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ÓRFÃOS DO ELDORADO: CONFLUÊNCIAS IDENTITÁRIAS E


CULTURAIS NA NARRATIVA DE MILTON HATOUM
Maria Alexandrina Félix de Andrade Silva1
RESUMO:
O presente artigo objetiva estudar a obra Órfãos do Eldorado, de Milton Hatoum,
considerando, nessa singular narrativa, o espaço amazônico enquanto lugar de
produção de sentidos diversificados. A partir da metaforização dos vocábulos
“órfãos” e “eldorado”, Hatoum sutilmente vai desvelando as confluências
identitárias e culturais entre aqueles que residem na Amazônia, seja os nativos
com seus “sistemas simbólicos próprios” ou os homens que aqui chegaram
sequiosos de riqueza e poder. Discute-se aqui o espaço e o tempo enquanto
elementos essenciais para a compreensão das marcas identitárias estabelecidas
através da evolução histórica e literária dos povos nativos e sua nem sempre
aceitação do convívio pacífico com o explorador. Pretende-se ainda investigar
também alguns aspectos culturais principalmente ligados a família, hierarquia e
a posse e perda de bens materiais e morais. Por intermédio de vozes “lacunares”
a intenção é articular diferentes discursos entrecruzados, que se negam a se
legitimam no “edifício familiar”, também metafórico, enquanto reminiscência de
um passado silenciado e abruptamente despedaçado pela modernidade.
PALAVRAS-CHAVE:
Espaço Amazônico. Cultura. Identidade. Discursos. Sentidos Diversificados.

ELDORADO ORPHANS: CULTURAL AND IDENTITY CONFLUENCES


ON MILTON HATOUM’S NARRATIVE
ABSTRACT:
This article aims to study the work Eldorado Orphans by Miltom Hatoum,
taking into account, in this unique narrative, the amazonian space as a place
of production of diversified senses. From the metaphorization of the words
“orphans” and “eldorado”, Hatoum subtly discloses cultural and identity
confluences among those who live in the Amazon, whether the natives with their
own symbolical systems or other men who came up later thirsting for wealth
and power. The discussion here is about space and time as essential elements for
the comprehension of identity marks established through out the historical and
literary evolution of the native peoples and their conflicts and acceptance of a
1 Mestra em Letras: Linguagem e Identidade – PPGLI/UFAC, 2016 e Professora dessa
mesma Instituição Federal de Ensino, em convênio com o governo do Estado do Acre,
atuando no campus da UFAC na cidade de Cruzeiro do Sul.
N. E.: Este artigo, publicado in memoriam da Professora professora Alexandrina Félix
(falecida em fevereiro deste ano), é parte das reflexões que a mesma desenvolveu em sua
Dissertação de Mestrado defendida no ano de 2016, junto ao Programa de Pós-Graduação
em Letras: Linguagem e Identidade, sob a orientação do Professor Dr. João Carlos de Souza
Ribeiro, com o título “Cotidiano e distanciamento: uma leitura de Órfãos do Eldorado, de
Milton Hatoum”.
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pacific living with the explorer. We also aim to investigate some cultural aspects,
especially those linked to family, hierarchy and the possession of material
and moral assets. Mediated by “incomplete” voices, the idea is to articulate
crisscrossed discourses which deny to legitimate themselves at the “family
building”, also metaphorical as a reminiscence of a silent past abruptly shattered
by modernity.
KEYWORDS:
Amazonian Space. Culture. Identity. Discourse. Diversified Senses.

E screver sobre
Amazônia nos parece,
à primeira vista, apenas
a em 1989, ele destaca-se na
literatura contemporânea
brasileira como um intelectual
uma tarefa fascinante. Mas diferenciado por conseguir
ao iniciarmos uma leitura retratar em suas obras o universo
mais orientada sobre o tema amazônico tão marcado pela
percebe-se o emaranhado diversidade cultural do seu
de documentos, narrativas, povo, pela confluência de
relatos, etc., uma enorme gama marcas identitárias que ali se
de informações que nos deixa estabelecem e principalmente
a mercê de um jogo labiríntico por “sujeitos em trânsito”, que
de descrições, informações e desde sempre contribuem para
dualismos a cerca da região determinar a riqueza étnica,
estabelecidos por todos os social e intelectual da região.
que aqui vieram no bojo de Em sua obra, o romancista
um “processo exploratório”, realiza uma verdadeira
seja ele, “real ou ficcional”. Por filtragem do cotidiano
isso estudar a Amazônia, além amazônico. Suas narrativas
de um exercício intelectual são calcadas em experiências
prazeroso é, acima de tudo, um pessoais e lugares, objetos e
compensador desafio. paisagens além de um estudo
Milton Hatoum é autor minucioso que vai dos clássicos
recente da nossa literatura mais antigos aos escritores
de “expressão amazonense”, modernos e contemporâneos
recente porque sua obra inicia- da vasta literatura brasileira
se no final dos anos noventa. e principalmente sobre a
Premiado desde sua estreia Amazônia. Milton Hatoum

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é um intelectual do nosso aspectos, como se buscasse


tempo. Nasceu em Manaus em Michel Foucault e sua
em 1952, formou-se em arqueologia “rastros deixados
Arquitetura em São Paulo, pelos homens, onde se tentava
mas voltou a Amazônia depois reconhecer em profundidade o
de ir à Espanha e a França que tinham sido” (FOUCAULT,
como bolsista, onde estudou 1995, p. 8). Desse modo, a
literatura. Na Universidade matéria ficcional hatouniana
Federal do Amazonas foi é sempre moldável, não está
professor e participou de alguns explicitamente a serviço
projetos sociais. Também teve de nenhuma causa, mas ao
uma rápida passagem como mesmo tempo é visivelmente
professor visitante de Literatura comprometida com o
na Universidade de Berkeley, reconhecimento do espaço e do
Califórnia, nos Estados Unidos. tempo, numa constante busca
Além de professor e romancista para a ressignificação dos
é também tradutor e ensaísta, sujeitos que construíram suas
contista e colaborador como histórias no histórico conflito
colunista em suplementos em que sempre viveram, em
literários em algumas se tratando das diversidades
renomadas revistas como a Isto regionais, mas acima de tudo,
É, onde trabalhou por algum do confronto desigual com
tempo. exploradores e mandatários,
A obra de Milton Hatoum sempre a serviço dos
é detentora de vários prêmios, extermínios e “silenciamentos”,
já ganhou duas vezes o prêmio aos quais os habitantes da
Jabuti e é considerado hoje Amazônia foram subjugados ao
o romancista brasileiro mais longo de todo o seu percurso
conceituado no nosso cenário histórico.
literário. Suas obras e seus É neste terreno
personagens são construídos multifacetado e marcado pelo
a partir da articulação dos fluxo de culturas e identidades
mais diferentes e elementares “em trânsito” que o ficcionista

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Milton Hatoum vai tecendo seus mas cravada no imaginário


personagens sempre imersos misterioso regional, absorvido
em diferentes imaginários e por viajantes e conquistadores
instigantes perspectivas na europeus atiçados pelo
tentativa de desvelar pela desejo da conquista material.
recriação literária a enigmática Órfãos, neste contexto, é a
região amazônica, suas expressão que segundo o
paragens, seu povo, suas cores dicionário Aurélio nos conduz
e suas dores. Assim se dá em a compreensão das múltiplas
Órfãos do Eldorado, objeto de significações possíveisàs quais
estudo deste trabalho e também aqui é aplicada. Leia-se então:
última produção ficcional, que 1. Quem perdeu o pai ou mãe,
ele próprio costuma chamar de ou ambos. 2. Abandonado. 3.
“novela literária”. Lançado em Desamparado. 4. Largado. 5.
2008 e ambientada em Manaus, Desprezado, rejeitado. Assim, a
Belém e cidades adjacentes na partir dos inúmeros significados
primeira metade do século XX. propostos, abandonado, daria
A expressão “Órfãos do conta de reunir sentidos para
Eldorado” nos remete a secular fundamentarmos a ideia de
lenda da cidade encantada, a que a Amazônia vem sendo ao
Eldorado submersa com suas longo da história, cobiçada,
ruas ladrilhadas de ouro e seu devastada e espoliada e
casario resplandecente. Lá num sempre abandonada, seja pelo
castelo dourado repousam esquecimento daqueles que por
príncipes e princesas num sono aqui passam ou pelo forçado
diurno para se restabelecerem silenciamento dos que sempre
das noites de passeios aquáticos aqui estiveram numa frenética
pelos rios da Amazônia em negociação de “representação
suas peles e formas de botos identitárias” ou “trocas
atiçando a curiosidade e culturais”, sempre na tentativa
muitas vezes o devaneio dos de construção de linguagens,
moradores do lugar. Lugar discursos e diálogos com o
de geografia indefinida, mundo.

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O título Órfãos do Eldorado sempre “impenetrável”,


carrega uma ambiguidade “intransponível”.
instigante, se no plano da Aludindo a esta reflexão
narrativa trata da estória examinemos a capa da obra.
de um órfão de família Nela a imagem é ao mesmo
abastada nos idos tempos tempo paradisíaca e conflitante.
áureos da Amazônia, no Permite ao leitor o olhar da
plano discurso nos coloca no câmera. Um espaço do interior
centro de uma desafiadora de uma casa simples de madeira,
constatação. Esta região que à moda ribeirinha, investida de
durante séculos abasteceu uma luz em dois planos, a parte
cofres de desconhecidos inferior totalmente envolvida
aventureiros, e também o num claridão amarelo-cobre
imaginário de fabulosos e na superior a escuridão
viajantes desbravadores, esvaecida como o prenúncio
vai aos poucos deixando na da aurora. A visão que se tem
orfandade seus autóctones. E o do exterior da casa é de uma
espaço privilegiado da “maior minúscula janela protegida por
biodiversidade do planeta”, uma cortina de renda que destoa
continua incompreensível para da simplicidade da construção.
seus filhos legítimos, marcados Lá fora, uma visão misteriosa de
pelo “ativismo natural e ocaso indefinido, e o rio plácido
estanque” que segundo Euclides e majestoso, seguindo o seu
da Cunha já no início do século curso natural. Com um olhar
prenunciava sobre a região mais atento podemos relacionar
“é a conservação sistemática elementos que corroboram
do deserto, é a prisão celular para a principal motivação
do homem na amplitude temática da narrativa. A “visão
desafogada da terra” (CUNHA, de fora” ali refletida é marcada
1988, p. 95). Órfãos do Eldorado por reverberações douradas
se inscreve na categoria das no espaço, confundindo os
narrativas sobre a Amazônia que buscam nestas paragens
que não excede o exotismo, mas a riqueza e o poder, em outro
privilegia o espaço, a natureza

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plano, a “visão de dentro” é de aqui e também no imaginário


um lugar, indefinido, um misto cultural da gente da região.
de luz e escuridão que tudo Órfãos do Eldorado é uma
confunde, esconde e inebria os história enredada nos anos
seus possíveis sujeitos numa de 1940, entre a Primeira e
eterna busca por desvendar a Segunda Guerra Mundial.
o estranhamento amazônico, Sua trama conta a saga de
marcadamente construído pelo Arminto, o pretenso herdeiro
temor e respeito ao rio, signo da família Cordovil que fez
onipresente da cultura, da fortuna na Amazônia no
identidade e vida locais, como auge do extrativismo vegetal,
podemos enxergar nas palavras do frenético comércio nos
de Arminto: rios locais e no transporte
Quando olho o Amazonas, de borracha e castanha em
a memória dispara, uma
voz sai da minha boca, e só cargueiros entre o Brasil e a
paro de falar na hora que a Europa. Arminto evoca de vez
ave graúda canta Macucauá em quando a imagem do pai
vai aparecer mais tarde,
apenas, cor do céu quando Amando e do avô Edílio Cordovil,
escurece. Canta dando adeus personagens ausentes, mas ao
à claridade. Aí fico calado e mesmo tempo reguladores do
deixo a noite entrar na minha
vida (HATOUM, 2008, p. 14). tom memorialístico que o autor
Como vemos, numa imprime à obra.
O palácio branco dos Cordovil
linguagem altamente figurada o
é que era uma casa de verdade.
narrador elege o rio Amazonas [...] Amando Cordovil seria
como elemento sinalizador capaz de devorar o mundo...
Era um destemido: homem
das incursões do autor e da
que ria da morte. [...] Quis
obra no universo semântico, e apagar o passado, a fama de
por isso “simbólico” do lugar meu avô Edílio. Não conheci
esse Cordovil. Diziam que
– o espaço do rio é o palco
ele ignorava o cansaço e a
onde se revela a intermitente preguiça, e trabalhava que
luta do revelar/esconder no nem um cavalo no calor
úmido desta terra (HATOUM,
universo mitológico amazônico,
2008, p. 14).
e, portanto sempre presente
Com um misto de

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ressentimento e saudade o autor Amando, ausente por opção


utiliza como estratégia narrativa e a mãe morta, Angelina. Daí
a representação de sujeitos a relação conflituosa entre
ligados consanguineamente, pai e filho – sempre culpado
mas cingidos pelo tempo pela morte da mãe, não tem
e pelas matizes culturais referência paterna e ainda
diferenciadas pela época carrega o peso da “dupla
de cada um. Como se vê, a orfandade” – dada a constatação
construção dessas personagens de Amando “Tua mãe te pariu
que se afirmam somente no e morreu” (HATOUM, 2008, p.
vão da memória ganham 16) e Florita, mulher índia a
importância como forma de quem foi confiada os cuidados
resistência e de sobrevivência da Arminto e da família na
neste cruzamento do passado fatídica ausência materna.
com a perspectiva do presente. Os personagens secundários,
Outros personagens mas também extremamente
compõem a narrativa do importantes no enredo são
romance que se divide entre Estiliano, o advogado e amigo
dois espaços extremos: a incondicional de Amando,
casa de Manaus, construída espécie de “consciência” e
numa bem cuidada chácara substituição à figura paterna.
e o palacete branco em Vila Denísio Cão, um barqueiro
Bela, erguido para ostentar a conhecedor dos labirínticos
fantasiosa grandeza econômica rios amazônicos, Madre
de Amando, mas também, os Carminal, a freira espanhola
tempos áureos da cidade mais e missionária superiora do
cosmopolita do Brasil ocidental, internato e responsável pelas
a tal ponto de “os colonizadores órfãs desvalidas e Dinaura,
confundirem Manaus ou Manoa menina-mulher, órfã, índia,
com o Eldorado”. A trama “filha do mato” e sempre objeto
central move-se em torno de de desejo de Arminto – uma
Arminto, principal personagem espécie de salvação e perdição,
e também narrador, o pai figura simbólica que vagueia
entre o real e o fantástico, típico

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das narrativas de configuração hibridismo cultural pertinente


mítica. ao momento da efervescência
Órfãos do Eldorado inicia- social em que aqueles rincões
se com relatos espaçados de amazônicos atravessavam.
um Arminto envelhecido e O fragmento em destaque
corroído pela bebida – “tarubá, ainda dá conta de esclarecer
que ganhava dos índios saterés- uma das estratégias narrativas
maués” – e assim, vai narrando da obra. É com o “encaixe” de
as histórias que cresceu algumas narrativas indígenas
ouvindo a partir da vivência e suas performances, às
com crianças indígenas à beira vezes fantasmagóricas, que
dos rios e também contadas por o autor traz para o espaço
Florita, seu elo de ligação com as contemporâneo de “negociação
tribos indígenas do lugar. Como de identidades”, muitas vezes
ele mesmo afirma: “Lendas que “conflitantes” e sempre clivadas
eu e Florita ouvíamos dos avós de “identificações culturais”
das crianças da Aldeia. Falavam numpropósito que não só
em língua geral e depois Florita se faz pela estrutura, mas
repetia as histórias em casa, nas também pela intertextualidade.
noites de solidão da infância” Estabelece-se, assim, um
(HATOUM, 2008, p. 13). diálogo entre os planos que
Assim a narrativa estruturam o romance e a
é marcada pelo esforço perfomatização das línguas
do narrador em resgatar indígenas traduzidas pela
retalhos de suas vivências e personagem que se constitui
experiências, e acima de tudo como o elo entre a cultura formal
ambientar seus personagens e as “verdades distorcidas”, mas
em um espaço povoado de sempre revisitadas da nativa
reminiscências da memória oralidade caboclo-ribeirinha, às
e de sujeitos e suas falas vezes considerada marginal e
“historicamente silenciadas” não confiável. Essa confluência
numa realidade construída na de ideias, relatos históricos,
diversidade de línguas e num passagens fictícias fazem de

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Órfãos do Eldorado um texto voz narrativa à maneira do


aglutinador das principais romance anterior é pautada
motivações temáticas da na rememoração das vivências
narrativa hatouniana. cotidianas calcadas na
Os narradores distanciados incompatibilidade fraterna,
de Hatoum bem ao gosto das “mitologias
Milton Hatoum faz sua antigas”, como o episódio
estreia como ficcionista com bíblico de Caim e Abel e Esaú e
o romance Relatos de Um Jacob. Buscando uma referência
Certo Oriente, que como o mais próxima, Hatoum inspira-
título sugere é tecido a partir se em Machado de Assim para
de relatos intercruzados de desenvolver esta narrativa bem
narradores que se alternam dentro dos padrões do Realismo,
para narrar acontecimentos onde um narrador adulto se faz
ambientados em Manaus, pois “um espaço” de mediação para
as tramas giram em torno de dá voz a “outros”, quase sempre
dramas familiares de imigrantes sujeitados ao infortúnio ou
libaneses, radicados no Brasil, à luta na construção de suas
mais precisamente no final do identidades.
século XIX e início do século Cinzas do Norte, a terceira
XX. O romance dá conta de narrativa, volta-se para o
reconstruir o passado de uma espaço amazônico como grande
família que busca solidificar espelho, onde se refletem
as “representações culturais” todas as derrotas e se dá a
do oriente sem se eximir das “consumação da matéria” que
miscigenações aparentes de forma a substância romanesca.
seus personagens, cunhados Aqui o narrador Nael se
quase sempre em trânsito entre “debruça” nos “resíduos” de
linguagens, cidades, países e um tempo passado e evocado
continentes. sistematicamente nos cortes e
Sua segunda obra, Dois cesuras do presente nas “vozes
Irmãos, prossegue na temática dissonantes” e “contraditórias”
da imigração oriental, sua de uma sociedade que

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envelheceu repentinamente, Manaus – como no “eterno


concomitante com a queda da retorno” nietzschiano – e seus
Manaus imponente de outrora, arredores num “deambular”
relegando seus habitantes próprio dos que vivem numa
à convivência desajustada e insistente busca de identidade
ambivalente de “memórias e assim se constituem como
espaciais simultaneamente “seres de fronteira”, sempre
arcaicas e modernas” (CURI, acoçados pela certeza da
2009, p. 48). mobilidade de seus traços
Essas obras de Milton culturais.
Hatoum e suas potenciais Voltando ao romance em
veredas ficcionais possuem estudo e considerando a indica-
elementos estruturais em ção desde aglutinar elementos
comum que se tonam basilares. primordiais da produção literá-
Seus narradores estão ria de Milton Hatoum, Órfãos do
sempre a serviço de um outro Eldorado é talhado a partir de
personagem, como que para lhe certo distanciamento do autor
legitimar as ideias, as verdades, das eminentes sugestões temá-
as falas, as motivações e até os ticas e conceituais trabalhadas
desejos. Visualizamos nos três em suas obras anteriores. Como
romances o espaço familiar num divisor de águas este ro-
como um eixo de retorno. A mance ou novela literária – bem
“metáfora da casa” paterna está ao gosto de seu autor – deixa de
sempre presente como um fio lado a ambientação familiar li-
norteador das idas e vindas do banesa e seu núcleo familiar a
autor ao redor de si mesmo e partir de indivíduos radicados
em busca de “elos perdidos” em Manaus e envolvidos com
com o mundo que o cerca, que o comércio local. Há como em
neste caso se coloca como os Cinzas do Norte um velado es-
espaços por onde circulam capismo do contexto oriental
seus principais personagens para mergulhar em questões
“em trânsito” entre o Líbano, sociais do Brasil naquele mo-
Manaus, São Paulo e outra vez mento. A narrativa então é um

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misto de crônica da região onde a referência paterna, Arminto


os personagens estão à mercê ainda carrega o peso da ausên-
dos percalços sociais vividos cia voluntária do pai e a perda
naquele efervescente e con- irreparável da mãe, elementos
turbado início de século, atra- que se conjugam para trans-
vessado pelo declínio da mais formá-lo num indivíduo sem
promissora “empresa” nacio- grandesobjetivos e vulnerável
nal a exploração da Amazônia as paixões.
e seus recursos naturais, prin- Arminto cresce sobre os
cipalmente a extração da bor- cuidados de Florita, uma espé-
racha, tida no momento como cie de anjo protetor e sedutor,
suprimento econômico funda- é ela quem estabelece a possi-
mental para a viabilização da bilidade de diálogo entre ele
crise mundial que se instalava, e o mundo ao seu redor. Como
em detrimento do contexto de todos os outros narradores ha-
guerras. Mas também uma feliz tounianos, é também um ser
tentativa de mergulhar no “ter- fendido, falta-lhe tudo, prin-
reno mole dos mitos” e mostrar cipalmente legitimidade para
possibilidades de convivência tal. Esta pode ser também uma
entre mundos distintos, num outra faceta em Hatoum, seus
entrelaçamento de saberes e narradores vão sendo tecidos
práticas que resvalam entre o mediante a urdidura da própria
“simbólico e o real”, o “regional narrativa. Arminto, protagonis-
e o universal”. ta e narrador, vai construindo
No romance Arminto, o o enredo mediante as histórias
narrador, vive numa intensa ouvidas em suas andanças pela
crise existencial, desde o nasci- zona portuária de Manaus, nos
mento é rejeitado pelo pai que o pontos comerciais de Vila Bela
responsabiliza pela morte pre- ou mesmo na voz “duvidosa”
matura da mãe, dá-se aí uma re- de Florita, quando “traduzia”
tomada do autor a um de seus as lendas contadas pelos índios
temas favoritos, a “metáfora da velhos das aldeias próximas. Ou
orfandade”. Assim não tendo ainda, em frequentes digres-

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sões volta ao passado, à infân- Maria Zilda Curi “ele explicita


cia ou à juventude tumultuada sua estratégia narrativa reve-
entre os tempos difíceis de es- lando-a como a junção frágil de
tudante em Manaus, as bebe- fragmentos que mimetiza as tri-
deiras e passagens pelos caba- lhas imprecisas da lembrança...”
rés e salões de navios na orgia, (CURI, 2007, p. 85).
até se situar em Vila Bela e se É também pelo olhar de
deixar carcomer pela velhice ou Arminto que Hatoum vai tecen-
pelo desejo por Dinaura. do o retrato da devastação que
Ninguém quis ouvir essa his- este personagem condiciona. A
tória. Por isso as pessoas ain-
da pensam que eu moro sozi- paixão avassaladora que nutre
nho, eu e minha voz de doido. por Dinaura o leva a destruição
Aí tu entraste para descansar e com ele, uma atmosfera de de-
na sombra do jatobá, pediste
água e tiveste paciência para clínio se instala nos principais
ouvir um velho. Foi um alívio espaços que formatam a am-
expulsar esse fogo da alma. A bientação do romance. Manaus,
gente não respira no que fala?
Contar ou cantar não apaga Vila Bela e Brasil se tornam em
essa dor? Quantas palavras ruínas, estão decadentes, de-
eu tentei dizer para Dinaura, vastadas, sequiosas de justiça
quanta coisa ela não pode ou-
vir de mim (HATOUM, 2008, e, portanto, órfãos – de poder
p. 103). público, de cultura e de identi-
Milton Hatoum situa seu dade. Na verdade, trava-se uma
personagem-narrador no tem- luta, como no dizer de Zygmunt
po da narrativa, a construção Bauman, “a identidade é uma
do enredo se dá pelas fases da luta simultânea contra a disso-
vida de Arminto – inicia-se na lução e a fragmentação...” (BAU-
infância, desenvolve-se na ju- MAN, 2005, p. 84). Na narrativa
ventude e vida adulta e termi- de Hatoum, Manaus, a “cidade
na com este, envelhecido, mas personagem” outrora celebrada
vigoroso o bastante para ques- é agora palco de transformação,
tionar o questionar-se frente ao onde seus habitantes resistem
exercício doído da narração ou à diluição de suas referências
escritura, ou ainda no dizer de identitárias, alteradas pelo

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abuso da autoridade policial, culturais dos verdadeiros nati-


a supervalorização das “taxas vos, aqueles para quem todas
alfandegárias”, a queda no “mo- as benesses do poder deve-
vimento portuário” e falta de riam ser resguardadas, mas são
perspectivas políticas e, prin- transformados em seres “cha-
cipalmente, a “especulação co- gados” e empobrecidos tal qual
mercial” em torno da demolição a cidade. Aí então a Manaus
de antigas construções, para “terrena e miserável” se opõe a
dar lugar a emergente “moder- Manaus “submersa e encanta-
nidade” na selva. da” que sempre povoou o ima-
Vives em outro mundo, disse ginário local, e onde se imagina
Estiliano. Sai desta chácara
um lugar onde reina a riqueza, a
e anda pela cidade. Andei de
bonde pela cidade, vi pala- paz e a justiça.
fitas e casebres no subúrbio Para se contrapor a Armin-
e na beira dos igarapés do
centro, e acampamentos que to, personagem a quem é con-
dormiam ex seringueiros; vi fiada a narração do romance,
crianças serem enxotadas temos Dinaura, objeto de dese-
quando tentavam catar comi-
da ou esmolar na calçada do jo do protagonista que se con-
botequim Alegre, da Fábrica figura como mulher inacessível,
de Alimentos Italianos e dos presente em quase toda a tra-
restaurantes. A cadeia da Sete
de Setembro estada lotada, ma, como um fio condutor das
vários sobrados e lojas à ven- ações do narrador, é pela au-
da (HATOUM, 2008, p. 57). sência que se faz revelar sua na-
A cidade de Manaus é aqui tureza arcana. Uma espécie de
retratada através de uma ima- mulher e de miragem, realidade
gem que se distancia dos seus e sonho, índia “filha do mato” e
grandes momentos de glória entidade mitológica.
e poder. Se iguala a qualquer Quando Estiliano me ouviu
“zona de pobreza” em qualquer falar de Dinaura, desdenhou:
Essa é boa, um Cordovil em-
“lugar periférico” do mundo. O
beiçado por uma mulher que
narrador elenca uma gama de veio do mato. E Florita sem
sujeitos e suas mazelas, sejam conhecer a órfã, disse que o
olhar dela era só feitiço: pa-
elas econômicas, sociais e éti-
recia uma dessas loucas que
cas. Tais sujeitos são herdeiros

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sonham em viver no fundo do tra a capa da obra A Escrita da
rio. O olhar de Dinaura era o
História, de Michel de Certeau
que mais me atraía. Às vezes
um olhar tem a força de um – ali a índia América, nua re-
desejo. Depois o desejo cres- clinada numa rede, com a mão
ce, quer penetrar na carne da
estendida como a acolher em
pessoa amada. Eu queria vi-
ver com Dinaura e adiei essa seu regaço Américo Vespúcio,
decisão até o limite da vaida- o descobridor. Dinaura seria
de (HATOUM, 2008, p. 31).
essa “índia-mulher” que ofere-
Dinaura, a extraordiná- ce ao “estrangeiro” seu corpo,
ria imagem feminina criada suas marcas, suas dores produ-
por Hatoum, se coloca no tex- zidas pela também orfandade
to como um enigma, todas as imanente, pois sua condição
vontades, buscas e aspirações de mídia, órfã e protegida das
de Arminto as conduzem para religiosas carmelitas, lhe trans-
ela. Suas realizações pessoais forma em ser onde coexistem
estão todas vinculadas à possi- vários outros seres, culturas,
bilidade da realização amorosa traços identitários, daí sua per-
e da satisfação carnal. Armin- formance sempre evasiva num
to é um personagem marcado movimento de infinitas “aproxi-
pela ausência, o não conheci- mações e distanciamentos”.
mento da mãe e o castigo im- As órfãs do Sagrado Coração
posto pelo pai lhe transforma de Jesus também estavam no
em um homem ambíguo, “exi- Cemitério, todas juntas, com
o mesmo traje: saia marrom
lado da casa paterna”, e assim, e blusa branca. Meninas. Uma
peregrino de uma eterna busca delas tinha jeito de moça
de realizações. Dinaura catalisa crescida. Parecia uma mulher
de duas idades, usava um
para o interior da trama com vestido branco e olhava para
sua “existência contraditória” o alto como se não estivesse
um vasto campo de intersubje- ali, como se não estivesse em
lugar nenhum. De repente o
tividades, figurando-se em dois olhar me encontrou e o ros-
planos distintos. No primeiro to anguloso me sorriu (HA-
plano nos remete a ilustrativa TOUM, 2008, p. 28).
imagem “da alegoria desenhada Na cena descria o narrador
por Jan van der Straet”, que ilus- o usando de evidentes sutile-

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zas vai desvelando a atmosfera principal herança de Arminto,


misteriosa que envolve o rela- naufraga e com ele seus sonhos
cionamento fortuito dos prota- de vida boa, pois ali se esvai
gonistas. O primeiro encontro toda a fortuna acumulada pelo
foi justamente no enterro de pai ao longo de toda a vida. El-
Amando, o pai disciplinador, dorado, a “cidade submersa”e
que morre nos braços de Ar- encantada no fundo do rio é
minto, no dia do grande encon- tão maravilhosa quanto inaces-
tro que teriam. Ela já aparece sível e Dinaura que se consti-
estigmatizada a suprir a falta tui na amante enigmática, pois
deixada pela morte do pai. Na ao mesmo tempo que se deixa
escolha das expressões Milton possuir numa ardente cena de
Hatoum vai pontuando a at- amor, desaparece na atmosfera
mosfera misteriosa que deseja espessa do sonho.
imprimir na aventura insorte Numa tarde de dezembro
cheguei mais cedo à praça,
dos amantes, como é comum
deitei no banco morno e dor-
nas narrativas míticas. Em “Pa- mi. Quando as cinco badala-
recia uma mulher de duas ida- das me despertaram, o rosto
de Dinaura surgiu contra o
des”, “usava um vestido bran-
sol. Não tive tempo de per-
co” e “como se não tivesse ali, guntar sobre a dança nem
como se não tivesse em lugar para me erguer: vi os olhos
pretos, grandes e assustados.
nenhum” temos a construção
Podia ser um sonho? Mas eu
da personagem labiríntica de não queria sonho, desejava a
Dinaura que não se revela pelos mulher ali sem ilusões. Então
acariciei a boca de Dinaura,
traços físicos, veste-se da re-
senti a respiração a respi-
presentação da pureza e ainda ração inquieta, o tremor e o
do jogo mimético da ausência/ suor nos lábios abertos que
roçavam meu rosto. No pra-
presença.
zer do beijo senti uma denta-
No segundo plano Dinau- da feroz. Soltei um grito, mais
ra é elevada ao patamar das de susto que de dor. Tentei
falar, minha língua sangrava.
outras metáforas em que o au- Na confusão, Dinaura esca-
tor fundamenta a sua obra. El- pou (HATOUM, 2008, p. 47).
dorado, o cargueiro alemão e Ou seja, as representações

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de Eldorado/Manaus e Dinau- da família, determina as atitu-


ra confluem para a macro me- des dos outros personagens e
táfora desenvolvida na obra ainda prescruta os desejos mais
numa correspondência paralela recônditos de Aminto. Ela não
entre esses símbolos. Dinaura se impõe, mas sabe como con-
catalisa para si essa semântica duzir os destinos de todos.
“simbólica do lugar”, espaço de Assim é a descrição no ro-
busca implícita de identidade mance da chegada de Florita,
desenhada pela dinâmica míti- uma nativa que estudou e rece-
ca na urdidura da obra. beu um batismo cristão, como
As figuras femininas em aponta o fragmento abaixo:
Órfãos do Eldorado detêm o Pobre e corajosa, dizia Aman-
do. Não quis fugir com os
poder de dominar e determinar
preguiçosos, largou a família
o destino dos homens, bem ao para trabalhar é viver melhor.
gosto do Realismo. Ora os levam Meu pai levou a moça para o
palácio Branco e lhe comprou
ao delírio, ora ao total fracasso.
roupa e sandálias. Em Vila
Florita é uma dessas figuras de Bela estudou e ganhou um
destaque na obra. É a única voz nome, com batismo cristão,
festejado (...).Essa moça me
feminina que se faz ouvir, pois
criou. A primeira mulher na
Angelina está morta e Dinaura minha memória. Florita. Anos
é silenciada pela sua condição depois, também em Vila Bela,
uma tarde em que ela dormia
“inferior”. Florita é a “propulso-
na rede, entre no quarto e fi-
ra” da narrativa, mulher índia, quei observando o corpo nu.
moça, uma espécie de serviçal Tive um susto quando ela se
levantou, tirou minha roupa,
da família. Dela pouco se sabe,
me levou para dentro da rede
nunca casou, nem teve filhos. (HATOUM, 2008, p. 69).
Criou Arminto com o desvelo Aqui observamos como
materno, mas também lhe pro- Florita foi capturada e intro-
porcionou sua iniciação sexual. duzida na família “branca”, dei-
Num misto de ama e amante xando para trás seus familiares,
ela se caracteriza como perso- seu espaço natural, “exilada”
nagem central do enredo, pois de suas raízes justamente no
carrega em si todos os segredos seu lugar de origem. Arminto

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e Florita são sujeitos díspares, chapéu e disse: Acordou mor-


ta (HATOUM, 2008, p. 94).
ele descendente de uma famí-
lia tradicional e ela indígena, Pela voz do narrador tem-
deslocada de sua cultura. O sen- -se a constatação da morte
tido ambíguo que estas cenas anunciada de Florita. Carre-
oferecem é justamente a coe- gando no próprio as marcas
xistência pacífica e às vezes até dos embates sociais, as incur-
complementar desses sujeitos sões históricas e das definições
em “trânsito”, marcados prin- identitárias que marcaram a
cipalmente pelo fenômeno da Amazônia em seu processo de
miscigenação de valores locais. “assimilação” da modernidade.
Proteger e seduzir são ações A morte de Florita pode
atribuídas à Florita, que se con- ser também considerada como
figura em mais uma metáfora o fim de um ciclo. Ela simboli-
da Amazônia ou da lendária El- zava a infância desamparada,
dorado encantada. a abonada vida adulta e agora
Ainda metaforicamente a velhice desmemoriada. Ar-
retratada, Florita acompanha minto, o narrador e persona-
a glória e o declínio da família gem protagonista “inscreve
Cordovil, ela está tão inserida no próprio corpo” o dualismo
no contexto familiar que é tam- homem/lugar, as duas faces de
bém brutalmente atingida. A uma mesma motivação. “A mor-
degradação de Manaus se refle- te de Florita rompeu os laços
te no efetivo empobrecimento com o passado. Eu, sozinho era
de Arminto que a conduz para a o passado e o presente dos Cor-
miséria e a morte. dovil. E não queria futuro para
A tristeza que senti naque- homens da minha laia. Tudo vai
la tarde começou no meio acabar neste corpo de velho”
da manhã. Eu colhia jambos (HATOUM, 2008, p. 94).
rosados quando um homem
apareceu. Empurrava bem A imagem aqui retratada é
devagar o tabuleiro de Flori- de um Arminto velho, cansado
ta... Fui ver o que ele queria
e vi minha Flor deitada no
pela idade, e agora convencido
tabuleiro. Domingo no sol? de sua condição simbólica, era
Perguntei.O homem tirou o ele mesmo passado e presente,

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sem perspectiva de futuro. Esta por desvendar suas próprias


sua visível decadência corres- matizesculturais. Seu texto é vi-
ponde metaforicamente ao já goroso e sugere sempre outras
prenunciado empobrecimento possibilidades de “construção
de toda uma região. Nessa Ama- de identidades”. Sua origem
zônia que Arminto tão bem re- libanesa lhe qualifica a cons-
presenta há inexoravelmente a truir personagens a partir das
ausência de tudo, suas caracte- várias impressões que recolhe
rísticas pessoais e familiares se em suas andanças e incursões
dissolveram com as constantes em outras culturas e realidades.
perdas materiais e amorosas e A construção de suas persona-
com elas suas marcas culturais gens obedece a um ritual quase
e suas constantes lutas internas sempre cadenciado, são geral-
para resguardar o que sobrou mente sujeitos híbridos, de ca-
de sua estilhaçada identidade, ráter duvidoso, “desterritoria-
como diria Edward Said, “a ma- lizados”, órfãos, são seres que
neira como formulamos ou re- revelam a negociação de “novas
presentamos o passado, molda identidades” e diferentes “lin-
nossas concepções do presente” guagens culturais”.
(SAID, 2011, p. 36). Em Órfãos As considerações conferi-
do Eldorado o autor estabelece das à narrativa Órfãos do Eldo-
uma atmosfera de contradições, rado até aqui, foram uma tenta-
de movimentos lacunares e pro- tiva de dizer das possibilidades
põe aos principais personagens de leituras sugeridas pelo autor
um vaguear em terrenos move- e das motivações temáticas em-
diços como se estivessem numa preendidas no texto. Numa lei-
eterna construção/desconstru- tura mais verticalizada pode-se
ção de suas matrizes culturais. chegar a outras interpretações,
A obra de Milton Hatoum que se deixam esconder nas an-
é marcadamente carregada de tagonias criadas pelas emble-
sentidos. Ele transfere para suas máticas imagens da Amazônia
narrativas seu espírito aven- e suas “estruturas discursivas”
tureiro e questionador e busca e a “cidade encantada” de Eldo-

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rado, que vão sendo aos poucos no terreno linguístico da obra,


encobertas por outras cons- empreendida por um narrador
truções literárias bem arquite- que conduz toda a narrativa
tadas e elaboradas e também de uma “plataforma divina”. As
revestidas de vários outros sen- “vozes” no texto estão sempre
tidos. Hatoum se propõe então em terceira pessoa, como se
a reafirmar as palavras de Lar- insistissem em não serem ouvi-
rosa: “A literatura, repito, é uma das, mas sempre pronunciadas.
experiência de linguagem na A voz da mulher atraiu tanta
gente que fugi da casa do meu
qual o que está em jogo é o que
professor e fui para a beira do
escrever. Daí a permanente ten- Amazonas. Uma índia, uma
tação e a permanente ameaça das tapuias da cidade que
falava e apontava o rio. Não
do silêncio” (LARROSA, 2004, p.
lembro o desenho da pintura
352). no rosto dela; a cor dos tra-
Pelo olhar de Larrosa, per- ços, sim: vermelha, sumo de
urucum (HATOUM, 2008, p.
cebe-se que a “experiência da 11).
linguagem” empreendida por Portanto, fica claro neste
Hatoum em sua narrativa é al- fragmento a ausência da mani-
tamente marcada por uma es- festação da língua indígena, o
crita calcada na diversidade e autor nos retira a oportunidade
a construção de seus persona- desta convivência ou experiên-
gens, a escolha vocabular, a for- cia com outras línguas e outras
te adjetivação e a determinação culturas. Mesmo assim a dis-
de um narrador homodiegético cussão sobre a identidade suge-
que com sua voz “lacunar” si- rida por Hatoum não está pre-
lencia todas as outras possibi- judicada, ela é uma necessidade
lidades do convívio linguístico. constante em sua narrativa. Há
Em Órfãos do Eldorado há uma em seu texto uma relativa bus-
implícita sugestão à impossibi- ca por elementos que se cons-
lidade das manifestações da lin- tituem como propulsoras for-
guagem, seja de forma oral ou ças determinadas a construir e
escrita, o que poderia ser uma reconstruir esses sentidos que
celebração, se torna uma cisão formulam as mais diferentes

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identidades disseminadas em perspectiva Eni Orlandi contri-


sua obra. bui para esta reflexão quando
Para o crítico Zigmunt Bau- diz: “Procuramos nos conhe-
mam “nascida como ficção, a cer, conhecendo como a Europa
identidade precisava de muita conhece o Brasil” (ORLANDI,
coerção e convencimento para 1990, p. 19). É que o reconheci-
se consolidar e se concretizar mento cultural só se dá pelo co-
numa realidade (...)” (BAUMAM, nhecimento de outros “discur-
2005, p. 26). Neste sentido a sos” e de outros “trânsitos” e de
natureza ficcional da identida- outras práticas. A arquitetura
de por si só já se constitui num da narrativa hatouniana é sim
conceito “frágil” e “eternamente esta movimentação compulsó-
provisório” e a ficção enquanto ria para as entranhas do Brasil,
objeto de realização da ativida- pois resvala em elementos fun-
de linguística concretiza com dantes de nossa nacionalidade,
uma certa autonomia num ter- dessa “mistura” que nos deter-
reno fértil de vivências e trocas mina.
identitárias. Assim os sujeitos Em sua obra Natureza e
em trânsito nas narrativas ha- cultura no Brasil (1870-1922),
tounianas representam aqueles Luciana Murari (2009) enfatiza
que buscam nos espaços mais que a produção literária do final
díspares da sociedade a utópica do século XIX e início do século
“segurança” de “ser identifica- XX já estava fortemente mar-
do”. cada por estas visões de “re-
Órfãos do Eldorado além descoberta” que se percebe em
destes e de outros contextos Hatoum, os escritores da época
aqui relacionados, ainda nos fundamentavam seus textos em
aponta para um Brasil que nos reminiscências da memória,
parece tão próximo e distante, mais precisamente em motiva-
uma Amazônia que é ao mes- ções que evocavam a infância e
mo instante nosso habitat na- o saudosismo do passado.
tural e tão logo, um indecifrável O culto a tradição e a nostalgia
evocada pela cisão da linha de
enigma a nos desafiar. Nessa continuidade entre presente

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e passado tornaram-se, Já em Antônio Cândido, e
assim, elementos recorrentes
sua obra Literatura e Socieda-
do imaginário romântico,
criando uma linguagem de, parte do paradoxo de que “o
marcada pela dificuldade inferior é superior”, ou seja, “as
de simbolização de uma
nossas deficiências, supostas
realidade que se desfazia
em ritmo acelerado. A ou reais, são reinterpretadas
recuperação empática do como superioridades” (CÂNDI-
passado pela produção
DO, 2000, p. 110). O nosso mais
cultural poderia eliminar
a busca da identidade e reconhecido teórico e crítico
escrever a história que literário defende a tese de que
possibilitaria restabelecer a
nossa cultura é acima de tudo
articulação orgânica entre o
indivíduo e o grupo (MURARI, paradoxal: somo um “povo lati-
2009, p. 191). no”, nossa “herança cultural” é
Por ser cronologicamente europeia e nossa matriz étnica
inscrito entre os autores pós- é mestiça, além das influências
-modernos a obra em estudo de raças “primitivas”, “ame-
não foge aos traços da escritu- ríndias” e “africanas”. Hatoum
ra memorialista, Hatoum vai se abastece de todas essas in-
beber em fontes românticas e formações e eleva seus “falhos
finca sua ficção em elementos heróis” a categoria de sujeitos
reconhecidamente plasmados superiores, sempre imbuídos
na memória. Ali se vê o “cultoda a contribuírem para amenizar
tradição nostálgica” tão nitida- nossas contradições culturais.
mente que “presente x passado” Em suas obras vai “sobrepondo
se transmutam em recorrência geografias, entrecruzando iden-
a outras espacialidades. Para tidades e ajustando vivências”,
configuração do tempo volta- num esforço ostensivo de reve-
-se a “ancestralidade mítica”, o lar “experiências comuns” na
que se constitui como um arti- voz de narradores carregados
fício para articular ainda mais de sugestões simbólicas, cons-
a “recuperação empática do truções metafóricas e possibili-
passado” e a constante busca dades de reconhecimento de si
dos sedimentos da identidade e do outro.
nacional.

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Considerando as leituras e o rancor entra pai e filho, num


pesquisas realizadas, comungo misto de desprezo e amor re-
com Mikhail Bakhtin quando primido. Tudo isso acentuado
afirma que “ver e compreender pela atmosfera mitológica. Este
o autor de uma obra significa romance traz para à discussão
ver e compreender outra cons- o autor Milton Hatoum e suas
ciência, a consciência do outro performances da “Amazônia
e seu mundo, isto é, outro su- enquanto criação discursiva”
jeito” (BAKHTIN, 2011, p. 316). (CARVALHO, 2005, p. 23) e suas
Parece simples, mas o que quer incursões no universo cultural
o teórico russo pode nos condu- desta região. Posicionado como
zir para o cerne das narrativas um “migrante” sua descendên-
hatounianas, neste exercício de cia libanesa só acrescenta so-
“compreensão” mútua autor/ briedade a sua peculiar forma
leitor de sua linguagem e de um de decodificar esse universo
mergulho profundo em suas raí- tão enigmático e ao mesmo
zes ideológicas, políticas e mo- tempo exposto a tantos “rótu-
rais. Seu olhar ao mesmo tempo los” e “interesses”. Hatoum se
contemplativo e crítico é o guia auto define como um ficcionis-
pelas margens e paragens de ta “que tenta imaginar a sua
suas obras, que se revestem de história, reconstruí-la e retor-
encantamento e concretude nas nar ao que já não existe mais”
“travessias” literárias e “cultu- (REVISTA MAGMA, USP). E é
rais” empreendidas por sua te- neste construir e reconstruir
naz escrita. que nosso escritor vem se co-
Milton Hatoum, em seu Ór- locando como uma das grandes
fãos do Eldorado, elabora uma vozes do cenário literário brasi-
espécie de obra-reflexo de seus leiro e da nossa prosa de ficção
mais peculiares traços estilísti- contemporânea.
cos. O ambiente é a Amazônia, Referências
a cidade é ora Manaus, ora Be- BAKHTIN, M. Estética da criação
verbal. Prefácio à edição francesa
lém. O tema central é a sempre
Tzvetan Todorov; introdução e
revisitada divergência paterna, tradução do russo Paulo Bezerra.

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OUTROS ARTIGOS

– 6. ed. – São Paulo: Editora WMF Janeiro: Forense Universitária,


Martins Fontes, 2011. 1995.
BAUMAM, Z. Identidade: LARROSA, J. Linguagem e
entrevista a Benedetto Vecchi. educação depois de Babel.
Tradução de Carlos Alberto Tradução por Cynthia Farina. –
Medeiros. – Rio de Janeiro: Jorge Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
Zahar Ed., 2005. MURARI, L. Natureza e cultura no
CARVALHO, J. C. Amazônia Brasil. São Paulo: Alameda, 2009.
revisitada: de Carvajal a Márcio ORLANDI, E. P. Terra à vista –
Souza. Rio Branco: EDUFAC, 2005. Discurso do confronto: Velho e
(Série Dissertações e Teses – 3). Novo Mundo. 2. ed. – Campinas,
CERTEAU, M. A invenção do SP: Editora da UNICAMP, 2008.
cotidiano: 1. Artes de fazer. RAVETTI, G.; CURY, M. Z.; ÁVILA, M.
Tradução de Ephraim Ferreira (Orgs.). Topografias da cultura:
Alves. 21 ed. – Petrópolis, RJ: representação, espaço e memória.
Vozes, 2014. – Belo Horizonte: Editora UFMG,
CRISTO, M. L. P. (Org.). Arquitetura 2009. 184 p. (Invenção)
da memória: ensaios sobre os SAID, E. W. Cultura e
romances Relatos de um Certo imperialismo. Tradução de
oriente, Dois Irmãos e Cinzas do Denise Bottmann. – São Paulo:
Norte de Milton Hatoum. Editora Companhia das Letras, 2011.
da Universidade Federal do SILVA, E. M. Entre cinzas e vozes:
Amazonas. figurações das amazônias em
FOUCAULT, M. A arqueologia do Milton Hatoum e Vargas Llosa. Rio
saber. Tradução de Luiz Felipe Branco (AC): PPGLI/UFAC, 2011
Baeta Neves. – 4. ed. – Rio de (Dissertação de Mestrado).
Data de recebimento 31/07/2016
Data de aceite 3/2/2017

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