patrimônio, em relação à remoção da adição, nem sempre é tão clara como é no
caso do elemento espúrio. Na prática, as questões que envolvem a remoção de
adições, bem como o refazimento de elementos, geram debates e dúvidas.
Sendo assim, faz‐se necessário um juízo crítico de valor que determine a
prevalência de uma das instâncias, histórica ou estética, para justificar se o “valor
de testemunho histórico” é o que determina a ação ou se é um valor artístico.
(BRANDI, 2004, 70). Esse juízo deve basear‐se no questionamento da atual
significação e valor do bem.
De fato, a intervenção se faz no momento presente; ela historiciza a matéria e a
ação neste momento histórico, para o futuro, logo não é neutra. Não cabe fazer
o restauro no que seria o “lapso de tempo entre a conclusão da obra e o
presente”, isso seria inserir a intervenção na “fase do processo artístico”. “É a
mais grave heresia da restauração: é a restauração fantasiosa”. Do mesmo
modo, tampouco se admite fazer o restauro “arqueológico”, pois este não
reconstitui a unidade potencial do bem. Isso é “restauro de repristinação”, é
retornar‐se ao original, abolindo toda a existência do bem ao longo do tempo.
(BRANDI, 2004, 60). É preciso
Carbonara (2012, p. 3, tradução nossa) sintetiza a dualidade dessa questão
afirmando que a intervenção “[...] faz parte da dupla função do restauro,
reparação e reforço em um lado, denotação e conotação do outro lado, [...]120.”
Ou seja, “conservar” e “destacar” versus objetividade e subjetividade, como
juízos atribuídos no presente.
Ainda no contexto do tempo, Brandi (2004, p. 61) aborda o tema pátina,
descrevendo‐o de forma quase romântica como “[...] o próprio sedimentar‐se do
tempo sobre a obra.” Em outras palavras, a pátina é a evidência da degradação
dos materiais que compõem os elementos conformadores do bem e de sua
imagem. Sendo assim, a pátina não é a sujidade acumulada e não se trata da
120
“[…] this is part of the double function of restoration, repairing and reinforcing on one
side, denoting and connoting on the other side, [...].”
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
140
questão com a mera limpeza das superfícies, embora esta também se inclua. A
orientação de Brandi (2004, p. 62) a respeito da pátina é uma atitude reflexiva,
embasada na teoria e na análise de cada caso, não sendo do “domínio do gosto
e do opinável”. O autor reconhece que a pátina é uma “adição que não
representa necessariamente o produto de um fazer,” mas está intrinsecamente
associada à unidade potencial do bem, a qual se pretende que seja um
parâmetro para o restauro. Do ponto de vista histórico, ao se restabelecer uma
imagem do bem na qual não se observa a antiguidade em seu estado, falsifica‐
se a história. (BRANDI, 2004, p. 72).
Se então a matéria se impuser com tal frescor e irrupção
a ponto de primar, por assim dizer, sobre a imagem, a
realidade pura da imagem ficará perturbada. Por isso, a
pátina, do ponto de vista estético, é aquela
imperceptível surdina colocada na matéria que é
constrangida a manter uma posição mais modesta no
cerne da imagem. (BRANDI, 2004, p. 86).
A questão da pátina ainda se associa a outro tema contíguo, o das “superfícies
de sacrifício” do patrimônio arquitetônico (KÜHL, 2008). Elas são superfícies
substituídas, refeitas, quando da intervenção por estarem, em alguma
proporção, danificadas; mesmo que fosse possível algum processo de
conservação, que seria desproporcionalmente lento e custoso. Um exemplo
comum de superfícies de sacrifício em edifícios históricos são os panos
argamassados que revestem as fachadas. A adoção dessa conduta implica o
descarte da pátina na pintura desse revestimento e, por sua vez, envolve o
rejuvenescimento das fachadas, observado (no capítulo anterior) como uma
dissonância recorrente na prática da intervenção influenciada pela indústria
cultural. Esse tema é retomado mais a seguir121.
Não obstante, além da relação do patrimônio arquitetônico com o tempo, ainda
lhe concerne uma relação inalienável com o espaço em que foi edificado. Nesse
contexto, Brandi (2004) ressalta que há um vínculo íntimo entre o bem e o sítio
histórico em que ele está inserido, que é tanto histórico quanto estético. Com
efeito, Pane (1944) já afirmava que a unidade estilística fundamental de um
patrimônio arquitetônico compreende a composição de seu interior e de sua
fachada, incluindo aí a sua relação com o entorno, que conforma o ambiente.
Por isso, Brandi considera que a decomposição e a recomposição do bem podem
ser legítimas, como única forma de preservação, mas julga ser inaceitável sua
recomposição em um lugar diverso daquele onde foi executado originalmente.
O seu deslocamento parcial ou total não é admitido pelo autor.
121
A adoção ou não das superfícies de sacrifício é discutida no contexto das linhas
teóricas contemporâneas. Ver item seguinte: 3.2 Teoria de restauração contemporânea.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
141
122
Ainda no âmbito da imposição do tempo ao bem, outro tema que Brandi aborda em
sua Teoria é o do tratamento das ruínas. Ele é deveras amplo e foge à presente discussão,
por isso só é pontuado aqui de modo a evidenciar as inflexões atuais feitas à Teoria de
Brandi. Para o autor, ruína é “[...] tudo aquilo que é testemunho da história humana, mas
com um aspecto bastante diverso e quase irreconhecível em relação àquele de que se
revestia antes.” Um bem cuja unidade potencial originária se perdeu. Tendo‐se em vista
que não há maneira de promover a “reintegração da unidade potencial originária”, a
ruína não deve ser compreendida de outra forma, que não como ruína. “A legitimidade
da conservação da ruína está, pois, no juízo histórico que dela se faz, como testemunho
mutilado, porém ainda reconhecível, de uma obra e de um evento humano.” (BRANDI,
2004, p. 65‐68). Em razão disso, Brandi (2004, p. 83) defende que a intervenção na ruína
deve ser “conservativa e não integrativa”, mesmo se tratando do juízo estético. Portanto,
cabendo‐lhe a anastilose, que segundo a Carta de Veneza (1964, p. 4) é “a recomposição
de partes existentes, mas desmembradas”, cujos “[...] elementos de integração deverão
ser sempre reconhecíveis e reduzir‐se ao mínimo necessário para assegurar as condições
de conservação do monumento e restabelecer a continuidade de suas formas.”
Entretanto, na atualidade, intervenções no patrimônio arquitetônico em estado de
ruínas têm sido feitas “restituindo” sua funcionalidade e reduzindo sua principal
significação, segundo Brandi, que é a de testemunho histórico. Giorgio Grassi (1996, p.
11‐14 apud VARAGNOLI, 2007, p. 841) defende que “[...] não considera importante para
a conservação de um edifício a manutenção de uma função, mas sim a explicação de um
papel. Edifícios que não têm mais de um papel, ruínas e fragmentos, precisam de
intervenção ‘para voltar a ser’.” Para o autor, “[...] os monumentos antigos devem ser
considerados ‘elementos de composição’ e como tal devem ser complementados ou
reconstruídos, certamente não embalsamados ou abandonados à ‘especialização
técnica’.” Enfim, deve‐se levar em conta que se pretende “reviver em vez de restaurar”,
como foi feito no Renascimento.
Obra não consultada: Grassi, G. Uma Opinião sobre Restauração, "Phalaris", II, nº 6,
janeiro de 1996, p. 11‐14.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
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decorrência de catástrofes e conflitos armados, isto, desde que baseada em
“documentação confiável”. Portanto, um contexto muito específico.
Ainda pautado nos postulados gerais do “Restauro Crítico”, Carbonara (1998, p.
16, tradução nossa) lista como tópicos operacionais para o processo de
intervenção no patrimônio, além da autenticidade123, a “mínima intervenção”, a
“distinguibilidade”, a “reversibilidade” e a “compatibilidade entre os materiais”.
Kühl (2008, p. 78) reforça que esses itens devem ser “pensados de forma
concomitante e não excludente”.
A mínima Intervenção ou “mínimo impacto”, como também é identificado por
Carbonara (2012, p. 4, tradução nossa), baseia‐se primordialmente na
preservação da matéria remanescente do bem. Sendo assim, a intervenção só
deve ocorrer onde e quando é indispensável à preservação do patrimônio.
Orientada por essa premissa, a relação para a intervenção que sobressai se dá
entre a matéria e a imagem do bem. A matéria que o compõe – a “consistência
física” – é suporte e meio para manifestação da imagem. Aquela assegura a
permanência desta; portanto, a matéria deve necessariamente ter precedência
sobre a imagem resultante. Compete salientar que a matéria considerada
“insubstituível” é a que vem a “[...] colaborar diretamente para a figuratividade
da imagem como aspecto e não para aquilo que é estrutura.” (BRANDI, 2004, p.
30‐48).
A distinguibilidade ou diferenciação é mais um tópico que gira em torno da
relação entre a matéria e a imagem. A distinguibilidade na intervenção pauta‐se
na condição de que a reprodução ou a reintegração, se for o caso, tem de ser
reconhecível, sem “infringir a própria unidade que se visa a reconstituir”.
Portanto, ela deve misturar‐se à imagem do bem, mas deve também ser
identificável com um olhar atento. (BRANDI, 2004, p. 47). O que Pane (1944)
chamou de um “contraste feliz”, quando tratou das adições.
123
A questão da autenticidade merece uma discussão própria, que não cabe aqui. No
entanto, vale pontuar que, no âmbito dos postulados de Brandi, a autenticidade se refere
à integridade da matéria do bem. Porém, o Documento de Nara (1994) ressalta que
julgamentos sobre autenticidade devem basear‐se em características do patrimônio,
conferidas no contexto cultural a que pertencem. A Declaração de San Antonio (1996,
tradução nossa) sobre autenticidade nas Américas reconhece que, em certos tipos de
sítios patrimoniais dinâmicos, como paisagens culturais, “[...] a conservação do caráter e
tradições, tais como padrões, formas e o valor espiritual, podem ser mais importantes do
que a conservação das características físicas do lugar e, como tal, podem ter
precedência.” Diferentemente de sítios estáticos, como os arqueológicos, cujo “ativo
social” se perdeu. “Assim sendo, autenticidade é um conceito muito maior que a
integridade material e os dois conceitos não devem ser assumidos como equivalentes ou
consubstanciais.”
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
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143
A reversibilidade é um tópico sobre o qual prevalece a matéria do bem. Baseia‐
se na condição de que a intervenção possa ser revertida e “facilite as eventuais
intervenções futuras”. No entanto, se a reversibilidade de uma intervenção
implicar a perda de parte de sua unidade potencial, ela deve ser mantida.
(BRANDI, 2004, p. 48).
Essa é uma questão controversa, pois a reversibilidade não pode ser tomada
como absoluta. Salvador Viñas (2003, p. 114) ressalta que, para a intervenção
ser “minimamente eficaz”, é preciso que exista interação entre os materiais
remanescentes e novos. Assim, o resultado dessa associação de materiais não é
reversível. Em razão disso, Kühl (2010, p. 313) afirma que o tema tem sido
tratado na atualidade como “retrabalhabilidade”, que conduz a uma reflexão
menos taxativa do que a de Brandi.
A compatibilidade entre os materiais existentes e da intervenção é também um
tópico que se relaciona com a matéria do bem, mas também pode referir‐se a
sua imagem. A intervenção nesse caso deve observar particularmente a
adequada interação, imediata e ao longo do tempo, entre os materiais
remanescentes e novos.
Além desses, Kühl (2006) acrescenta mais quatro tópicos operacionais aos
elencados por Carbonara: a documentação, a metodologia científica, o uso como
um meio e a ruptura harmoniosa. A documentação e a metodologia científica
referem‐se ao registro e ao que Brandi (2004, p. 36) assegura ser o “[...]
conhecimento científico da matéria na sua constituição física.” Envolve práticas
como a identificação das intervenções por meio de datas, siglas e epígrafes,
afora procedimentos como prospecções estratigráficas e o uso de fotografias,
discutidos por Boito (2008) e por Giovannoni (2013). Por sua vez, o uso, como
um meio de preservar os edifícios e não como finalidade da intervenção, e a
noção de ruptura harmoniosa entre passado e presente são tópicos essenciais
para a operação da intervenção, segundo a autora, pois afetam as escolhas
quanto aos materiais e técnicas construtivas.
Na Carta de Restauro Italiana (1972), redigida por Cesare Brandi com a
colaboração de Guglielmo de Angelis D'Ossat, postulados da “Teoria de
Restauração” de Brandi são reafirmados de forma mais direta e também mais
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
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144
radical124. Como pode ser observado no art. 6º, no qual é ressaltada a oposição
aos complementos estilísticos, mesmo distinguíveis; às demolições que não
sejam de adições espúrias; às reconstruções e deslocamentos, a não ser por
motivos excepcionais; às modificações do interior das edificações; além da
remoção de pátinas (inclusive das pedras). Nos artigos 7º e 8º, em que se afirma
a adoção de reintegrações de lacunas de pequena monta, distinguíveis ou não
de acordo com cada caso; de limpeza superficial; de anastilose; de adições nas
estruturas para fins de conservação; de testemunhos e da guarda de partes
removidas. E, por último, no anexo b, na qual se destaca a demanda pela
elaboração de documentação relativa ao profundo conhecimento do bem e a
condição de que a adaptação de edifícios aos novos usos deve ser limitada ao
mínimo, atendendo à própria conformação tipológica da edificação (incluindo
rotas internas) e fachadas.
Com base nesses apontamentos, pode‐se observar que a teoria para restauração
proposta por Brandi, no âmbito do “Restauro Crítico”, continua pertinente e
aplicável ao panorama contemporâneo de intervenção no patrimônio
arquitetônico. Ainda que receba críticas de autores como Salvador Muñoz Viñas
(2015, p. 3, tradução nossa), que destaca: “[...] mesmo depois de uma
quantidade desproporcional de trabalho de pesquisa, muitos dos termos da
Teoria permanecem ambíguos e obscuros 125 .” Segundo o autor, isso ocorre
porque ela é de difícil compreensão, o que exige a leitura das demais obras de
Brandi (em sua maioria esgotadas e de difícil acesso). Além disso, Viñas salienta
que a “Teoria da Restauração” de Brandi se contradiz em várias ocasiões, como
quando discorre sobre a pátina. Para ele, a Teoria tornou‐se “um tanto
obsoleta”, por ser “estetocêntrica” para a amplitude dos bens contemporâneos
que não têm essa natureza. (VIÑAS, 2015, p. 8, tradução nossa).
Em parte, essas são críticas pertinentes, todavia não invalidam a importância da
obra como fundamentação teórica para o processo de intervenção, inclusive no
patrimônio arquitetônico. Principalmente, porque na teoria de Brandi se reitera
constantemente a necessidade do posicionamento crítico dos agentes
envolvidos com a iniciativa. Nesse sentido, Carbonara (2006, p. 8) acrescenta que
“a confusão é grande” no campo disciplinar teórico do restauro. Em função disso,
o autor afirma que há muitas oportunidades para opor‐se a Brandi, como, por
exemplo, em relação à repristinação e à anastilose, ainda que motivado por
“simples promoção”. Contudo, não se pode falar em “[...] ‘superação’ das
124
A Carta de Restauro Italiana (1972) é um documento de alcance nacional citado
frequentemente quando se aborda a teoria italiana de intervenção, que é uma referência
para a prática de preservação brasileira.
125
“[...] however, even after a disproportionate amount of research work, many of the
terms in the Teoria remain ambiguous and obscure.”
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
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145
Quanto ao entendimento acerca da pátina de Brandi, Carbonara (2013) o
reafirma e deixa claro que não se opõe à ação que visa à apreensão do
monumento, mas sim a uma nova imagem.
Os variados aspectos da produção teórica de Brandi, e
de sua atuação prática, estão sempre inter‐
relacionados, remontando a um núcleo comum de
pensamento, extremamente consistente, a partir do
qual os diversos temas se articulam e se aprofundam.
(KÜHL, 2008, p. 68).
No entanto, admite‐se que “existem correntes não brandianas (e até mesmo
antibrandianas)”, pois os postulados do autor não foram unanimidade quando
de sua proposição, assim como não há consensos absolutos no campo disciplinar
(KÜHL, 2008, p. 98‐99).
Ainda no âmbito do Restauro Crítico, Umberto Baldini (1997, 1988) também
elabora sua Teoria da Restauração, cerca de quinze anos depois de Brandi. Com
um estudo mais extenso, do que a obra de seu predecessor consagrada em
126
“De todos modos, tratándose de superficies arquitectónicas, aunque viejas y alteradas,
la conservación será preferible en virtud del reafirmado valor, puramente figurativo
además de histórico‐documental, de las pátinas; no hay más que recordar las magistrales
consideraciones de Brandi sobre tal concepto.”
127
Ver item: 3.3.1 Cartas patrimoniais.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
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146
território brasileiro, e reforçado por vários exemplos, Baldini retoma postulados
brandianos128.
Um deles é a afirmação do conhecimento do bem como uma das operações mais
importantes para a intervenção, pois permite compor a “consciência da obra”, a
qual não deve modificar‐se de modo algum (BALDINI, 1997, p. 9, tradução
nossa). Em função disso, a intervenção deve ser “neutra” em relação ao
“potencial expressivo da obra” (BALDINI, 1998, p. 36, tradução nossa).
Entretanto, isso não significa dizer que se deve consolidar uma imagem
deteriorada do bem, mesmo que embasada por um rigor teórico. A lacuna não
deve ser vista como um dado histórico a ser perpetuado. Entendê‐la como parte
da obra representa uma postura arbitrária que prolonga indefinidamente um
momento da existência da obra. Essa forma de atuar é cômoda, mas também é
nociva. O restauro é essencial para sanar os danos que podem levar à destruição
do bem. Quando a intervenção é adequada, o peso do tempo não é um valor
preponderante sobre o documento histórico. Outrossim, o mesmo rigor teórico
não permite eliminar todos os sinais do tempo da obra, visando buscar o aspecto
original do monumento. O momento de sua criação, o tempo e a intervenção do
homem são instâncias a serem balanceadas, não uma competição. É o equilíbrio
entre o nascimento da obra, as características adicionadas ao bem com o tempo
e ação pertinente ao presente, que se deseja com a intervenção. (BALDINI,
1997).
Por sua vez, Baldini (1997) considera que a operação de conservação do bem é
uma manutenção. Ela é indispensável para a existência da obra e não possui
substância (escala) suficiente para localizar‐se no tempo presente da
intervenção, que seria o do restauro. O autor, inclusive, emprega o termo
“manutenção” como um equivalente da conservação. Tal compreensão é diversa
da assumida na presente pesquisa, para a qual esta é uma ação de menor escala
do que a de restauração propriamente dita, ao passo que aquela é uma ação
rotineira “vulgar” (tanto a conservação quanto a restauração ocorrem no âmbito
de uma iniciativa macro de restauração do patrimônio).
Todavia, isso não invalida o que Baldini (1997) defende para a reintegração de
lacunas de pequena monta em relação à obra, que é uma ação de reprodução129.
Para o autor, esta não é uma falsificação, porque tais lacunas são
particularmente inexpressivas e, portanto, a ação se insere no contexto de sua
“conservação/manutenção”. No entanto, deixar deliberadamente de atuar ou
128
A Teoria de Restauração de Brandi, embora seja mais conhecida por meio de um
pequeno volume, não se limita a esse e abarca diversos outros documentos.
129
A lacuna de pequena monta é identificada por Baldini (1998, p. 22, tradução nossa)
como “lacuna‐falta” e a lacuna de maior porte como “lacuna‐perda”.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
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147
Por outro lado, quando a lacuna é maior, a reintegração deve ser uma ação de
“puro restauro”, planejada por um processo metodológico críticofilológico,
empregando uma “abstração da matéria existente” (BALDINI, 1997, p. 24,
tradução nossa). Desse modo, não se modifica o documento histórico, nem se
falsifica uma “realidade temporal‐histórica”. A reprodução, nesse caso, seria
uma falsificação, pois consistiria em um ato arbitrário que outorgaria uma
importância expressiva a elementos que não são originais – uma “autêntica
falsificação temporal”. (BALDINI, 1997, p. 10, tradução nossa).
A “abstração da matéria”, pela reprodução do volume e da simplificação da
forma, não plagia o original nem compete com a expressão da obra. Ou seja,
promove o desejado equilíbrio entre a criação do bem, o tempo que nele atuou
e a intervenção. (BALDINI, 1997). Com efeito, a distinguibilidade não pode
modificar a imagem do bem, pois isso teria um impacto negativo sobre o poder
de expressão da arquitetura preexistente, seria uma datação inútil (BALDINI,
1998).
Em vista disso, observa‐se que a quantidade da lacuna, ou seu peso em relação
à sua expressão, é um aspecto importante para Baldini (1997) no que se refere
a qual premissa teórica irá balizar essa intervenção. Logo, ela indica se é uma
“manutenção/conservação” ou um “restauro”.
Se esta “medida” é suportada ou assimilada pela obra
sem sofrer qualquer alteração do seu estado, significa
que a ação não é apenas lícita, mas que pode fazer parte
direta e integralmente correta no “tempo‐vida” da obra
como um simples ato de manutenção. Contudo se essa
“medida”' altera de alguma forma os valores da obra,
introduzindo diferentes equilíbrios, a obra não pode
assimilá‐la e será alterada e dominada por um ato ilícito,
porque cai na imitação ou na competição afetando de
maneira totalmente negativa seu "tempo‐vida".
(BALDINI, 1997, p. 39, tradução nossa)130.
130
“Si esa ‘medida’ es soportada u asimilada por la obra sin que ésta sufra ninguma
alteración de su estado significa que la actuación no sólo es lícita, sino que puede formar
parte directamente y con pleno derecho en el ‘tempo‐vida’ de la obra como un simple
acto e de mantenimiento. Pero si esa ‘medida’ altera de alguna forma los valores de la
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relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
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148
Baldini (1997, p. 15, tradução nossa) também entende a questão da limpeza
como sendo pertinente ao contexto da conservação/manutenção. O autor
defende que toda obra “[...] tem direito de ser reintegrada com uma intervenção
lógica de manutenção” (que no caso da presente pesquisa é só conservação).
Sendo assim, a limpeza deve ser profunda, mas deve procurar manter um
equilíbrio entre a criação da obra e o tempo “sem criar dissonâncias”. Tratando‐
se do patrimônio arquitetônico, é a pátina das pinturas, pedras e outros
revestimentos que não se deve buscar eliminar com a limpeza. (BALDINI, 1998).
Nesse contexto, Baldini (1998, p. 41, tradução nossa) rechaça a ideia de que "[...]
um bom restauro nunca deve parecer muito novo ou muito evidente,
acreditando que isso resolve o problema 131 .” Segundo o autor, esse
entendimento é simplista e promove uma conduta de intervenção que implica
um “mimetismo falsificador” no tratamento das superfícies.
Por outro lado, o autor destaca equívocos, como o restauro arqueológico, cujo
afã histórico documental acaba por impor perdas irreversíveis a essa mesma
história do bem. Uma “crônica inútil” promovida pela permanência de
acréscimos espúrios que poderiam ser somente documentados por meio de
registro gráfico/fotográfico.
Em síntese, a principal característica da Teoria de Baldini (1997) é a ênfase
conferida ao equilíbrio entre os momentos que conformaram a expressão do
patrimônio. O ato crítico de restaurar deve ter como intuito principal não
comprometer o valor do patrimônio, mesmo que isto seja difícil e envolva, além
das questões éticas e estéticas, também as econômicas. (BALDINI, 1998).
obra introduciendo en ellla equilibrios distintos, la obra no podrá asimilarla y quedará
alterada y dominada por um acto ilícito, porque cae en la imitación o en la competición
afectando de manera totalmente negativa al ‘tempo‐vida’ de la obra.”
131
"[...] una buena restauración no debe parecer nunca demasiado nueva o demasiado
evidente creyendo solucionar así el problema.”
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
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149
reflexões 132 . Segundo Giovanni Carbonara (1998), a partir de 1970, são
propostas novas correntes teóricas que são menos esquemáticas e absolutas do
que as duas instâncias estabelecidas por Brandi. Tais correntes “[...] priorizaram,
por um lado, o componente 'estético' (de alguns processos de reintegração e
restituição) e, por outro o ‘histórico’ (consequentemente, conservador).”
(CARBONARA, 1998, p. 13, tradução nossa)133.
A corrente teórica denominada "Conservação Pura" ou "Conservação Integral"
assume uma conduta mais conservadora. Segundo Beatriz Kühl (2008), os
principais autores que a defendem são: Marco Dezzi Bardesch, Amedeo Bellini,
B. Paolo Torsello e Anna Lucia Maramotti.
Quanto à questão da matéria e da imagem, a "Conservação Pura” não confere
acentuada importância à imagem, pois isso deturpa a matéria. Logo, não
reconhece superfícies de sacrifício no bem, porque todas as superfícies do
edifício registram as suas transformações e história, detendo excepcional valor
documental e devendo ser preservadas integralmente. “Mesmo os sinais de
degradação têm significado histórico, além de estético e, portanto, devem ser
respeitados; [...]” (CARBONARA, 1998, p. 17, tradução nossa) 134 . Conforme
Marco Dezzi Bardesch afirma, em entrevista à Andrea Lacomoni (2013), os sinais
de deterioração da arquitetura de valor patrimonial aumentam sua aura.
Portanto, essa corrente privilegia a instância histórica. As várias estratificações
da obra são “rigorosamente respeitadas”, ainda que apresentem
descontinuidades, “[...] admitindo‐se uma configuração final da obra com
conflitos e, mesmo, contradições.” (KÜHL, 2006, p. 28). Tal conformação do
patrimônio não é contraditória, haja vista que é resultante de todas as ações que
foram impostas ao bem ao longo do tempo. A historicidade dessas ações é “[...]
respeitada de modo absoluto, sendo a matéria preservada tal qual chegou aos
dias de hoje.” (KÜHL, 2008, p. 83).
Ao privilegiar a instância histórica, a “Conservação Pura” rejeita qualquer tipo de
reintegração e reprodução estilística, incluindo formas simplificadas, e também
repudia a remoção de adições. Segundo Bardesch (na citada entrevista), a
matéria faz a história, por meio da forma em um contexto. Essa “pele” da
132
Paolo Torsello (2005, p. 9) afirma que a reflexão sobre o restauro é essencialmente
limitada à Itália, segundo o autor, os outros países europeus parecem mais
comprometidos com os “aspectos técnicos e operacionais”, ou seja, em como se
restaura. Kühl (2008), por sua vez, ressalta que na França, por exemplo, há reflexões
profundas quanto à preservação, sob o enfoque antropológico e sociológico.
133
“[...] que han primado, por un lado, la componente ‘estética’ (de alguna manera
reintegrativa y restitutiva) y por el otro la ‘histórica’ (en consecuencia, conservativa).”
134
“Las mismas señales de la degradación tienen importancia histórica, más allá de la
estética, y por lo tanto deben ser respetadas; [...].”
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
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150
arquitetura “é uma arte autografada”, por isso não pode ser “repetível”. “Cada
gesto e sinal que se acumula no território tem sua autenticidade [...] 135 .” A
autenticidade da matéria, como documento, é um ponto pelo qual o autor
afirma lutar, uma vez que a relação entre a matéria e o contexto é inseparável.
(In: LACOMONI, 2013, p. 66‐75, tradução nossa).
Nesse sentido, devem‐se sanar as patologias na arquitetura histórica, pois se
entende que a conservação “[...] não é mero apêndice do restauro, nem um grau
de intervenção. É algo de natureza diversa.” (KÜHL, 2008, p. 83). Essa talvez seja
a principal “peculiaridade” da corrente teórica “Conservação Pura”: a
dissociação da conservação de qualquer outra ação. O novo na intervenção é
considerado uma ação à parte, o momento autônomo de criação e de “liberdade
figurativa”. (KÜHL, 2008, p. 90). Ou, como Bardesch enuncia, o novo representa
um “poder autônomo de expressão” (In: LACOMONI, 2013, p. 47, tradução
nossa). São esses “possíveis conteúdos, funções e expressões” agregados ao
novo que a intervenção deve promover, além de garantir a conservação do
patrimônio. (In: LACOMONI, 2013, p. 27, tradução nossa).
De acordo com Bardesch, a dialética entre o antigo e o novo é uma necessidade
inseparável da reutilização da arquitetura histórica. Portanto, esse deve ser um
diálogo conciliador, estruturado por “fragmentos significativos” entrelaçados
conscientemente e criativamente com o bem. Assim, uma maneira de intervir
respeitosamente na preexistência é empregar uma gramática que constrói o
diálogo entre o novo e o antigo viabilizada com materiais simples, a exemplo do
tijolo. Esse é um recurso coerente, à medida que a tecnologia se impõe de forma
“cada vez mais invasiva”, nas dinâmicas de reutilização do antigo. (In:
LACOMONI, 2013, p. 45‐47, tradução nossa).
Paolo Torsello (2005) acrescenta que o restauro é um momento criativo do autor
do projeto, mas também de autoconsciência. Ele não deve alterar o
preexistente; deve, inclusive, prover a manutenção dos sinais de sua decadência,
pois estes são essenciais para a análise da obra e para a tradução de sua
mensagem. No entanto, o autor também defende que o novo é essencial; sendo
assim, tanto o novo quanto o antigo devem coexistir.
Da mesma forma, Amedeo Bellini (2005, p. 23, tradução nossa) defende que se
promova o entendimento da “intensidade expressiva” da arquitetura histórica,
por meio do destaque de sua “mensagem verdadeira”. Somente “[...] a
autenticidade dos dados materiais é garantia essencial da verdade [...].”
135
“Ogni gesto e segno che si accumula sul territoria há la sua specifica, irriproducibilie
autenticità [...].”
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
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151
Entretanto, “a adição é inevitavelmente contemporânea”; assim, deve ser aceita
no âmbito das transformações, “maximizando a permanência”.
Ademais, se é a imagem que prevalece e orienta a definição da intervenção, o
aspecto degradado do bem deve ser rejeitado. Assim, a limpeza das superfícies
do patrimônio construído é executada atingindo camadas mais profundas da
matéria e prevendo protetivos para estas. As superfícies de sacrifício são
adotadas, pois entende‐se que são renovadas periodicamente com a
conservação do patrimônio. (CARBONARA, 1998). Portanto, as argamassas e
pinturas deterioradas devem ser refeitas, empregando técnicas e materiais
adequados. “Isso é diverso, porém, de refazer argamassas e não consolidar as
que existem e pintar aleatoriamente.” (KÜHL, 2008, p. 232).
Orientado por essa mesma perspectiva, a reprodução de partes perdidas ou
deterioradas é justificada, inclusive sem simplificação para a distinguibilidade.
136
“[...] problema non è quello dell'autenticità del testo, ma è laquello dela qualità
dell'interpretazione, oltre che quello della qualità intrinseca del brano musicale, [...].”
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relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
152
Paolo Marconi (1993) afirma que as questões teóricas mais atuais a respeito da
intervenção no patrimônio podem ser sintetizadas em duas vertentes: proteger
o bem, mesmo em seu estado reduzido; ou reviver, tanto quanto possível,
características reconhecíveis no artefato obscurecido pela degradação. Isso
porque o “paroquialismo acadêmico” reduz e intimida a capacidade criativa do
arquiteto restaurador, cuja responsabilidade também é inserir o novo na
preexistência e restituir a capacidade de comunicação entre o patrimônio e a
sociedade. Ao arquiteto que intervém no bem, “[...] o que mais importa é que
ele pode comunicar sua mensagem através de modificações e reduções, uma
mensagem que consiste em oferecer ao homem abrigo e proteção, bem como
emoções e beleza138.” Livre da “atmosfera moralística” de que a honestidade
estrutural e morfológica, ostentada por técnicas e matérias distinguíveis, é a
verdade. (MARCONI, 1993, p. 28, tradução nossa).
137
Paolo Marconi (1993) afirma que o uso do concreto foi promovido e estimulado para
consolidação de monumentos na Carta de Atenas de 1931, sendo seu uso generalizado
ainda na atualidade. Todavia, o autor aponta como exemplo negativo desse emprego o
envelhecimento acelerado dos edifícios modernistas, onde a diferença de materiais
empregada na restauro impacta profundamente na imagem despojada de adornos da
arquitetura neste estilo, cujo forte são os ritmos e as formas. Em alguns desses casos é
melhor, inclusive economicamente, reconstruí‐los, pois os sinais de degradação são
desaprovados pela “vontade de arte” moderna. (Ver reflexão de Ignasi Solà‐Morales
(2006), sobre vontade de arte, mais adiante.) Nesse sentido, Kühl (2008, p. 94) destaca
“uma tendência que se tem acentuado” de tratar “fora do âmbito disciplinar do restauro”
as intervenções de preservação em bens de arquitetura moderna, industriais e bens que
são expressões do último século.
138
“[...] ciò che più conta è che essa possa comunicare il suo messaggio seppure
attraverso mutazioni e riduzioni, messaggio che cocsiste nell’ offrire all’'uomo riparo e
protezione, oltre che emozioni estetiche.”
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153
A veemência de Marconi na defesa de sua crença na corrente da “Manutenção‐
restauração” induz a uma perspectiva mais emocional do pensamento para
intervenção no patrimônio. Para Carbonara (2006, p. 16), a “Manutenção‐
restauração” impõe um escrutínio “particularmente pesado de manutenção
substitutiva e inovadora”. Para Torsello (1988, p. 24 apud KÜHL, 2006, p. 28), ela
baseia‐se “[...] numa lógica indutiva, enquanto a teoria brandiana parte, ao
contrário, de uma lógica dedutiva fundamentada em axiomas éticos e científicos
[...]139.” Segundo (KÜHL, 2006, p. 28), a Manutenção‐restauração” é contrária ao
pragmatismo da “Conservação Pura” e do “Restauro Crítico‐conservativo”,
tratado a seguir, que têm em comum uma “tendência maior a se trabalhar por
analogia.”
Em uma linha, pode‐se dizer, menos radical do que as anteriores, a corrente
teórica “Restauro Crítico‐conservativo” é fundamentada no axioma de que cada
intervenção é um caso 140 . Ela é representada por autores como: Giuseppe
Zander, Salvatore Boscarino, Gaetano Miarelli Mariani, Sandro Benedetti,
Arnaldo Bruschi, Francesco Gurrieri e pelo próprio Carbonara. (CARBONARA,
1998).
139
Obra não consultada: TORSELLO, B. Paolo. La Materia del Restauro. Venezia: Marsilio,
1988, p. 24.
140
Gaetano Miarelli Mariani (2000, p. 65‐92 apud KÜHL, 2008, p. 81) identifica essa linha
de restauro como “Posição Central”.
Obra não consultada: MIARELLI, M. G. “I Restauri di Pierre Prunet: Um Pretesto per
Parlare di Architettura”, Palladio, 2000, n. 27, pp. 65‐92.
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154
Contudo, na intervenção orientada por essa corrente, os casos de remoção de
adições e reproduções “[...] são cada vez mais restritos, tendendo‐se uma ampla
conservação do documento [...].” Essa é uma postura “prudente” que se
assemelha à “Conservação Pura”, todavia “[...] não significa de modo algum
congelamento, e não prescinde, antes propõe, quando necessário, o uso de
recursos criativos (utilizados, porém, com respeito pela obra e não em
detrimento dela) [...].” A criação no “Restauro Crítico‐conservativo” é solidária,
condicionada e pressionada pelo bem, de modo a que exista uma articulação
entre a ação conservativa e ação inovadora. (KÜHL, 2008, p. 82‐90). Sendo assim,
a liberdade para criação no “Restauro Crítico‐conservativo” é menor, comparada
à “Conservação Pura”, a qual a criação do novo é assumida e dissociada da ação
de conservação, que é bastante restritiva, conforme já citado.
Entretanto, isso não se traduz em imutabilidade da preexistência, sobretudo
porque não há uma maneira asséptica de restaurar. Intervir na arquitetura de
valor patrimonial significa operar sensivelmente uma mudança, que
inevitavelmente tem implicações estéticas e formais no edifício. (CARBONARA,
2012). Para o “Restauro Crítico‐conservativo”, isso significa transformar de
forma confiante, podendo contar com o emprego equilibrado de elementos
modernos, pois o restauro não deve ser anulado pela arquitetura, nem o
contrário. “O contraste bem estudado é muitas vezes preferível à imitação e à
replicação linguística mais tranquilizadora.” (CARBONARA, 2013, p. 6, tradução
nossa)142.
141
“[...] qualsiasi sull’opera è anche intervento sul modo di trasmettersi dell’opera stessa
nel tempo.”
142
“[...] contrasto com l’antico, sovente preferibili ala più rassicurane via dell’imitazione
e dela replica linguística); [...].”
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155
Em função disso, a tecnologia, por exemplo, deve ser deixada à vista. Um diálogo
deve ser estabelecido com ela, evitando‐se os danos à matéria remanescente do
bem, por consequência da intenção de dissimulá‐la. Isso, por certo, respeitando‐
se os tópicos operacionais de reversibilidade, distinguibilidade e mínima
intervenção. (CARBONARA, 2013).
Ainda no âmbito do “contraste bem estudado”, deve‐se atentar para os casos
em que a consolidação impacta, sobremaneira, no que o bem comunica, à
medida que a matéria do documento se impõe à imagem. Ações como
consolidações estruturais dispensam muitos esforços para evitar demolições e
reconstruções, incorrendo no emprego de propostas e recursos que são
acréscimos visuais que se sobressaem à arquitetura preexistente. Com efeito, a
consolidação estrutural “nunca é figurativamente neutra” ou asséptica.
(CARBONARA, 2013, p. 4, tradução nossa).
Com base nesses apontamentos, se reconhece que essas três correntes teóricas
não são necessariamente antíteses umas das outras. Ainda mais lendo‐se em
conta que partem de um ponto comum, o “Restauro Crítico”. De fato, existem
premissas conceituais distintas, mas o destaque destas é também um recurso
didático, pois são as diferenças que apontam o léxico teórico de cada uma. Na
prática, no que se refere à intervenção contemporânea no patrimônio
arquitetônico, há mais semelhanças do que diferenças.
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relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
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156
Tratando‐se das semelhanças, cabe retomar Françoise Choay (2005, p. 10),
quando esta sustentava há pouco mais de uma década que, apesar da
“vulgarização" do conceito de patrimônio em nosso quotidiano, decorrente da
“massificação do turismo cultural”, não ocorreu uma “alteração significativa nos
instrumentos teóricos”. Com efeito, os fundamentos teóricos consolidados na
metade do século passado ainda são basilares para a intervenção. Em razão
disso, Choay (2006, p. 221‐222) afirma que, no tempo da “mundialização”, é
essencial “[...] repensar e restaurar inteiramente a totalidade das nossas práticas
atuais do patrimônio.” Em face disso, não temos de assumir posturas
maniqueístas que podem ser defendidas, tanto pelos “tecnoidólatras”, quanto
pelos “fetichistas do patrimônio”. Para preservar, é necessário refletir
criticamente, de modo a retomar a competência de edificar no já construído,
respeitosa e articuladamente.
Sobre essa competência de edificar no edificado, Claudio Varagnoli (2007) frisa
que a principal dificuldade, na contemporaneidade, é a dicotomia que se
estabelece entre restauro e design. De forma semelhante, Carbonara (2006, p.
8) defende que as divergências no campo teórico da intervenção no patrimônio
são, de modo geral, da ordem das “recriações modernizadoras e fantasiosas” e
das reproduções tal e qual ou simplificadas. Portanto, segundo Varagnoli, este
momento não tem sido de profunda revisão de métodos, mas sim de
Lógica do edifício existente que, como discutido nos capítulos anteriores, é um
discurso – o da preexistência. Nesse sentido, entende‐se que não se intervém no
vazio e não se deve musealizar a arquitetura de valor patrimonial. Logo, não
convém fomentar a dualidade entre “conservação” e “projeto”. A intervenção
cria com a preexistência, que deve ser assumida em sua amplitude significativa.
Sob tal condição, ela pode, inclusive, ressignificar sua historicidade com o novo,
acrescentando uma nova camada de tempo, sem subverter os discursos da
preexistência.
143
“[...] di rilancio dell’approccio interpretativo del patrimônio storico secondo parametri
talvolta inediti e stimolanti, spesso discutibili e artificiosi, sempre con un eccesso di
formalismo che rifugge dal sottomettersi alla logica dell’edificio preesistente.”
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
157
F IGURA 2 – C ASARÃO NA R UA I BITURUNA , 81. F IGURA 3 – C ENTRO N ACIONAL DE F OLCLORE E C ULTURA P OPULAR .
Fonte: s/ a. (s/ d). Número do processo: E‐18/300.321/87 Fonte: s/ a. (s/ d).
http://www.inepac.rj.gov.br/index.php/bens_tombados/d http: http://www.cnfcp.gov.br/interna.php?ID_Secao=1
etalhar/341
144
Conforme o processo nº: E‐18/300.321/87 de tombamento do INEPAC, as três
intervenções foram de autoria do arquiteto Alcides da Rocha Miranda.
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relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
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158
Beatriz Kühl (2008), no livro Preservação do Patrimônio Arquitetônico da
Industrialização, analisa intervenções contemporâneas em âmbito nacional,
executadas no patrimônio arquitetônico industrial. Iniciativas que ocorreram
com o objetivo de promover a revalorização do Bairro da Luz, em São Paulo, por
meio de grandes equipamentos, inclusive culturais. Intervenções que, por sua
vez, são emblemáticas do contexto da
indústria cultural. Esse estudo discute as F IGURA 4 – A NTIGO ARMAZÉM , ATUAL M EMORIAL DA
R ESISTÊNCIA DE S ÃO P AULO .
intervenções concluídas em 2006 nos edifícios
da antiga Companhia Sorocaba: Estação Júlio
Prestes e armazém (ambos edifícios tombados
pela instância de proteção estadual) e na
Estação da Luz (tombada pelas três instâncias
de proteção). (Ver figuras 4‐6.) Além dessas, a
autora também comenta outras iniciativas
nesse mesmo tipo de bem: a Fábrica de Louça
Santa Catarina, o Conjunto das Indústrias de
Louça Zappi e o conjunto Cotonifício Crespi Fonte: DIAZ, Larissa I. H. (2016)
(ambos na Mooca), entre outras. http://twixar.me/ZJt1
Fonte: COELHO, Luiz (2013). Fonte: PANCIERI, Jefferson (2008).
http://twixar.me/f9t1 http://twixar.me/nzt1
Por meio dessa pesquisa, a autora identifica como posturas recorrentes nas
intervenções, em relação ao referencial teórico, o fachadismo; o tratamento das
superfícies com foco no novo; o uso como a finalidade da intervenção, não como
meio para a preservação do bem; e a demolição de estruturas remanescentes,
inclusive com a aprovação de órgãos de preservação. Ademais, a autora aponta
que a distinguibilidade é o tópico operacional brandiano empregado
comumente para amparar essas ações.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
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159
Essas práticas opõem‐se à premissa teórica de “[...] preservar e facilitar a leitura
dos aspectos estéticos e históricos do monumento, sem prejudicar o seu valor
como documento e sem eliminar de forma indistinta as marcas da passagem do
tempo na obra.” (KÜHL, 2008, p. 226). Não se deve subverter características do
bem como “[...] os aspectos formais, documentais, sua composição como um
todo (interna e externamente), sua materialidade, suas várias estratificações e
seus aspectos simbólicos.” (KÜHL, 2008, p. 183‐184).
F IGURA 8 – F ORTE S ÃO J OÃO DE B ERTIOGA . F IGURA 9 – I GREJA M ADRE DE D EUS .
Fonte: s/ a. (s/ d). Fonte: TAVARES, D. (s/ d).
http://www.abvc.com.br/mobile/evento.asp?IdEv=87 https://bityli.com/PAnUq
145
O Monumenta é um programa do Ministério da Cultura criado em 1995 e implantado
efetivamente em 2000. Financiado principalmente por meio de empréstimo do Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID) e com apoio da UNESCO, seu objetivo é
promover a sustentabilidade do patrimônio cultural urbano tombado pelo IPHAN e sob
tutela federal.
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relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
160
F IGURA 10 – EDIFÍCIO C HANTECLER . F IGURA 11 – P AÇO A LFÂNDEGA S HOPPING .
Fonte: MORAES, Karina (s/ d). Fonte: LINS, Inaldo (s/ d).
https://bityli.com/Bb7Cm https://www.flickr.com/photos/recifeweb/6789262670
A autora observa que o principal órgão de preservação no Brasil, de maneira
geral, ainda mantém “a prática de reconstruções no ‘estilo patrimônio’”146. Isso
ocorre, até mesmo em detrimento das frequentes referências à Carta de Veneza
observadas nos documentos pesquisados, “[...] dando ensejo ao respeito pelas
diversas etapas por que passou o monumento e no abandono da busca pela
unidade estilística, [...].” (CUNHA, 2010, p. 157).
Assim como Kühl, a autora também identifica o fachadismo, o tratamento das
superfícies enfatizando o novo e o uso como finalidade da intervenção na
condição de posturas dissonantes recorrentes na prática do IPHAN. Isso constitui
uma atuação distante da “verdadeira restauração”, por ser uma “[...] leitura
estético formal dos monumentos, relegando a preservação da autenticidade
material e histórica para segundo plano.” (CUNHA, 2010, p. 154).
146
Lia Motta (1987) afirma que os moradores locais de Ouro Preto identificavam como o
“estilo patrimônio” o modelo de intervenção que mantinha uma unidade de estilo
arquitetônico, justificada na manutenção da ambiência do conjunto. Conforme citado
antes, esse modelo se baseava no Decreto‐Lei nº 25 de 1937 para a preservação da
arquitetura histórica nacional autêntica.
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161
147
Em São Paulo: a Estação Rodoviária de Bananal, o Shopping Light, a Pinacoteca do
Estado de SP, o Centro de Educação e Cultura KKKK, a Biblioteca Cassiano Ricardo, o
Centro Cultural dos Correios, a Estação Júlio Prestes/Sala SP, o Theatro São Pedro, o
Centro Cultural Banco do Brasil, o Teatro Renault, a Catedral da Sé, a Cinemateca
Brasileira, a Estação da Luz/Museu da Língua Portuguesa, o Centro Educacional Ibrahim
Alves Lima, o Mercado Municipal de São Paulo e o Instituto Criar de TV e Cinema e a
Biblioteca Mário de Andrade. No Rio de Janeiro: o Centro Cultural Paço Imperial, o
Instituto Moreira Salles, o Parque das Ruínas, o Arquivo Nacional, o Centro Coreográfico
da cidade do RJ e o Museu de Arte do Rio. Na Bahia: o Mercado Modelo, o Conjunto da
Ladeira da Misericórdia, o Palacete das Artes Rodin Bahia. Em Minas Gerais: o Museu do
Caraça e o Museu de Artes e Ofícios. Em Pernambuco: o Mercado São José e o Shopping
Paço da Alfândega. No Rio Grande do Sul: a Casa de Cultura Mário Quintana e o Santander
Cultural.
148
Claudio Varagnoli adota seis modalidades tipológicas para classificar as intervenções:
“Guscio/contenitore” (casca/contentor); “Decodificazione” (decodificação);
“Differenziazione di linguaggio” (diferenciação de linguagem); “Riconstruzione”
(reconstrução); “Restituzione” (restituição); “Dislocazione” (deformação) (NAHAS, 2015,
p. 73).
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162
Das 32 intervenções analisadas, 80%, apresentaram como principal tendência a
“Diferenciação”. Sobre isso, a autora afirma que a distinguibilidade é “[...] algo
perseguido pelos arquitetos como forma de contrastar a sua arquitetura com a
preexistência, e como modo de registrar a sua marca” (NAHAS, 2015, p. 336).
Os arquitetos autores da intervenção, escorando‐se no
princípio da distinguibilidade, procuram justificar suas
inovações junto ao monumento, mas, no fundo, o
excesso e a exacerbação da arquitetura contemporânea
junto à preexistente nada mais é que um registro da
marca daquele que ali interveio, uma assinatura do
novo. (NAHAS, 2015, p. 74).
Os outros 20% couberam às tendências “Conservação” e “Reintegração”. Ambas
reconhecem o novo na intervenção: uma se vale de ações de caráter mais
conservativo, outra privilegia a reconstrução. “Seriam intervenções que
consideram as prescritivas do campo do restauro no processo de modificação de
obras de valor histórico e artístico.” (NAHAS, 2015, p. 348).
Pautada nessa extensa análise, a autora afirma que, na prática contemporânea
nacional de intervenção no patrimônio arquitetônico, emprega‐se a
“experimentação” “em prejuízo do juízo crítico dos valores”, atendo‐se ou não
aos postulados pertinentes ao campo teórico disciplinar. As premissas teóricas
em que as intervenções deveriam fundamentar‐se são enfocadas isoladamente,
sem uma coerência global. Portanto, a prática é “[...] ainda bastante afastada
das prescritivas do campo disciplinar do restauro [...].” (NAHAS, 2015, p. 348).
149
Ver anexo I, no qual são exemplificadas essas tendências.
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163
Ou seja, trata‐se de interferências no processo de intervenção (discutidas no
capítulo anterior) que envolvem os diversos intervenientes que o compõem.
Objetivamente, ao observar‐se o estudo de Nahas, pode‐se divergir
particularmente quanto à categorização de tendências de intervenção
construída pela autora, haja vista ser ela difusa e consideravelmente subjetiva.
Todavia, mesmo em detrimento de possíveis ambivalências, uma única
tendência é numericamente preponderante, e esse dado é deveras relevante,
pois evidencia a hegemonia do emprego do tópico operacional brandiano da
distinguibilidade na prática da intervenção no patrimônio arquitetônico
brasileiro, assim como Kühl (2008) também identifica.
Vale ressaltar que existem várias análises, desenvolvidas por diversos autores,
de intervenções contemporâneas no patrimônio arquitetônico em relação ao
referencial teórico do campo disciplinar, buscando identificar distanciamentos,
aproximações e orientações comuns. Aquelas que são pontuadas aqui possuem
diferentes abordagens sobre esse tema e permitem observar posturas que
traduzem formas de como os princípios teóricos, ou mesmo metodológicos e
técnico‐operacionais são apropriados em nossa realidade. As posturas
dissonantes comuns são:
o uso como finalidade da intervenção,
o fachadismo,
o caráter novo conferido ao tratamento das superfícies e
o novo enfaticamente evidente e justificado pelo tópico operacional da
distinguibilidade.
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164
Não obstante, algumas dessas posturas não são exclusivas do ambiente nacional
da prática da intervenção contemporâneo no patrimônio arquitetônico.
Varagnoli (2007) identifica no exercício da intervenção, na Itália, o apelo do novo
relacionado à distinguibilidade e o fachadismo, com a prática de preservar o
exterior da arquitetura histórica e projetar volumes internos. O autor considera
que isso poderia ser tomado como uma releitura inovadora, ou melhor, como o
uso do postulado da distinguibilidade para exortar o novo, contudo, essa relação
entre o antigo e o novo é “ambígua”. “A preexistência é usada e, muitas vezes,
fortemente manipulada apenas para transmitir o novo projeto dentro de um
contexto antigo, [...]” (VARAGNOLI, 2007, p. 837, tradução nossa)150.
Para o autor, a arquitetura feita “por contraste” é praticada por arquitetos que
“não fazem o restauro próprio do campo específico da ação”. Eles fazem uma
arquitetura de autorreferência que rejeita o “restauro dos especialistas”,
criticando‐o por apresentar “resultados decepcionantes em termos de qualidade
arquitetônica”. Essa postura traduz incisivamente o que Varagnoli chama de
“espírito dos tempos”. Um momento no qual o patrimônio arquitetônico ou é
predominantemente criação, e a preexistência é só suporte, ou é
predominantemente rigor teórico, e a preexistência é morta e estática.
(VARAGNOLI, 2007, p. 835‐837, tradução nossa).
Isso permite algumas reflexões. Uma delas, já pontuada anteriormente, é que a
distinguibilidade é a justificativa para empregar o novo na intervenção no
patrimônio arquitetônico, inserido na conjuntura da industrialização da cultura
da pós‐modernidade. Além disso, ela é uma oportunidade de acrescentar a
marca do arquiteto atrelada ao novo, muitas vezes mais como uma presença
contrastante e impactante, do que como uma linguagem individual e
reconhecível, mesmo a serviço da preexistência.
150
“Tra antico e nuovo si stabilisce così un rapporto ambiguo, in cui la preesistenza è
utilizzata e spesso pesantemente manipolata solo per veicolare il nuovo progetto
all’interno di un contesto antico, [...].”
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165
Outra reflexão, agora mais específica da realidade nacional, é que em nossa
prática de intervenção, muitas vezes empírica como afirma Nahas (2015), a
distinguibilidade é um tópico da teoria, que em uma abordagem superficial, é
mais facilmente assimilado e por isto ganha notoriedade. Por certo, a
distinguibilidade é uma figura retórica correlacionada ao novo, todavia, o cerne
do problema em relação à distinguibilidade, é seu emprego para embasar o novo
em um discurso que minimiza a preexistência.
Ainda com base nas análises discutidas, pode‐se correlacionar e confrontar as
posturas identificadas, na prática contemporânea nacional de intervenção no
patrimônio arquitetônico, com premissas conceituais das principais correntes
teóricas contemporâneas italianas derivadas do “Restauro Crítico”. Embora, se
reconheça que essas análises são insuficientes para afirmar se há
verdadeiramente um léxico teórico comum estruturado na prática da
intervenção nacional.
Por exemplo, as premissas do “Restauro Crítico‐conservativo”, que valorizam o
caráter documental das várias estratificações do bem na composição de sua
imagem, podem rivalizar com as frequentes demolições e reconstruções
registradas nas análises. Os preceitos da “Conservação Integral" de manter os
sinais de degradação da edificação, descartando a reintegração de lacunas e a
reprodução, rivalizam com o aspecto novo conferido às superfícies, ao passo que
o de valorizar o caráter documental do bem se contrapõe ao fachadismo.
Por outro lado, as premissas da "Manutenção‐restauração" de adotar superfícies
de sacrifício e desvalorizar os sinais de degradação, refazendo argamassas e
pinturas, reintegrando lacunas e reproduzindo partes, podem ser relacionadas
ao aspecto novo conferido às fachadas das edificações. Já as de aceitar a
remoção de adições podem relacionar‐se com as demolições também
verificadas na prática da intervenção nacional. Em contrapartida, nossas adições
costumam ser claramente distinguíveis, inclusive empregando materiais
impactantes na imagem do bem. Ao contrário do uso dos materiais tradicionais
para uma distinguibilidade moderada, opção defendida por Paolo Marconi, que
é vista como harmoniosa, de acordo com o Restauro Crítico.
Natália Vieira‐de‐Araújo (2017) desenvolve uma reflexão, em parte, semelhante
a essa e afirma que não há um alinhamento significativo da prática nacional de
intervenção no patrimônio edificado com a corrente "Conservação Integral" ou
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
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166
com o “Restauro Crítico‐conservativo”. Ela ainda especula se existe realmente
uma identificação com a linha de “Manutenção‐Restauração” 151.
Assim como Cunha (2010), Vieira‐de‐Araújo (2014, p. 7) analisa a prática do
órgão federal de preservação brasileiro e verifica que existe uma “[...] pré‐
disposição bastante forte para a adoção de princípios de reconstrução e/ou
reconstituição de uma determinada feição eleita como de maior valor
patrimonial por parte de técnicos, espalhados por todo o território nacional.” A
continuidade de práticas institucionais anteriores de intervenção nesse tipo de
bem não se modificou, mesmo em detrimento da ampliação da compreensão
contemporânea conceitual do patrimônio edificado.
Embora a significação conferida ao bem pelos grupos sociais locais possa ser
empregada como justificativa para a repristinação, o que realmente parece,
nesses casos, é que pode haver a prevalência de uma significação mais tecnicista
do que a conferida realmente na prática social dos grupos.
151
Vieira‐de‐Araújo (2014, p. 4) se baseia na discussão a respeito da prática da
intervenção e das correntes teóricas italianas contemporâneas, provocada
principalmente pelos seguintes questionamentos: “[...] como se relaciona o necessário
reconhecimento dos valores imateriais e intangíveis do patrimônio com as práticas mais
atuais de intervenção sobre preexistências de valor patrimonial? A decisão por
reconstruções e restituições a um determinado momento eleito como de maior valor
artístico na prática contemporânea brasileira é resultado de uma argumentação teórica
e técnica no sentido de defender esta como uma das posturas possíveis de intervenção?
Ou trata‐se da continuidade de uma prática entranhada desde as primeiras práticas
preservacionistas do SPHAN?”
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
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167
Decerto, se reconhece que não existem evidências sólidas de uma “consciência
técnica em prol da repristinação”, no exercício técnico profissional da
intervenção no patrimônio arquitetônico. Kühl (2008) e Nahas (2015) ressaltam
o frequente caráter superficial e fragmentado dos fundamentos teóricos
expostos como justificativas das intervenções. Sendo assim, não há nessa
conjuntura um grau de aprofundamento teórico que possa testemunhar um
explicito alinhamento com a corrente “Manutenção‐Restauração”.
Todavia, é possível que as práticas empíricas verificadas em nossa realidade
sejam mais alinhadas com a “Manutenção‐Restauração”, em função de fatores
indiretamente vinculados aos postulados da corrente teórica propriamente dita.
Com efeito, as intervenções na prática nacional demonstram certo privilégio da
fruição da imagem em detrimento do documento histórico, que se encontra
respaldado no valor de novidade de Riegl (2014) conferido pelas massas.
Ademais, essa condição está em consonância com o panorama contemporâneo
da pós‐modernidade e da industrialização da cultura, de experimentação
genérica e superficial do patrimônio, no âmbito do consumo cultural.
Essa percepção da arquitetura histórica é abordada por Ignasi de Solà‐Morales
(1998, 2006). O autor se baseia na reflexão de Riegl (2014) de que o antigo é uma
“manifestação da passagem do tempo histórico”, que promove uma sensação
de satisfação, e de que as massas não têm interesse nas “informações eruditas”
que essa arquitetura pode “decodificar, no detalhe de um ornamento” e na
pátina, por exemplo. A leitura feita dessa edificação é mais global e decorre do
aspecto desafiador à passagem do tempo. Em razão disso, Solà‐Morales afirma
que o “contraste” entre o antigo e o novo na arquitetura histórica é o foco da
“sensibilidade contemporânea”, pois ela gera uma “satisfação estética básica”.
Essa “nova sensibilidade” é uma “vontade de arte” 152 do século XX, conformada
pelo contraste entre o valor de antiguidade e o valor de novidade conferidos à
arquitetura histórica (SOLÀ‐MORALES, 2006, p. 38‐42).
O “contraste”, termo empregado na discussão dos modelos teóricos estéticos,
segundo Solà‐Morales (2006), pode ser entendido, nesse contexto da
restauração, como uma distinguibilidade. Na atualidade, esta talvez possa ser
influenciada pela sensibilidade contemporânea aos estímulos visuais, tornando‐
se mais evidente e contrastante, e menos em acordo com o definido por Brandi
para as adições, o emprego harmonioso de materiais diversos dos
remanescentes e a simplificação da forma e da tecnologia.
152
Ver nota de rodapé nº 137.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
168
Beatriz Kühl (2008, p. 113) afirma que, no Brasil, as intervenções
contemporâneas no patrimônio arquitetônico frequentemente citam a Carta de
Veneza (1964) e Cesare Brandi como referencial teórico do campo disciplinar de
restauração, para justificar suas ações. Entretanto, segundo a autora, ao
analisar‐se essas intervenções, observa‐se “[...] uma ignorância completa desses
escritos, ou uma leitura pouco profunda [...].” Isso ocorre em detrimento da
reflexão acadêmica madura que existe no país sobre a preservação cultural, no
campo da historiografia, da sociologia e da antropologia, entre outras. Tal
conjuntura é uma evidência do distanciamento da prática da intervenção em
relação aos princípios teóricos, metodológicos e técnico‐operacionais de
restauração que deveriam regê‐la.
Com efeito, as posturas recorrentes em âmbito nacional, identificadas nas
análises de intervenções contemporâneas no patrimônio arquitetônico no item
anterior, são superficiais e/ou incoerentes em relação à Teoria de Restauração
de Brandi. No âmbito das instâncias histórica e estética e ainda conforme seus
postulados operacionais, a adição do novo distinguível e o refazimento para
reintegração de lacunas podem ser coerentes. Contudo, o rejuvenescimento das
superfícies, o uso como finalidade da intervenção e o fachadismo não o são.
Em relação à Carta de Veneza (1964, p. 2‐3), o refazimento de partes é aceito no
art. 12, desde que seja distinguível e harmoniosamente integrado 153 . A
distinguibilidade é ressaltada no art. 9º, em que se lê: “[...] todo trabalho
153
Kühl (2010, p. 313) chama a atenção para o fato de que o tópico operacional do
Restauro Crítico, reversibilidade, não é citado na Carta de Veneza. Conforme já discutido
por meio de Viñas (2003), a reversibilidade absoluta é uma ação inviável.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
169
complementar reconhecido como indispensável por razões estéticas ou técnicas
destacar‐se‐á da composição arquitetônica e deverá ostentar a marca do nosso
tempo.”. Por sua vez, o rejuvenescimento das superfícies pode ser criticado
quanto à reprodução de elementos (refazimento sem distinguibilidade), por
meio dos citados art. 12 e do art. 9º, à medida que este último, por exemplo, se
refere ao respeito ao “material original e aos documentos autênticos”.
No artigo 5º, fica registrado que o uso não deve implicar modificações nos
edifícios que alterem sua disposição e decoração. Portanto, ele não pode ser a
finalidade da intervenção, mesmo que se tenha a compreensão de que a
reutilização do bem é um meio para sua preservação. Porém, isso não quer dizer
que modificações não podem ocorrer, sobretudo se orientadas pelo tópico
operacional da mínima intervenção do “Restauro Crítico”, também presente na
Carta.
Kühl (2010) destaca que alguns autores interpretam essa recomendação de
forma extremamente restritiva e, por conta disto, desabonam todo o
documento. A autora afirma que, conforme o citado artigo, as alterações “[...]
são possíveis, mas desde que respeitem a composição do ambiente como
estratificado ao longo do tempo.” (KÜHL, 2010, p. 311). Isso também pode ser
observado no artigo 13 e no artigo 6°, que proíbe adições que alterem a escala e
também modificações nas relações com as cores. Portanto, a adição ao contexto
da preexistência não é impedida, mas é condicionada.
Ainda conforme o 5º artigo, o fachadismo é condenado por lançar mão de
demolições que alteram a disposição e a decoração do bem. Em respeito à
historicidade do bem, demolições são reprimidas também nos artigos 6º, 7º e
11.
Por outro lado, um documento mais regional do que o de Veneza pode ser citado
quanto à discussão das posturas recorrentes em âmbito nacional, identificadas
nas análises de intervenções contemporâneas no patrimônio arquitetônico: é a
Declaração de San Antonio (1996). Ela se atém à preservação nas Américas e
também discute a autenticidade, ressaltando, inclusive, que as nações nesse
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
170
continente lidam com as reproduções de elementos ausentes, de acordo com
suas características culturais. Algumas indicam que se deve documentar e
reproduzir esses elementos, outras que não.
A Declaração de San Antonio (1996), porém, atesta que muitos sítios na América
sofreram reconstruções para promover o turismo que, apesar do seu valor
educativo, alteraram o documento original e promoveram uma interpretação
equivocada. Com efeito, na Carta de Brasília (1995), que é um documento
regional do Cone Sul sobre autenticidade, desaconselham‐se fachadas
cenográficas que utilizem “colagens”, “fragmentos” e “moldagens”, mesmo
justificadas em um equilíbrio imprescindível entre o edifício e o entorno.
Ademais, a Carta reforça que o uso destinado à edificação de valor patrimonial
deve ser o que esta “aceita e suporta”.
A Carta Internacional para a Conservação de Cidades Históricas e Áreas Urbanas
Históricas, de Washington (1987, tradução nossa), aborda a questão do
fachadismo e orienta para conservação dos valores correlatos “[...] à forma e à
aparência dos edifícios (interiores e exteriores), definidos através de sua
estrutura, volume, estilo, escala, materiais, cor e decoração; [...] 154 .”Nesse
mesmo contexto, os Princípios Para a Análise, Conservação e Restauração das
Estruturas do Patrimônio Arquitetônico, de Zimbabwe (2003), registram o valor
do edifício como um todo.
O valor do patrimônio arquitetônico não reside apenas
em sua aparência externa, mas também na integridade
de todos os seus componentes, produto genuíno da
tecnologia construtiva de seu tempo. De forma
particular, o esvaziamento de suas estruturas internas
para manter apenas fachadas não atende aos critérios
de conservação. (PRINCIPIOS PARA EL ANÁLISIS,
CONSERVACIÓN..., 2003, tradução nossa)155.
Quanto ao novo, a Declaração de San Antonio (1996) salienta que este deve ser
harmonioso com o todo, para que o tratamento contemporâneo não transforme
a essência e o equilíbrio do bem. Outro entendimento que pode ser relacionado
com o novo e com a distinguibilidade na intervenção é a orientação da Carta do
ICOMOS para Interpretação e Preservação de Sítios de Patrimônio Cultural, de
Québec (2008, p. 2, tradução nossa), que orienta para proteger‐se o bem do
154
“[...] c) la forma y el aspecto de los edificios (interior y exterior), definidos a través de
su estructura, volumen, estilo, escala, materiales, color y decoración; [...].”
155
“El valor del patrimonio arquitectónico no reside únicamente en su aspecto externo,
sino también en la integridad de todos sus componentes como producto genuino de la
tecnología constructiva propia de su época. De forma particular, el vaciado de sus
estructuras internas para mantener solamente las fachadas no responde a los criterios de
conservación.”
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
171
A Carta é um documento internacional “de base deontológica” (KÜHL, 2010, p.
288)156. Ou seja, ela não é um manual da prática da intervenção; é sucinta, basilar
e orientadora. Como citado ao longo de toda essa pesquisa, outras Cartas de
alcance internacional reconhecidas pelo ICOMOS foram produzidas após a de
Veneza, abordando bens específicos com caráter complementar; além de
Resoluções e Declarações também de alcance internacional, observando
temáticas particulares.
O Brasil é signatário da Carta de Veneza (1964), mas sua discussão sistemática
só teve início uma década depois de ter sido elaborada, ainda persistindo, “[...]
apesar de algumas honrosas exceções, [...] uma enorme dificuldade de leitura
fundamentada do documento de Veneza157.” Um equívoco recorrente na prática
da intervenção, em relação à Carta, é que esta é válida para guiar ações em todo
e qualquer “monumento histórico”. Outra “inconsistência teórica” comum é o
entendimento de que a restauração visa retornar a edificação à sua configuração
original (repristinação). (KÜHL, 2010, p. 298)158.
Em âmbito nacional, também existe oposição à Carta de Veneza, baseada no
argumento de que esta seria um registro “eurocêntrico” e desatualizado. Nesse
contexto, a Declaração de São Paulo (1989, p. 1‐2), um documento de alcance
nacional elaborado em comemoração ao 25º aniversário da Carta de Veneza,
registra que o texto desta, “[...] embora conciso e claro, apresenta insuficiências
156
Deontologia: “Conjunto de deveres de qualquer profissional, com regras específicas.”
<http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=deontologia>.
157
Para Kühl (2010, p. 298), um marco no processo de discussão da Carta de Veneza na
prática nacional é o “[...] curso de restauração e conservação de monumentos
arquitetônicos de 1974, organizado pela FAU‐USP, em cooperação com o IPHAN e o
Condephaat.”
158
O entendimento equivocado, de que o restauro de patrimônio arquitetônico implica
o retorno a uma conformação original, também é pontuado na normativa n. 80 do
Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura, Urbanismo e Agronomia (Confea), de 2007.
(KÜHL, 2010, p. 298).
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
172
decorrentes do avanço das ciências, que ampliaram o campo de trabalho em
preservação e restauro, tornando necessária uma revisão de conceitos [...].”
Nesse caso, Kühl (2010, p. 301) defende que “[...] não se trata de eurocentrismo,
ou de mera oposição ocidente‐oriente, mas de distintas relações de variados
grupos culturais com a noção de temporalidade.” Ou seja, a Carta de Veneza
precisa ser contextualizada ao lugar e ao tempo, mas isto não invalida seus
princípios orientadores. Conceitos como autenticidade, valores históricos e
estéticos, na contemporaneidade, devem ser relacionados com a significação
conferida pelos respectivos grupos sociais. Portanto, sugerem reflexões acerca
do “Restauro Crítico”, em seu cerne, atentas à compreensão que fazemos do
bem.
Por outro lado, como já foi discutido, a própria dinâmica da prática nacional da
intervenção pode conformar interferências à compreensão do referencial
teórico e de orientações nesse sentido, além da sua contextualização. Assim,
ainda que se reconheça que a Carta Veneza se mantém como um instrumento
de base teórica, ela, por si só, mesmo que associada a outras Cartas, não supre
a demanda por fundamentação teórica para a intervenção, até porque esta não
é sua função. As Cartas são documentos orientadores da prática, são de
assimilação mais simples do que as intensas discussões propostas pelos teóricos
do campo disciplinar.
Não obstante, Kühl (2006, p. 30) afirma que os fundamentos teóricos do campo
disciplinar da preservação, “[...] que deveriam reger a atuação prática em bens
culturais – nunca foram incorporados em nossa legislação. Existem algumas
indicações nas leis de tombamento, mas que, na verdade, são lacônicas sobre
esse problema159.” A autora considera que há necessidade de referências legais
específicas para a prática da intervenção no Brasil que traduzam a teoria de
forma adequada e particular aos agentes, interesses e interferências envolvidas
nesse processo.
Em verdade, orientações legais mais claras para a prática da intervenção
auxiliam o processo, todavia estas têm em seu cerne um caráter mais regulador
do que teórico. O que é útil, no sentido de evitar discrepâncias acentuadas na
prática, protegendo o patrimônio. Por sua vez, a Política do Patrimônio Cultural
Material, com seu caráter mais normativa, é um importante passo nessa direção,
embora diversos documentos complementares ainda devam ser elaborados.
159
Natália Vieira‐de‐Araújo (2017) destaca outras duas frentes de trabalho do IPHAN no
sentido de elaborar normatização para o processo de intervenção: a Normatização das
Poligonais de Entorno e Parâmetros Construtivos do IPHAN‐PE e a Norma de Preservação
do Centro Histórico de Natal – IPHAN‐RN.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
173
Vale enfatizar que normativas, leis ou cartas patrimoniais não são suficientes
para garantir a qualidade e a coerência teórica da intervenção no patrimônio
arquitetônico. É o referencial da restauração que fundamenta tal ação, inclusive
como subsídio para novos alinhamentos e posturas frente a essa mesma teoria.
Q UADRO 1 ‐ P REMISSAS BÁSICAS DAS CORRENTES TEÓRICAS ITALIANAS MODERNA E
CONTEMPORÂNEAS DE RESTAURAÇÃO DO PATRIMÔNIO .
RESTAURO CRÍTICO‐ MANUTENÇÃO‐
RESTAURO CRÍTICO CONSERVAÇÃO PURA
CONSERVATIVO RESTAURAÇÃO
TENDE À AÇÃO Tende à ação Manutenção Conservação/inovação.
CONSERVATIVA. conservativa. conservativa.
INSTÂNCIA Instância histórica e
HISTÓRICA OU estética. Instância estética. Instância histórica.
ESTÉTICA.
MATÉRIA OU Matéria e imagem Imagem. Matéria.
IMAGEM. associados.
NÃO ADMITE Pode admitir Não admite superfícies
SUPERFÍCIES DE superfície de Superfície de de sacrifício – valor
SACRIFÍCIO. sacrifício. sacrifício. documental das
superfícies.
Não admite pátina –
PÁTINA. Pátina. rejuvenescimento Pátina.
das superfícies.
REMOÇÃO DE Remoção pontual de Não admite remoção
ADIÇÕES ESPÚRIAS – adição – valor Remoção de adição – de adição – valor
VALOR documental das privilegia a documental das várias
DOCUMENTAL DAS várias fases para a legibilidade. fases.
VÁRIAS FASES. imagem.
Não admite
REINTEGRAÇÃO DE Reintegração de Reintegração de reintegração de
LACUNAS. lacunas. lacunas. lacunas – sana as
patologias.
REPRODUÇÃO DE Reprodução de Reprodução de Não admite
ELEMENTOS elementos elementos não reprodução de
MODERADAMENTE moderadamente distinguíveis. elementos.
DISTINGUÍVEIS. distinguíveis.
ADIÇÃO Adição Adição
DISTINGUÍVEL – moderadamente moderadamente Adição autônoma –
NOVO DEVE SER distinguível – novo distinguível – novo novo livre e
RESPEITOSO. deve ser deve ser criativo. conciliador.
condicionado.
LÓGICA DEDUTIVA E Crítica e analogia. Lógica indutiva. Pragmatismo e
CRÍTICA. semelhança analogia.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
174
Nesse contexto, é oportuno retomar posturas identificadas como recorrentes na
prática da intervenção em nossa realidade: o fachadismo (que implica
demolições de características formais e estéticas do bem), o rejuvenescimento
das superfícies (que compreende os tons fortes de impacto) e o uso da
distinguibilidade para justificar o novo. Este novo é enfaticamente reconhecível,
atrelado ao discurso imagético de consumo, sendo um atrativo no âmbito da
indústria cultural. Ele se insere no interior das edificações ou adicionado a elas,
trazendo a marca do arquiteto como contraste e impacto, ou ainda como
linguagem individual, ambas assumidas como estratégias de marketing. Por sua
vez, a ênfase à distinguibilidade também pode ser uma evidência da carência de
aprofundamento teórico dos agentes responsáveis pela definição da
intervenção, à medida que é um tópico de assimilação mais imediato, porém de
complexidade subestimada.
De fato, a prática nacional se mostra deveras experimental, em função de fatores
como a baixa capacitação, a carência de sensibilização dos profissionais
envolvidos, a desvalorização do Projeto de Intervenção, bem como pressões e
interferências externas. Alguns desses fatores são alinhados com os interesses
da indústria e se tornam “lugar comum” no exercício profissional.
intervenção não pressupõe a segregação entre a criação e o restauro, mas sim a
aliança entre a criação harmoniosa e, particularmente tratando‐se da prática
nacional, as reproduções idênticas ou moderadamente reconhecíveis.
Objetivamente, em relação às correntes teóricas contemporâneas, mesmo que
a associação com os valores de antiguidade e de novidade possa ser feita, ela
não resume a dialética teórica da intervenção no patrimônio arquitetônico
brasileiro. De fato, tampouco a valoração para a intervenção se atém
exclusivamente a esses valores. Na atualidade, tal processo deve ter em conta,
principalmente, a identificação da significação conferida ao bem pelos grupos
sociais que lhe conferem sua condição de referência para a preservação.
Segundo Carbonara (1998), o tema emblemático entre as tendências
contemporâneas para intervenção no patrimônio é, justamente, as possíveis e
ainda divergentes interpretações quanto à sua significação e, por conseguinte,
sua relação com as construções identitárias. Ou seja, ela é a condutora da
intervenção que alinha postulados e tópicos operacionais da teoria da
restauração.
Todavia, como no âmbito nacional a prática da intervenção tem se revelado uma
ação empírica em relação aos preceitos teóricos, a intervenção pode ocorrer em
detrimento da apuração de significações e valores atribuídos ao bem. Haja vista
que essa etapa da atribuição do valor ao patrimônio costuma ser afetada pela
carência de estruturas para sua viabilização, pela insuficiência de
reconhecimento da importância da participação popular, etc. Em meio a essa
dinâmica, não causa surpresa que a valorização do estético, no contexto da
visibilidade e da imagem fragmentada e impactante do patrimônio
arquitetônico, assim como a imposição de usos ao bem, como finalidade da
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
176
intervenção, sejam comuns. Ou mesmo, que a significação local possa, por vezes,
ser empregada como justificativa para a repristinação, que é uma ação muito
mais próxima de uma significação “tecnicista”, do que necessariamente atrelada
aos grupos sociais locais vinculados ao bem.
Intervenções mobilizadas pela indústria cultural têm características comuns que
são resultado da promoção de seus interesses. Elas normalmente são orientadas
para a assimilação rápida e superficial do patrimônio arquitetônico e para a
conformação de identidades culturais globais/interculturais. Ações que podem
ter o respaldo de postulados teóricos, mas que costumam ser contraditórias,
porque estes são abordados isoladamente ou de forma descontextualizada.
Ações nas quais o novo e a imagem para o impacto têm ditado as regras e
conferido outro sentido à preexistência, subvertendo sua precedência e
relevância.
Como discutido no primeiro capítulo, a cultura de massa é construída com a
imagem, fragmento do presente, mercadoria para o consumo, assumindo
gradativamente o lugar do produto. Neste caso, o novo conforma a imagem do
bem como um “pastiche” de sua significação diversa, substituindo
progressivamente a fundamentação teórica para a intervenção, ou pelo menos
o rigor teórico que essa demanda.
Essas são condições comuns na prática nacional da intervenção no patrimônio
arquitetônico que, associadas à conjuntura de desvinculação do “projeto do
novo” do bojo do projeto de restauro, conforme discutido no segundo capítulo,
acentuam a dicotomia entre as ações que deveriam compor um único projeto
capitaneado pela expertise do arquiteto/restaurador. Essa desvinculação
também acentua a dificuldade de promover maior sensibilização quanto à
significação, às práticas memoriais e às construções identitárias dos grupos
sociais que se relacionam com o bem.
De fato, há na atualidade novas formas multidimensionais e multiculturais de
apreensão do patrimônio cultural que se consolidam com a globalização e a
industrialização da cultura, mais do que “vulgarizando” a preservação. Essas
novas percepções, além de reforçarem sua vertente econômica na condição de
objeto de consumo, implicam novas construções sociais do patrimônio, como
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
177
meio para viabilização e legitimação de aspirações políticas e econômicas. Nesse
sentido, legitimar na intervenção a prática social desse grupo, que é um discurso
político “de” e “por” representatividade, igualmente à legitima do ponto de vista
político. Em suma, o patrimônio cultural é capital social.
Outrossim, também há vários agentes e interesses envolvidos no processo de
intervenção no patrimônio arquitetônico. Em razão disso, a teoria de
restauração deve ter amplo alcance, para além do ambiente acadêmico, de
modo a ser o cerne da prática da intervenção. Por sua vez, a sensibilização para
a preservação também deve abranger mais dos que os arquitetos especialistas.
Ademais, a teoria do campo disciplinar da restauração não se restringe à
arquitetura de valor patrimonial de notório registro historiográfico
(patrimoniável). Ela cabe também à arquitetura histórica modesta, à medida que
se observam os processos de significação que envolvem o patrimônio
arquitetônico, o qual se pretende plural, legitimado pelo Estado e pelos
intelectuais que conformam a política de preservação nacional.
Com base nessa discussão a respeito do referencial teórico contemporâneo do
campo disciplinar, essencial para a prática da intervenção no patrimônio
arquitetônico, mais uma vez se atesta que este é um problema teórico e técnico,
social, político e econômico complexo. As decisões necessárias à intervenção
não dependem exclusivamente da orientação teórica adotada, contudo devem
ser coerentes entre si, relacionando‐se com uma diretriz teórica, de modo a
adquirir consistência. Uma decisão pode ser coerente em relação a um aspecto
da teoria e incoerente em relação a outro, todavia ainda resultando em uma
intervenção inapropriada, porque pode fragilizar algum aspecto da preservação
do patrimônio.
Por sua vez, a intervenção apropriada justifica‐se assertiva e profundamente no
referencial teórico contextualizado à nossa realidade; fundamenta‐se no valor
patrimonial que é o somatório do que confere significação àquele bem, de
acordo com o discurso contemporâneo do patrimônio por representação
cultural e prática social; e ainda é coerente com as demais decisões que
conferem funcionalidade à edificação. Desse modo, a intervenção legitima‐se
frente às demandas que a restauração postula em suas recomendações
disciplinares, apropriadas à realidade política, econômica e social da preservação
daquele lugar e para aquele grupo social local.
O discurso da preservação do patrimônio arquitetônico é construído por várias
narrativas: de perpetuação da memória, de prática social, de identificação e
construção de identidade cultural, de representação cultural, etc. Entretanto, o
discurso estabelecido com uma intervenção deve ser coeso, pois o ruído dificulta
sua compreensão e pode até torná‐lo ininteligível. Nesse caso, ele virá a perder
seu foco, que é a preservação do bem, não apenas sua perpetuação, mas sua
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
178
Sendo assim, o discurso promovido com a intervenção deve, segundo defende
Baldini (1997), basear‐se no equilíbrio entre o nascimento do bem, o que este
adquiriu ao longo de existência e o novo, pertinente ao momento da
intervenção. Por essa análise, têm‐se de fato duas narrativas, uma relativa à
preexistência e outra relativa à intencionalidade da intervenção. Se o discurso
que prevalece na intervenção é o do novo, pretere‐se o preexistente e constrói‐
se uma nova arquitetura, como afirma Carbonara (2013), podendo até
resguardar o bem, mas não sua condição como referência para a preservação no
Brasil.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
179
4. A TEORIA NA PRÁTICA DA
INTERVENÇÃO NO PATRIMÔNIO
ARQUITETÔNICO NOS MEGAEVENTOS
Neste capítulo, a discussão sobre a relação ente a teoria do campo disciplinar da
restauração e a prática contemporânea da intervenção, no patrimônio
arquitetônico em âmbito nacional, trata particularmente da intervenção no
contexto dos megaeventos, um ambiente característico da influência da
indústria cultural.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
180
Essas características são igualmente observadas na preservação em meio às
operações de produção de megaeventos. Neste momento, faz‐se necessário
pontuar tais procedimentos.
Michael Hall (2006a) afirma que os megaeventos são acontecimentos marcantes
e de grande porte que envolvem ampla cobertura midiática e ações de
marketing para atrair capital e pessoas. Eles são justificados por um discurso
nacionalista do poder público que também se ampara na perspectiva de
desenvolvimento social e econômico acelerado. Os megaeventos são
viabilizados por meio de parcerias entre o público e o privado, contemplando
interesses locais e transnacionais, principalmente dos setores turístico,
imobiliário e de infraestrutura urbana.
Todavia, mesmo que sediar megaeventos possa ser considerado um indicador
de desempenho da cidade ou da região, “[...] há poucas evidências sobre os
efeitos econômicos de médio e longo prazo dos megaeventos, como estratégias
de regeneração econômica [...]” (COALTER, et al 2000, p. 6‐7, apud HALL, 2006a,
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
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CSEPCSÉNYI, ANA.
181
p. 62, tradução nossa)160. O parâmetro que realmente costuma definir o sucesso
de um megaevento é seu impacto econômico e midiático. Para os interesses
coorporativos, os megaeventos representam ganhos de curto prazo; para os
interesses públicos, os megaeventos significam popularidade política, embora
possam ter consequências indesejáveis a longo prazo. (HALL, 2006a).
Hall (2006a) acrescenta que os megaeventos mobilizam somas impressionantes
de recursos públicos e privados, por múltiplas camadas de governança e poder,
com ingerências, por vezes, temporárias, lançando mão de dispositivos
extraordinários justificados pela celeridade necessária às ações. O autor
acrescenta que isso favorece outra mazela do processo: a corrupção.
Do ponto de vista urbano e arquitetônico, os megaeventos mobilizam um legado
resultante de investimos em infraestrutura e revitalização urbana, construção de
equipamentos requerido pelo evento, além de equipamentos para o consumo
de produtos e serviços. Isso abrange museus, centros de convenções e centros
culturais, entre outros, atraindo um público global em grandes contingentes
populacionais. (HALL, 2006a).
Nesse contexto, cabe retomar Gerard Monnier (2006, 2009), pois, em sua
abordagem sobre o “edifício‐evento”, o autor reflete sobre o limite do “vigor”
do evento na intervenção na arquitetura preexistente. Nessa conjuntura, a mídia
tem um papel fundamental na criação/percepção da arquitetura, inclusive da
histórica, conformando o que chama de “edifício‐evento” – “[...] aquele que o
emprego maciço das técnicas de informação o insere de forma importante e
súbita no espaço público [...].” A quantidade de informação antecipada passa a
representar parte do evento arquitetônico, impactando qualitativamente na
percepção dessa arquitetura e na história do edifício. Tal condição impõe ao
160
Obra não consultada: COALTER, F., Allison, M. & Taylor, J. (2000) The Role of Sport in
Regenerating Deprived Urban Areas. Edinburgh: Centre for Leisure Research, University
of Edinburgh, The Scottish Executive Central Research Unit.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
182
“edifício‐evento” tornar‐se “objeto da história”, constituindo‐se em um registro
histórico cultural. (MONNIER, 2006, p. 12‐13) 161.
Outrossim, o espetáculo midiático que é o edifício‐evento torna‐se normalmente
um evento oficial do Estado e das instituições vinculadas a essa edificação.
Consequentemente, converte‐se também um registro da história político social
oficial (MONNIER, 2006). Um processo, enfim, similar àquele que ocorre com os
megaeventos esportivos, construídos em meio a um discurso oficial de exaltação
na nacionalidade.
Sendo assim, Monnier (2006, p. 15‐17) afirma que a intencionalidade criadora
do edifício‐evento pode ser compreendida como um obstáculo “à construção da
narrativa histórica”. Em razão disso, o autor questiona: quanto o evento “faz a
obra?” Ou seja, o quanto a mídia constrói essa arquitetura? Especificamente no
contexto do patrimônio cultural, o autor provoca: “[...] como impedir que se
estabeleça uma relação entre o vigor do evento e a decisão de proteção?” De
fato, especificamente nessa conjuntura, a relação entre o evento e a
prerrogativa da preservação do patrimônio arquitetônico pode ser vista como
inevitável. Desse modo, a questão poderia ser apropriada para o objeto desta
pesquisa da seguinte forma: qual o limite do “vigor” do evento na intervenção
na arquitetura preexistente, de modo que não comprometa o bem como
referência histórica e identitária para a preservação?
Para responder a seu questionamento, Monnier (2006, p. 15‐17) orienta que se
deva “[...] interpretar o evento, avaliar sua amplitude no espaço e no tempo e
dar a ele, ou não, um lugar na construção da narrativa.” Em relação à presente
pesquisa, isso significa interpretar o evento e dar a ele, ou não, um lugar no
161
Monnier (2006, p. 13) cita como exemplo de edifícios‐eventos com uso cultural na
França o Centro Georges Pompidou, projetado pelos arquitetos Renzo Piano e Richard
Rogers e construído em 1977. A proposta para o centro cultural foi selecionada por meio
de concurso, cujo edital demandava explicitamente que fosse um “evento
arquitetônico”. O Pompidou é uma arquitetura arrojada de aspecto industrial cujo “[...]
sucesso popular dos conteúdos e sua difusão pela mídia se dão sem nenhum
reconhecimento pelo valor arquitetônico de um edifício do qual não se menciona jamais
o nome dos arquitetos e raramente o pioneirismo na metamorfose histórica da paisagem
do leste parisiense. Ora, foi nesse edifício que se realizou pela primeira vez um dos
objetivos seculares do racionalismo e do funcionalismo [...].” (MONNIER, 2009, p.15).
Monnier (2006) ainda destaca outros dois exemplos de edifícios‐eventos nesse mesmo
contexto: o Centre National des Industries et Techniques, construído em 1956 e
modernizado em 1989 pelos arquitetos Michel Andrault, Pierre Parat, Ennio Torrieri et
Bernard Lamy, que é um complexo para congressos e exposições com cobertura em
membrana de concreto; e o Ginásio Omnisports de Paris‐Bercy Palais Omnisports de
Paris‐Bercy (POPB), construído em 1983, com projeto de autoria dos arquitetos Michel
Andrault, Pierre Parat e modernizado em 2015, trata‐se de uma arena em forma
piramidal, com paredes inclinadas cobertas por gramado que abriga eventos culturais e
também esportivos.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
183
discurso promovido com a intervenção no patrimônio. Por sua vez, para
interpretar o evento, o autor esclarece que é preciso “[...] o estudo da recepção
que permite estabelecer o valor do evento no tempo e no espaço.” Afinal, o
desenvolvimento da indústria cultural abre um novo capítulo para a arquitetura,
no qual o edifício se torna “[...] um instrumento cujo desempenho e gestão
mobilizam fatores novos no espaço e no tempo.”
Para isso, Monnier (2009, p. 9) lança mão da reflexão de Alois Riegl (2014) sobre
a valoração dos monumentos e afirma que, sob essa ótica, os edifícios‐eventos
são “[...], por um lado, os edifícios‐manifesto, que são intencionais e, por outro,
as obras pioneiras (por uma ou várias razões) sobre as quais os historiadores
afirmam a importância absoluta ou relativa.” Logo, essas edificações são “arte”,
celebradas e conservadas na história da arquitetura.
Sendo assim, ao interpretar o evento, observa‐se que “[...] o reconhecimento do
valor histórico‐artístico é parcialmente desconectado do valor de uso, numa
espécie de desvio que reduz a importância da prática social do edifício‐evento.”
Portanto, o evento assume um papel determinante no valor que é conferido à
essa arquitetura que é imposta à história, em parte, independentemente das
possibilidades de esta ser “praticada” socialmente. (MONNIER, 2009, p. 10).
Tal dualidade do evento pode ser ainda mais nítida tratando‐se do patrimônio,
haja vista que este já possui seu lugar na história, pelos valores que lhe são
atribuídos e que conferem a demanda por sua preservação. Sob essa dinâmica,
Monnier (2009, p. 13) afirma que o prestígio do edifício, quer seja pela
valorização de sua arquitetura, pela sua restauração, pela acumulação de
eventos, etc., é decisivo para que a força do evento não o sobrepuje. “Esses
valores maiores levam à minoração das lacunas no conforto e no valor de uso.”
Logo, são os processos de prática social dessa arquitetura preexistente,
vinculados à identificação e às identidades culturais mais próximas ao bem
(locais/regionais) que o resguardam.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
184
Para isso, o recorte geográfico definido para os estudos de caso é a cidade do
Rio de Janeiro, por esta ser um ambiente característico da atuação da indústria
cultural, à medida que se torna o palco de megaeventos163. O Rio, nos últimos
anos, abrigou os Jogos Pan‐americanos (2007), os Jogos Mundiais Militares
(2011), a Conferência das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável
(Rio+20) (2012), a Copa do Mundo de futebol (2014) e os Jogos Olímpicos (2016).
Contudo, a inserção da cidade no “circuito de consumo” turístico internacional
já era uma estratégia política iniciada na segunda metade da década de 1990,
pela esfera municipal de governo, baseada no exemplo da cidade de
Barcelona164. Segundo Glauco Bienenstein (2011), a pauta era a requalificação
urbana de áreas degradadas, o incremento da mobilidade urbana, a promoção
do uso misto e investimentos em espaços públicos.
Lia Motta (2000) afirma que tal estratégia era baseada na construção de uma
imagem da cidade, apoiada no patrimônio cultural, empregado como símbolo de
identidade nacional. A autora assinala que a mobilização da ação pelo “novo
162
O patrimônio arquitetônico – edificação – em questão é, segundo o art. 18 do PPCM,
o bem cultural imóvel, do ponto de vista territorial e relacional, o “bem isolado”; “[...]
quanto à sua materialidade, compreende um componente em uma unidade territorial
[...]” (IPHAN, 2018, p. 36).
163
O Rio de Janeiro é o estado brasileiro com maior concentração de patrimônio material
tombado pela esfera federal de proteção, segundo o PPCM (IPHAN, 2018).
164
A estratégia dos megaeventos na cidade do Rio de Janeiro é bastante antiga. Já no
início do século XX, ocorre a Exposição Nacional de 1908 e a Exposição Internacional de
1922, além da Copa do Mundo de 1950. À semelhança dos megaeventos mais recentes,
os dois primeiros tinham forte apelo nacionalista, um celebrava o centenário da Abertura
dos Portos às Nações Amigas (1808); outro, a Independência do Brasil (1822). Envolveram
grandes intervenções urbanas, implicaram gastos vultuosos e divulgação. Todavia, no
contexto da globalização, os megaeventos têm o alcance incrementado pelo
desenvolvimento das comunicações e do transporte. (MOLINA, 2013).
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
185
valor simbólico” era de fácil assimilação e direcionada para o consumo global.
No caso da reurbanização da região da Praça XV, uma das áreas de ocupação
mais antigas no Centro, que apresentava distintas configurações, promoveu‐se
um processo de embelezamento patrimonial que empregou a demolição de
prédios contemporâneos ou tidos como “feios”. Uma preservação cenográfica
que não levou em conta a cidade como “[...] objeto socialmente construído e seu
patrimônio como fonte de conhecimento.” (MOTTA, 2000, p. 258).
Esse modelo globalizado de preservação do patrimônio edificado constrói um
cenário homogêneo que elimina marcas da ocupação do território, que
esclarecem quanto às apropriações dos grupos sociais e estabelecem referências
para memórias e identidades. Sendo assim, a “integração dos indivíduos como
sujeito e objeto da história” vem a ser impedida ou dificultada. (MOTTA, 2000,
p. 284).
As citadas ações ocorreram em detrimento da noção do valor documental do
patrimônio, construída na década anterior, que favorecia a leitura das
informações no território da cidade. Além disso, contribuía para a redução da
especulação imobiliária, consequentemente desestimulando o “deslocamento”
da população local mais carente, em função do enobrecimento da área. A
“cidade documento” de antes não encontra viabilidade na lógica da
industrializada da cultura contemporânea 165 . “São negados os prazos
necessários para o desenvolvimento de estudos adequados à complexidade dos
sítios como fontes da história e de identidades.” Esse fato ocorre, sobretudo,
porque não interessam ao mercado “[...] as possíveis restrições ou limitações ao
uso ou à adaptação dos sítios, que muitas vezes resultam das conclusões dos
estudos.” (MOTTA, 2000, p. 263‐269). Sendo assim, tanto os órgãos de
preservação quanto os grupos sociais que se relacionam mais intimamente com
o bem são apartados desse modelo de ação.
Por outro lado, o modelo globalizado implementado na Praça XV nos anos 90,
por vezes, é julgado como uma fórmula eficiente, no sentido da sustentabilidade
do patrimônio subutilizado e degradado (MOTTA, 2000). Entretanto, a
sustentabilidade desse modelo é discutível.
165
Motta (2000) afirma que essa imagem do patrimônio construído não é a promovida
no Decreto‐Lei 25 de 1937 do Estado Novo, baseada numa pretensa identidade nacional,
nem a imagem que pretendia a diversidade da década de 1970, no prenúncio da
redemocratização. Esse modelo globalizado de preservação do patrimônio construído é
um retrocesso na prática que ocorre entre os anos de 1970 a 1990, de valorização
documental do patrimônio construído (o valor das leituras de informações do território
e que a materialidade dos objetos pode conter).
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
186
O patrimônio edilício, em seus agenciamentos internos,
foi intensamente adaptado a essas atividades, sem
maiores considerações ou preocupações pelas perdas
de documentação arquitetônica que as adaptações
pudessem causar. (SANT’ANNA, 2004a, p. 334).
Sant’Anna (2004), tal como Motta, assegura que o patrimônio foi empregado
“como veículo de marketing” na produção de uma imagem cenográfica da
cidade. Houve uma “[...] ênfase obsessiva na reconstituição ou reinvenção de
elementos vistos como de especial valor patrimonial, o que implicou numa
produção, acima da média, de pastiches.” (SANT’ANNA, 2004a, p. 334).
Por meio das análises dessas duas autoras, reafirmam‐se dissonâncias nas
intervenções no patrimônio arquitetônico, já arroladas como características da
influência da indústria cultural. A primeira delas é a demolição de arquiteturas
de diferentes épocas para criar uma composição mais homogênea. Outra é a
ação próxima à musealização e ao fachadismo, que também isola o patrimônio
de seu sítio, à medida que desconstrói relações sociais. Além do
rejuvenescimento das fachadas, que emprega cores vibrantes e tons fortes,
compondo um cenário. Somado ainda ao custo social que, embora tenha sido
minimizado pelo uso residencial nos arredores da região, implica a expulsão dos
grupos sociais locais, em função do enobrecimento da área reurbanizada e da
inexistência de subsídios para a conservação dos bens e a permanência dos
grupos sociais locais.
Ainda que essas observações sejam relativas ao tratamento do patrimônio em
uma conjuntura anterior à preparação da cidade para megaeventos, que
efetivamente sediou, elas são pertinentes à estratégia globalizada que visava à
sua candidatura aos mesmos. Em suma, uma estratégia de inserção do Rio de
Janeiro no mercado mundial dos megaeventos, iniciada na década de 1990, que
foi continuada pelos governos seguintes. Nesse período, a cidade teve
candidaturas oficializadas a vários megaeventos, algumas frustradas e outras
bem‐sucedidas. “Desde então, um novo padrão de gestão e planejamento
urbano foi adotado, [...] (BIENENSTEIN, 2011, p. 2). Padrão esse que influencia a
intervenção no patrimônio arquitetônico.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
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187
De modo geral, a preparação da cidade do Rio de Janeiro para os megaeventos,
já na condição de sede, foi sistematizada principalmente em três aspectos. (1)
Uma “estratégia territorial” baseada em um “suposto equilíbrio social e espacial
do tecido urbano.” Haja vista que verifica‐se a recorrente “[...] concentração da
maioria dos equipamentos na área da Barra da Tijuca, um setor residencial
seletivo, bem servido de infraestrutura.” (2) O “papel e a participação do setor
público e da iniciativa privada”, com a articulação entre os três níveis de governo
para a viabilização das ações empreendidas. (3) “Processos decisórios e de
controle social” cuja “[...] emergência de estruturas de gerência e decisão
fugazes e/ou transitórias têm tomado o lugar dos tradicionais setores da
administração pública, afetando (às vezes até impedindo) processos decisórios
mais coletivos e democráticos.” (BIENENSTEIN, 2011, p. 8‐14). Esse último
aspecto também é destacado por Hall (2006a), quando aborda os megaeventos
em geral.
Em face desse “longo” processo de preparação da cidade para megaeventos
definiu‐se um recorte temporal para os estudos de casos. Este foi de 2009 até
2016, compreendendo a mobilização para os últimos megaeventos: a Copa do
Mundo de futebol (2014) e os Jogos Olímpicos (2016), que também foram os de
maior porte.
Para seleção dos estudos de caso, realizou‐se o levantamento preliminar dos
patrimônios edificados cujas intervenções foram restringidas pelos recortes
geográfico e temporal, além de serem protegidos e possuírem médio e grande
porte, com uso original ou estabelecido com a intervenção, de equipamento
cultural, porque este é o uso recorrente da indústria cultural. Portanto, uma
arquitetura prestigiada e urbana. Ademais, para a criação de um grupo com
características coesas, que possibilitasse a compreensão da intervenção baseada
no edifício, foram também excluídas edificações exclusivamente conformadas
como galpões e armazéns.
Do conjunto resultante, foram selecionados dois casos particulares de estudo
considerados representativos nas dinâmicas de influência da indústria cultural.
O Museu de Arte do Rio de Janeiro (MAR), composto pelos antigos Palacete D.
João VI, o Terminal Rodoviário Mariano Procópio e o prédio construído para
abrigar a sede da Polícia Marítima; e a Praça do Trem, composta pelos prédios
remanescentes da antiga Oficina de Trens do Engenho de Dentro (abrigando
então a Nave do Conhecimento e o Museu Cidade Olímpica). Intervenções
finalizadas respectivamente em 2013 e 2016 e hoje consolidadas em suas
relações com o espaço e com os grupos sociais. (Ver figura 12.)
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
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188
F IGURA 12 – L OCALIZAÇÃO DOS ESTUDOS DE CASO .
PRAÇA DO TREM
MAR
Fonte: Mapa digital de cartografia. Prefeitura da cidade do Rio
A intervenção na Praça do Trem foi selecionada por ser bastante característica
de ações mobilizadas pelos interesses da indústria cultural, pois o tratamento
conferido ao patrimônio cultural foi intimamente vinculado à preparação da
cidade para os megaeventos esportivos. A edificação localizada na Zona Norte
da cidade, Região Méier, no bairro residencial do Engenho de Dentro, é contigua
ao hoje denominado Estádio Olímpico Nilton Santos, antes João Havelange, mais
conhecido como “Engenhão”. O estádio foi construído em 2007, ocupando
grande parte de um terreno da antiga rede ferroviária federal, onde havia dois
conjuntos de patrimônio tombado: o da Praça do Trem (sem uso e em processo
de arruinamento) e o Museu do Trem (ativo).
As obras provocaram grande impacto no sistema viário local, assim como na
ocupação do solo, em função do adensamento e da verticalização. Em 2012, toda
a região, inclusive o estádio, foi submetida a novas obras para adequação aos
jogos olímpicos. O Plano Estratégico da Prefeitura do Rio de Janeiro (2009‐2012)
previa a expansão do saneamento e da pavimentação (PREFEITURA DO RIO DE
JANEIRO, 2013). As ações, em sua maioria, foram de requalificação urbana,
atendendo ao principal equipamento esportivo existente na região, o estádio,
mas ainda contemplaram o patrimônio local, no caso, o Museu do Trem e a Praça
do Trem.
A intervenção no MAR, localizado na Praça Mauá, foi selecionada por encontrar‐
se no epicentro das medidas de preparação da cidade para os megaeventos. Elas
consistiam na construção do emblemático Museu do Amanhã, um equipamento
cultural espetacular de atração das massas, e o desmonte do Elevado da
Perimetral limítrofe ao bem, entre outras.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
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189
Essas ações constavam do Plano Estratégico da Prefeitura do Rio de Janeiro
(2009‐2012), que estabeleceu cerca de sessenta “iniciativas estratégicas”
divididas em dez “áreas de resultado”. Entre os projetos diretamente vinculados
à produção da “Cidade Olímpica” e com repercussão na área de preservação do
patrimônio cultural, podem ser citados: no setor de transporte, o “VLT do
Centro”, um sistema de veículos leves sobre trilhos (VLT) que integra diversos
modais de transporte da região central da cidade; no setor de habitação e
urbanização, o Porto Maravilha; e, no setor de desenvolvimento econômico, o
Rio Capital do Turismo. (PREFEITURA DO RIO DE JANEIRO, 2013, p. 42).
Outras iniciativas que se relacionam com a preservação são da área cultural, mas
não estão diretamente conjugadas no Plano à produção do evento esportivo.
Entre elas, cabe destacar a revisão da rede de equipamentos culturais, o Polo
cultural da Região Portuária e o Rio Patrimônio – Centro (PREFEITURA DO RIO DE
JANEIRO, 2013).
A iniciativa “Porto Maravilha” (2009), empreendida na Região Portuária do Rio
de Janeiro, onde se localiza o MAR, é uma das áreas de ocupação mais antiga da
cidade e, portanto, de relevante importância histórica166.
O “Programa Porto Cultural” é parte dessa iniciativa e estabelece as linhas de
ação para o tratamento do patrimônio cultural:
[...] recuperação e restauração material do patrimônio
artístico e/ou arquitetônico; valorização do Patrimônio
Cultural Imaterial; preservação, valorização da memória
e das manifestações culturais; exploração econômica do
patrimônio material e imaterial, respeitados os
princípios de integridade e sustentabilidade do
patrimônio, inclusão e desenvolvimento social;
produção de conhecimento sobre a memória da região
e inovação na sua exploração sustentável; formação e
pesquisa, incluindo a produção de publicações sobre o
patrimônio material e imaterial da Região Portuária.
(IPP, 2011, p. 5).
166
O “Porto Maravilha” foi instituído pela Lei Complementar Municipal nº 101, de 23 de
novembro de 2009.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
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190
Outro sinal característico da mobilização pela indústria cultural é o tratamento
do patrimônio como objeto de consumo visual global, gerando identificação
cultural global e/ou intercultural168. O mesmo Dossiê (2014, p. 84) aponta dois
casos. O primeiro é relativo ao Estádio Mário Filho (“Maracanã”), tombado em
2000 pelo município. O conjunto foi parcialmente destombado para que fosse
viabilizada a demolição do Parque Aquático Júlio Delamare e da pista de
atletismo Célio de Barros. “O decreto da Prefeitura (decreto nº 36349, de 19 de
outubro de 2012) descaracteriza totalmente o projeto arquitetônico original,
167
A remoção da população também é documentada no Dossiê do Comitê Popular da
Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro (2014, p. 19). As ações ocorreram na Região
Portuária, no Morro da Providência (uma antiga comunidade da região) onde foram feitas
mais de sete desocupações de edificações, junto a bens como o Maracanã e o
Sambódromo, entre outros. “Trata‐se de uma política de relocalização dos pobres na
cidade a serviço de interesses imobiliários e oportunidades de negócios, acompanhada
de ações violentas e ilegais.”
168
A influência de outros interesses na preservação do patrimônio fica flagrante em
vários casos de arbitrariedades envolvendo, por exemplo, o patrimônio ambiental. Isto
em detrimento do título de Patrimônio Mundial como Paisagem Cultural Urbana
conferido ao Rio de Janeiro, em 2012, pelo Comitê do Patrimônio Mundial da UNESCO.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
191
com base na justificativa da realização da Copa do Mundo169.” O segundo caso é
relativo ao casarão vizinho ao Maracanã,
Outra característica de ações mobilizadas pelos interesses da indústria cultural,
já discutida anteriormente, é a celeridade com essas ocorrem, o que pode ser
associado à carência de transparência para evitar limitações e restrições.
169
Outro caso envolvendo um equipamento esportivo é o do Estádio de Remo da Lagoa,
inaugurado em 1951, um exemplar de arquitetura moderna tombado pelo município.
Este sofreu diversas intervenções para os Jogos Pan‐americanos de 2007 “que em muito
o descaracterizaram”, incluindo a “[...] demolição de uma das arquibancadas e o aterro
dos poços de treinamento e da área de lavagem de barcos para gerar estacionamentos.”
(FONSECA; DRAGO, 2016, p. 14).
170
Vestígios da base de uma construção, provavelmente um chafariz, foram encontrados
próximos à coluna monumental do Cais do Valongo e Cais da Imperatriz, também na
Região Portuária da cidade, mas o chafariz foi novamente enterrado. Embora o Projeto
de Intervenção para o agenciamento externo do sítio do Cais, contrato à empresa
especializada no segmento de restauração, contemplasse sua exposição. Cabe registrar
que a maioria absoluta das ações previstas nesse projeto aprovado não foi executada,
mesmo após o Cais ter sido declarado Patrimônio da Humanidade pela UNESCO.
Outro exemplo semelhante, em outra região da cidade, “[...] é o caso do antigo chafariz
do Largo do Moura. Construído em 1794 pelo Conde de Rezende no largo localizado ao
pé do Morro do Castelo, o chafariz e o antigo quebra‐mar foram alcançados pelas
escavações, mas não despertaram o interesse das autoridades, preocupadas em dar por
finalizadas as obras na região da Praça XV”. (FONSECA; DRAGO, 2016, p. 4).
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
192
imposição de interesses político‐econômicos;
ainda frequente prevalência da valoração dos aspectos tecnicistas do
patrimônio arquitetônico (subestimando sua significação);
formação inadequada ou insuficiente dos profissionais envolvidos
nesse processo (que implica a superficialidade do conhecimento acerca
do referencial teórico de restauração, a respeito da história da
arquitetura e a respeito do bem);
desarticulação entre os vários organismos envolvidos com a
preservação do patrimônio (em seus diversos níveis);
minimização da ação dos órgãos públicos de preservação (no panorama
de influência da indústria cultural); a “desvalorização” do Projeto de
Intervenção (por vezes entendido como uma ação burocrática);
carência da participação popular (o que, inclusive, favorece o
desconhecimento ou a insensibilidade quanto à significação do bem);
etc.
Suas consequências vão desde os “danos” diretamente infligidos à matéria do
patrimônio cultural e à recorrência a práticas empíricas e/ou omissas e mesmo
tendenciosas, que subvertem a prevalência da preexistência, até aos impactos
nos processos de identificação com o patrimônio.
Os dados são compilados, ordenados e estudados pelo método de análise de
conteúdo, abarcando tanto a intervenção projetada, quanto a intervenção
efetivamente executada, para que sejam observados os pontos de
distanciamento teórico, de forma mais ampla possível.
PRODUTOS DE PROJETO DE INTERVENÇÃO
Pesquisa Histórica
Levantamento Físico
IDENTIFICAÇÃO E Documentação Fotográfica
CONHECIMENTO Análise Tipológica, Identificação de Materiais e Sistema Construtivo
DO BEM Prospecções: arquitetônica, estrutural, do sistema construtivo e arqueológica
Estudos Geotécnicos
Ensaios e Testes
Mapeamento de Danos
DIAGNÓSTICO
Análises do Estado de Conservação
Memorial Descrito e Especificações Técnicas de Materiais e Serviços
PROPOSTA DE Peças Gráficas
INTERVENÇÃO Orçamento
Projetos Complementares.
Fonte: Baseado no Manual de projetos (IPHAN, 2005).
Nesse caso, analisam‐se as informações quanto aos produtos de projeto, como
Pesquisas Históricas, Análises Tipológicas, etc., e avalia‐se a qualidade de seu
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
194
detalhamento 171 . (Portanto, não se tem o objetivo de reproduzir essas
informações em nenhuma monta.)
Outro critério de observação é composto pelos postulados da Carta de Veneza e
dos tópicos operacionais brandianos, que são frequentemente referenciados na
prática nacional de intervenção. (Ver quadro 3.) Esses também estão presentes
em premissas destacadas no citado Manual (IPHAN, 2005) 172 . Nesse caso,
analisam‐se as informações que compõem os produtos de projeto e avalia‐se a
coerência de seu conteúdo. (De mesmo modo, não se tem o objetivo de
reproduzir as informações em nenhuma monta.)
171
Esses são critérios de observação da intervenção que podem ser tomados como
“interpretativos” “abertos”, à medida que “estabelecem um intervalo dentro do qual
soluções aceitáveis podem ser encontradas”, e também de aplicação geral, “[...] mais
objetivas e flexíveis, menos dependentes de medidas quantitativas e mais adaptáveis
[...].” Dois padrões combinados que auxiliam o julgamento sobre a qualidade/coerência
da intervenção. (KHALAF, 2015, tradução nossa). Cabe ressaltar que as normas edilícias
são aspectos legislativos e reguladores que são considerados inerentes ao processo de
projeto e obra e por isto não são analisados nos estudos de caso.
172
“3.1. Premissas: Os projetos deverão ser elaborados respeitando os valores estéticos
e culturais do Bem, com o mínimo de interferência na autenticidade do mesmo, seja
autenticidade estética, histórica, dos materiais, dos processos construtivos, do espaço
envolvente ou outras. 3.1.1. Garantir a autenticidade dos materiais implica a manutenção
da maior quantidade possível de materiais originais, de modo a evitar falsificações de
caráter artístico e histórico. 3.1.1.1. Na impossibilidade da manutenção dos materiais
originais, deverão ser utilizados outros compatíveis com os existentes, em suas
características físicas, químicas e mecânicas e aspectos de cor e textura sem, no entanto,
serem confundidos entre si. 3.1.1.2. Assim também, como a utilização de materiais
reversíveis, que possam ser substituídos no futuro e no final de sua vida útil, sem danos
ao Bem. 3.1.2. A autenticidade histórica permeia todos os aspectos associados ao Bem,
não sendo permitida qualquer intervenção que possa alterar ou falsificar os valores
históricos contidos nos materiais, técnicas construtivas, aspectos estéticos e espaciais.
3.1.3. A autenticidade estética corresponde ao respeito às ideias originais que orientaram
a concepção inicial do Bem e das alterações introduzidas em todas as épocas, que
agregando valores, resultaram em uma outra ambiência, também reconhecida pelos seus
valores estéticos e históricos. 3.1.4. Tão importante quanto à manutenção dos materiais
e dos aspectos estéticos do Bem é a garantia da preservação da autenticidade dos
processos construtivos e suas peculiaridades, evitando o uso de técnica que seja
incompatível e descaracterize o sistema existente. 3.1.5. A preservação da autenticidade
do espaço envolvente não implica o entendimento do Bem isoladamente e sim no
contexto no qual está inserido, considerando os aspectos natural, histórico, quer urbano
ou rural. 3.1.5.1. As propostas relativas ao resgate de determinados aspectos estéticos
do Bem devem estar baseadas e fundamentadas em análises e argumentos
inquestionáveis sobre a autenticidade do espaço envolvente. 3.1.6. É fundamental o
conhecimento dos documentos internacionais e dos princípios enunciados nas cartas
patrimoniais para elaboração de Projetos de Preservação. 3.1.7. Por fim, é premissa para
a preservação de um Bem, usos compatíveis com a vocação do mesmo.” (IPHAN, 2005,
p. 15‐16).
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
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195
Q UADRO 3 ‐ P OSTULADOS E TÓPICOS OPERACIONAIS
CARTA DE VENEZA RESTAURO CRÍTICO
Edifício como documento Tende à ação conservativa.
– inseparável de sua Instância histórica ou estética.
história. Matéria ou imagem.
Respeito à matéria Não admite superfícies de sacrifício.
POSTULADOS original. Pátina.
Adição com a marca do Remoção de adições espúrias – valor documental das
PRINCÍPIOS várias fases.
tempo e respeitando a Reintegração de lacunas.
preexistência. Reprodução de elementos moderadamente distinguíveis.
Reintegração harmoniosa Adição distinguível – novo deve ser respeitoso.
e distinguível. Lógica dedutiva e crítica.
Mínima intervenção.
Distinguibilidade.
Retrabalhabilidade.
TÓPICOS Compatibilidade dos materiais.
OPERACIONAIS Documentação e metodologia científica.
Uso como um meio.
Ruptura harmoniosa entre passado e presente.
Autenticidade.
O último critério de observação desse parâmetro é correlato aos aspectos da
gestão do projeto e da obra que têm potencial de comprometer a coerência da
intervenção. Essa é uma abordagem pontual, não se tem o objetivo de analisar
metodologias de gestão, sobretudo tendo‐se em vista que estas não foram
precisamente tópicos de abordados aqui. A intenção é analisar as informações
quanto aos agentes, interesses e interferências envolvidos na prática da
intervenção, oportunos para identificar os distanciamentos em relação à teoria.
A intervenção é coerente em relação ao entendimento contemporâneo
de patrimônio arquitetônico, quando reconhece e promove seus
significados tangíveis e intangíveis. Outrossim, levando‐se em conta que
a significação é dinâmica e pode ser múltipla, a intervenção como
processo criativo pode ressignificar o bem. Em contrapartida, ela torna‐
se incoerente se essa ressignificação ignora ou minimiza os significados
memoriais locais que asseguram a diversidade cultural, pois deve
173
Esses são critérios de observação “prescritivos” (“definem resultados desejados em
termos precisos” é uma norma porque enfatiza um indicador específico e mensurável).
(KHALAF, 2015, tradução nossa).
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
196
Por fim, os estudos de caso são comparados por semelhança ou por contraste,
de modo a estabelecer possíveis generalizações. Vale salientar que não se ignora
que essa tática de análise apresenta limitações para que se produziam
generalizações científicas. Um exemplo concreto é a dificuldade de obter
documentos que registrem a responsabilidade das decisões tomadas acerca dos
projetos e, sobretudo, quanto às obras. Entretanto, entende‐se que o resultado
da intervenção prevalece sobre a responsabilidade da decisão, no que se refere
ao impacto no que o bem representa para a preservação. Mesmo em detrimento
disso, é possível tecer observações que, em função de sua natureza complexa,
são pertinentes o suficiente para reflexões aqui propostas.
174
Essa abordagem não emprega métodos de análise de discurso das intervenções.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
197
Tal estratégia de análise é um recurso didático, não se tem a pretensão de propor
uma metodologia de análise quanto à coerência teórica disciplinar de
intervenções no patrimônio arquitetônico. Os parâmetros podem ser aplicáveis
a outros casos, mas os resultados não podem ser replicáveis, pois a análise é em
grande parte subjetiva.
A intervenção no conjunto do Museu de Arte do Rio de Janeiro foi uma iniciativa
capitaneada pela Fundação Roberto Marinho em parceria com a Prefeitura da
cidade do Rio de Janeiro. (Ver figura 13.) O Museu é composto pelo Palacete D.
João VI, localizado na Praça Mauá, nº 10, e destinado ao espaço de exposição;
pelo Terminal Rodoviário Mariano
Procópio, localizado na Praça Mauá,
F IGURA 13 – M USEU DE A RTE DO R IO .
nº 5, ou na rua Américo Rangel, e
adaptado para as áreas técnicas de
apoio; e também pelo prédio
construído para ser a sede da Polícia
Marítima e reformado para receber a
Escola do Olhar. (Ver figuras 14‐15.)
Todas essas edificações são limítrofes
ao antigo edifício da Imprensa
Nacional (tombado pela esfera
estadual de proteção), hoje ocupado
pela Superintendência Regional da Fonte: ORTIZ, Mário R. D. (2015).
https://bityli.com/e3EiY
Polícia Federal175.
175
O conjunto do MAR localiza‐se no pequeno bairro da Saúde, Região Portuária da
cidade, sendo limítrofe aos bairros Centro e Gamboa. A Saúde é predominantemente não
residencial, existem 252 bens preservados e 12 tombados pelo município no bairro,
segundo dados do IPP de 2017.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
198
F IGURA 14 – L OCALIZAÇÃO DO CONJUNTO DO MAR.
MUSEU
DO
AMANHÃ
MAR
SAÚDE
GAMBOA
CENTRO
Fonte: GOOGLE EARTH (2020)
F IGURA 15 – E DIFÍCIOS P ROTEGIDOS .
TERMINAL RODOVIÁRIO
PALACETE S. JOÃO VI
MARIANO PROCÓPIO
PRAÇA MAUÁ
SUPERINTENDÊNCIA POLÍCIA MARÍTIMA
FEDERAL DA POLÍCIA
FEDERAL
Fonte: GOOGLE EARTH (2009)
O Palacete D. João VI teve sua proteção orientada pelo Conselho Municipal de
Proteção ao Patrimônio Cultural (CMPC), sendo o tombamento definitivo
deferido no Decreto nº 19.002 de 5 de outubro de 2000, justificado, entre
outros, por seu testemunho para a “compreensão do processo de ocupação da
área”, como “marco referencial na paisagem da Cidade” e ainda frente aos “[...]
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
199
atuais projetos para reaproveitamento destas áreas para novos usos, visando
sua revitalização; [...]” (RIO DE JANEIRO..., 2000).
O Terminal Rodoviário Mariano Procópio foi preservado no âmbito da Área de
Proteção do Ambiente Cultural (APAC) do Mosteiro de São Bento, estabelecida
no Decreto nº 24.420 de julho de 2004, considerando a importância de
“exemplares representativos da história da ocupação do Centro;” sendo listado
em seu anexo entre os bens preservados (RIO DE JANEIRO..., 2004b).
O Terminal era composto principalmente pela marquise, mas também ocupava
o pilotis e a sobreloja do prédio da Polícia Marítima. Contudo, isso não é
diretamente mencionado como parte do Terminal, no citado Decreto. Já a
edificação destinada a inicialmente ser a sede da Polícia Marítima foi tutelada na
área de abrangência da APAC. Sobre ela se destaca o art. 6º, que menciona: “Os
bens tutelados poderão ser demolidos ou modificados, desde que a alteração
seja previamente aprovada pelo órgão de tutela, [...]” (RIO DE JANEIRO...,
2004b).
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relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
200
Fonte: MALTA, Augusto (1921).
Instituto Moreira Sales, Rio de Janeiro. Inv. 013RJ001005.
F IGURA 18 – P LANTAS BAIXAS DO PROJETO ORIGINAL DIGITALIZADAS .
Fonte: ALHORA (200?).
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relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
201
O embasamento (em “porão alto”) foi executado em cantaria. As fachadas em
argamassa foram adornadas com ornatos, frisos e numerosas esquadrias que lhe
conferiam ritmo. As fachadas frontal e lateral (voltada para o mar) foram
desenvolvidas com uma proposta semelhante entre si e distintas das outras
duas, que também formaram um par. Na primeira proposta, o nível do térreo foi
rusticado com almofadas, vãos em arco abatido e esquadrias em madeira com
gradis adornados. No nível acima, com vãos em arco pleno e sem gradil. No
superior a esse e acima, com vãos em verga reta. Na segunda proposta, os panos
de fachada foram executados lisos acima do nível térreo.
Alguns aspectos da evolução da edificação são
demarcados de modo a auxiliar a
compreensão das intervenções projetadas e Fonte: KFOURI (1916/18).
executadas. A primeira modificação
contundente da edificação foi a ampliação, na década de 1950, do último
pavimento, que passou a ocupar os terraços. Demoliram‐se os telheiros e foi
executada laje com cobertura plana de telhas metálicas em duas águas. Nas
fachadas laterais, os acréscimos seguiram a proposta dos trechos que já
existiam, exceto na lateral voltada para o mar, cujo número de esquadrias
executado foi menor, modificando o ritmo das fenestrações. Na fachada
posterior, o acréscimo foi realizado com o mesmo número de esquadrias dos
níveis inferiores, mas não se reproduziu o desenho e os ornatos destas. O mesmo
foi feito em relação aos gradis da platibanda, que nessa fachada foram
executados com desenho simplificado.
Em 1990, o Palacete passou a pertencer à Cia Portus Instituto de Seguridade
Social. Em 2004 foi ocupado, sendo mais tarde desapropriado e abandonado. As
fachadas exibiam diversos danos, vãos e esquadrias descaracterizados; todo o
gradil da platibanda da fachada contígua à rodoviária estava ausente. A
cobertura também se encontrava bastante deteriorada e o torreão havia quase
se perdido completamente. (Ver figura 20.)
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202
Fonte: VELATURA (2010).
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203
F IGURAS 24 E 25 – À ESQUERDA , BOISERIES REMANESCENTES ; À DIREITA , VESTÍGIOS DOS ELEMENTOS PERDIDOS .
Fonte: ÓPERA PRIMA (2010).
F IGURA 26 – F ORRO E SANCAS .
Fonte: ÓPERA PRIMA (2010).
PALACETE DOM JOÃO VI – propostas de intervenção
Conforme citado antes, o objetivo de intervenção no Palacete D. João VI foi de
conferir‐lhe o uso museal. Inicialmente, a iniciativa foi intitulada como
Pinacoteca do Rio de Janeiro; mais tarde, recebeu o nome de Museu de Arte do
Rio. Os projetos e obras foram gerenciados pela empresa Engineering, do grupo
Hill International. Os projetos foram fracionados em várias especialidades. O
escritório ALHORA Alcides Horácio Azevedo Arquitetos Associados, que não era
especializado em restauração, desenvolveu o Levantamento Físico e a Pesquisa
Histórica. Ambos os produtos compõem a etapa de Identificação e
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
204
Conhecimento do Bem do Projeto de Intervenção. O conjunto era formado por
aproximadamente de 25 pranchas176.
Não foi identificado, no material acessado, o claro registro de uma diretriz ou
partido de intervenção. O projeto previu o restauro das fachadas, mantendo o
acréscimo do último pavimento e sem complementar os trechos executados sem
ornamentação. Também indicou o resgate dos vãos descaracterizados e o
restauro das esquadrias. A proposta cromática para os panos de fachada e
esquadrias foi o resgate das “cores originais” verificadas em prospecções
executadas nos segmentos mais antigos da edificação. Ainda especificou o
restauro dos gradis decorados remanescentes nas platibandas, o descarte dos
gradis executados com desenho simplificado (localizados na fachada posterior),
considerados no projeto como espúrios, e a reprodução dos gradis decorados
para esta fachada e para a lateral.
Na cobertura, foram projetados os serviços de reforço da laje, restauro do
torreão e resgate da volumetria dos telheiros do segmento frontal da edificação,
executados com estrutura metálica, engradamento em madeira e telhas
cerâmicas. Cabe ressaltar que o Projeto de Arquitetura (desenvolvido por outra
empresa) interferiria nessa cobertura com um novo conjunto de casa de
máquinas e áreas técnicas necessárias à nova funcionalidade do edifício
histórico.
176
Não foi encontrado registro de data nos documentos, nem mesmo em seus créditos e
nos carimbos das plantas. A contratação deve ter sido anterior a 2009, pois a empresa
seguinte a desenvolver projetos fez referências a esses levantamentos.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
205
Em 2010, o escritório Bernardes Jacobsen Arquitetura foi contratado a fim de
desenvolver o Projeto de Arquitetura para o interior do Palacete, contemplando
as fases anteprojeto, projeto pré‐executivo e projeto executivo, inclusive os
projetos complementares. A proposta reservou ao prédio os ambientes de
exposição do museu, já as áreas técnicas ficaram alocadas em parte do Terminal
Rodoviário contíguo, conforme é descrito mais a seguir177.
O acesso original na fachada frontal foi preservado, mas não foi indicada sua
utilização. Os acessos à edificação foram definidos somente pela fachada
posterior. O percurso de visitação do público ao museu foi concebido de cima
para baixo, iniciando‐se no prédio contiguo (destinado à Escola do Olhar,
também descrito mais a seguir), chegando‐se ao novo hall no penúltimo
pavimento por meio de passarela paralela à fachada posterior. A saída foi
proposta por uma rampa fechada que desemboca no eixo central entre os
prédios, onde antes era uma rua. Assim, a experiência do edifício começa e
termina em “túneis” (passarela suspensa e a rampa de saída).
O Projeto de Arquitetura manteve a posição da circulação vertical e das áreas
molhadas no corpo central da edificação em todos os pavimentos. Indicou a
preservação do hall da escada original, com o restauro da escada e a atualização
do elevador remanescente, além do restauro do forro (executado somente no
térreo e no ultimo pavimento), mas modificou os vãos de acesso ao ambiente
(exceto no térreo) e não especificou o restauro do piso. Foi ainda projetado um
novo conjunto de escada e elevadores, somado de áreas molhadas (sanitários)
e, sobre estas, áreas técnicas, ampliando lateralmente os limites do corpo
central do prédio. Inclusive, o projeto demoliu alvenarias estruturais originais
que delimitavam o terço final do corpo central da edificação, junto à fachada
posterior, para localizar aí o novo hall de circulação.
Outro ponto importante da proposta foi a ampliação dos salões colaterais,
abarcando os ambientes menores que existiam no segmento frontal do edifício,
para instalação das salas de exposição. Foi especificado o restauro dos pilares
em ferro decorados, localizados nessas salas. O Projeto de Arquitetura ainda
definiu novo piso em madeira e novo forro em gesso, além de painéis
“museográficos” em gesso acartonado, contíguos às esquadrias das fachadas
(exceto nos segmentos chanfrados da edificação, no hall original térreo e em
uma parede da sala de exposição/reserva também no térreo).
177
Ver plantas do projeto divulgadas pela empresa Bernardes Jacobsen Arquitetura no
Anexo II. Optou‐se por empregar somente fotografias para a descrição dos serviços que
foram executados.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
206
Em relação à cobertura, foi projetada a demolição da laje intermediária dentro
do torreão e a remoção da escada helicoidal em ferro. O acesso à cobertura
passou a ser feito por meio da nova escada projetada para circulação vertical.
Vale salientar que os reforços detalhados para a cobertura do Palacete, no
Projeto de Intervenção das fachadas e da cobertura, não atendiam às novas
exigências estruturais decorrentes da proposta para nova cobertura do prédio
da Escola do Olhar, que se estendeu sobre parte do Palacete. Sendo assim, todo
o segmento da laje sob a projeção dessa cobertura foi demolido e reconstruído,
de acordo com as novas especificações do Projeto de Arquitetura (do
interior/cobertura).
PALACETE D. JOÃO VI – execução
A fiscalização do patrimônio às obras coube ao IRPH. A empresa a inicialmente
desenvolver as obras foi a Ópera Prima Arquitetura e Restauro, contratada em
2010 para executar a restauração das fachadas e cobertura do Palacete. A firma,
por sua vez, subcontratou alguns serviços. Conforme as especificações do
Projeto de Intervenção para as fachadas e cobertura, foram executadas, nas
fachadas, a restauração das cantarias, argamassas e ornatos, além do resgate de
vãos das esquadrias descaracterizados, bem como a restauração destas e de
seus gradis (Ver figura 27.)
Na cobertura, foram restaurados os gradis das
platibandas do segmento frontal da edificação
F IGURA 27 – F ACHADAS LATERAL E FRONTAL
e da fachada lateral voltada para o mar. Não
RESTAURADAS .
foram executadas as reproduções desses
gradis nas fachadas posterior e lateral,
especificadas no citado Projeto de
Intervenção. Contudo, o restauro do torreão
seguiu o projeto, com a conservação da
estrutura metálica, o refazimento do
fechamento e das mansardas perdidos.
Conforme definido no Projeto de Arquitetura,
foi vedado o antigo acesso à cobertura, por
meio do torreão, e também foram executados
os serviços de demolição e remoção do Fonte: s/a. (s/d).
https://bityli.com/4t4oY
telhado metálico e da casa de máquinas.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
207
diversos acréscimos espúrios já mencionados
(mezanino, lajes, alvenarias, escadas,
mobiliários, elevador, etc.). Além da
demolição dos boiseries, dos forros, das
sancas decoradas e dos pisos em assoalho e
ladrilho hidráulico remanescentes. (Ver figura
28.) Foram ainda executados reforços e a
recuperação do revestimento das lajes dos
pavimentos. Outro serviço realizado pela
empresa foi a investigação das fundações do
Fonte: FUNDAÇÃO ROBERTO MARINHO. (2011).
Palacete, por meio de prospecções, com
acompanhamento arqueológico.
A firma seguinte a executar as obras no Palacete foi a Concrejato Engenharia,
que desempenha atividades nos setores de restauração e retrofit. Ela iniciou
seus serviços em 2011 e, conforme definido no Projeto de Arquitetura, demoliu
as alvenarias originais do segmento posterior do corpo central da edificação,
além do prisma para alocação da nova escada; procedeu também aos reforços
estruturais, bem como às demais obras civis. (Ver figuras 29‐30.) Executou o
restauro dos pilares, do conjunto da escada original e a reabilitação do elevador.
(Ver figuras 31‐32.) Vale pontuar que ainda executou a vedação dos vãos de
Fonte: FUNDAÇÃO ROBERTO MARINHO. Fonte: CSEPCSÉNYI, Ana (2019).
(2011).
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
208
esquadrias em seus intradorsos, na parede de um dos salões do térreo, onde não
foi projetado o painel “museográfico”. (Ver figura 33.) Já de acordo com o
Projeto de Intervenção para as fachadas e cobertura a empresa reconstruiu os
telheiros na cobertura. (Ver figura 34.)
F IGURA 31 – H ALL NO TÉRREO PRESERVADO . F IGURA 32 – PILAR RESTAURADO .
Fonte: CSEPCSÉNYI, Ana (2019).
F IGURA 33 – R ESERVA TÉCNICA NO TÉRREO ; AO FUNDO VEDAÇÃO DAS ESQUADRIAS NO INTRADORSO DOS VÃOS .
F IGURA 34 – R ECONSTRUÇÃO DE TELHEIRO FRONTAL NA COBERTURA .
Fonte: CSEPCSÉNYI, Ana (2019).
Outro ponto a ser ressaltado é que, após a obra terminada, foram executados
painéis museográficos também vedando as esquadrias nas alvenarias chanfradas
das salas de exposição, antes tampadas com material translúcido (Ver figuras 35‐
36.)
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
209
F IGURAS 35 E 36 – À ESQUERDA , VEDAÇÃO TRANSLÚCIDA NO SEGMENTO CHANFRADO DA SALA DE EXPOSIÇÃO ; À
DIREITA , POSTERIOR ACRÉSCIMO DE PAINEL ACARTONADO .
Fonte: s/a. (s/d) Fonte: CSEPCSÉNYI, Ana (2019).
https://bityli.com/zI8NS
Com efeito, a única folha de esquadria remanescente do Palacete que pode ser
observada pelo público no interior da edificação é a do antigo acesso principal
que fica localizado no hall térreo preservado. Neste mesmo espaço também são
vistas guarnições de vãos com bandeiras. (Ver figuras 37‐38.) O acesso e a saída
do público foram executados na fachada posterior, conforme projetado. (Ver
figuras 39‐42.)
F IGURAS 37 E 38 – E SQUADRIAS NO HALL PRESERVADO NO TÉRREO .
Fonte: CSEPCSÉNYI, Ana (2019).
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
210
F IGURAS 39 E 40 – À ESQUERDA , VISTA DO INTERIOR DA PASSARELA DE SAÍDA ; À
DIREITA E DESTACADA , SUA VISTA EXTERNA .
Fonte: TCMRJ (2013).
Fonte: ALMEIDA, Karine (2013).
https://www.tcm.rj.gov.br/Noticias/5326/V
isita4.pdf
F IGURAS 41 E 42 – À ESQUERDA , INTERIOR DA PASSARELA DE ACESSO AO NOVO HALL ; À
DIREITA , SUA VISTA EXTERNA NA FACHADA POSTERIOR .
Fonte: CSEPCSÉNYI, Ana (2019)
TERMINAL RODOVIÁRIO MARIANO PROCÓPIO – identificação
marquise e o edifício da Polícia. Neste último, a rodoviária ocupava o pilotis com
bilheterias e a sobreloja com sua administração e um restaurante. No pilotis,
existiam painéis com temas rodoviários. (Ver figuras 45‐46.)
F IGURAS 43 E 44 – À ESQUERDA , PLATAFORMA DE EMBARQUE ; À DIREITA A MARQUISE .
Fonte: s/a. (195?). Fonte: s/a. (195?).
https://bityli.com/br63h https://bityli.com/LbqSe
F IGURAS 45 E 46 – À ESQUERDA , PAINÉIS DECORATIVOS JUNTO ÀS ABÓBODAS ; À DIREITA , PAINÉIS
POSTERIORMENTE REMOVIDOS .
Fonte: s/a. (195?). Fonte: CONCREJATO (2011)
F IGURAS 47 E 48 – S EGMENTOS DA MARQUISE CONTÍGUOS ÀS FACHADAS LATERAIS DO EDIFÍCIO DA P OLÍCIA .
Fonte: GOOGLE (2010).
F IGURA 49 – MARQUISE CONTÍGUA À FACHADA POSTERIOR
DO PRÉDIO DA POLÍCIA .
Fonte: s/a. (2010).
http://masaokamita.blogspot.com/2013/05/
A Pesquisa Histórica sobre o Terminal e o contíguo prédio da Polícia Marítima foi
solicitada pela Fundação Roberto Marinho, em 2010, à historiadora Lúcia Garcia.
O Levantamento Físico de ambas as edificações foi desenvolvido pela empresa
Velatura Restaurações, também no mesmo ano, sendo composto por um
conjunto de cerca de vinte plantas.
A intervenção projetada para a rodoviária foi desenvolvida integrada ao Projeto
de Arquitetura do museu (interior do Palacete). Como mencionado antes, o
escritório Bernardes Jacobsen Arquitetura destinou basicamente à edificação as
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
213
áreas técnicas de apoio ao museu e também os espaços de apoio à Escola do
Olhar instalada no prédio da Polícia178.
A Empresa Concrejato executou igualmente as obras nessa edificação. Conforme
projetado, demoliu os dois segmentos da marquise justapostos às fachadas
laterais do prédio da Polícia, restando somente a marquise principal. Sob esta,
foram construídos três volumes em alvenaria, liberando seus extremos. No
volume central, foi posicionada a bilheteria e o guarda‐volumes, nos demais
foram alocadas áreas técnicas e de serviço. (Ver figuras 50 e 51.)
F IGURAS 50 E 51 – À ESQUERDA , EXTREMIDADE DA MARQUISE JUNTO AO P ALACETE E , À DIREITA , CONTÍGUA À
E SCOLA DO O LHAR .
Fonte: GIROTO, Ivo (2018)
https://bityli.com/cf8jV
O setor coberto por abóbodas que fazia a ligação entre a marquise e o pilotis do
prédio da Polícia foi ampliado, prolongando‐se para além de sua fachada lateral.
Nesse espaço foram localizados loja, depósitos e mais áreas técnicas.
Vale salientar que, conforme relatório produzido pela Arqueóloga Guadalupe do
Nascimento Campos em 2011, foram realizadas escavações para o
posicionamento de reservatório na área próxima à projeção das abóbodas, onde
foram encontrados vestígios de um possível estaleiro de pequeno porte. Tais
achados arqueológicos não foram expostos no local. (Ver figuras 52‐53.)
178
Ver projeto no anexo II.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
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CSEPCSÉNYI, ANA.
214
F IGURAS 52 E 53 – V ESTÍGIOS DO POSSÍVEL ESTALEIRO DO SÉC . VIII.
Fonte: CAMPOS, Guadalupe (2011).
PRÉDIO DA POLÍCIA MARÍTIMA (HOSPITAL DA POLÍCIA CIVIL) – Identificação,
propostas de intervenção e execução
O edifício modernista destinado a ser a sede da Polícia Marítima foi projetado
pelo arquiteto Fernando Saturnino de Brito e construído na década de 1940. A
edificação foi dotada de pilotis, janelas em fita executadas em madeira com
acabamento na mesma cor do revestimento dos pilares do pilotis, além de
empenas laterais cegas. Como já citado, com a construção do Terminal, fez‐se
uma ligação entre o prédio e a marquise principal coberta por duas abóbodas.
Mais tarde, esse espaço foi ampliado e o pilotis do prédio foi fechado com
esquadrias reticuladas em ferro. (Ver figura 54.) Além disso, o prédio foi
adaptado para receber o Hospital da Polícia Civil José da Costa Moreira, que
permaneceu em uso até pouco tempo antes das obras de intervenção. Em seu
interior, já não havia elementos compositivos de valor histórico ou estético,
exceto pelos painéis decorados no pilotis.
Vale ainda pontuar que outros achados arqueológicos, como dormentes de
trens, foram encontrados no lugar da fundação dos novos elevadores, sendo
removidos do local.
MAR – análise
F IGURA 57 – V ISTA DA P RAÇA M AUÁ E DO M USEU DO A MANHÃ A PARTIR DA COBERTURA DA E SCOLA DO O LHAR .
F IGURA 58 – V ISTA DA P RAÇA ENTRE OS PRÉDIOS DO MAR .
Fonte: s/a. (s/d). Fonte: CSEPCSÉNYI, Ana (2019).
https://www.cariocahotel.com.br/visite‐o‐mar/
No que se refere a análise da assertividade da intervenção no conjunto do MAR,
em relação ao referencial teórico do campo disciplinar da restauração, de acordo
com o parâmetro “postural”, que se atém aos princípios orientadores da ação,
são feitas observações acerca de cada edificação, quanto ao projeto e ao que foi
efetivamente executado nas obras.
No caso do Palacete D. João VI e em relação ao critério de qualidade dos
produtos de projeto, avalia‐se que estes são, de modo geral, qualitativamente
adequados e, portanto, coerentes; apesar de apresentarem uma Pesquisa
Histórica relativamente superficial e parte dos registros de Levantamento Físico
imprecisos. As obras nessa edificação também têm qualidade adequada, sendo,
portanto, coerentes sob esse aspecto.
Em relação ao critério que observa os postulados e tópicos operacionais
adotados na intervenção no Palacete, é necessário analisar o Projeto de
Intervenção para as fachadas e cobertura juntamente com as do Projeto de
Arquitetura, pois eles têm áreas de abrangência comuns, como as fachadas e a
cobertura.
A intervenção nas fachadas do Palacete reconhece o postulado teórico do bem
como documento, à medida que restaura as fachadas e que mantém o acréscimo
que ampliou o último pavimento (que, por sua vez, respeita a preexistência e é
um momento da evolução da edificação). Por outro lado, a intervenção contraria
esse mesmo postulado, na medida em que resgata as cores “originais” da
edificação, no lugar da proposta cromática referente a essa conformação
ampliada da edificação. Ademais, essa poderia ser confirmada com a execução
de prospecções nos segmentos das fachadas acrescidos no último pavimento.
Outro postulado que pode ser verificado nessa intervenção é o do respeito à
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
217
matéria original do bem e à sua história, conferindo a marca do tempo. Todavia,
admite‐se que a execução do novo acesso do público à edificação implica a
“perda” da matéria da fachada posterior, mas esta não é deveras representativa
frente à escala da edificação. Quanto aos tópicos operacionais teóricos, a
passarela de acesso, assim como a de saída, são rupturas enfáticas entre passado
e presente e impactam na imagem do bem. Sendo assim, os tópicos operacionais
acabam por ficar mais restritos à metodologia científica e a compatibilidade
entre os materiais. Diante disso, avalia‐se que a intervenção nas fachadas do
Palacete é, de modo geral, coerente em relação a esse critério de análise da
assertividade teórico‐disciplinar.
Outro ponto, neste caso, do Projeto de Intervenção, que também nega esse
postulado é a especificação da reprodução de gradis originais nas platibandas,
onde estes eram simplificados ou não existiam. Uma proposta balizada pela
concepção do bem como documento restauraria também o gradil simplificado.
Além do mais, ele é relativo à conformação ampliada do prédio, que é a mantida
na intervenção. Aqui, os serviços executados na cobertura têm uma orientação
mais acertada do que a projetada, pois não se reproduzem os gradis originais nas
platibandas das fachadas posterior e lateral. Em contrapartida, também não se
“restaura” o gradil simplificado da fachada posterior.
Destaca‐se que as demais ações na cobertura que implicam a mudança do acesso
e a construção de novas áreas técnicas não impactam de maneira expressiva a
conformação da cobertura. Logo, avalia‐se que a intervenção executada na
cobertura do Palacete é incoerente em relação a esse critério de análise da
assertividade teórico‐disciplinar.
forros (em razoável estado de conservação), sobretudo no hall original que se
localiza no corpo central da edificação.
Nesse sentido, vale salientar que a demolição das alvenarias internas do
segmento frontal da edificação que o compartimentava pode não impactar,
sobremaneira, na leitura do bem, haja vista que já existiam grandes salões
colaterais em cada pavimento. No entanto, o registro dessa modificação seria
mais legível se tivesse sido proposta a restauração dos forros evidenciando o
fracionamento anterior, ou mesmo a marcação desses ambientes com forros
novos, levando‐se em conta a necessidade de recomposição dos revestimentos
de lajes. Outra possibilidade ainda seria a marcação desses ambientes com o piso
novo.
Mais um tipo de ação que nega o postulado do bem como documento é o
emprego generalizado dos painéis “museográficos”, vedando as esquadrias das
fachadas no interior do bem. Mesmo as esquadrias das alvenarias chanfradas,
nos vértices da edificação, não podem mais ser observadas, haja vista sua
vedação posterior às obras. Estes painéis são reversíveis/retrabalháveis, mas
constituem um acréscimo que não respeita a preexistência em todas as suas
características, visto que dificultam enfaticamente a percepção da arquitetura
histórica. Tampar as esquadrias dentro dos respectivos vãos é uma solução que
pode ser adotada também como recurso expositivo. É limitada, se comparado
aos recursos disponíveis no painel “museográfico”, porém permite a percepção
da posição e das dimensões das esquadrias, ou seja, do ritmo estabelecido na
construção original. Ademais, isso foi feito em uma das paredes dos salões do
térreo.
O tópico operacional que é observado de maneira mais evidente nesse setor da
intervenção é a distinguibilidade. Ela é empregada de forma razoavelmente
harmoniosa na nova escada e no novo piso.
No caso do Terminal Rodoviário Mariano Procópio, verifica‐se que os produtos
de projeto: Pesquisa Histórica e Levantamento Físico são desenvolvidos com o
devido rigor técnico e, portanto, avaliados como qualitativamente coerentes. Da
mesma forma, os serviços executados detêm qualidade adequada; logo, são
coerentes quanto a esse critério de análise.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
219
Em relação aos postulados e tópicos operacionais adotados na intervenção no
Terminal, pode‐se considerar que, embora haja alguma preocupação com a
matéria original do bem, a preservação de sua historicidade não é determinante.
O segmento isolado da marquise demolido pode ser tomado como o acréscimo
espúrio, mas o outro, que era articulado com a marquise principal, não deveria,
pois sua demolição afeta o documento. Por outro lado, isso não desfavorece a
imagem do bem.
Ademais, os acréscimos construídos sob a projeção da marquise, mesmo que
harmoniosamente distinguíveis, não respeitam a preexistência em todas às suas
características. Os extremos da marquise que são “liberados” (desocupados) são
proporcionalmente “tímidos”, em comparação aos volumes construídos. Tal
condição é ainda agravada pela edificação do espaço entre a marquise e o pilotis
do edifício da Polícia, inclusive estendendo‐se além de sua fachada lateral. Se
reconhece que a ocupação da marquise e também das abóbadas é uma proposta
oportuna às demandas de programa do museu e da Escola do Olhar, mas, à
proporção que os acréscimos se avolumam, dificulta‐se a percepção do contorno
da marquise da rodoviária, o que impede sua compreensão formal e a própria
“leitura” do uso original.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
220
No caso do prédio da Polícia, o empreendimento é a construção de uma nova
arquitetura, logo, de acordo com a legislação de proteção dos bens tutelados
que autorizou sua demolição. Todavia, conforme questionado antes, isso pode
ser controverso, já que o Terminal, que é preservado, tinha parte de suas
dependências nessa edificação. João Kamita (2013) afirma que as demolições no
prédio da Polícia são estilísticas, pois ocorrem para “[...] explicitar os elementos
de linguagem que marcam a gramática de nossa arquitetura moderna.”
Entretanto, mesmo essas “citações estilísticas” não são coesas, à medida que um
elemento comum à arquitetura modernista, que é a janela em fita, importante
para o ritmo de cheios e vazios das fachadas frontal e posterior, também é
eliminado com a demolição dos peitoris. De fato, essa ação não tem a motivação
repristinadora de demolição para o “restauro” estilístico, ainda observada na
prática nacional. Ela é a proposição de uma nova arquitetura, uma “releitura
moderna”. Essa nova arquitetura pretende ser “leve”, sendo vista somente a
lâmina da laje, e comunga com a cobertura fluída e dramática apoiada em pilares
esbeltos. É uma arquitetura de espetáculo que o arquiteto e os empreendedores
desejam construir para o turismo cultural, sobretudo nesse lugar.
PROJETADO EXECUTADO
Palacete D. João VI
QUALIDADE DOS
coerente coerente
PRODUTOS/SERVIÇOS
Incoerente
POSTULADOS E TÓPICOS
(coerente – fachadas, incoerente – interior,
OPERACIONAIS
incoerente – cobertura)
Terminal Rodoviário Mariano Procópio
QUALIDADE DOS
coerente
PRODUTOS/SERVIÇOS
POSTULADOS E TÓPICOS
incoerente
OPERACIONAIS
INTERVENÇÃO NO
PARCIALMENTE COERENTE
CONJUNTO
As interferências no processo de intervenção no conjunto do MAR, que
impactam a sua assertividade, podem ser observadas nas propostas para o
interior do Palacete e para o Terminal. Elas são típicas da imposição do uso ao
bem que ocorre na prática nacional, sobretudo no âmbito da influência da
indústria cultural, resultando, inclusive, na homogeneização do repertório de
intervenção nos equipamentos culturais. Da mesma forma, o destaque ao novo
no conjunto é uma criação evidente de “autorreferência” como marca de
impacto, que, nesse caso, aponta para uma carência de sensibilidade quanto ao
valor cultural do bem.
No que concerne à gestão dos projetos, a decisão de não empregar mão de obra
especializada do setor da restauração, acompanhando sistematicamente o
desenvolvimento do projeto do interior do Palacete e a intervenção no Terminal,
evidencia a carência de interlocução multidisciplinar dessa iniciativa e, por
extensão, de sensibilização quanto ao valor cultural do bem. Ainda no que
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
222
concerne à gestão dos projetos, a antecipação do Projeto de Intervenção para a
cobertura do Palacete implicou retrabalho decorrente da modificação da
proposta. Por sua vez, a complexa cobertura da Escola do Olhar e sua
repercussão no Palacete redundaram em atrasos de projeto e prolongados
prazos de obra. Isso sem se mencionar a decisão de não expor os vestígios
arqueológicos que contam a história da ocupação da cidade, motivo pelo qual as
edificações são protegidas.
Por outro lado, a iniciativa de antecipar a restauração das fachadas do Palacete,
enquanto o Projeto de Arquitetura para o interior era desenvolvido, pode ter
sido uma estratégia positiva, tendo‐se em conta que o restauro das esquadrias,
existentes em grande quantidade nas fachadas, costuma ser uma tarefa crítica,
em se tratando da gestão do tempo em uma obra de restauração. Contudo, essa
não é uma estratégia adequada para qualquer intervenção, pois costuma
implicar retrabalho e custos adicionais, sobretudo com infraestrutura e, claro,
no que concerne à matéria original do bem.
Por meio da análise da intervenção no MAR, ainda é possível promover outra
abordagem quanto ao referencial teórico disciplinar, que é a correlação com as
correntes teóricas contemporâneas. Pode‐se ponderar que, no caso do Palacete,
o Projeto de Intervenção para as fachadas e para a cobertura é mais próxima da
vertente da “Manutenção‐restauração”, que admite, além das superfícies de
sacrifício e da reintegração de lacunas, a reprodução de elementos não
distinguíveis (como proposto para o gradil da platibanda das fachadas posterior
e lateral).
Já a intervenção executada nas fachadas e cobertura diferencia‐se um pouco da
projetada por não adotar a reprodução indistinguível, sendo assim poderia ser
mais inclinada para um “Restauro Crítico‐Conservativo”. No entanto, a
reconstrução dos telheiros originais contraria isto. No caso do Projeto de
Arquitetura para o interior do bem, a intervenção pode ser mais próxima da
“Manutenção‐restauração”, porque privilegia a imagem e o novo como adição
insere‐se de forma criativa e não condicionada ao respeito da preexistência.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
223
No caso do Terminal, as ações na marquise também se assemelham à
“Manutenção‐restauração”, pelo rejuvenescimento das superfícies e pela adição
do novo modernamente distinguível e não condicionado a ser respeitoso, mas,
principalmente, pela remoção da adição para a legibilidade. (Ver quadro 5.)
PROJETADO EXECUTADO
Manutenção‐restauração
(fachada e cobertura)
Palacete D. João VI Manutenção‐restauração
Manutenção‐restauração
(interior)
(interior)
Terminal
Rodoviário Manutenção‐restauração
Mariano Procópio
Logo, guardando‐se as devidas proporções deste exercício de reflexão, a análise
das intervenções no conjunto do MAR, em relação às possíveis orientações por
correntes teóricas contemporâneas, aponta para uma dicotomia entre o
preservar e o produzir uma nova arquitetura. Isso implica repercussões na
preservação do bem como referência para preservação.
Para analisar a assertividade das intervenções do MAR em relação ao referencial
teórico do campo disciplinar da restauração, no que tange ao parâmetro
“conceitual”, que se refere aos conceitos e entendimentos de patrimônio, de
identidade cultural, de valor patrimonial e de intervenção, são feitas reflexões a
respeito da intervenção como um todo.
No Projeto de Intervenção das fachadas do Palacete não é identificado o claro
registro do valor patrimonial que orienta as diretrizes/partido de intervenção.
Também não há menções ao valor do bem, citado no decreto de tombamento.
Observar‐se que a intervenção é encaminhada no sentido de preservar o valor
histórico do bem. No caso do Projeto de Arquitetura para o interior do Palacete
e para o Terminal, como seria de se esperar tratando‐se de firma não
especializada, não é feita nos documentos disponibilizados qualquer referência
ao valor dos bens.
Também não são promovidas ações de pesquisa junto aos grupos sociais locais,
a respeito das significações conferidas aos bens, por conseguinte não se observa
qualquer alusão a elas nos projetos. Conforme já se defendeu anteriormente, a
atribuição da valoração é específica do bem, em seu tempo e em seu lugar,
constitui parte do processo metodológico de intervenção e a legitima. A
valoração deve ser um processo de sensibilidade, interpretação e investigação
do material e do imaterial.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
224
Não identificar a significação conferida pelos grupos sociais mais próximos ao
patrimônio e ignorar suas práticas vinculadas ao bem aumenta a possibilidade
da ocorrência de uma valoração anacrônica, superficial ou mesmo técnico‐
científica. O Terminal Rodoviário, por exemplo, atraiu grande concentração de
usuários durante décadas, não sendo difícil encontrar relatos de memórias
associados a ele. Entretanto, não são observadas referências à valoração das
significações memoriais e de práticas sociais para justificar as ações nessa
iniciativa.
Pode‐se dizer que a valoração patrimonial atribuída no tombamento e adotada
na preservação desses dois bens veio a ser apropriada de maneira superficial e
generalista. Os aspectos estéticos em uma construção imagética fragmentada
são privilegiados para uma leitura fácil, o que pode prejudicar o valor do
documento, assim como ocorre com o entorno imediato do Terminal. Até
mesmo os aspectos formais, materiais e, portanto, documentais, normalmente
destacados nas abordagens tecnicistas da prática nacional de intervenção no
patrimônio arquitetônico, são pouco considerados, como ocorre com o interior
do Palacete e com os vestígios arqueológicos.
Ou seja, os suportes materiais que confeririam diversidade a esses “exemplares
representativos da história da ocupação do Centro” são pouco valorados. Diante
disso, considera‐se que a intervenção no conjunto do MAR é parcialmente
coerente em relação ao critério de análise acerca da valoração do patrimônio
arquitetônico, pois não privilegia o bem como referência para a preservação.
A proposta da Escola do Olhar tem uma orientação baseada em uma nova
“arquitetura‐evento”, peculiar, atrativa, midiática e espetacular, ao gosto do
“marketing cultural” que se destina ao consumo da mercadoria cultura,
promovendo uma experiência rápida e superficial, de acordo com o modelo
empregado pela indústria cultural. Com isso, ela contribui, inclusive, para a
construção da imagem da cidade de então. Um edifício “arte”, como afirma
Monnier (2009, p. 9‐10), sobre qual Kamita (2013) particularmente opina:
“Parece‐me, para ser franco, uma posição conservadora e elitista, que deposita
no artístico da arquitetura – no caso, na forma e na composição (típicos valores
acadêmicos) – o suporte para a afirmação de uma imagem de impacto.”
Tal conduta também pode ser vislumbrada no museu com o emprego dos
“painéis museográficos”, que só permitem uma experiência superficial da
edificação histórica. Isso é um tratamento de “invólucro”, desligado das
características morfológicas do bem e de seu território. Nessa imagem
fragmentada da arquitetura histórica, o uso prevalece e torna‐se a finalidade da
intervenção. O que é uma prática recorrente da indústria cultural, sobretudo
tratando‐se de usos culturais e também de grande visibilidade.
Entende‐se que são necessárias adaptações para o uso e que o Palacete possui
uma conformação favorável ao uso expositivo, como o próprio Decreto nº
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
225
Por certo, a narrativa que constrói o evento, ou os megaeventos, é parte do
processo de intervenção nesses patrimônios arquitetônicos. O seu valor do
evento nesse espaço é determinado pela lógica do espetáculo da indústria do
entretenimento e se impõe além dos bens até seu espaço social. Se no MAR a
iniciativa não é estruturada essencialmente nos significados locais, é pouco
provável que se observem práticas sociais ativas vinculadas às significações
anteriores à intervenção. De maneira geral, os grupos sociais experimentam e
consomem esse patrimônio cultural e podem progressivamente ressignificar o
conjunto, atribuindo‐lhe novas memórias. Entretanto, o vigor do evento no MAR
é uma estratégia de turismo cultural para o Brasil e para a cidade do Rio de
Janeiro. Sendo assim, o seu valor do evento no tempo não se limita à finitude
dos megaeventos.
Com efeito, a compreensão contemporânea do patrimônio arquitetônico abarca
múltiplas e dinâmicas significações. Essa interpretação dualista dos objetos
históricos verificada no MAR, contudo, é incongruente com a compreensão
contemporânea do patrimônio material formalizada no PPCM – atenta à
significação imaterial do bem conferida pelos grupos sociais e também
concentrada no objeto físico. Vale enfatizar isso, ainda que se considere a
“hierarquia” de preservação de cada bem nessa intervenção. A preexistência
detém os significados memoriais que devem ser preservados (tangíveis e
intangíveis) e que lhe conferem diversidade.
Sendo assim, a intervenção é parcialmente coerente em relação ao critério de
análise acerca da compreensão contemporânea do patrimônio arquitetônico,
pois a limitação para a ressignificação é a minimização ou a desconsideração de
significados memoriais locais da preexistência. Tal construção é parte do
entendimento de patrimônio como referência histórica para preservação.
Outro critério de análise da intervenção é em relação aos processos de
identificação. No MAR, o novo da Escola do Olhar, a valoração da novidade e a
proposta homogeneizada do museu promovem identidades culturais
globais/interculturais que são características das práticas da indústria cultural.
Como se ponderou antes, os megaeventos foram a força motriz do
empreendimento, mas eles se colocam em um contexto anterior de inserção da
cidade do Rio em um “circuito de consumo” turístico internacional. Uma imagem
da “cidade empreendimento” também construída com grandes equipamentos
culturais, que são “símbolo de identidade nacional” nos megaeventos; mas são
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
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226
O MAR, na condição de um “cenário”, é um empreendimento construído de
costas para o local, mirando o global. Sob essa dinâmica, a população local foi
alijada do processo de intervenção. Em verdade, tal iniciativa alardeia benefícios
a grupos sociais, mas imputa altos custos sociais aos grupos locais, como a
gentrificação já apontada no âmbito do Porto Maravilha.
Vale reiterar que a identidade cultural local que já existia vinculada ao bem,
mesmo na ausência da participação dos grupos sociais locais no processo de
intervenção, não se extingue completamente com processos de hibridação
cultural, que não são uniformes nem lineares. Todavia, estes podem afetar a
identidade cultural local, caso ela não seja um processo sólido de prática social
e caso não haja condições estruturais sociopolíticas de negociação da
“diferença”, de modo a assegurar a diversidade cultural.
Sobre esse processo de negociação, pode‐se ponderar que hoje, com as ações
do Porto Maravilha consolidadas, os grupos sociais locais estão bem organizados
no que se refere à autoexpressão e à representação cultural. Eles, inclusive,
vinculam práticas sociais ativas e políticas a bens, como ocorre com o Cais do
Valongo e da Imperatriz, o Cemitério dos Pretos Novos e a Pedra do Sal,
localizados nas proximidades do MAR.
Por outro lado, isso não ocorre na mesma proporção no MAR, ainda que se tenha
em conta seu uso. Entende‐se que o conjunto não foi concebido para uma
ressignificação do patrimônio como equipamento cultural vocacionado para a
ocupação e autoexpressão popular. Nesse contexto, um tema complexo que não
é objeto desta discussão, é que parte disso envolve um projeto museográfico
atento à produção local, ainda que mais recentemente o MAR tenha se
mobilizado nesse sentido.
Ainda se faz necessário analisar o discurso promovido com a intervenção no
conjunto do MAR. Como citado antes, a narrativa que constrói o megaevento é
parte dessa intervenção; além disso, ela representa uma maneira de atuar
criativamente no passado, “presentificando” o patrimônio.
Com efeito, a intervenção deve legitimar os processos de significação e pode
também observar novas experimentações que compõem parte dessa
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
227
significação contemporânea intangível, desde que, ao pretender a preservação
do bem com referência histórica e identitária, o discurso a prevalecer seja o da
preexistência. Ou seja, o lugar do evento não deve ser o de protagonista, a
preexistência é anterior a ele e detém os significados que lhe conferem a
condição de referência para a preservação.
Entretanto, verifica‐se que nesse empreendimento parte da preservação não é
restauração e não é reabilitação, é o novo, que é basicamente uma nova
narrativa estruturada pela preexistência transformada em um conjunto de
referências revisitadas. Desse modo, o discurso da preexistência é o “pano de
fundo” para os interesses da indústria cultural, que se sobressaem com os
megaeventos. A precedência e a relevância do histórico são subvertidas pelo
impactante discurso do novo projeto. A intervenção no MAR não promove
preponderantemente o discurso da preexistência, que legitima sua condição de
referência histórica e identitária para preservação. Em face disso, entende‐se
que é incoerente, sob este critério de análise.
COERÊNCIA DA INTERVENÇÃO NO
CONCEITOS E ENTENDIMENTOS
CONJUNTO
VALOR PATRIMONIAL Parcialmente coerente
PATRIMÔNIO / SIGNIFICAÇÃO Parcialmente coerente
IDENTIDADE CULTURAL Parcialmente coerente
DISCURSO DA INTERVENÇÃO incoerente
INTERVENÇÃO PARCIALMENTE COERENTE
PIEDADE
F IGURA 62 – L OCALIZAÇÃO DO CONJUNTO DA P RAÇA DO T REM .
CACHAMBI
ABOLIÇÃO
PRAÇA DO TREM
ENGENHO
PIEDADE DE DENTRO
MÉIER
Fonte: GOOGLE EARTH (2020)
179
O conjunto da Praça do Trem localiza‐se no bairro do Engenho de Dentro, região do
Méier. É predominantemente residencial, dotado de uma estação de trem e cruzado pela
Linha Amarela, que é uma importante via de ligação entre o subúrbio e a Barra da Tijuca,
O bairro concentra seis bens tombados pelo município, segundo dados do IPP de 2017.
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229
F IGURA 63 – E DIFÍCIOS PROTEGIDOS .
ESTÁDIO NILTON SANTOS
GALPÃO 3
GALPÃO 4
PRÉDIO 2 MUSEU DO TREM
ESTAÇÃO DE TREM
Fonte: GOOGLE EARTH (2010)
A Estação Ferroviária do Engenho de Dentro era composta por diversas
edificações e foi protegida pelo Conselho Municipal de Proteção ao Patrimônio
Cultural (CMPC), com o tombamento definitivo deferido no Decreto n° 14.741
de 22 de abril de 1996, justificado pela “[...] importância histórica das estações
ferroviárias, ramal do Rio de Janeiro, na memória urbana de nossa Cidade180.”
180
A Praça do Trem não tem tombamento federal, todavia cabe destacar que o PPCM
registra a criação de instrumentos de reconhecimento para categorias específicas de
bens culturais materiais, entre eles a de Patrimônio Cultural Ferroviário. Um desses
instrumentos é a criação de uma Lista desse tipo de patrimônio que visa estabelecer bens
que gozam dessa proteção específica, com vistas a promover a preservação e difusão da
memória ferroviária. (IPHAN, 2018). Isso acentua a relevância deste tipo de patrimônio
material.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
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CSEPCSÉNYI, ANA.
230
Todavia, o tombamento foi parcialmente revogado pelo Decreto nº 24.029 de
16 de março de 2004, permitindo a demolição e/ou o desmonte seguido do
remonte em outra localização, de vários dos galpões remanescentes do
conjunto, sob as seguintes justificativas:
CONSIDERANDO a existência de outras edificações sem
valor arquitetônico e cultural na área citada no “caput”
deste Decreto; CONSIDERANDO o caráter construtivo
das edificações tombadas de uso industrial situadas no
interior da área citada no “caput” deste Decreto;
CONSIDERANDO a necessária revitalização da área que,
atualmente, se encontra subutilizada; CONSIDERANDO
os benefícios socioeconômicos que a construção do
Estádio Olímpico gerará para a Região e a Cidade do Rio
de Janeiro; CONSIDERANDO que o Estádio Olímpico é
equipamento imprescindível à realização dos Jogos Pan‐
Americanos na Cidade do Rio de Janeiro em 2007; [...]
(RIO DE JANEIRO..., 2004).
PRÉDIO 2 – identificação
O Prédio 2 foi construído para abrigar a administração das oficinas de trens do
Engenho de Dentro. Não foram identificados dados sobre o projeto original ou
autor deste. Por sua vez, a obra data de 1871, seu responsável foi o Engenheiro
José Carlos de Bulhões Ribeiro e o proprietário era a, então, Estrada de Ferro D.
Pedro II.
A respeito da evolução da edificação alguns, aspectos são demarcados, de modo
a auxiliar a compreensão das intervenções projetadas e executadas. O Prédio 2
sofreu um incêndio, em função disso foram executadas obras em 1905, a cargo
do Engenheiro Carlos Possi. Por essa ocasião, a edificação foi ampliada,
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
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CSEPCSÉNYI, ANA.
231
prolongando‐se o segundo pavimento nos dois segmentos divididos pelo corpo
central da edificação, que receberam cobertura em telhas francesas e
coroamento em platibanda. O desenho do frontão no coroamento do corpo
central foi modificado. Também foram acrescidos ornamentos em argamassa às
fachadas, compostos por frisos e pilastras.
F IGURA 65 – P LANTA DO COMPLEXO . F IGURA 66 F ACHADA FRONTAL APÓS AMPLIAÇÃO .
Fonte: s/a. (1907). Fonte: ARQUIVO NACIONAL (1933).
https://encurtador.com.br/fzM26 https://www.flickr.com/photos/arquivonacionalbrasil/36885630246
F IGURA 67 – D ESTAQUE DO ACRÉSCIMO EM UMA
Um acréscimo posterior, sem data LATERAL NO PAVIMENTO SUPERIOR .
identificada, foi executado em uma das
laterais do segundo pavimento, ampliando‐o
até o limite do pavimento térreo. A cobertura
dessa ampliação se apoiou na cimalha da C
fachada lateral, modificando vãos e
secionando vergas e ornatos. (Ver figura 67.)
existiam no prédio pinturas artísticas e pavimentos em ladrilho hidráulico. (Ver
figuras 68‐69.)
F IGURAS 68 E 69 – F ACHADA FRONTAL E INTERIOR DO PRÉDIO EM ARRUINAMENTO .
Fonte: VELATURA (2014).
PRÉDIO 2 – propostas de intervenção
Um Projeto de Intervenção, em fase de estudo preliminar, foi desenvolvido em
2013 pelo IRPH. Seus produtos compreendiam: o Levantamento Físico (na etapa
de Identificação e Conhecimento do Bem), o Mapeamento de Danos (na etapa
de Diagnóstico) e as plantas de demolir e construir (na etapa da Proposta de
Intervenção). Foram identificadas sete pranchas no total.
Cabe neste ponto registrar que o citado destombamento parcial do conjunto
suscita dúvidas quanto à conservação das características “da tipologia estilística
original” do Prédio 2, instituídas pelo art. 2º do decreto de tombamento, à
medida que registra no art. 1º: “Ficam preservados, em sua volumetria e
fachadas, os prédios 01, 02 e 05 (Centro de Preservação da História Ferroviária)
[...]” (RIO DE JANEIRO..., 2004).
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
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CSEPCSÉNYI, ANA.
233
Isso gera uma ambiguidade, pois não fica claro o descarte das demais demandas
de preservação estabelecidas para a edificação no decreto de tombamento. Vale
frisar que o destombamento parcial tratava, em particular, dos galpões que
compunham o conjunto até então. Entende‐se, à semelhança do que pode ser
verificado na proposta do projeto do IRPH, que não se excluem as demais
características “da tipologia estilística” dos bens arroladas no tombamento.
Não foi possível identificar no material disponível desse projeto o claro registro
de uma diretriz ou partido de intervenção. Contudo, observa‐se que a proposta
foi orientada como uma intervenção mais conservativa, evidenciada nas
definições que visavam a preservação de características da edificação, como as
relativas aos fluxos, à conservação do posicionamento da circulação vertical
perdida e à conservação do acréscimo feito em uma das laterais da edificação.
Em 2014, a empresa Mascarenhas Barbosa Roscoe, responsável pelos serviços
de urbanização e revitalização no bairro do Engenho de Dentro, contratou a
Velatura Restaurações para o desenvolvimento do Projeto de Intervenção. Seu
escopo contemplava as fases de estudo preliminar, anteprojeto e projeto
executivo e incluía os projetos complementares. Contudo, excluía os produtos
relativos à Pesquisa Histórica (no conjunto de Identificação e Conhecimento do
Bem) e o conjunto de Diagnóstico. Além disso, no conjunto de Proposta de
Intervenção, também desconsiderava os projetos pertinentes à Nave do
Conhecimento (projeto‐modelo da Prefeitura que promove a democratização do
acesso ao universo digital) e ao Museu Cidade Olímpica (dedicado ao esporte
com proposta interativa e multimídia) a serem instalados em espaços da
edificação e as propostas para o entorno imediato do prédio.
A diretriz de intervenção citada no projeto foi o restabelecimento da integridade
do bem e da unidade do conjunto. A intervenção proposta previa: a demolição
do acréscimo lateral; a construção de lajes com estrutura metálica no pavimento
e no segmento lateral, que antes era coberto com telheiro/platibanda, de modo
a instalar equipamentos de ar condicionado; a construção de cobertura com
estrutura metálica e telhas cerâmicas, incluindo proposta de nova claraboia
sobre o hall (para ventilação natural deste espaço). Nesse hall, no eixo central
do edifício, foi alocada a principal circulação vertical composta de elevador e
escada em estrutura metálica. Uma nova circulação vertical de apoio foi indicada
em uma das extremidades laterais da edificação. Também nas extremidades
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
234
substituição tanto àquelas perdidas, quanto às
F IGURA 71 – P ROPOSTA PARA CIRCULAÇÃO VERTICAL NO
poucas remanescentes ainda passíveis de PAVIMENTO SUPERIOR .
restauração; justificando‐se na exiguidade de
tempo e verba para sua restauração.
PRÉDIO 2 – execução
A fiscalização do patrimônio às obras coube ao IRPH e se deu com a participação
em reuniões em conjunto com a Secretaria Municipal de Obras (SMO), outros
departamentos municipais e as empresas contratadas.
Ainda em 2014, a empresa Ópera Prima Arquitetura e Restauro foi contratada
também pela Mascarenhas para a execução das obras na edificação. Todavia, em
função de sucessivos atrasos, o serviço foi descontratado antes do término,
181
Ver plantas do projeto da empresa Velatura Restaurações no Anexo III. Optou‐se por
empregar somente fotografias na descrição dos serviços.
182
Não se teve acesso aos projetos elaborados para o Museu Cidade Olímpica e a Nave
do Conhecimento, que couberam à prefeitura.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
235
Somente um dos conjuntos de áreas molhadas projetadas foi executado. As
esquadrias internas foram feitas com material e desenho diferentes dos
projetados, que remetiam aos remanescentes, e vãos foram vedados parcial ou
totalmente. Os revestimentos dos pisos dos dois pavimentos foram efetuados
com materiais diferentes dos especificados. (Ver figuras 73‐79.) Isso também se
aplicou aos forros e à cobertura, executada com telhas metálicas. (Ver figura 80.)
Não foram restaurados os pisos em ladrilho hidráulico e não foram feitas as
“janelas de observação” das pinturas artísticas. (Ver figuras 81‐83.) Além disso,
não se reconstruíram os adornos em serralheria projetados para a fachada
frontal.
Fonte: CSEPCSÉNYI, Ana (2018).
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
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CSEPCSÉNYI, ANA.
236
F IGURAS 75 E 76 – N AVE DO C ONHECIMENTO .
Fonte: CSEPCSÉNYI, Ana (2018).
Fonte: CSEPCSÉNYI, Ana (2018).
F IGURA 79 – VEDAÇÃO DO VÃO E EXECUÇÃO DE ESQUADRIA DIVERSOS DOS PROJETADOS .
F IGURA 80 – V ISTA DA COBERTURA EM TELHAS METÁLICAS , A PARTIR DA PASSARELA DA ESTAÇÃO DE TREM .
Fonte: COELHO, Ana (2018).
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relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
237
F IGURA 81 – P ISO NÃO RESTAURADO .
F IGURAS 82 E 83 – P INTURAS DECORATIVAS NÃO RESTAURADAS .
Fonte: VELATURA (2014).
GALPÕES 3 E 4 – identificação
No conjunto da Praça do Trem, os Galpões 3 e 4 eram destinados às oficinas.
(Ver figura 84.) Estes possuíam fachadas somente frontais e posteriores; nas
laterais, existiam pilares metálicos. A cobertura era conformada por tesouras em
treliça metálica, duas águas e lanternins com
telhas francesas. O Galpão 3, mais comprido e
F IGURA 84 – P LANTA DO COMPLEXO .
estreito do que o 4, tinha um segmento de
pilares com perfis diferentes dos outros, muito
provavelmente decorrentes de uma
ampliação; também possuía brises em
venezianas metálicas junto à cobertura. Já o
Galpão 4 tinha na mesma posição brises em
requadros com vidro. A fachada frontal do
Galpão 3 possuía uma proposta distinta das
demais: era composta por tijolos maciços e
estrutura metálica, pilastras de fuste liso
alternadas com vãos em arco abatido e dotada
de arquitrave com cantoneiras, conformando
um reticulado fechado em vidro; além disso,
era adornada com frisos argamassados. (Essa
fachada tem vista à esquerda da fachada
Fonte: s/a. (1907).
frontal do Prédio 2. O Galpão 4 não é visto em https://encurtador.com.br/fzM26
uma tomada de vista frontal do Prédio 2.)
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238
Antes da intervenção, os galpões se encontravam sem uso e em processo de
arruinamento, as argamassas e estruturas estavam degradas, os vãos
emparedados, as esquadrias e os vidros perdidos. Além disso, existiam várias
esquadrias espúrias. (Ver figuras 85‐88.)
Fonte: VELATURA (2014).
GALPÕES 3 E 4 – proposta de intervenção
A empresa que desenvolveu o Projeto de Intervenção para os galpões foi a
mesma que elaborou a proposta para o Prédio 2. Seu escopo abarcava o projeto
em fase de executivo para as fachadas frontais e posteriores, incluindo o
Levantamento Físico destas e o projeto complementar de restauro da estrutura.
Ele excluía o Diagnóstico e a Pesquisa Histórica, assim como foi feito para o
Prédio 2. Também não foi incluído o projeto para o entorno imediato das
edificações.
A intervenção projetada citava como diretriz da intervenção a manutenção da
unidade do conjunto, que é a mesma definida para o prédio 2. O Projeto definia
o restauro da fachada frontal do Galpão 3, com a abertura dos vãos
emparedados, o resgate das cores verificadas em prospecções e a reconstrução
do fechamento perdido da arquitrave. Para as demais fachadas, a proposta era
a demolição, em função do avançado estado de degradação da estrutura de
suporte e da tela, atestado em laudo, seguida da reconstrução completa
dessas183.
Vale enfatizar, como já mencionado, que o Decreto nº 24.029 de 16 de março de
2004 revogou o tombamento de alguns galpões, permitindo sua demolição e/ou
o desmonte e o remonte em outra localização, de acordo com definições
posteriores.
Art. 2º Os galpões de número 03, 10, 12, 13 e 14 poderão
ser desmontados e posteriormente remontados em
local de maior conveniência da Administração Pública
Municipal, a ser definido oportunamente e aprovado
pelo Conselho Municipal de Proteção do Patrimônio
Cultural – CMPC. (RIO DE JANEIRO..., 2004b).
Sequencialmente a esse decreto, o IRPH registrou em estudos a preservação do
Galpão 3, que era passível de ser remanejado, e a preservação do Galpão 4, que
se manteve tombado, sendo os demais demolidos.
183
Idem nota 181.
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240
GALPÕES 3 E 4 – execução
A fiscalização do órgão de preservação às obras dos galpões deu‐se em conjunto
com as ações do Prédio 2. As obras das fachadas também foram contratadas à
Ópera Prima e, do mesmo modo, foram interrompidas com o descontrato,
cabendo‐lhe somente a obra de restauro da fachada frontal do Galpão 3, que foi
desenvolvida conforme as especificações do Projeto de Intervenção. (Ver figuras
89‐90.)
Fonte: COELHO, Ana (2018).
Da mesma forma que ocorreu com o Prédio 2, a empresa Mascarenhas assumiu
a continuidade dos serviços das fachadas e das demais obras que já eram seu
escopo inicial, ações civis de maior porte relativas às estruturas, elementos
contíguos à cobertura e as próprias coberturas. Quanto às fachadas, a empresa
procedeu à demolição e executou reconstruções sumariamente simplificadas,
contrariando o projeto.
Fonte: CSEPCSÉNYI, Ana (2018).
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
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241
PRAÇA DO TREM – análise
A intervenção praticada no conjunto da Praça do Trem tem como cerne a
mobilização por meio dos grandes equipamentos, no contexto da
industrialização da cultura e, neste caso, das ações de revitalização urbana do
bairro do Engenho de Dentro, como parte do processo de preparação da cidade
para os megaeventos. Ela é direcionada primordialmente pela centralidade
imposta pelo estádio do “Engenhão” a toda região, que, por sua vez, desmantela
a leitura da conformação do antigo complexo ferroviário e constrói uma nova
ambiência “árida” para as edificações remanescentes.
No que se refere à análise da assertividade da intervenção no conjunto da Praça
do Trem, em relação ao referencial teórico do campo disciplinar da restauração,
de acordo com o parâmetro “postural”, que se atém aos princípios orientadores
da ação, são feitas observações acerca de cada edificação, quanto ao projeto e
ao que foi efetivamente executado nas obras.
No caso do Prédio 2 e em relação ao critério de qualidade dos produtos, o
Projeto Preliminar de intervenção apresenta produtos que são avaliados
qualitativamente como insuficientes; portanto, incoerentes, mesmo tratando‐se
de uma proposta inicial. Isso porque o Levantamento Físico é escasso e
inadequado (haja vista diversas incompatibilidades observadas por meio do
projeto posterior); há ainda a ausência de Documentação Fotográfica, de
registro das pinturas artísticas, dos pisos e das esquadrias. Além de que, não são
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
242
Em relação ao critério que observa os postulados e tópicos operacionais teóricos
dessa proposta, avalia‐se que há uma orientação pelo postulado do edifício
como documento, respeitando a matéria original e sua história e conferindo a
marca de seu tempo. Para isso, empregando os tópicos operacionais da mínima
intervenção e da distinguibilidade. Por outro lado, o projeto também indica a
remoção de alvenarias internas importantes e recomenda a manutenção de um
acréscimo desrespeitoso em relação à arquitetura preexistente.
Vale neste momento mais uma ressalva, a de que as informações quanto ao
conhecimento do bem que poderiam balizar melhor essas definições não
existiam no projeto. Ou seja, o conhecimento e o reconhecimento da estrutura
formal e também da historicidade do bem, imprescindíveis para sua preservação
e para sua nova funcionalidade, praticamente não existiam. Sendo assim, esse
projeto é considerado parcialmente coerente em relação a tal critério de análise
da assertividade teórico‐disciplinar.
Entretanto, sabe‐se que na prática é comum que os produtos dessa etapa de
projeto sejam tratados de forma incipiente, sendo desenvolvidos a contento em
Projetos Executivos contratados posteriormente. Não obstante, também é
frequente que na prática esse mesmo escopo seja eliminado da fase seguinte de
projeto com a justificativa da duplicidade de produtos, ainda que estes sejam
superficiais e anacrônicos. Isso prejudica a qualidade e a coerência teórico‐
disciplinar do projeto, porque as informações referentes às etapas de
Conhecimento do Bem e de Diagnóstico são essenciais à definição da
intervenção no patrimônio cultural.
Já no Projeto de Intervenção para o Prédio 2, mesmo em meio a tal dinâmica,
isso não ocorre. Os produtos apresentados são minuciosamente detalhados e
adequação; sendo assim, são coerentes no que se refere à qualidade.
Em relação aos postulados e tópicos operacionais teóricos da proposta, avalia‐
se que há, de maneira geral, uma orientação pelo postulado do bem como
documento, respeitando sua matéria original. Entende‐se que também se
considera o preceito teórico que declara o bem inseparável de sua história,
apesar de não se propor o restauro de testemunhos de esquadrias
remanescentes. Esta, sim, seria uma postura mais adequada, em face da
impossibilidade de restaurar a totalidade delas devido à exiguidade de verbas e
tempo.
Vale ainda salientar que o projeto não indica a reconstrução das coberturas
perdidas dos segmentos colaterais térreos, substituindo‐as por terraços para os
equipamentos de ar condicionado. Todavia isso não impacta a leitura do bem e
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
243
a sua imagem. Sendo assim, ele atenta ao postulado que afirma que os
acréscimos devem respeitar a preexistência em todas as suas características.
Ademais, o acréscimo sobre um desses segmentos laterais que o projeto indica
a demolição é “espúrio”.
Quanto à intervenção executada de restauro das fachadas do Prédio 2, verifica‐
se que ela é coerente em relação à qualidade dos serviços. Além disso, é
desenvolvida conforme as especificações do Projeto de Intervenção, logo detém
a mesma coerência deste, no que tange ao critério de análise dos postulados e
tópicos operacionais teóricos.
Por sua vez, a descrição das demais ações executadas na intervenção no Prédio
2 já antecipa sua avaliação qualitativa como inadequada e, portanto, incoerente.
Os serviços contrariam as definições projetadas e, sobretudo, empregam
materiais, técnicas e equipamentos de qualidade inferior aos especificados.
Outrossim, vários serviços projetados de “obras civis” não foram executados.
Em relação aos postulados e tópicos operacionais teóricos, avalia‐se que essa
parte da intervenção executada ignora postulados como a preservação da
edificação como documento, à medida que desrespeita a matéria original,
deixando de executar serviços de conservação/restauração projetados para o
interior da edificação. Tal conduta aproxima‐se do fachadismo, que é uma das
dissonâncias recorrentes da prática da intervenção influenciada pela indústria
cultural.
No que concerne aos tópicos operacionais que balizam essa intervenção,
verifica‐se que a distinguibilidade é um artifício para uma enfática ruptura entre
o passado e o presente. Ela se acentua com a mudança dos materiais projetados,
que, mesmo sendo novos, eram compatíveis e moderadamente distinguíveis, à
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
244
exemplo do ladrilho hidráulico liso e do assoalho em madeira. Além disso,
relaciona‐se com o novo na intervenção contemporânea, que é um instrumento
da prática da indústria cultural. Sendo assim, a intervenção executada no Prédio
2 (à exceção das fachadas) é considerada incoerente em relação a esse critério
de análise da assertividade teórico‐disciplinar.
No caso dos Galpões, os produtos que compõem o Projeto de Intervenção são
qualitativamente adequados e minuciosamente detalhados, assim, são
coerentes em relação a esse critério da análise. Quanto aos postulados e tópicos
operacionais que orientam o projeto, considera‐se que a proposta de demolir e
reconstruir “tal e qual” três das quatro fachadas pode ser vista como uma
orientação pelo postulado da preservação da “história” dos bens, que se dá
exclusivamente por meio da preservação da ambiência do conjunto,
fortalecendo o diálogo entre os Galpões e o Prédio 2, com o resguardo das
características estéticas das edificações.
Essa abordagem se contrapõe aos postulados da preservação da matéria
original, de não falsificar e não reconstruir, assim como se opõem ao tópico
operacional teórico da mínima intervenção. Contudo, ela emprega em larga
medida outros tópicos operacionais correlatos à documentação e à metodologia
científica, além da compatibilidade entre os materiais, verificados por meio da
profusão e profundidade dos Levantamentos Físicos, Documentação Fotográfica
e Especificações Técnicas, necessários à reconstrução dessas fachadas.
Por sua vez, independentemente da divergência quanto ao Projeto de
Intervenção, os serviços executados nos galpões têm qualidade técnica
adequada e, portanto, são coerentes em relação a tal critério. Acerca dos
postulados e tópicos operacionais teóricos, avalia‐se que a reconstrução
simplificada das fachadas é orientada pelo postulado que prevê não falsificar,
sendo o tópico operacional da distinguibilidade adotado como premissa. Vale
ponderar que tal condução é conveniente à exiguidade de tempo e custos a que
a iniciativa foi premida, algo recorrente em iniciativas no contexto dos
megaeventos. No entanto, essa também é uma ação que pode ser vinculada à
carência de aprofundamento teórico característica da prática nacional.
Com efeito, a opção pela simplificação dessas fachadas é, em parte, coerente
com postulados consagrados que, inclusive, são premissas para a intervenção
definidas no Manual de Elaboração de Projetos de Preservação do Patrimônio
Cultural do Iphan (2005). Em contrapartida, o citado Manual também pode ser
empregado para justificar a reconstrução idêntica dessas mesmas fachadas.
Sob esse enfoque, a acentuada simplificação
das fachadas implica o total despojamento de F IGURA 94 – F ACHADAS FRONTAIS DOS G ALPÕES 3, 4 E
uma das características mais marcantes desta FACHADA LATERAL DO P RÉDIO 2.
95.)
Uma opção a essa simplificação extrema é a
adoção da distinguibilidade harmoniosa,
empregando reproduções moderadamente
reconhecíveis, estratégias de simplificação
dos relevos e ornatos, com formas e desenhos
mais elementares, marcações com sulcos ou
diferenças de texturas de argamassas, etc.
Fonte: GOOGLE (2018).
São aparatos sutis que possibilitam ao olhar
atento o reconhecimento e a experimentação
dessa arquitetura histórica com maior profundidade. Além de manter
características comuns a essas edificações, associando‐as.
Sendo assim, entende‐se que tanto a proposta projetada para os galpões quanto
a executada são parcialmente coerentes na observância desse critério de análise
da assertividade teórico‐disciplinar. As duas extrapolam premissas teóricas
consagradas do Restauro Crítico e se encontram no âmbito da dialética da
prática nacional entre as recriações indulgentes (tais como as projetadas) e as
reproduções distinguíveis (tais como as executadas).
Diante disso, afirma‐se que a intervenção projetada no conjunto da Praça do
Trem é, de modo geral, coerente em relação aos princípios orientadores do
campo disciplinar da restauração. As descontinuidades constatadas no projeto
entre ações de restauração que comtemplam pisos e não incluem esquadrias,
por exemplo, são típicas das concessões que costumam ocorrer na prática, por
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
246
consequência dos altos custos e prazos de execução prolongados, como são os
que envolvem o restauro de esquadrias.
A despeito disso, vale ressaltar que o destaque ao novo da proposta para o hall
no corpo central da edificação se esquadra menos no que é uma incongruência
em relação às demais propostas do projeto e uma opção superficialmente
teórica. Ela atém‐se mais no que é uma orientação pela “autorreferência” como
marca do arquiteto para o impacto. Em suma, uma criação evidente, em parte
semelhante ao rejuvenescimento das superfícies, afeita ao valor de novidade
para atração das massas.
Portanto, não se pode afirmar que a intervenção projetada é superficial ou que
há carência de conhecimentos técnicos aprofundados quanto à teoria da
restauração e à história da arquitetura, como ocorre com frequência na prática
nacional. Todavia, existe, de fato, certa desarticulação entre o cerne das
propostas para o Prédio 2 e para os Galpões, embora passível de ser justificada
pela composição da ambiência dentro do escopo que cabia ao Projeto de
Intervenção.
Por sua vez, a intervenção executada no conjunto da Praça do Trem é
parcialmente coerente em relação aos princípios orientadores do campo
disciplinar da restauração adotados na prática nacional.
PROJETO PROJETO DE
EXECUTADO
PRELIMINAR INTERVENÇÃO
Prédio 2
Parcialmente coerente
QUALIDADE DOS
Incoerente Coerente (coerente – restauro das fachadas e
PRODUTOS/SERVIÇOS
incoerente – demais ações)
Parcialmente coerente
POSTULADOS E TÓPICOS Parcialmente
Coerente (coerente – restauro das fachadas /
OPERACIONAIS coerente
incoerente – demais ações)
Galpões
QUALIDADE DOS
‐ Coerente Coerente
PRODUTOS/SERVIÇOS
POSTULADOS E TÓPICOS Parcialmente Parcialmente coerente
‐
OPERACIONAIS coerente
INTERVENÇÃO NO
PARCIALMENTE COERENTE
CONJUNTO
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
247
A intervenção na Praça do Trem apresenta interferências comuns da prática
nacional que podem ser observadas por meio de apontamentos quanto à gestão
do empreendimento. Este é outro critério de análise da assertividade da
intervenção em relação ao campo disciplinar teórico. No que concerne à gestão
dos projetos para o Prédio 2, verifica‐se que a supressão de produtos que
deveriam subsidiar as consecutivas fases, a exemplo do não desenvolvimento da
Pesquisa Histórica e da etapa de Diagnóstico, implicam o uso de informações
desatualizadas e incompletas que conferem um potencial risco à qualidade da
intervenção.
Outro exemplo, nesse mesmo sentido, é a carência de interlocução precoce e
multidisciplinar entre os agentes envolvidos com a intervenção e a consequente
sensibilização quanto às definições pertinentes ao restauro, nos casos dos
segmentos de projeto relativos à Nave e ao Museu e, sobretudo, quanto ao
entorno da edificação. Acerca das obras, fica evidente a citada falta de
sensibilização quanto ao valor cultural do bem e de reconhecimento da
relevância do Projeto de Intervenção.
Cabe pontuar que o atraso identificado na execução dos serviços de restauro das
fachadas implica risco à gestão do tempo da obra que deve ser previsto no
âmbito da gestão com um plano de contingenciamento de risco, estabelecendo
novas frentes de trabalho de modo a antecipar outras tarefas, não
necessariamente suprimindo ações, principalmente as de restauro. Tal conduta
é característica da gestão que não emprega mão de obra especializada do setor
de restauração, e representa risco à qualidade da intervenção. Outro aspecto da
gestão desprestigiado na intervenção é a qualidade dos serviços executados, que
acarreta diretamente risco à qualidade da obra.
No que concerne à gestão do projeto para os Galpões, a supressão do
tratamento do entorno imediato aos bens de seu escopo, assim como foi feito
com o Prédio 2, também evidencia a carência de sensibilização e de
reconhecimento da relevância do Projeto de Intervenção, o que representa risco
à qualidade dessa intervenção. Em relação à gestão das obras dos Galpões,
ignorar definições do projeto também pode ser consequência da mesma
conjuntura.
O resultado é uma intervenção mais alinhada pelo rápido e pelo barato, e menos
pela articulação entre os pressupostos teóricos que deveriam orientá‐la. Isso
condiz com os processos decisórios fugazes e transitórios apontados como
aspectos sistemáticos da preparação da cidade do Rio de Janeiro para os
megaeventos. Tal condição é evidente nas considerações expostas e, inclusive,
lendo‐se em conta o destombamento de edificações que compunham o
conjunto da Praça do Trem, à semelhança do que ocorreu com o “Maracanã”,
citado no início do capítulo.
Por meio das análises das intervenções na Praça no Trem, ainda é possível
promover uma outra reflexão quanto ao referencial teórico disciplinar, que é a
correlação com correntes teóricas contemporâneas. Pode‐se ponderar que, no
caso do Prédio 2, o estudo preliminar é inclinado para a corrente teórica
“Conservação‐Pura”, de ênfase ao aspecto histórico documental do bem,
convergindo para os valores de antiguidade.
Já o Projeto de Intervenção para Prédio 2 denota uma orientação em
consonância com a corrente do “Restauro Crítico‐Conservativo” na qual a
matéria e a imagem são associadas, admitindo‐se superfícies de sacrifício,
reintegrações de lacunas e o novo condicionado a ser respeitoso. Além da
remoção pontual da adição, que não é a recorrente repristinação da prática
nacional, uma vez que o acréscimo demolido era espúrio. Nesse caso, embora a
imagem do bem tenha se beneficiado com a ação, o documento não é preterido
com a demolição. Por outro lado, a intervenção executada pode ser mais
alinhada com a corrente da “Manutenção‐restauração”, sobretudo por conta do
privilégio da imagem observado no Museu, que encontra similaridade com
práticas recorrentes na prática da intervenção nacional.
A intervenção projetada para os galpões é mais próxima da corrente da
“Manutenção‐restauração”, pois recorre principalmente à reprodução de
elementos não distinguíveis e à repristinação (aqui, não justificada pela
legibilidade, mas pela ambiência). Uma intervenção orientada pelo “Restauro
Crítico‐Conservativo” partiria para a distinguibilidade moderada. Desse modo, a
intervenção executada nessas edificações também não seria alinhada com o
“Restauro Crítico‐Conservativo”, pois usa a distinguibilidade como premissa,
extrapolando correlações com essa corrente. (Ver quadro 8.)
PROJETO PROJETO DE
EXECUTADO
PATRIMÔNIO INTERVENÇÃO
Restauro crítico‐ Manutenção‐
Prédio 2 Conservação‐Pura
conservativo restauração
Manutenção‐
Galpões Conservação‐Pura “Distinguibilidade”
restauração
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
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249
Logo, a análise das intervenções na Praça do Trem, no que tange às possíveis
orientações por correntes teóricas contemporâneas, corrobora a percepção que
se tem quando se analisa a intervenção em relação aos postulados e tópicos
operacionais teóricos disciplinares consagrados da prática nacional; de que a
intervenção é inconsistente e desarticulada, mesmo sob a perspectiva das
correntes teóricas contemporâneas que pudessem justificá‐las.
Para analisar a assertividade da intervenção na Praça do Trem, no que se refere
ao referencial teórico do campo disciplinar da restauração, acerca do parâmetro
“conceitual” correlato aos conceitos e entendimentos de patrimônio, de valor
patrimonial, de intervenção e de identidade cultural, são feitas reflexões a
respeito da intervenção como um todo.
No Projeto Preliminar, não se identificado o claro registro do valor patrimonial
que orienta as diretrizes/partido de intervenção. Entretanto, observar‐se que ele
é encaminhado no sentido de preservar o valor histórico do bem. Por sua vez,
no Projeto de Intervenção, explicita‐se o valor patrimonial, que é o mesmo
atribuído no decreto de tombamento: a importância do conjunto frente à
história da Estrada de Ferro na ocupação e evolução urbana dos subúrbios da
cidade do Rio de Janeiro.
Vale pontuar que não foram promovidas ações de pesquisa junto aos grupos
sociais locais, a respeito da significação conferida aos bens, ainda que o
Patrimônio Cultural Ferroviário seja consistente na memória dos subúrbios
cariocas184. Por sua vez, não causa surpresa que a tal investigação não tenha sido
feita no projeto, pois isso é corriqueiro na prática nacional. Particularmente,
tendo‐se em conta que vários produtos do Projeto de Intervenção foram
eliminados do escopo contratado.
184
Ver: RODRIGUEZ, Helio Suêvo. A formação das estradas de ferro no Rio de Janeiro: o
resgate da sua memória. Memória do Trem, 2004.
MATOS, Lucina Ferreira. Estação da memória: um estudo das entidades de preservação
ferroviária do Estado do Rio de Janeiro. Dissertação (mestrado). CPDOC: FGV, 2010.
Memória do Trem, 2004. MATOS, Lucina Ferreira. Memória ferroviária: da mobilização
social à política pública de patrimônio. 2015. 2015. Tese de Doutorado. Tese (Doutorado
em História, Política e Bens Culturais)‐Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
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250
sociais mais próximos ao patrimônio e não tomar conhecimento a respeito de
suas práticas memoriais aumenta a possibilidade da ocorrência de uma
valoração anacrônica, superficial ou mesmo técnico‐científica.
De fato, observa‐se que o valor citado no tombamento da Praça do Trem
efetivamente não estrutura a intervenção executada, considerando‐se as
diversas ações que preterem a manutenção desse momento da história da
ocupação urbana local, tanto nas edificações quanto no entorno. Desse modo,
avalia‐se que a valoração patrimonial atribuída no tombamento e na
preservação do conjunto da Praça do Trem é apropriada, de maneira superficial
e generalista. Em função disso, considera‐se que a intervenção é parcialmente
coerente em relação ao critério de análise acerca da valoração do patrimônio
arquitetônico, pois não privilegia o bem como referência para a preservação.
Outrossim, a intervenção na Praça do Trem não se baseia em uma valoração
estética, como costuma ocorrer na prática nacional em relação ao patrimônio
arquitetônico, peculiar, diversa e atrativa, de acordo com os interesses que
mobilizam a indústria cultural. Ela prima, sim, por promover uma experiência do
bem que é rápida e superficial, vinculada ao novo e à imagem fragmentada, ao
gosto do modelo empregado pela indústria cultural.
Isso fica mais visível na proposta do Museu Cidade Olímpica cujo tratamento
midiático e espetacular museográfico é destinado ao consumo cultural rápido,
neste caso, do próprio evento que é o foco da exposição fixa. Nesse espaço, a
edificação histórica é tratada como um invólucro, desligando‐a de suas
características morfológicas e do exterior, impondo um uso que prevalece sobre
a arquitetura histórica. Ao contrário do projeto para a Nave do Conhecimento,
cujo uso é mais adequado à edificação histórica, pois apresenta uma proposta
menos midiática, que não pretere a leitura espacial e formal do interior do bem
e sua relação com o entorno.
Esse duplo uso de equipamento cultural (de museu multimídia e de espaço para
“democratização do acesso à internet”) tem considerável visibilidade, bem ao
gosto do “marketing cultural”, e promove uma percepção dualista do objeto. No
museu e no entorno imediato das edificações históricas, a lógica do espetáculo
da indústria do entretenimento é um claro instrumento do evento que se impõe
ao espaço social. Por outro lado, a Nave do Conhecimento e a apropriação que
os grupos sociais locais fazem deste espaço e dos galpões conformam vínculos
com os edifícios históricos. Eles são parte de novos processos de significação que
conferem um novo sentido à preexistência, ressignificando a arquitetura
histórica. Ademais, esses processos ainda terão consequências na valoração
atribuída a esses bens pós‐intervenção.
Por certo, a narrativa que constrói o evento ou os megaeventos é parte do
processo de intervenção na Praça do Trem. Pode‐se ponderar que, de modo
geral, a população carioca se deu conta da existência desses bens, por ocasião
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
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de sua súbita inserção no cotidiano pela mídia dos megaeventos. Essa parte do
processo, porém, não conforma a preservação do conjunto como um todo, uma
vez que ele já era uma referência para a preservação e por isto foi tombado
(embora prédios tenham sido destombados, já por força dos megaeventos).
Não obstante, deve‐se reconhecer que o vigor do evento impacta as definições
da intervenção discutida e nas futuras. Na Praça do Trem, o valor do evento no
espaço se faz no contexto do turismo cultural para o Brasil, para o Rio e
especialmente para a localidade. As ações de revitalização urbana, em um bairro
que era carente de infraestrutura, trouxeram benefícios a esses grupos sociais,
assim como possíveis custos sociais decorrentes do enobrecimento da região
(provavelmente anteriores ao restauro dos bens, já com a construção do
estádio). Por conseguinte, o valor do evento no tempo é basicamente sazonal
para os grupos sociais que consomem o patrimônio cultural, o oposto do que é
para a população local, que pratica socialmente esses bens.
Sendo assim, a intervenção é parcialmente coerente em relação ao critério de
análise acerca da compreensão contemporânea do patrimônio arquitetônico, já
que a limitação para a ressignificação é a minimização ou a desconsideração dos
significados memoriais locais da preexistência. Tal construção é parte do
entendimento de patrimônio como referência histórica para preservação.
Outro critério de análise da intervenção se refere aos processos de identificação.
Na Praça do Trem, a valoração da novidade e a proposta homogeneizada do
Museu promovem identidades culturais globais/interculturais, características
das práticas da indústria cultural que se impõem com os megaeventos. Há ainda
outro tipo de identidade cultural que se estabelece nessa conjuntura, a
identidade cultural oficial, ratificada no próprio uso do Museu Cidade Olímpica,
que agencia um registro da história sociopolítico que perdura com o turismo
cultural pós‐evento.
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relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
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Vale ressaltar que a identidade cultural local que já existia vinculada ao bem,
mesmo na ausência da participação dos grupos sociais locais no processo de
intervenção, não se extingue completamente com processos de hibridação
cultural, que não são nem uniformes nem lineares. Todavia, podem afetar a
identidade cultural local se esta não representa um processo sólido de prática
social e se não há condições estruturais sociopolíticas de negociação da
“diferença”, de modo a assegurar a diversidade cultural.
Pode‐se ponderar que, no caso da Praça do Trem, o arruinamento dificultava
práticas diretas e ativas dos grupos sociais locais, mas a preservação dos bens
incrementou amplamente as práticas sociais e políticas. Isso se deve, em parte,
a um processo peculiar, que está menos associado à identificação com o
patrimônio em si e mais vinculado ao reconhecimento de grupos sociais locais
(carentes e ávidos por representação cultural) e à identificação com um
equipamento cultural (que permite a ocupação e autoexpressão).
A preservação do conjunto, o contínuo uso da
Nave do Conhecimento e a intensa ocupação
F IGURA 96 – S HOW NA P RAÇA DO T REM .
desse lugar – praça/galpões – propiciam uma
identificação que vai além da comumente
atrelada aos megaeventos. Ela possibilita,
sobretudo aos grupos sociais locais, a prática
sociopolítica ativa da identidade cultural
local/regional. Esse é um exemplo do
desenvolvimento social que a preservação do
patrimônio cultural tem o potencial de
promover. (Ver figuras 96‐97.)
podem ressignificar o patrimônio e são reflexo da atual maneira de ver o passado
e atuar em sua preservação, “presentificando‐o”; desde que o discurso que
prevaleça seja o da preexistência.
Contudo, na intervenção na Praça do Trem, o discurso da preexistência é um
“pano de fundo” para os megaeventos. A precedência e relevância do histórico
é subvertida pelo discurso do novo projeto, que nesse caso não é uma proposta
enfática, nem tão pouco criativa e harmoniosa, é “dissimulada”. Desse modo, a
intervenção não promove preponderantemente o discurso da preexistência, que
legitima sua condição de referência histórica e identitária para preservação. Em
face disso, entende‐se que é incoerente, sob tal critério de análise.
Com base nisso, considera‐se que a intervenção executada na Praça do Trem é
parcialmente coerente em relação ao referencial teórico disciplinar da
restauração, no que tange aos conceitos e entendimentos contemporâneos que
são essenciais para esse processo. (Ver quadro 9.)
COERÊNCIA DA INTERVENÇÃO NO
CONCEITOS E ENTENDIMENTOS
CONJUNTO
VALOR PATRIMONIAL Parcialmente coerente
PATRIMÔNIO / SIGNIFICAÇÃO Parcialmente coerente
IDENTIDADE CULTURAL Coerente
DISCURSO DA INTERVENÇÃO Incoerente
INTERVENÇÃO PARCIALMENTE COERENTE
Além disso, como já se pode constatar, a intervenção também é parcialmente
coerente em relação ao referencial teórico disciplinar da restauração, no que
tange aos princípios orientadores comuns à prática nacional. Portanto, a
intervenção praticada na Praça do Trem é, de modo geral, parcialmente
coerente em relação ao referencial teórico disciplinar da restauração. De modo
que não emprega o rigor teórico necessário ao patrimônio cultural,
independentemente do porte e importância do bem. Logo, coloca em risco sua
condição como referência histórica e identitária para preservação.
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relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
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Ambas as iniciativas tiveram ampla cobertura midiática e ações de marketing.
Foram mobilizadas por meio de um discurso de desenvolvimento econômico e
social viabilizado, principalmente, pela revitalização urbana e incremento da
mobilidade, abrangendo também o patrimônio cultural construído nesse
processo. Bens de diversos tipos sofreram intervenções, principalmente os
equipamentos culturais, assim como os equipamentos esportivos. Tais ações
implicaram grandes contingentes de capital, gentrificação, ingerências
temporárias de poder de decisão, entre outros.
Tratando‐se dos estudos de caso, pode‐se afirmar que a diferença essencial
entre os dois equipamentos culturais é a variação de complexidade entre as
iniciativas. O MAR é um empreendimento de grande visibilidade que se efetiva
por meio de uma parceria público‐privada, sendo também influenciado pelos
interesses coorporativos. Já a Praça do Trem é um equipamento de menor
visibilidade, mobilizado por interesses políticos e estratégicos. Aquele, orientado
pela centralidade conferida à Praça Mauá, “construindo” parte do espetáculo.
Este, orientado pela centralidade do equipamento esportivo.
A despeito disso, os dois equipamentos culturais são voltados para o turismo
patrimonial e apresentam a mesma abordagem: a associação de propostas de
cunho pedagógico e museográfico. A Praça do Trem, projeto museográfico
especifico acerca da memória dos jogos olímpicos; e o MAR, outro projeto
museográfico ainda diletante no início da iniciativa. Ambos os bens sob a mesma
esfera de proteção – municipal.
Outra condição semelhante entre as duas ações, peculiar ao contexto de
influência da indústria cultural e dos megaeventos, é uma certa
“desconsideração” da proteção atribuída a esses patrimônios. No caso do MAR,
a preservação de um dos bens (o Terminal) é minimizada; na Praça do Trem,
parte do conjunto originalmente tombado é parcialmente destombado. Nesse
mesmo sentido, outra similaridade é a carência de reconhecimento do diálogo
da preexistência com seu território. Essa dissociação dos bens com seu lugar
existe, apesar de serem iniciativas cujo contexto possibilitaria maior articulação
entre os projetos, inclusive no âmbito do urbanismo.
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relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
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Quanto ao parâmetro “postural” de análise da assertividade dos estudos de
caso, em relação ao referencial teórico do campo disciplinar da restauração, são
verificadas ações semelhantes, orientadas, em alguns momentos, pelo
reconhecimento do bem como documento e conferindo a marca de seu tempo,
além de baseadas no tópico operacional da distinguibilidade. Contudo, um
resultado que se constata nessa análise é que as intervenções, de modo geral,
não são coesas, inexistindo uma orientação teórica comum em cada uma delas.
Essas diretrizes deveriam ser claramente citadas nos documentos e identificáveis
na intervenção. De fato, ambas as intervenções são avaliadas como parcialmente
coerentes em relação a esse aspecto de análise. (Ver quadros 4 e 7.)
No que tange ao parâmetro “conceitual”, também se observam semelhanças.
Ambas as iniciativas adotam um entendimento parcialmente coerente quanto à
valoração e à significação contemporânea do patrimônio arquitetônico. São,
porém, incoerentes por promoverem um discurso que não é primordialmente o
da preexistência. Com efeito, as duas intervenções também são entendidas
como parcialmente coerentes sob esse parâmetro de análise. Todavia, não são
verificados conceitos em comum que tenham sido tomados como coerentes nas
intervenções. (Ver quadros 6 e 9.)
Por outro lado, a principal diferença em relação às intervenções se dá quanto às
identidades culturais. Na Praça do Trem, a população ressignifica o conjunto,
ainda que o Museu Cidade Olímpica previamente não pareça fazer parte desse
processo. Na Nave do Conhecimento e nos galpões (que efetivamente são uma
praça coberta), observam‐se práticas sociais de familiaridade, de proximidade e
de conexão dos grupos sociais locais com os bens.
Pode‐se assim ponderar que a intervenção preserva uma parte importante dos
significados conferidos por esses grupos, vinculados às suas memórias. Além
disso, mesmo que se reconheça a perda de parte da historicidade das edificações
e principalmente do conjunto, ela ainda mantém significados memoriais do
processo de ocupação desse território e da arquitetura industrial.
Por outro lado, ainda que a arquitetura remanescente do complexo talvez não
represente diretamente grupos sociais normalmente “excluídos” na
preservação, ela é associada às memórias das massas de operários da indústria
férrea. Trata‐se de uma arquitetura histórica ressignificada por grupos sociais
que são estruturalmente desfavorecidos. Apropriada com a identificação e a
construção de identidades culturais das memórias de novas gerações, em uma
nova camada da história acrescida com a intervenção, que passa a sustentar
significados locais.
urbana popular que existia associado ao cotidiano de grupos sociais
locais/regionais. Tal configuração dificulta a sustentabilidade de significados
anteriores à intervenção. Mesmo os novos significados advindos da intervenção
no conjunto estão ameaçados hoje, pois o MAR resiste em meio à constante
possibilidade de fechamento, em função da carência de repasse de verbas da
Prefeitura. Tal como já mencionado, a manutenção de equipamentos culturais
dessa escala costuma ser deveras custosa.
No MAR, a mídia “constrói” grande parte da arquitetura. O vigor do evento se
impõe de forma incisiva na tomada de decisão para a intervenção. Na Praça do
Trem, isso é menos evidente. Contudo, reconhece‐se que ambas as intervenções
são formatadas como lugares de memória instituídos por meio de um discurso
de identificação e conformação de identidade cultural nacional, porquanto
decorrem de iniciativas pertinentes a megaeventos característicos dessas
dinâmicas, como são as Olimpíadas. Todavia, a perenidade do “evento” no MAR
é maior do que na Praça do Trem, pois aquele se afirma bem mais como um
objeto de identidade intercultural do que este.
Outro resultado que se constata dessas análises é que uma intervenção no
patrimônio arquitetônico considerada parcialmente coerente em relação aos
postulados e princípios orientadores teóricos da restauração, comuns à prática
nacional, também é parcialmente coerente em relação aos conceitos e
entendimento essenciais à prática. Embora isso pareça óbvio, uma vez que
ambos os parâmetros integram um mesmo referencial teórico, uma
consideração que se faz a partir daí é que uma decisão equivocada não é isolada.
Falhas no embasamento teórico têm repercussões em toda a cadeia decisória. A
intervenção coerente se justifica de modo assertivo e profundo e, sobretudo,
coeso no referencial teórico do campo disciplinar da restauração.
Conforme se enunciou antes, uma decisão pode ser coerente em relação a um
aspecto e incoerente em relação a outro. Todavia, isso ainda resultará em uma
intervenção inapropriada, porque fragiliza o patrimônio a ser resguardado para
o futuro na condição de referência para preservação, que é o que caracteriza o
patrimônio cultural. Assim, mesmo uma intervenção parcialmente coerente tem
o potencial de comprometer o bem que se deixa para o futuro, sua significação
e também sua matéria original, dotada de toda sorte de informações que ainda
serão observadas e interpretadas.
Em última instância, as duas intervenções analisadas são consideradas como
parcialmente coerentes em relação ao referencial teórico do campo disciplinar,
de acordo com os parâmetros de observação pré‐estabelecidos. Em função
disso, ambas colocam os bens em risco como referência histórica e identitária
para a preservação cultural.
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relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
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As causas dessas interferências podem envolver pressões de ordem política,
sobretudo no contexto das esferas de decisão provisórias instaladas com os
megaeventos, que se relacionam com as demandas da indústria cultural por
autonomia e minimização das exigências e limitações. Entre as consequências
desse processo está a prevalência do novo para o impacto e consumo, com a
inviabilização ou desestímulo às práticas sociais anteriores do patrimônio.
Com base nos estudos de caso realizados, pode‐se considerar que a prática da
intervenção no patrimônio arquitetônico, nos megaeventos do Rio de Janeiro,
favorece a ocorrência de outros objetivos e impõe os interesses da indústria
cultural, que são associados ao valor de novidade, ameaçando potencialmente
o bem como referência para preservação.
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relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Boaventura de Souza Santos (2001), quando se propõe a “pensar o pensar”,
afirma que esta é uma premente e atual questão, pois o momento que vivemos
é de perturbadora turbulência, de criação e de destruição concomitantes. Não
absolutamente um fim que justifique um começo, mas uma transição que é
parte do processo de transformação. Desse modo, se a globalização, que
caracteriza parte dessa contemporaneidade, não é padronização global, ela
pode ser um caminho para alcançar a diversidade nessa mudança.
Para o catedrático da Universidade de Coimbra, o ato de pensar não significa
destruir conhecimentos precedentes; ele requer tolerância para enxergar‐se a
diversidade. Por sua vez, para tolerar é essencial se sensibilizar. Contudo, vale
salientar que tolerância não é conformismo. O discernimento demanda ser ação
consciente e “maliciosa”. Pensar objetivamente, mas sem neutralidade, para
permitir a surpresa – o novo –, para ser diferente. O pensamento precisa ser
gestado hoje, para nascer o amanhã pré‐maturo.
Santos (2001) assegura que no processo do pensar é fundamental se perguntar.
A despeito disso, perguntas simples não necessariamente encerram respostas
simples. Nesta pesquisa, a questão postulada é que a prática contemporânea de
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relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
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intervenção no patrimônio arquitetônico no Brasil, condicionada pela indústria
cultural, é justificada por um discurso que fomenta e reitera o distanciamento
em relação à teoria do campo disciplinar da restauração, comprometendo o bem
como referência histórica e identitária para preservação.
No intuito de responder tal questão, levam‐se em conta as considerações
parciais construídas paulatinamente e registradas no final de cada capítulo,
retomando‐se ainda os estudos de caso. Com base neles, verifica‐se que as
intervenções parcialmente coerentes, ou seja, consideravelmente distantes do
referencial teórico do campo disciplinar da restauração que deveria orientá‐las,
implicam desde “danos” diretamente infligidos à matéria do bem, a repetição de
práticas empíricas e/ou omissas que subvertem a prevalência da preexistência,
até impactos nos processos de identificação com o patrimônio. Isso se traduz em
prejuízos ao patrimônio na sua qualidade de referência histórica e identitária
para a preservação.
As incoerências teóricas apuradas, na prática nacional da intervenção no
patrimônio arquitetônico, em relação aos postulados recorrentes e aos
conceitos e entendimentos contemporâneos essenciais desse campo disciplinar
são, sobretudo, a superficialidade e a carência de coesão. Essas incoerências
teóricas resultam de interferências no processo de definição da intervenção, tais
como: a “desvalorização” e a descontextualizacão do Projeto de Intervenção,
que, por sua vez, envolvem a insuficiência de sensibilização quanto ao valor do
patrimônio e de capacidade para criar na preexistência, preservando‐a na
qualidade de referência histórica e identitária. As causas dessas interferências
envolvem pressões de ordem política associadas frequentemente às demandas
da indústria cultural, por autonomia e minimização das exigências e limitações,
mas, também incluem a deficiência de capacitação técnica profissional.
Com efeito, a insuficiência de preparo na prática nacional para criar de forma
eloquente na preexistência não é forçosamente uma estratégia de produção da
indústria cultural. Contudo, a carência de sensibilização quanto ao valor do
patrimônio pode sê‐lo, assim como a própria desvalorização do Projeto de
Intervenção, visto que se pretende um discurso hegemônico e homogeneizado
para o consumo industrializado da cultura. Por outro lado, o arranjo desse
discurso promove uma percepção equivocada de que as incoerências
decorrentes dessas interferências são teoricamente justificáveis. Assim, tem‐se
a ideia de que essa seria, na contemporaneidade, a maneira teoricamente
coerente de criar na preexistência.
A intervenção no patrimônio arquitetônico justificada de forma coerente e coesa
no referencial do campo disciplinar da restauração é sensível ao que o
patrimônio expressa e também é pautada no valor patrimonial, atribuído no
momento (tempo) e ao local (espaço), observando as significações material,
imaterial e em relação ao território, contando, inclusive, com a participação dos
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relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
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grupos sociais locais para isto. Logo, a intervenção legitima a preservação do
bem do ponto de vista teórico disciplinar, à medida que sustenta as significações
estabelecidas por esses grupos, que são práticas sociais dos lugares de memória.
Além disso, a prática social é igualmente um discurso político “de” e “por”
representatividade, de modo que reiterá‐la com a intervenção também a valida
do ponto de vista político. Por certo, consolidar e promover processos que
envolvam identificação e identidades culturais locais/regionais legitima a
intervenção politicamente e respeita a diversidade cultural, mesmo que também
se favoreçam identidades culturais globais e/ou interculturais.
No entanto, a apuração dos significados da preexistência como rotina da prática
da intervenção na realidade nacional, incluindo a participação da população
local, é um desafio ainda por vencer, sobretudo na iniciativa privada. A
investigação da significação do bem para valoração costuma ser dificultada pela
carência de investimentos e tempo, assim como de sensibilização quanto à
relevância desse processo. Essa condição contribui para que o discurso
promovido com a intervenção não seja o da preexistência e que o discurso
agenciado pela indústria cultural seja assimilado como teoricamente coerente,
ainda que preservação exija a salvaguarda do bem como referência histórica e
identitária.
Outrossim, sob essa dinâmica, a valoração patrimonial também pode vir a ser
tecnicista, à medida que a “excepcional” apreciação das características materiais
do patrimônio arquitetônico encontra consonância nesses processos de
experimentação. Tal condição pode, inclusive, desestimular ou inviabilizar
práticas sociais anteriores, tornando‐as anacrônicas. Essa é uma incoerência que
se justifica em um suposto rigor historiográfico, mas relaciona‐se a condições
estruturais da prática, como a carência de capacitação do profissional (em face
de formação inadequada ou insuficiente, que implica a superficialidade do
conhecimento acerca do referencial teórico de restauração, a respeito da
história da arquitetura e do bem).
Nesse contexto, a principal prerrogativa da intervenção é o valor de novidade,
viabilizado pelo novo como um pastiche da diversidade. Uma narrativa
construída para uma experiência superficial, que utiliza imagens e signos para o
instantâneo e constante impacto. Nesse caso, a intervenção pode ser pobre de
rigor teórico, à medida que se tenciona à preservação do bem na qualidade de
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referência histórica e identitária e, de fato, se favorece um discurso que não é
preponderantemente o da preexistência.
Entende‐se aqui que, para qualquer que seja o patrimônio arquitetônico, sua
preservação requer, além da ética, o rigor teórico. Este vai estabelecer o
pertinente tratamento a ser conferido a cada bem, considerando a sua
significação, de modo a interpretá‐lo, entre várias outras características e
condições. Logo, ainda que sentenças como reabilitação ou revitalização sejam
empregadas como justificativa para se eximir desse mesmo rigor, isso é
incoerente, ao passo que a intervenção se destina a preservação do bem como
referência memorial, de prática social e de identidade cultural.
De fato, o papel do arquiteto na preservação é um exercício criativo complexo,
pois se intervém no preexistente, não no vazio. Intervir é diferente de “criar uma
arquitetura nova” ou o discurso de uma. Esse processo de criação de espetáculo,
fundamentado na imagem fragmentada do “tempo contínuo,” transformada em
realidade de assimilação rápida e superficial, parece um exercício de liberdade
de escolha, porém é mais próximo de um condicionamento, porque é um
discurso midiático pré‐ditado.
No exercício da intervenção no patrimônio arquitetônico em âmbito nacional, a
distinguibilidade tem sido invocada como justificativa teórica para o novo, criado
mais como marca do arquiteto para o impacto (e menos como sua identidade
autoral). Ademais, a distinguibilidade é um tópico operacional da teoria da
restauração de assimilação mais imediata, por isso ganha notoriedade em
abordagens superficiais, tornando‐se uma figura retórica correlacionada ao
novo. Todavia, o cerne do problema é seu emprego para amparar um discurso
que minimiza a preexistência.
A inserção do novo para o impacto na intervenção não a faz ser bem‐sucedida,
quando o objetivo é a preservação do bem como referência histórica e
identitária. Nos casos em que esse discurso se sobrepõe ao da preexistência, a
intervenção distancia‐se da teoria. Pois, ela afasta‐se das significações e das
identidades culturais locais e aproxima‐se das identidades culturais globais e/ou
interculturais. Assim, imprime ao bem características menos diversas, já que seu
repertório tende a ser reduzido e homogeneizado.
Em verdade, tem‐se em conta que atualmente são possíveis diversas
interpretações do patrimônio arquitetônico. Um bem atrelado às identidades
culturais interculturais também constrói relações. Essa é uma característica da
contemporaneidade, a presentificação do passado na qual o patrimônio possui
significações multidimensionais e dinâmicas, que permitem novas
experimentações. No entanto, construí‐las em detrimento das outras
preexistentes, conformando um patrimônio mais global do que local, com
identidades culturais interculturais alheias ao espaço e às relações socioculturais
locais, é equivocado. Quando isso ocorre, não se ressignifica a arquitetura de
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valor histórico, porque o novo, que deveria ser harmonioso, se sobrepõe,
estabelecendo uma nova imagem a seu serviço.
Vale salientar que a indústria cultura também gera desenvolvimento econômico
e social. Por certo, o ponto nevrálgico da preservação nesse contexto é a função
estratégica do patrimônio cultural como potencial promotor de
desenvolvimento, sem se dissociar de sua função primária, que é a proteção de
memórias e significados. Porém, ao utilizar processos industriais seriados,
buscando a diversidade e empregando instrumentos hegemônicos, a indústria
cultural promove a homogeneização. Ela não é global e absoluta, porque a
assimilação cultural é fragmentada, mas existe. De modo que, para fazer frente
à homogeneização – para ser diferente –, é preciso que haja escolha. Por sua
vez, para que se tenha opção é necessário que haja igualdade de condições
econômicas, políticas e sociais. Portanto, antes de ser diferente, é essencial ser
igual.
Conclui‐se, então corroborando a hipótese estabelecida na tese, que a prática
contemporânea de intervenção no patrimônio arquitetônico no Brasil,
condicionada pela indústria cultural, justifica‐se por um discurso que fomenta e
reitera o distanciamento entre o campo disciplinar teórico e a prática,
comprometendo o patrimônio como referência histórica e identitária para a
preservação. Isso ocorre porque o discurso da preexistência é subjugado,
tornando‐se “pano de fundo” para o uso, para o novo e para a imagem de
impacto, visando ao consumo rápido e superficial do patrimônio cultural.
A análise de intervenções no patrimônio arquitetônico protegidos por
diferentes níveis de proteção.
A triangulação dessas análises com outro método de levantamento de
dados, como entrevistas com agentes envolvidos no processo de
projeto e obra de restauração.
Retomando a provocação de Boaventura de Souza Santos, na abertura destas
considerações, por que pensar? Porque podemos. Porque podemos pensar
diferente. Porque esse é um meio de assegurar nosso direito de escolher e,
talvez até, porque podemos fazer diferença!
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<https://www.icomos.org/charters/structures_sp.pdf>. Acesso em: fev/2020.
Principios para la conservación del patrimonio construido em madera. In:
ASAMBLEA GENERAL DE ICOMOS, 19., 2017, Nueva Delhi. Anais... Nueva Delhi:
2017. Disponível em: <https://bityli.com/DAjRN>. Acesso em: fev/2020.
Recomendação de Nairobi. CONFERENCIA GERAL DA ORGANIZAÇÃO DAS
NAÇÕES UNIDAS PARA EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA (UNESCO), 19.,
1976, Nairobi. Anais... Nairóbi: 1976.
ITÁLIA, M. de I. P. Carta del Restauro 1972. [S.l: s.n.].
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
274
Itinerarios culturales. In: ASAMBLEA GENERAL DEL ICOMOS, 16., 2008, Québec.
Anais... Québec: 2008. Disponível em:
<https://www.icomos.org/charters/culturalroutes_sp.pdf>. Acesso em:
fev/2020.
RIO DE JANEIRO (MUNICÍPIO). Decreto n° 14.741, de 22 de abril de 1996.
Tomba definitivamente o bem que menciona e dá outras providências. Lex:
1996.
______. Decreto no 19002 de 5 de outubro de 2000. Tomba os bens que
menciona na áreas potuária, I AR. Lex: 2000.
______. Decreto no 24.420, de 21 de julho de 2004. Cria a área de proteção do
ambiente cultural do entorno do mosteiro de São Bento, no Centro, I R. A. e dá
outras providências. Lex: 2004 a.
______. Decreto no 24.029, de 16 de março de 2004. Estabelece critérios de
proteção e conservação para os imóveis tombados localizados na quadra
determinada pelas Ruas Arquias Cordeiro, das Oficinas, José dos Reis e Dr.
Padilha, Antigas Oficinas do Engenho de Dentro. Lex: 2004 b.
The Declaration of San Antonio. In: INTERAMERICAN SYMPOSIUM ON
AUTENTICITY IN THE CONSERVATION AND MANAGEMENT OF THE CULTURAL
HERITAGETO (ICOMOS National Committees of the Americas), 1996, San
Antonio. Anais... San Antonio: 1996. Disponível em: <https://bityli.com/cErJq>.
Acesso em: fev/2020.
The Florence Declaration on Heritage and Landscape as Human Values. In:
GENERAL ASSEMBLY OF THE INTERNATIONAL COUNCIL ON MONUMENTS AND
SITES (ICOMOS), 18., 2014, Florence. Anais... Florence: 2014. Disponível em: <
https://bityli.com/LRD8C>. Acesso em: fev/2020.
The Nara document on authenticity. In: CONFERENCE ON AUTHENTICITY IN
RELATION TO THE WORLD HERITAGE CONVENTION (UNESCO, ICCROM e
ICOMOS), 1994, Nara. Anais... Nara: 1994. Disponível em:
<https://www.icomos.org/charters/nara‐e.pdf>. Acesso em: fev/2020.
The Paris declaration on heritage as a driver of development. In: GENERAL
ASSEMBLY OF THE INTERNATIONAL COUNCIL ON MONUMENTS AND SITES
(ICOMOS), 17., 2011, Paris. Anais... Paris: 2011. Disponível em:
<https://www.icomos.org/Paris2011/GA2011_Declaration_de_Paris_EN_20120
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UNESCO. Declaração universal sobre a diversidade cultural, 2002. Disponível
em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0012/001271/127160por.pdf>.
Acesso em: fev/2020.
______. Operational Guidelines for the Implementation of the World Heritage
ConventionFrance, 2008.
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
CSEPCSÉNYI, ANA.
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APÊNDICES
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
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CIDADE /
TÍTULO TEMA ANO
PAÍS
1 CARTA INTERNACIONAL SOBRE A Patrimônio arquitetônico Veneza /
CONSERVAÇÃO E RESTAURAÇÃO DE e sítios 1964 Itália
MONUMENTOS E SÍTIOS
2 Florença /
JARDINS HISTÓRICOS Jardins históricos 1982 Itália
3 CARTA INTERNACIONAL PARA A Washington
CONSERVAÇÃO DE CIDADES HISTÓRICAS E Patrimônio urbano 1987 / EUA
ÁREAS URBANAS HISTÓRICAS
4 CARTA INTERNACIONAL PARA A GESTÃO DO Lausana /
PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO Patrimônio arqueológico 1990 Suíça
5 CARTA INTERNACIONAL SOBRE A PROTEÇÃO Sofia /
E GESTÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL Patrimônio subaquático 1996 Bulgária
SUBAQUÁTICO
6 CARTA INTERNACIONAL DO TURISMO
CULTURAL Turismo cultural 1999 México
7 PRINCÍPIOS QUE DEVEM REGER A Patrimônio arquitetônico
PRESERVAÇÃO DAS ESTRUTURAS HISTÓRICAS – madeira 1999 México
EM MADEIRA
8 CARTA SOBRE O PATRIMÔNIO VERNACULAR
CONSTRUÍDO Patrimônio vernacular 1999 México
9 PRINCÍPIOS PARA A ANÁLISE, CONSERVAÇÃO Patrimônio arquitetônico Victoria Falls
E RESTAURAÇÃO DE ESTRUTURAS DO – estrutura 2003 /
PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO Zimbabwe
10 PRINCÍPIOS DO ICOMOS PARA A
CONSERVAÇÃO E CONSERVAÇÃO DE Pinturas Murais 2003
PINTURAS MURAIS
11 Québec /
CARTA DE ITINERÁRIOS CULTURAIS Itinerários culturais 2008 Canada
12 CARTA DO ICOMOS SOBRE INTERPRETAÇÃO E Interpretação do Québec /
APRESENTAÇÃO DE SÍTIOS DE PATRIMÔNIO patrimônio cultural 2008 Canada
CULTURAL
13 PRINCÍPIOS DO TICCIH‐ICOMOS PARA A
CONSERVAÇÃO DE SÍTIOS, ESTRUTURAS, Patrimônio industrial 2011 Dublin /
ÁREAS E PAISAGENS DE PATRIMÔNIO Irlanda
INDUSTRIAL
14 OS PRINCÍPIOS DE VALLETA PARA A Paris /
SALVAGUARDA E GESTÃO DE CIDADES E Patrimônio urbano 2011 França
CONJUNTOS URBANOS HISTÓRICOS
15 PRINCÍPIOS DO ICOMOS‐IFLA SOBRE
PAISAGENS RURAIS COMO PATRIMÔNIO Patrimônio rural 2017
16 DOCUMENTO SOBRE PARQUES PÚBLICOS Parques urbanos Nova Déli /
URBANOS HISTÓRICOS históricos 2017 Índia
17 DIRETRIZES SALALAH PARA GESTÃO DE SÍTIOS Salalah /
ARQUEOLÓGICOS PÚBLICOS Patrimônio arqueológico 2017 Omã
18 PRINCÍPIOS PARA A CONSERVAÇÃO DO Patrimônio arquitetônico Nova Déli /
PATRIMÔNIO CONSTRUÍDO EM MADEIRA – madeira 2017 Índia
Fonte: Baseado em: https://www.icomos.org/images/DOCUMENTS/Charters/
A INTERVENÇÃO CONTEMPORÂNEA NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO NACIONAL:
relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
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CIDADE /
TÍTULO TEMA ANO
PAÍS
1 RESOLUÇÕES DO SIMPÓSIO SOBRE A
INTRODUÇÃO DA ARQUITETURA Patrimônio cultual 1972 Itália
CONTEMPORÂNEA EM ANTIGOS GRUPOS DE
EDIFÍCIOS
2 RESOLUÇÕES DO SIMPÓSIO INTERNACIONAL
SOBRE A CONSERVAÇÃO DAS CIDADES Patrimônio urbano 1975
HISTÓRICAS MENORES
3 DECLARAÇÃO DE TLAXCALA SOBRE A Tlaxcala /
REVITALIZAÇÃO DE PEQUENOS Patrimônio urbano 1982 México
ASSENTAMENTOS
4 DECLARAÇÃO DE DRESDEN SOBRE A Dresden /
"RECONSTRUÇÃO DE MONUMENTOS Patrimônio arquitetônico 1982 Alemanha
DESTRUÍDOS PELA GUERRA"
5
DECLARAÇÃO DE ROMA Teoria e prática na Itália 1983 Roma / Itália
6 DIRETRIZES PARA EDUCAÇÃO E FORMAÇÃO Colombo /
EM CONSERVAÇÃO DE MONUMENTOS, Formação 1993 Sri Lanka
CONJUNTOS E SÍTIOS
7 DOCUMENTO DE NARA SOBRE
AUTENTICIDADE Autenticidade 1994 Nara / Japão
8 Autenticidade na América San Antonio
DECLARAÇÃO DE SAN ANTONIO Latina 1996 / EUA
9 PRINCÍPIOS PARA REGISTRO DE Sofia /
MONUMENTOS, GRUPOS DE EDIFÍCIOS E Registro do patrimônio 1996 Bulgária
SÍTIOS
10 Estocolmo /
DECLARAÇÃO DE ESTOCOLMO Direitos Humanos 1998 Suécia
11 DECLARAÇÃO DE XI'AN SOBRE A
CONSERVAÇÃO DO ENTORNO EDIFICADO, Entorno 2005 Xi'an / China
SÍTIOS E ÁREAS DO PATRIMÔNIO CULTURAL
12 DECLARAÇÃO DE QUÉBEC SOBRE A Québec /
PRESERVAÇÃO DO ESPÍRITO DO LUGAR Espírito do lugar 2008 Canada
13 DECLARAÇÃO DE LIMA SOBRE GESTÃO DO
RISCO DE DESASTRES DO PATRIMÔNIO Risco 2010 Lima / Peru
CULTURAL
14 DECLARAÇÃO DE PARIS SOBRE O Paris /
PATRIMÔNIO COMO IMPULSIONADOR DE Desenvolvimento 2011 França
DESENVOLVIMENTO
15 DECLARAÇÃO DE FLORENÇA Florença /
SOBRE PATRIMÔNIO E PAISAGEM COMO Participação popular 2014 Itália
VALORES HUMANOS
16 DECLARAÇÃO DE DELHI SOBRE PATRIMÔNIO Nova Déli /
E DEMOCRACIA Democracia 2017 Índia
Fonte: baseado em: https://www.icomos.org/images/DOCUMENTS/Charters/
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ANEXOS
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relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
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relações entre a teoria, a prática e a indústria cultural
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4
4
1
5
1
1
5
1
1
5
1
4 – SANITÁRIOS FUNCIONÁRIOS
5 – MUSEU CIDADE OLÍMPICA
1 – NAVE DO CONHECIMENTO
4
3 – SANITÁRIOS PÚBLICO
2 – SEGURANÇA
3
2
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FACHADA FRONTAL E POSTERIOR DO GALPÃO 3
FACHADA FRONTAL E POSTERIOR DO GALPÃO 4