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HISTORIOGRAFIA

BRASILEIRA

Ana Carolina Machado de Souza

E-book 1
Neste E-Book:
INTRODUÇÃO����������������������������������������������������������� 3
HISTÓRIA DA HISTORIOGRAFIA������������������������� 4
História, Historiografia e memória�������������������������������������������6
O motivo edênico e o pecado: construções de narrativa�����11
Fontes documentais: as crônicas coloniais e como
podemos analisá-las���������������������������������������������������������������19

CONSIDERAÇÕES FINAIS����������������������������������� 33
SÍNTESE�������������������������������������������������������������������� 35
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS &
CONSULTADAS�������������������������������������������������������36

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INTRODUÇÃO
A História da Historiografia é a investigação e re-
flexão sobre a produção histórica a partir de uma
metodologia específica. Neste e-book, estudaremos
como se faz a análise da História do Brasil Colonial a
partir da leitura de três crônicas: Tratado Descritivo
do Brasil, ou Notícias do Brasil (1587), de Gabriel
Soares de Sousa (1540-1591); Historia do Brazil,
de Frei Vicente do Salvador (1564-1636), e Cultura
e opulência do Brasil (1711), de André João Antonil
(1649-1716). A temática abordada será a do Brasil
edênico e pecador, narrativas que tinham um propó-
sito. Cada uma dessas crônicas expressa um ponto
de vista e você que o estuda o faz por meio de di-
mensões políticas, culturais e sociais específicas. Por
isso que ao longo da disciplina aprenderemos como
o Brasil foi retratado por pensadores, intelectuais e
historiadores. Neste momento do estudo, a docu-
mentação é composta por, basicamente, relatos de
experiências e ideias que foram fundamentais para
que descobríssemos as características do nosso
país segundo aqueles que as narraram.

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HISTÓRIA DA
HISTORIOGRAFIA
Antes de adentrarmos os conceitos e temas deste
e-book em específico, é importante que você saiba
que a História do Brasil foi construída em momentos
diferentes do tempo. Cada época tinha um ponto
de vista, uma ideia, uma necessidade, e é isso que
o professor e o historiador devem ter em mente. A
historicidade, ou seja, a realidade histórica, é funda-
mental para que possamos entender a importância
da História da Historiografia. Os conceitos que você
aprenderá aqui são parte de toda uma estrutura da
escrita da História, que é muito mais complexa do
que ler documentos e interpretá-los. Precisamos de
base epistemológica, de conhecimento, para que os
registros do passado sejam inteligíveis para nós no
presente. No momento em que entendemos o que
é História e memória, a forma como abordamos o
documento muda e, também, a maneira de dar aula.

Para o estudante, o professor deve ser a pessoa


com maior conhecimento sobre aquela disciplina.
Contudo, é desumano achar que o professor de
História terá na cabeça todas as datas, fatos e even-
tos. Para nós, assim como para os estudantes, de-
corar nunca é a melhor opção, pois outros assuntos
com mais urgência do dia a dia vão ocupar a mente.
Por isso que aprender as estruturas da operação
historiográfica é fundamental para o professor, não
só para o historiador. Porque abrimos o nosso leque

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de opções para a sala de aula, assim como para as
avaliações. Você verá algumas possibilidades de
se utilizar fontes documentais com os estudantes
e, contando com o apoio do livro didático, eles cada
vez mais entenderão as áreas cinzas da vida, que
não é feita apenas de extremos.

A historiografia nada mais é do que o trabalho feito


pelo historiador. Cada um tem um contexto especí-
fico, uma metodologia, uma teoria, uma hipótese e
uma resposta. Não é verdade absoluta, haja vista
que o compromisso da História é com a verossimi-
lhança. Porém, essa perspectiva é contemporânea.
Cada período histórico, no caso do Brasil a época
colonial, monárquica e republicana, entre outras, pos-
sui sua própria forma de entender a História. É aqui
que entra a História da Historiografia, disciplina pela
qual aprendemos como a História foi construída ao
longo do tempo.

Neste e-book estudaremos os conceitos importantes


para a compreensão da História da Historiografia,
analisaremos três crônicas escritas no período co-
lonial e discutiremos sobre o mito edênico, uma das
construções do imaginário brasileiro que perdurou
por muito tempo.

Um dos pontos primordiais, que você não deve esque-


cer, é que o homem é produto do seu tempo, portanto,
as ideias também são. Os autores que descreveram
essa terra a partir do mito do Paraíso Terrestre ou do
Pecado traziam esse ponto de vista consigo, tinham
na bagagem o imaginário fantástico que foi atribuído,

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também, aos nativos americanos. Analisaremos es-
sas questões e, para reforçar o conhecimento histo-
riográfico, três importantes crônicas coloniais serão
analisadas parcialmente.

História, Historiografia e memória

A disciplina de História da Historiografia visa a refletir


sobre os métodos de produção de conhecimento
histórico. Assim, tanto o historiador quanto o pro-
fessor ganham um aparato teórico necessário para
se entender a própria profissão e como disseminar
essa informação para os estudantes. Investigar o
passado e o que foi escrito sobre ele em cada mo-
mento é uma forma de deixá-lo vivo. Na sala de aula
essa ideia é muito importante, mesmo que não seja
veiculada diretamente. Os questionamentos sobre a
relevância da História são muitos e quando o profes-
sor tem conhecimento sobre o próprio ofício, sobre
as diferentes escolas teóricas, sobre as mudanças
epistemológicas ao longo do tempo, entre outros,
consegue ensinar e demonstrar ao estudante a im-
portância do estudo do passado.

Sem a História, o presente (cada vez mais acele-


rado) se torna esquecimento. Precisamos analisar
os rastros e os silêncios e, para a Historiografia, os
esforços feitos para se escrever sobre a História ou
sobre o momento são os nossos documentos.

A História, como disciplina, ou seja, uma ciência com


protocolos a serem seguidos, surgiu no século 19.
Outras formas de se escrever sobre o passado ocor-

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riam anteriormente, mas foi nesse momento em que
se profissionalizou o ofício. Seu nascimento está
conectado à necessidade de se categorizar o tempo.
Se o passado é modelado no presente, ele está à
mercê da moral e dos preceitos do agora, que elabora
os métodos, classificações e definições. Por isso, é
imprescindível estudar a História da Historiografia,
quando podemos observar como o passado foi for-
mulado em cada momento.

No Brasil não foi diferente, e vários historiadores pas-


saram a vasculhar o passado colonial para discorrer
sobre as nossas origens, busca comum no século 19.

FIQUE ATENTO
É importante destacar-se que não existe um con-
senso em relação à História da Historiografia ou
às teorias da História. Aqui, entraremos no âmbito
da História Cultural, que analisa os conceitos de
História e memória, e do processo de apropriação
e ressignificação do passado a partir do ponto de
vista cultural. Outras “escolas”, como a História
Social, a História Econômica etc., apenas possuem
um viés diferente, mas todas são igualmente ne-
cessárias e fazem parte da análise do nosso ofício.

A memória é importante para a História, pois a co-


necta ao concreto, isto é, está diretamente apoiada
nos indivíduos ou em um grupo. A memória é fei-
ta a partir da vivência, das experiências sociais e
das interações, e é moldável, já que sua formação

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pressupõe uma escolha. Ela é uma construção, tem
questões políticas atreladas e pode ser feita a partir
de imagens e de textos, dentre outras mídias. Por
exemplo, tornou-se memória coletiva a importância
de Tiradentes no advento da Inconfidência Mineira. A
consequência da desobediência foi o aprisionamento
de vários participantes e a condenação à morte de
tantos outros. Porém, Tiradentes se tornou o per-
sonagem símbolo da opressão colonial, narrativa
construída, sobretudo, pelos republicanos. Veja a
obra abaixo:

Figura 1: Tiradentes Esquartejado, de Pedro Américo, 1893.


Museu Mariano Procópio – Juiz de Fora. Fonte: https://
commons.wikimedia.org/wiki/File:Tiradentes_escuartejado_
(Tiradentes_supliciado)_by_Pedro_Am%C3%A9rico_1893.jpg

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Pedro Américo (1843-1905) foi um artista paraibano
que frequentou a Academia Imperial de Belas Artes
no Rio de Janeiro e se tornou um dos principais pinto-
res associados ao Império Brasileiro. Pintou quadros
célebres como o Independência ou Morte, em 1888,
no qual retrata um Dom Pedro I heroico e salvador da
pátria. Porém, como dito anteriormente, esse quadro
do Tiradentes ajudou a consolidar a memória nacio-
nal republicana, que queria ressignificar a História
contada até então. Logo após a Proclamação da
República, em 1889, Américo foi afastado das esco-
las artísticas por sua ligação com a monarquia, mas,
mesmo assim, sua obra fez parte da construção de
um dos mitos da origem brasileira: o herói que lutou
contra o domínio colonial.

A biografia de Tiradentes é controversa até hoje e


muitos historiadores questionam se o seu envolvi-
mento na Inconfidência foi marcante ou não. Isso
denota algumas coisas, sobretudo o fato dele ter se
tornado a figura símbolo da resistência. Na obra aci-
ma, assim como na de Aurélio de Figueiredo (1854-
1916), que está no Museu de História Nacional, e a
de Décio Villares (1851-1931), que está no Museu
Mariano Procópio, encontra-se a representação do
mineiro como Jesus Cristo. Américo, porém, retrata-
-o de maneira dramática. A forca está disposta par-
cialmente, o que nos dá a ilusão de ser uma cruz. O
quadro é claro, típico da estética neoclássica, que
aborda as cenas de forma limpa, iluminada e bem
disposta na tela. Não há uso excessivo do sangue,
e essa contenção tem um porquê. É muito mais im-

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pactante ver a cabeça ensanguentada sobre um pano
branco, que evidencia a cor vermelha.

Tiradentes, como diz o historiador José Murilo de


Carvalho, tornou-se o herói por ser mártir, pela não
concretude da Inconfidência, pelos diversos conflitos
nos quais as figuras republicanas, como Deodoro da
Fonseca ou Floriano Peixoto, viviam naquele momen-
to, impossibilitando que se tornassem os símbolos
do movimento. O tempo passara e o movimento das
Minas Gerais entrara na categoria de mítico.

Nós, no século 21, não vivemos esse período, mas


conseguimos analisá-lo por causa de inúmeros ma-
teriais que se tornaram fontes documentais. Além
disso, comemoramos todos os anos o 21 de abril,
data da morte de Tiradentes. Temos contato, então,
com um coletivo de memórias individuais, que não
são perfeitas ou imparciais, e dão forma a uma me-
mória coletiva que, durante um momento, serviu para
embasar uma narrativa. Dessa maneira, não se deve
esquecer que a memória pode ser (e muitas vezes é)
modificada no presente, a partir de um ideal.

SAIBA MAIS
José Murilo de Carvalho publicou umas das mais
importantes obras sobre a construção do imagi-
nário republicano brasileiro chamada A Formação
das almas: o imaginário da República no Brasil.
Essa é uma dica especial pois, como professor de
História, você pode entender o processo de produ-
ção de uma memória imagética e retirar do texto

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os diversos exemplos dados pelo autor, que aborda
a escolha da bandeira nacional, do hino e até da
representação da República. Imperdível!

Michel de Certau (1925 – 1986), filósofo francês,


tornou-se célebre por definir a chamada “operação
historiográfica”, com a qual delineou os caminhos
pelos quais o historiador deve seguir para a escrita
da História. A primeira fase é a documental, na qual
a fonte tem seu lugar de produção, ela deve ser ana-
lisada segundo sua própria historicidade. A segunda
fase é a explicativa, construída a partir dos questiona-
mentos intrínsecos ao historiador. Já a terceira fase
é a escrita, e é nela que observamos a interpretação
acerca da documentação. Essa metodologia pode
ser aplicada ao estudarmos a “História escrita” por
diversos autores ao longo do tempo, como acompa-
nharemos abaixo. Porém, é importante entender-se
que existe uma pluralidade de métodos e processos
de construção da historiografia.

O motivo edênico e o pecado:


construções de narrativa

O período colonial americano foi retratado por meio


de diversos conceitos, sendo um deles o mito edê-
nico. A imagem do país remetia ao Jardim do Éden,
a uma terra idealizada e privilegiada. A natureza,
rica tanto no âmbito econômico quanto estético, era
descrita como exuberante, uma das suas principais
qualidades.

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O Éden não era apenas uma metáfora na Europa, era
tão real quanto possível, fazendo parte da narrativa
que foi a régua para que os viajantes e cronistas
imaginassem as terras inóspitas à oeste do Atlântico,
que, inclusive, foram retratadas em mapas e cartas.
Nesse período, a concepção de tempo era linear, com
um fim determinado: o Juízo Final. A Igreja determi-
nava o imaginário, sendo que a providência divina era
inexorável. A Bíblia era o livro de regras a ser seguido,
pautando a moral e a ética social.

O Velho Mundo vivia um momento particular no início


da Idade Moderna. No século 14, crises profundas
atingiram o continente: a Guerra dos Cem Anos (1337
– 1453) foi travada e a Peste Negra dizimou um terço
dos europeus, deixando cicatrizes profundas em uma
época em que as explicações para eventos como
esse tinham matrizes religiosas. O apocalipse – do
grego apokálypis – significa revelação e seria o mo-
mento de encontro entre os cristãos e Jesus Cristo.
Isso é importante porque surgiram interpretações
conectando as fatalidades citadas aos problemas
que a Igreja ainda vivenciava, como as idolatrias, as
heresias e o paganismo, entre outros costumes que
iam de encontro aos seus dogmas. Seria o anúncio
do fim dos tempos, enquanto para alguns teóricos
era o início de uma nova época.

O aparecimento de mitos são parte intrínseca da


humanidade, pois correspondem a uma forma de res-
pondermos às questões sobre o mundo e sobre nós
mesmos. O Cristianismo faz parte dessa tradição de
solucionar a problemática humana, mesmo que, com

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a Revolução Científica ocorrida no Renascimento,
respostas assertivas surgissem.

Ao apostarem na América, tanto os espanhóis quan-


to os portugueses traziam as bagagens físicas e
culturais repletas de ideias pré-concebidas sobre o
que seriam essas terras. O contato com os nativos
modificou a forma de pensar, o que não significa que
foi para a melhor. Para se refletir sobre a constru-
ção histórica, a melhor postura é buscar o contexto
em que foi produzida, qual a figura (ou figuras) que
ganhou destaque e ler as fontes sobre o mesmo
período, que têm que ser variadas para nos indicar
os modos de pensar. Por isso o passado diz muito
sobre o presente.

O Paraíso na Terra era o bálsamo para momentos


difíceis e, para a Igreja, era baseado na conversão
total. A América seria o local ideal para se estabele-
cer esse “Novo Mundo”. Os nativos aqui encontrados
não eram considerados seres humanos, portanto
suas atitudes (as tradições culturais) eram analisa-
das de modo condescendente pelos europeus, pois
seriam “ingênuos” e “bárbaros”. O choque cultural
entre europeus e indígenas também pode ser lido
a partir da inflexibilidade dos conquistadores. Para
eles, não existia a possibilidade de troca, de enten-
dimento com o outro, apenas a mudança unilateral.

Outro ponto importante foi relacionar a cultura indí-


gena ao Cristianismo. Alguns religiosos acreditavam,
por exemplo, que São Tomé havia pisado em solo
americano e utilizavam esse mito na conversão dos

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nativos que, dessa maneira, possuiriam um ancestral
cristão. Para além da discussão sobre as especifici-
dades do santo em cada região, o mais interessante
é ver como os indígenas eram diminuídos mais uma
vez na narrativa europeia. Esse ponto de vista nos
atinge até hoje no Brasil, já que a população indígena
e seus costumes ainda são muito questionados. No
século 19 essa perspectiva não mudou e ganhou um
peso científico com o desenvolvimento do darwinis-
mo social, por exemplo.

SAIBA MAIS
Para entender o “choque cultural” entre portugue-
ses e indígenas e as consequências desse momen-
to, confira a série documental chamada Guerras
do Brasil.doc (2018), especificamente o primeiro
episódio, “As Guerras da Conquista”, disponível na
plataforma de streaming Netflix.

A visão edênica foi mantida ao longo do tempo, mes-


mo que a própria perspectiva histórica tenha muda-
do. Isto é, a colonização brasileira durou séculos e as
mudanças foram notáveis. Se analisarmos isso sob
o ponto de vista econômico, como fazemos na sala
de aula, o país teve o ciclo do açúcar, com destaque
para os séculos 16 e 17, marcado pela centralização
de poder nos senhores de engenho, e o Nordeste era
centro administrativo e político da colônia. Contudo,
nesse mesmo período, houve diversas rebeliões,
como a invasão holandesa (1630-1654) e a União

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Ibérica, ou seja, acontecimentos que mexiam com a
estrutura do país, sobretudo da população. Ao anali-
sarmos um documento de cada década, por exemplo,
mesmo que pertença ao contexto do ciclo do açúcar,
teremos perspectivas, visões e desenvolvimentos di-
ferentes. Porém, a visão edênica do país se manteve
por anos. Por quê?

Primeiro, o mito edênico se refere a um relato fanta-


sioso sobre o Brasil a partir de um elemento simbóli-
co: o Éden. A característica comum nos documentos
é a exaltação da natureza, das belezas da terra e da
fertilidade do solo. Aqui não existe terremotos, ma-
remotos, furacões e epidemias, entre outras mazelas
que afetavam a Europa, o que ocorreu com muita
frequência na época da colonização.

No século 16, os mares foram desbravados por na-


vegadores curiosos e aventureiros que, a partir do
desenvolvimento das técnicas marítimas, decidiram
buscar novos territórios, sempre financiados pelos
estados. Essas viagens transformaram o imaginá-
rio europeu com os relatos desses locais inóspitos,
tanto na África quanto na Ásia e nas Américas. O
imaginário que se baseava nas obras fantasiosas e
de maravilhas, tanto da Antiguidade quanto da Idade
Média, e a sociedade cristã ocidental formularam
uma ideia sobre os nativos americanos e sobre essas
terras, e foi com esse pensamento que os portugue-
ses aportaram aqui.

O projeto de construção de uma imagem edênica


encontrava pontos em comum com o que os por-

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tugueses tinham de base epistemológica sobre o
desconhecido, que, no início da colonização, era a
América. Cristóvão Colombo escreveu que encontrou
o “Paraíso na Terra” ao chegar no “Novo Mundo”. Seus
diários deixaram marcas na sociedade da época, que
repercutiam o que seria esse local descoberto.

Para saber mais sobre a chegada dos portugueses


ao Brasil e a imagem feita dessa terra, atente-se ao
podcast a seguir:

Podcast 1

Dessa maneira, compreendemos que foram adicio-


nados relatos e memórias ao imaginário medieval já
existente. O Paraíso tinha significados diferentes para
religiosos, estadistas, navegadores, comerciantes e
sociedade em geral. Enquanto a Igreja enxergava a
possibilidade de concretizar o sonho da conversão to-
tal, de encontrar um lugar no qual as idolatrias seriam
extirpadas e o Cristianismo reinaria, as Monarquias
Nacionais queriam explorar ao máximo os recursos
dessas terras. Na Espanha, o mito do el dorado ga-
nhou força ao perceberem a abundância de ouro
e prata nas regiões ocupadas. No caso do Brasil,
a geografia contribuiu para a impressão de terem
encontrado o Paraíso, que deveria ser desbravado.
Acreditavam que no interior, para além das serras,
encontrariam seu próprio oásis.

Portugal, após o estabelecimento das Capitanias


Hereditárias e do Governo Geral, descobriu que a

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cana-de-açúcar se adaptara muito bem ao solo brasi-
leiro. Os lucros cresciam, as metrópoles enriqueciam:
encontraram o Paraíso. Os verdes das matas, o azul
do céu, as águas abundantes e límpidas e a terra
fértil foram características comuns nos textos dos
viajantes. Porém, conforme a colonização avançava,
os problemas surgiam.

A edenização do Brasil, apesar de ter reverberado por


tempos, teve sua antítese. A natureza exuberante
despertava medo, o que muitos autores interpretaram
como a transposição do mito do monstro. Na Europa
medieval as narrativas de fantasias e maravilhas,
como as de Jean de Mandeville, permearam o ima-
ginário da sociedade. Com a conquista e a coloniza-
ção, o bárbaro e o selvagem eram os indígenas aqui
encontrados e os negros que foram transformados
em escravos.

Em relação à cristianização, a Igreja enfrentou a


manutenção das crenças indígenas, mesmo que o
trabalho de conversão fosse constante. Em 1537,
o Papa Paulo III (1468-1549) emitiu a Bula Sublimis
Dei, na qual reconsiderava a condição humana dos
nativos. Dessa forma, eles não poderiam ser escravi-
zados e deveriam estar aos cuidados dos religiosos.
A partir desse momento, a escravidão dos africanos
se tornou uma realidade, modificando estruturalmen-
te a economia da colônia e da metrópole. Contudo,
mesmo com todo o esforço, as tradições indígenas
não desapareceram e, além disso, ocorreram amál-
gamas com as premissas católicas.

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A representação dos indígenas e das terras brasilei-
ras pelos viajantes diferiam entre si, mas todas abor-
davam com interesse e curiosidade os hábitos dos
nativos. Jean de Léry (1536 – 1613), por exemplo,
abordou diversos aspectos da sua relação com os
tupinambás, desde as alianças com os franceses, na
época da França Antártica (1555 a 1570), até tradi-
ções como o canibalismo, que causava repulsa nos
europeus. O ritual de comer seus inimigos era sím-
bolo de coragem e uma das celebrações das vitórias.
Outros grupos, como os aimorés, alimentavam-se de
carne humana, era prática comum, não apenas em
ocasiões especiais.

Se a natureza era edênica, o povo era diabólico.


Veremos abaixo, ao analisarmos a obra de Frei
Vicente do Salvador, um exemplo de como os in-
dígenas eram vistos pelos viajantes. O monstruo-
so, o fantástico, não era novidade e em cada nova
“descoberta”, como foi com a Ásia e as Índias, as
pessoas eram retratadas como o diferente. O outro
desperta medo e curiosidade, e essas classificações
são recheadas dos conceitos já pré-formulados. Com
isso, os europeus imprimiram nas terras americanas
suas elucubrações sobre aquilo que não conheciam.
Ao ter isso em mente, você entenderá com maior
clareza as especificidades de cada fonte colonial e
como utilizá-las não só na sala de aula (o que abor-
daremos abaixo), mas também na compreensão da
historiografia.

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Fontes documentais: as
crônicas coloniais e como
podemos analisá-las

O choque cultural da época dos “descobrimentos”


reverbera até os dias de hoje. Um novo continente
foi conectado ao mundo conhecido, um novo tempo
teve início, mas o imaginário já tinha sido elaborado
por parte dos europeus.

Uma forma de refletir sobre a construção historio-


gráfica é a partir da leitura das fontes documentais.
Elas indicam as especificidades e características
do momento. Porém, o resgate dessa documenta-
ção diz respeito às ideias e políticas do presente.
Ou seja, quando um autor retoma algum pensamen-
to, aprendemos muito sobre a sua condição e sua
intencionalidade.
Para trabalharmos a documentação na sala de aula,
alguns pontos devem ser seguidos. Primeiro, é im-
portante inseri-la no seu contexto, entender o que os
autores conheciam sobre o Brasil e, assim, temos
contato com as ideias da época. No caso do período
colonial, boa parte das fontes são crônicas. A pala-
vra remete à grega chrónos, que significa tempo. A
cronologia é uma narrativa linear, e percebemos que
o gênero textual aqui estudado tem essa caracterís-
tica, pois sendo um relato, ou não, discorre sobre um
determinado tema nessa ordem.

Vale destacar-se que o papel do historiador é analisar


a documentação e compreender o sujeito histórico.

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Os viajantes eram testemunhas oculares que esco-
lheram um ponto de vista para descrever o Brasil. A
objetividade e a subjetividade do discurso histórico
são aspectos que devem ser lembrados quando es-
tudamos as fontes. Mesmo que exista a verdade
histórica, as experiências do autor e o contexto em
que se sucederam devem ser levados em considera-
ção. A imparcialidade não tem espaço no processo
de análise documental, assim como em várias outras
áreas. Quando nós, professores, escolhemos determi-
nado livro para utilizarmos em sala de aula, estamos
tomando uma decisão que é parcial. Mesmo que haja
recomendação da escola ou do Estado, esses bole-
tins também estão permeados de escolhas. Isso não
é ruim, muito pelo contrário. E se você tiver sempre
essa premissa em seus pensamentos ao abordar um
documento, sua análise será mais proveitosa. Assim,
ao se trabalhar a fonte na sala de aula, convém ao
professor de História aliá-la à biografia do autor, fazer
um pequeno contexto da produção da fonte e de sua
publicação, e aí sim discutir o conteúdo.

Frei Vicente do Salvador (1564-1636) e sua


Historia do Brazil
O Frei Vicente do Salvador (nascido Vicente
Rodrigues Palha) foi membro da Ordem dos Frades
Menores, baiano e considerado o primeiro historiador
do país. Tornou-se bacharel em Direito em Coimbra,
além de ter estudado Teologia. Ao retornar ao Brasil,
em 1591, permaneceu entre o Rio de Janeiro e a
Bahia.

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Não se tem certeza de quando começou a escrever
sua obra mais conhecida – Historia do Brazil –, po-
rém acredita-se que foi publicada por volta de 1620.
Composta por cinco livros, sua narrativa é linear e
aborda desde a chegada de Cabral até a formação
dos Governos-Gerais, com destaque aos governantes.
O primeiro livro, além da cronologia política, retrata o
“descobrimento” da natureza, do clima, da vegetação
e dos animais, assim como os hábitos dos indígenas.
O segundo e terceiro livros começam a destacar o
estabelecimento das Capitanias Hereditárias e das
atividades exploratórias.

Lembre-se que a experiência adquirida ao coloni-


zar as ilhas africanas, que foram conquistadas ain-
da no século 15 (em 1420 foi a Madeira, em 1427
os Açores, em 1460 o Cabo Verde e em 1471 foi
São Tomé), conduziu o processo adotado no Brasil.
Quando a escravidão indígena não deu certo, logo
iniciaram o aprisionamento dos negros, acreditando
que eram mais capazes de exercer o trabalho duro.

Os três últimos livros discorrem, especialmente, so-


bre os governantes, como Tomé de Sousa (1503-
1579), que foi o primeiro Governador Geral do Brasil,
entre 1549 a 1553. Ele foi sucedido por Duarte da
Costa (?-1560), Mem de Sá (1500-1572), e assim su-
cessivamente, até o último administrador registrado
pelo autor, que foi Diogo Luís de Oliveira, que assumiu
o cargo entre 1627 e 1635. Vemos que a preocu-
pação de Salvador foi apontar os desdobramentos
políticos, o que fez o seu trabalho ser primordial para
entendermos a História do Brasil.

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No primeiro capítulo encontra-se uma informação
importante acerca da chegada dos portugueses. O
autor afirma que o Brasil foi descoberto por acaso,
não de propósito, o que já foi debatido vastamente
pela historiografia. Confira o trecho:

A terra do Brasil, que está na América, uma das qua-


tro partes do Mundo, não se descobriu de proposito e
de principal intento, mas acaso, vindo Pedro Alvares
Cabral, por mandado de el-rei Dom Manuel no anno
de 1500 para a India por capitão-mor de doze náus.
Afastando-se da costa de Guiné, que já era descoberta
ao Oriente, acho est’outra ao Occidente, da qual não
havia noticia alguma: foi a costeando alguns dias com
tormenta até chegar a um porto seguro, do qual a terra
visinha, ficou com o mesmo nome (SALVADOR, 1918,
p. 4).

É possível utilizar-se esse parágrafo em sala de aula


para se realizar uma dinâmica com um exemplar
documental. O professor deve expor uma breve bio-
grafia do autor e o contexto no qual está inserido.
É interessante mostrar outro excerto para fazer um
contraponto, que pode ser algum texto historiográ-
fico feito no século 20, para mostrar as diferenças
entre as formas de se enxergar e fazer História. A
atividade pode ser desde a interpretação do texto a
partir do que foi aprendido sobre o assunto ou até,
dependendo da idade dos estudantes, que nomeiem
a data do “descobrimento”, os nomes citados, seus
cargos e as localizações geográficas.

Ao falar da administração real, Salvador descreve o


funcionamento do sistema, como a Metrópole o apri-

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morou, além dos direitos e deveres dos donatários.
Logo no início da obra, quando descreve a paisagem
da Bahia, o estilo narrativo é mais figurativo, poético
inclusive. Contudo, ele equilibra sua escrita entre
metáforas e dados. Por exemplo, é considerado um
dos primeiros cronistas a explicar o significado do
nome Brasil, que foi atribuído por causa da árvore
com tronco vermelho – o pau-brasil – e que tinha
muito valor na Europa, por ser um corante natural.

A sua obra se tornou um manual sobre a História


do início da Colônia no Brasil. Retiramos dela infor-
mações sobre os séculos 16 e 17, tanto no aspecto
político quanto cultural, e das descrições naturais que
nos ajudam a criar uma imagem mental de como era
o país naquela época. Além disso, devemos analisar
a própria construção de História do Brasil, as espe-
cificidades do discurso e dos fatos abordados. Toda
escolha pressupõe silêncios, portanto, o professor
deve ter isso em mente quando estuda a História da
Historiografia. Por exemplo, quando o autor desen-
volve a formação dos governos, ele analisa a ação
portuguesa e, em um caso específico, como lidava
com as invasões. Em 1555, a França estabeleceu
uma colônia no que hoje é o Rio de Janeiro, chama-
da França Antártica. Para Salvador, os franceses
foram responsáveis por estimular os conflitos entre
os portugueses e os indígenas da região, que foram
aliados dos primeiros nos motins até a tomada da
região. Ao mesmo tempo, ele critica a falta de inicia-
tiva da Coroa para ocupar o território, que era extenso

23
e necessitava de um largo aparato militar para ser
guardado. Veja o que ele diz sobre o episódio:

O Rio de Janeiro está em vinte e três graus debaixo do


trópico de Capricórnio, e impropriamente se chama rio,
porque antes é um braço de mar, que alli entra por uma
bocca estreita que se pode facilmente defender de uma
parte a outra com artilharia [...]. Estas commodidades
e outras muitas deste rio e bahia, juntas com a fertili-
dade da terra, a faziam digna de ser povoada, quando
se povoaram as mais do Brasil; mas, ou porque coube
na doação a Pero de Góes, que se não atreveu com o
gentio [...], ou por não sei que descuido, ella estava por
povoar até que Nicoláu Villaganhon, homem nobre de
França e cavalleiro do habito de S. João, informado
dos francezes, que por alli vinham commerciar com o
gentio tapuya, determinou de vir a povoal-a (SALVADOR,
1918, p. 169).

No texto vemos uma crítica a Pero de Góes (1503-


1554), um dos primeiros capitães que ganhou terras
no Brasil e que não conseguiu dominar os nativos
(que ele chama de gentios). Porém, os franceses,
como Nicolas de Villegagnon (1510-1571), travaram
alianças com os indígenas que estavam naquela
região e, assim, estabeleceram relações comerciais
baseadas na exploração da Mata Atlântica.

Contudo, nas entrelinhas do que foi formulado por


Salvador está uma preocupação maior: que a vontade
divina fosse acatada. Laura de Mello e Souza diz que
o frei associou a América à terra do demônio, com
pecados intrínsecos, mas que foi agraciada com a
chegada dos europeus. O ato de civilizar o local seria

24
o caminho pelo qual deveriam passar, sobretudo os
indígenas, para se purificarem. Como afirmamos
anteriormente, a Igreja tinha um projeto de conversão
universal na tentativa de preparar a humanidade para
o Juízo Final. Além disso, o “Novo Continente” era
considerado o Éden para alguns religiosos. Salvador,
por sua vez, acreditava que a colônia não seguira os
preceitos de Deus, uma vez que a parte “Brasil” se
tornou mais forte que a “Terra de Santa Cruz”.

Gabriel Soares de Sousa (1540-1591) e o


Tratado Descritivo do Brasil
Gabriel Soares de Sousa foi um nobre português que
veio ao Brasil para se tornar senhor de engenho. O
imaginário por trás da América, de ser uma terra rica
tanto em relação à flora e à fauna quanto aos miné-
rios, fez com que muitos portugueses e espanhóis
se aventurassem pelo Atlântico na esperança de en-
riquecerem. No caso de Sousa, assim como muitos
dos senhores de engenho, foi lhe dada a possibili-
dade de cultivar a terra. O sistema colonial brasileiro
tinha uma estrutura bem alicerçada, com todas as
produções voltadas ao lucro da metrópole. A leitura
dos viajantes auxiliou os historiadores a revisarem
o mito de que a colonização aqui foi feita sem muito
planejamento. Pelo contrário, a burocracia era grande
e feita para aperfeiçoar a fiscalização metropolitana.
A biografia do autor corrobora isso, pois ele retornou
a Portugal no intuito de conseguir uma licença para
explorar o interior do país, visando a encontrar ouro
e prata.

25
A historiografia já analisou que muitos colonos des-
bravaram as terras a oeste no intuito de enriquecerem
com os dotes naturais. Porém, no caso de Sousa,
ele decidiu pedir permissão, seguir as regras. Foi
nessa estadia em Portugal que escreveu seu Tratado
Descritivo do Brasil (também conhecido como
Notícias do Brasil), na provável busca por títulos e
posses, algo comum entre cronistas e viajantes, além
de ressaltar as diferenças de narrativas entre autores,
inclusive entre os que estamos analisando aqui.

Sousa começa seu texto com um preâmbulo feito


por uma espécie de roteiro, que chamou de “infor-
mações sobre a costa do Brasil”. Ele diz:

Como todas as cousas tem fim, convém que tenham


principio, e como e de minha pretenção é manifestar
a grandeza, fertilidade e outras grandes partes que
tem a Bahia de todos os Santos e o demais Estado do
Brasil [...], à El-Rei Nosso Senhor convém, e ao bem do
seu serviço, que lhe mostre, por estas lembranças, os
grandes merecimentos d’este seu Estado, as qualidades
e estranhezas d’elle [...] (SOUSA, 1879, p. 1).

No trecho acima, percebemos a exaltação das terras


brasileiras e como alertava o Rei sobre os predicados
da colônia. Assim como Salvador, Sousa descreve a
natureza e o Governo Geral, discorrendo sobre cada
capitania e seus donatários. Sua escrita tem mais
adjetivações direcionadas à paisagem, sobretudo
quando fala dos engenhos, da hidrografia e do meio
ambiente que o circunda, sendo este majoritaria-
mente a Bahia.

26
Os indígenas também aparecem nas páginas como
partes importantes do processo de colonização, in-
clusive na questão das invasões. Os franceses, que
tomaram a costa sudeste, instauraram o processo de
exploração da mata adjacente e tal prática era refuta-
da pela Coroa. Sousa alertou sobre a irregularidade
e que os portugueses deveriam averiguar melhor a
situação. Após a expulsão, eles adotaram a venda de
produtos como o pau-brasil antes do estabelecimen-
to dos engenhos para a produção de cana-de-açúcar.
Agora, os indígenas nem sempre eram retratados de
forma amena e essa descrição pode ser feita em sala
de aula. Veja o exemplo abaixo:

Parece razão que não passemos avante sem declarar


que gentio é este a quem chamam de Aymorés, que
tanto damno têm feito á esta capitania dos Ilhéos, se-
gundo fica dito, cuja costa era povoada los Tupiniquins,
os quaes a despovoaram com medo d’estes brutos, e se
foram viver no sertão [...]. Descendem estes Aymorés
de outros gentios a que chamam Tapuias, dos qua-
es nos tempos d’atrás se ausentaram certos casaes,
e foram-se para umas serras mui asperas fugindo a
um desbarate em que os puzeram seus contrario [...]
(SOUSA, 1879, p. 47).

Aqui, os aimorés são descritos como brutos, rivais


dos tupiniquins e descendentes dos tapuias. Ele ma-
peia as tribos e, com as adjetivações, conseguimos
perceber qual tipo de interpretação é construída so-
bre os indígenas, sendo que o foco principal eram os
proveitos que os portugueses poderiam ter. O profes-
sor pode destacar alguns parágrafos de diferentes

27
autores para mostrar ao estudante as narrativas e,
dessa forma, apontar como a historiografia brasileira
se desenvolveu. Já vimos neste e-book as divergên-
cias entre o texto de Frei Vicente do Salvador e o de
Gabriel Soares de Sousa, tanto na intenção quanto
no estilo de escrita.

Ao longo do tratado, que também foi chamado de


notícia, o autor elencou as riquezas da terra e como
os nativos poderiam auxiliar na extração. Olha só o
exemplo:

Em algumas partes do sertão da Bahia se acham es-


meraldas mui limpas e de honesto tamanho, as quaes
nascem dentro um cristal, e como ellas crescem muito
arrebenta o cristal; e os indios quando as acham dentro
n’elle, põem-lhe o fogo para o fazerem arrebentar [...]
(SOUSA, 1879, p. 328).

O trato dos indígenas com as esmeraldas poderia ser


apropriado pelos portugueses, algo que o próprio au-
tor desejava fazer. Uma das principais contribuições
de Soares de Sousa foi essa, expor as riquezas da ter-
ra e mostrar como deveriam ser exploradas. Mesmo
assim, muitas vezes esses nativos foram descritos
como bárbaros e pouco civilizados, interpretação co-
mum naquela época. A sua obra é fundamental para
que a História Colonial fosse conhecida e estudada.

André João Antonil (1649-1716) e o “Cultura e


opulência do Brasil por suas drogas e minas”
André João Antonil (ou Giovanni Antonio Andreoni)
foi um jesuíta italiano que chegou ao Brasil em 1681

28
acompanhado do Padre Antônio Vieira (1608-1697)
e aqui permaneceu. Fez carreira como professor de
retórica, assumiu a reitoria do Colégio da Bahia e,
também, realizou excursões no país. Diferentemente
dos autores anteriores, sua obra foi sequestrada no
século 18, logo após sua publicação. A perseguição
aos livros foi uma prática comum naquela época, por
diversos motivos, por questão religiosa e/ou política,
sempre com a outorga da Coroa. No caso de Cultura
e opulência do Brasil por suas drogas e minas, havia
o temor de que outros países se interessassem em
invadir o Brasil devido às suas riquezas. Devido ao
confisco, o livro foi quase destruído e apenas recu-
perado no século 19.

O foco da obra são as principais economias brasi-


leiras, que foram divididas em quatro partes, respec-
tivamente: o açúcar, o tabaco, o ouro e a pecuária.
Assim como Gabriel Soares de Sousa, Antonil apre-
sentou o patrimônio natural brasileiro que era muito
útil para Portugal. Essas atividades demonstram a
vastidão do território colonial e ele explica como é e
como deveria ser mais bem aproveitado. Uma análise
clássica dessa obra foi feita por Janice Theodoro
da Silva, que apontou as especificidades de cada
uma das temáticas acima. Em relação ao açúcar, ela
destaca que o autor analisa todos os processos de
preparação do produto, desde o plantio da cana até
a saída do engenho para a exportação. O comércio
também era importante, então discutia os preços e
o mercado internacional, o que mostrava a popula-
rização do açúcar na época.

29
O trabalho de Antonil foi uma das fontes documentais
que embasaram o conhecimento moderno sobre a
decadência do ciclo do açúcar no final do século 17,
momento que o próprio autor vivenciou. Se crônicas
como as de Frei Vicente do Salvador e de Sousa ti-
nham um estilo narrativo mais próximo do relato, o
italiano buscava ser mais técnico, com informações
colhidas especificamente para isso. Veja só como
ele descreve suas intenções:

Dos engenhos huns se chamão reaes, outros inferiores


vulgarmente engenhocas. Os reaes ganhárão este ape-
lido, por terem todas as partes, de que se compoem, e
todas as oficcinas perfeitas, cheias de grande numero
de escravos [...]. E porque algum dia folguei de ver hum
dos mais afamados, que há no reconcavo á beira-mar
da Bahia [...] movido de huma louvavel curiosidade,
procurei no espaço de oito, ou dez dias que ahi estive
[...]. E valendo-me das informações, que me deu (...) me
resolvi a deixar neste borrão tudo aquillo [...] para que
os que não sabem o que custa a doçura do assucar a
quem o lavra, o conheção [...] (ANTONIL, 1837, pp. 3-4).

Antonil procurou se informar, obteve conhecimento


sobre o ofício com donos de engenho e deixou claro
no excerto a intenção de mostrá-lo aos que não o re-
conhecem. Era um trabalho complexo, que mobilizava
muita gente, desde feitores, lavradores, caixeiros, o
senhor de engenho e, sobretudo, os escravos, que
eram vistos como parte significativa do sistema.

O tráfico de escravos atingira um pico durante o sécu-


lo 17 e uma das razões para isso era a disseminação
desse tipo de mão de obra compulsória em outros

30
locais. Nos Estados Unidos, por exemplo, foram colo-
cados nas plantações de tabaco e algodão, enquanto
no Brasil a maioria se encontrava nas lavouras de
cana. Nas Antilhas e em outras regiões da América,
espanhóis e holandeses levaram algumas mudas e
iniciaram os plantios, aumentando a concorrência
para o açúcar brasileiro. Os preços internos subiram,
já que a inflação em Portugal era alta, atingindo ou-
tros produtos também. Antonil, além de fazer essas
análises, propunha soluções.

Já o tabaco, que não era a principal matéria-prima de


exportação do Brasil, ganhou força econômica no sé-
culo 17. Os compradores mais regulares vinham dos
reinos italianos, da França e da Inglaterra, além de
ser muito contrabandeado dentro da própria colônia.
Basicamente, a demanda de uso desse produto, que
era alta, fez com que o autor o visse como agregador
na economia.

Sobre a pecuária, por sua vez, ele a tratou como par-


te do complexo sistema econômico colonial portu-
guês e brasileiro, e não apenas como atividade de
subsistência. Os animais fornecem muitos produtos
além da carne, como o couro, que é multifacetado
e utilizado por outras áreas também. A extensão da
colônia, seu relevo, majoritariamente de planície, o
clima e a hidrografia permitiam a criação de gado. O
autor relaciona todas as atividades, como se comple-
mentavam e o quanto essa combinação coordenada
renderia de lucro para Portugal.

31
O descobrimento de ouro e pedras preciosas no in-
terior foi muito comemorado pela metrópole e pelos
colonos, o que reacendeu o imaginário em volta do
el dorado na América Portuguesa. Porém, a extra-
ção deveria ser organizada, já que muitos homens
se deslocaram para lá na ânsia de enriquecerem e
não necessariamente pensavam na atividade como
prática econômica substancial para todos. Como re-
ligiosos, ele compreendia o problema que a ambição
poderia fazer ao povo.

Outro ponto que devemos notar como educadores é


a linguagem do texto que, aliada ao estilo de escrita,
tornam qualquer obra única. Para saber mais sobre
a importância de ler o documento original, confira o
podcast a seguir.Podcast 2 – Módulo

Podcast 2

Assim, o foco de Antonil era demonstrar com núme-


ros e fatos o peso do Brasil para as contas públicas
da Coroa, o que justificaria um investimento mais
ostensivo na colônia. O autor revolucionou a forma
de se enxergar a História brasileira e os destaques
dados em sua obra demonstram o foco e o desfoco,
o que importava e o que não importava dentro do
seu ponto de vista.

32
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste e-book você aprendeu que a História é a ci-
ência que utiliza o passado como matéria-prima e
a sua escrita é a receita produzida pelo historiador.
Para isso, ele segue alguns passos, que seria a me-
todologia. A História é diversa, o que faz a análise
historiográfica muito interessante. A História da
Historiografia é a disciplina que estuda os próprios
historiadores e, também, a historicidade da História,
isto é, como essa ciência era vista e produzida em
cada época. A História do Brasil Colonial feita pelos
viajantes que vivenciaram diferentes experiências
aqui mostra a maneira como a colônia era entendida.
Conseguimos, assim, aliar os conhecimentos factuais
acerca desse período (como os ciclos econômicos,
as revoltas, as mudanças políticas, a administração,
os rituais e costumes etc.) com as teorias históricas
comuns à época.

A América foi imaginada como um lugar maravilhoso,


mas inóspito, ou seja, o contraste entre o real e o
imaginado ficou turvo com a chegada dos europeus
na medida em que entendiam essas terras a partir do
seu prisma. Portanto, o continente foi palco de uma
ambiguidade latente: de um lado, o Jardim do Éden,
o Paraíso Terreal, puro, natureza exuberante, sem os
vícios que a Europa vivia. Do outro, o Pecado, o pa-
ganismo dos indígenas, a manutenção das idolatrias
mesmo com a conversão, os motins que aconteciam
mesmo com o processo civilizatório feito pelos colo-

33
nizadores. Essa era a forma de se escrever a História
no período colonial, mas, para exemplificar, temos
três representantes de viajantes e cronistas da época
que foram bastante debatidos desde o século 19,
que são: Tratado Descritivo do Brasil, ou Notícias
do Brasil (1587), de Gabriel Soares de Sousa (1540-
1591); Historia do Brazil, de Frei Vicente do Salvador
(1564-1636), e Cultura e opulência do Brasil (1711),
de André João Antonil (1649-1716).

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SÍNTESE

HISTORIOGRAFIA
BRASILEIRA
O REGISTRO DO BRASIL PELOS CRONISTAS E
VIAJANTES NO PERÍODO COLONIAL:
CONHECIMENTOS E DOCUMENTOS HISTÓRICOS

História: manipulação do passado a partir de critérios definidos no presente;

Memória: uma construção feita a partir de questões múltiplas, como a política, economia,
cultura� Ela é individual e coletiva e é parte da matéria-prima da História�

Mito edênico: remete ao Jardim do Éden, ao Paraíso na Terra� Ele pode ser imaginário ou
real, depende do ponto de vista do interlocutor� Diz mais respeito aos europeus do que aos
indígenas, assim como a demonização�

Sobre as crônicas: essas obras têm suas especificidades apesar de tratarem de assuntos
parecidos� Todos discutem sobre os indígenas, sobre os ciclos econômicos, sobre o relevo,
a flora e a fauna, sobre a administração colonial� Porém, eles têm diferenças profundas na
linguagem e na intencionalidade�

Frei Vicente do Salvador (1564-1636): Historia do Brazil (? - 1620) – trazia sua visão
religiosa sobre a terra; a obra se tornou um manual sobre a História do Brasil�

Gabriel Soares de Sousa (1540-1591): Tratado Descritivo do Brasil ou Noticias do Brasil –


tinha a intenção de conseguir títulos e terras� Visão mais otimista da colonização�
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