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Objetivo de Pesquisa
Objetivo Geral: Investigar quais as possíveis relações entre os impasses clínico-
epistemológicos encontrados na clínica de Lacan e seu percurso de fundamentação do
conceito de sujeito.
Hipótese de Pesquisa
Partindo da premissa fundamental de que Lacan foi fiel à letra freudiana –
construindo e justificando seu retorno a partir de impasses encontrados na clínica e no
debate com seus pares – sustentamos a hipótese de que foi a partir de sua disposição em
sustentar um tratamento possível das psicoses, e do encontro com aquilo que nomeou
de paradoxal relação estabelecida entre sujeito, fala e linguagem, na loucura, um dos
determinantes que o precipitou a fundamentar um conceito de sujeito para a psicanálise.
A partir desta pesquisa, pretendemos sustentar a hipótese de que, seja no seio do
retorno do discurso manicomial, seja na maneira com que o conceito de sujeito é
empregado como sinônimo de indivíduo, pessoa etc. o que subjaz é um mesmo
movimento de resistência àquilo que Freud, com a descoberta da psicanálise, apontou
como uma das feridas narcísicas desferidas contra o homem e que Lacan, com seu
conceito de sujeito formalizou de maneira inequívoca, a saber: o restabelecimento da
verdade no campo da ciência, na medida em que pela via do retorno do recalcado, ela se
impõe, a partir de seus efeitos no/de sujeito na clínica.
1. Freud e as perspectivas para a psicanálise: clínica e política dos/nos
impasses freudianos
Talvez ela venha do fato de, em geral, um médico não ter muito
contato com os doentes dos nervos, de não ouvir atentamente o que
têm a dizer, de modo que não considera a possibilidade de extrair algo
de valor de suas manifestações e, portanto, de fazer observações
aprofundadas. (Freud, 1917/2014, p. 327)
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A primeira atingindo Freud ainda vivo, a segunda, em seu deslocamento e no deslocamento de alguns de
seus sucessores rumo aos Estados Unidos da América, “a conjuntura era forte demais, a oportunidade
sedutora demais para que não se cedesse à tentação oferecida”, afirma Lacan, de abandonar o princípio do
desejo para fazer repousar no mais lucrativo subjugo da demanda. Tornando-se, nas palavras deste,
administradores de almas em um contexto, o estadunidense, mas não só, que requereu destes tal ofício.
(Lacan, 1955/1998, pp. 403-404)
Sobre este ponto específico, importante sublinhar que Freud jamais almejou para
a psicanálise a solução em sua totalidade das questões relativas ao sofrimento psíquico
de maneira geral. Afirma, em 1913, ao situar o interesse pela psicanálise por outros
campos que esta
Sabe-se que a nossa terapia psiquiátrica, até o momento, não foi capaz
de exercer influência sobre as ideias delirantes. Poderá fazê-lo a
psicanálise, graças à compreensão que adquiriu desses sintomas? Não,
meus senhores, não pode; contra esse mal, ela é tão impotente quanto
qualquer outra terapia – pelo menos até agora. Conseguimos entender
o que se passou no doente, mas não temos como fazer que o próprio
doente o compreenda. (Freud, 1917/2014, p. 342)
Nestas mesmas conferências, apresenta algumas questões atinentes ao debate
que nos propomos aqui, por serem relativas à centralidade da experiência psicanalítica
como fonte maior desde a qual a psicanálise produz seu conhecimento:
Por outro lado, não pensem que aquilo que lhes apresento como
concepção psicanalítica é um sistema baseado na especulação.
Decorre, isto sim, da experiência, é expressão direta da observação ou
resultado da elaboração da experiência. (Freud, 1917/2014, p. 326)
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Isso fica evidente ao verificar que grande parte dos escritos dedicados à apresentação de sua
proposta de retorno a Freud, bem como os célebre artigos dedicado à questão do sujeito, terem sido
produzidos e apresentados em conferências realizadas em lugares como o a Clínica de Neuropsiquiatria
de Viena (A Coisa freudiana ou Sentido do retorno a Freud em psicanálise, 1955), a Sociedade de
Francesa de Filosofia (A Psicanálise e seu ensino, 1957) e no Colóquio internacional de filosofia
(Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano, 1960) , apenas para listar alguns.
Em 1955, Lacan, já tendo dado início ao seu programa de retorno a Freud, abria,
em 16 de novembro seu Seminário As Psicoses, afirmando que naquele ano começou a
questão das psicoses:
Digo a questão, porque não se pode sem mais nem menos falar do
tratamento das psicoses (...) e menos ainda do tratamento da psicose
em Freud, pois ele jamais falou disso, salvo de maneira totalmente
alusiva. Vamos partir da doutrina freudiana para apreciar o que nesta
matéria ela ensina, mas não deixaremos de introduzir as noções que
elaboramos no decorrer dos anos precedentes, nem de tratar todos os
problemas que as psicoses nos suscitam atualmente. Problemas
clínicos e nosográficos (...) de tratamento também, nos quais nosso
trabalho deste ano deverá desembocar – é nosso ponto de mira.
(Lacan, 1955-1956/2008, p. 11)
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A recente tradução do livro de Elizabeth Ann Danto (2019), intitulado As clínicas públicas de Freud:
psicanálise e justiça social, é mais uma oportunidade de estudo e reflexão, agora por meio de um largo
trabalho historiográfico, sobre o impacto produzido na comunidade psicanalítica a partir do discurso de
Freud em Budapeste e seu decorrente artigo Caminhos para a terapia psicanalítica (1919/2016). A autora
afirma que um dos efeitos fundamentais da Primeira Guerra Mundial fora exatamente a urgência de uma
reflexão séria sobre o papel dos médicos nas sociedades. Em se tratando do campo analítico, cumpre
contextualizar que, à época, a maioria dos psicanalistas eram médicos. Isso posto, reconsiderar suas
posições enquanto médicos passava por rever e de alguma forma atualizar seus posicionamentos enquanto
psicanalistas, já que “se não reconsiderassem sua posição, os psicanalistas poderiam se ver
marginalizados como reacionários do lado errado de um mundo pós-monárquico” (Danto, 2019, p. XX).
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Numa primeira aproximação entre o caráter inacabado e a potência inerente à honestidade de Freud
frente aos limites da psicanálise, é possível trazer a asserção de Marc Bloch (citado por Farge, 1997)
sobre a “necessidade de ser curioso quanto aos problemas que agitam o mundo, de colocar questões
pertinentes para a comunidade científica”, unindo assim o estudo “dos mortos ao tempo dos vivos” (pp. 8-
9).
Já no segundo parágrafo de seu artigo de 1919, afirma um posicionamento
político importante, na medida em que apresenta o desejo de discutir “o balanço de
nossa terapia – à qual devemos nossa posição na sociedade humana – e ver em que
novas direções ela poderia se desenvolver” (Freud, 1919/2016, p. 280).
O grifo é nosso, e busca destacar a preocupação de Freud no sentido de estarmos
atentos aos rumos que a sociedade toma, tendo em vista as repercussões da esfera social
no plano clínico, bem como as respostas possíveis a partir do que o psicanalista recolhe
de sua clínica indo em direção à pólis.
Freud, então, delega aos psicanalistas “a tarefa de adequar nossa técnica às novas
condições” decorrentes desta entrada da psicanálise na esfera da saúde pública. No
momento em que a importância da às questões relativas ao sofrimento psíquico, tiverem
o mesmo nível de importância e compromisso com o tratamento ofertado pelo Estado
que a tuberculose. Assume, neste ponto, o risco de os psicanalistas serem obrigados,
quando inseridos nestes postos de trabalho junto à saúde pública, “a fundir o ouro puro
da análise [...] com o cobre do sugestionamento direto”, mas não sem que se guarde e se
transmita aquilo que há de mais subversivo no tratamento a ser oferecido nessas
instituições, ou seja, as partes “emprestadas da psicanálise propriamente dita, livre desta
ou daquela tendência” (Freud, 1919/2016, p. 212).
A fim construir seu argumento sobre a atividade do analista, toma como ponto
de partida a clínica, ao mencionar o trabalho de Ferenczi, intitulado Dificuldades
técnicas de uma análise de histeria (1919/2016), sobre a atividade do analista, a fim de
circunscrever aquela que postula como questão de seu artigo, a saber, como o analista
poderia transitar entre intervenções de cunho sugestivo, sem abandonar sua aposta
fundamental na transferência como motor do tratamento.
Nesse contexto, pergunta-se sobre sua assertiva acerca da importância de se
manter em suspenso qualquer satisfação substitutiva durante o processo analítico - a
conhecida regra da abstinência. Afirmando, em pelo menos duas oportunidades que o
analista não deve, em hipótese alguma, adotar como direção do tratamento uma
educação que o tome como exemplo a ser seguido, bem como a tutela de um paciente
entendido como fraco e indefeso frente a um analista que detém um saber sobre a vida.
É nesse sentido que recusa o entendimento de que a psicanálise seria uma visão de
mundo, uma filosofia de vida que enobreceria aquele que a utilizasse como norte.
Assevera, por fim, que “isso é apenas violência, mesmo que encoberta pelas mais
nobres intenções” (Freud, 1919/2016, p. 199).
No já citado trecho em que atribui a atualidade do debate quanto ao tratamento
estar restrito aos “tratamentos hidroterápicos, dietéticos e elétricos”, ainda que estes não
tenham qualquer eficácia, firma em seu horizonte o compromisso de fazer a psicanálise
figurar entre estes, a fim de por em questão “se os tratamentos psicanalíticos serão
capazes de fazer mais.”
O mesmo ocorre quando, por exemplo ao apresentar algumas das contribuições
que fundamentais que a psicanálise trouxe para o debate com a sociologia, ao afirmar
que
Ela (psicanálise) percebeu o caráter associal das neuroses em geral,
que tende a empurrar o indivíduo para fora da sociedade e substituir-
lhe a reclusão monástica de tempos passados pelo isolamento da
doença. (...) Por outro lado, a psicanálise mostrou amplamente o papel
que as condições e exigências sociais têm na causação das neuroses.
(...) A velha afirmação de que o crescente nervosismo é produto da
civilização corresponde pelo menos à metade do verdadeiro estado das
coisas. (Freud, 1913/2012, pp. 360-361)
Interessante sublinhar que Lacan cita esse mesmo escrito, no momento em que
discute o fechamento do inconsciente como o momento em que “o analista deixa de ser
o portador da fala, por já saber ou acreditar saber o que ela tem a dizer.” (1955/1998, p.
361). À ocasião, Lacan afirma que o próprio Freud previu esta dificuldade, como
mostramos acima, ainda que mantivesse certo otimismo no alcance que os efeitos de
uma análise poderia ter na pólis. Como fica claro no fragmento a seguir
Agora ponham no lugar do indivíduo enfermo a sociedade inteira (...)
O êxito que a terapia pode ter com a pessoa deve suceder igualmente
com a massa. Os doentes não poderão dar a conhecer suas diferentes
neuroses (...) se todos os parentes e desconhecidos dos quais querem
ocultar seus processos psíquicos, conhecerem o sentido geral dos
sintomas, e se eles próprios souberem que nada produzem., em seus
fenômenos patológicos, que os outros não sejam capazes de interpretar
imediatamente. Mas o efeito não se limitará ao ocultamente dos
sintomas – aliás, frequentemente impossível; pois essa necessidade de
ocultamento torna inútil a doença. A comunicação do segredo terá
atacado no ponto mais sensível a “equação etiológica” de que se
originam as neuroses, terá tornado ilusório o ganho obtido com a
doença e, por isso, a consequência última da situação modificada pela
indiscrição do médico só poderá ser o fim da produção da doença.
(Freud, 1910/2013, p 299)
Este empenho freudiano de fazer a psicanálise figurar com todo seu vigor
clínico, na sociedade perde força ao longo dos ano. Entretanto, ainda que, sozinha, de
fato não consiga promover importantes mudanças e rupturas mais substanciais, ao poder
compor com outros campos, é possível verificar o que Freud nomeou como “filiação à
visão de mundo científica” (1932/2010, p. 354), por exemplo, ao resgatar uma
paradigmática construção de Bataglia, psiquiatra que, diferente daqueles do tempo de
Freud esteve disposto a escutar seus pacientes, afirma parecer
impossível – uma vez em contato com o doente mental que se
apresenta em nossas instituições – abstrair-nos da realidade social na
qual vive o mesmo, das incrustações sociais que se sobrepuseram à
doença, dos estereótipos culturais que com ela foram conaturados, de
tudo que a doença é socialmente. Isto nos impede, talvez, de dedicar-
nos à doença real, mas segundo a nossa visão, somos materialmente
impossibilitados de fazê-lo porque não se conseguiu ainda encontra-la
além dos extratos de incrustações que continuamos a raspar e que nos
transfere da violência da nossa instituição à violência de todas as
outras instituições da nossa sociedade.
Aquilo que parece resistir à decifração para Basaglia é o que, na clínica, Freud
pode escutar, seja no que diz respeito à resistência, como também aquilo que pode ser
tomado como chave de leitura para a constituição da moral cultural: a saber, a intrínseca
relação estabelecida entre desejo e moralidade. De outro lado, o que Basaglia nos indica
concernir à violência das instituições, da realidade social e das incrustações é o que
Freud nos adverte que resistirá sempre à concessão de “autoridade à psicanálise”.
Feito este percurso, gostaríamos de apresentar a metodologia extraída de alguns
dos escritos de Freud dedicados às questões quanto ao futuro da psicanálise e sua
relação com campos outros que, sustentamos, ser atinente também à forma como Lacan
estabeleceu seu trabalho junto à psicanálise, seu retorno a Freud e o quê deste retorno
buscou pôr à prova tomando o movimento intelectual de seu tempo como interlocutor:
Parei aqui, em vermelho está a forma como pretendo terminar o capítulo, abrindo para
o próximo, já com Lacan. Em amarelo o que pretendo articular logo antes de terminar
o capítulo, isso que anunciei aqui em cima, somado aos trecho retirados das Novas
conferências.
“Eu disse que teríamos muito a esperar do crescimento em autoridade que nos há
de vir no decorrer do tempo. Não preciso lhes falar sobre a importância da autoridade.
Muito poucos indivíduos civilizados são capazes de existir sem apoiar-se nos demais,
ou até mesmo de chegar a um juízo autônomo. Não podemos exagerar a ânsia de
autoridade e inconsistência interior das pessoas.” (Freud, 1910/2013, p. 295)
Chegamos, por fim, no debate junto à
As pessoas simplesmente não acreditavam em mim, tal como hoje ainda acreditam
pouco em nós. Em condições tais, algumas intervenções tinham de fracassar. A fim de
calcular o aumento em nossas perspectivas terapêuticas quando há confiança geral em n
A sociedade não se apressará em nos conceder autoridade. Ela tem de nos oferecer
resistência, pois nos comportamos criticamente em relação a ela; demonstramo-lhe que
ela mesma tem grande participação no surgimento das neuroses.
Quando Freud afirma que “o êxito que a terapia pode ter com a pessoa deve
suceder igualmente com a massa”, ele não afirma tratar-se de uma análise da sociedade,
mas sim que, a partir da possibilidade daqueles que enfrentam importantes níveis de
sofrimento psíquico, poderem dizer daquilo que dói e “conhecer suas diferentes
neuroses”, será possível, também, que “todos os parentes e desconhecidos, dos quais
querem ocultar seus processos psíquicos, conhecerem o sentido geral dos sintomas”,
isto é a dimensão conflitiva inerente ao humano, entre desejo e querer, ou, nas palavras
de Lacan, dos limites entre a fala e a linguagem, os efeitos desta não se limitarão aos
que passaram por um psicanalista, mas sim, à toda sociedade, na medida em que ocultar
o sofrimento, não se mostrar mais necessário, porque comum a cada um de nós.
Mas a explicação psicanalítica dos atos falhos traz algumas ligeiras mudanças na
imagem que se tem do mundo, por mais insignificantes que sejam os fenômenos
observados. Notamos que também o indivíduo normal é mais frequentemente movido
por tendências contraditórias do que esperávamos. (Freud, 1913/2012, p. 334)