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CARDEAL CAETANO —

SOBRE O SACRIFÍCIO DA
MISSA E SEU RITO, CONTRA
OS LUTERANOS
DE MISSAE SACRIFICIO ET RITU, ADVERSUS LUTHERANOS
Ao Papa Clemente VII, Sumo Pontífice.
Dividido em seis capítulos.
1. Sobre o que é este trabalho.
2. Concordâncias e diferenças entre católicos e luteranos
sobre o Sacrifício da Missa.
3. Pela instituição de Cristo, a Eucaristia é imolada.
4. Pela instituição de Cristo, a Eucaristia é imolada para a
remissão dos pecados.
5. Objeções da Epístola aos Hebreus contra o Sacrifício da
Missa.
6. Resposta às objeções.
Saudações ao Sumo Pontífice Clemente VII da
parte do Cardeal Tomás de Vío Caetano.
Santíssimo Padre: certa vez o senhor me ordenou, como consultor do
Núncio, que escrevesse o que deveria ser respondido quanto às
objeções do livro sobre a Ceia do Senhor, que afirmava que na
Eucaristia está o Corpo e o Sangue do Senhor apenas como [o
significado] no símbolo; Mas desde que eles me ofereceram muito
recentemente outro livreto luterano, também sobre a Ceia do Senhor,
que afirma que na Eucaristia está o verdadeiro Corpo e Sangue, mas
nega o sacrifício da Missa, pareceu-me que também contra todas
aquelas igrejas dos cismáticos não era necessária nenhuma ordem
para conhecer as razões do erro desta nova heresia, senão que faz
parte do meu ofício. Receba, então, para que você possa julgar de
acordo com sua opinião, este pequeno trabalho. Com os melhores
desejos.

Primeiro capítulo — Sobre o que é este


trabalho (Quae sit intentio operis)

O único Mestre de todos, Nosso Senhor Jesus Cristo, ao


refutar os Saduceus, apenas argumentou com base nos
livros de Moisés, que eram os únicos que eles
aceitavam. Assim, ele nos mostrou que contra os
hereges não usamos evidências que eles não admitem,
mas apenas os testemunhos sagrados que eles não
negam.
Por isso, ao escrever sobre o Sacrifício da Missa contra
os hereges chamados luteranos que se apóiam
unicamente nos testemunhos da Sagrada Escritura,
pretendo realizar toda a discussão e explicação com
base apenas nas [mesmas] Sagradas Escrituras. Não só
para que não se vangloriem de dizer que, ao negar o
sacrifício da Missa, se baseiam no sólido fundamento
das Sagradas Escrituras, mas também para que aqueles
com menos instrução não pensem que o Sacrifício da
Missa não se baseia na autoridade das Escrituras, mas
apenas na instituição da Igreja; e também para que os
luteranos, que erram por ignorância, possam
reconsiderar.
Para que todos possam saber claramente a verdade,
primeiro se explicará em que concordam e como os
luteranos diferem dos católicos; depois, o que se
encontra nas Sagradas Escrituras sobre o sacrifício da
Missa; e, finalmente, as objeções luteranas serão
resolvidas.

Segundo capítulo — Concordâncias e


diferenças entre católicos e luteranos
sobre o Sacrifício da Missa
(Convenientia et differentia
Lutheranorum cum Catholicis circa
sacrificium Missae)

Os luteranos concordam que a Missa pode ser chamada


de “sacrifício memorial”, porque o verdadeiro Corpo de
Cristo, com seu verdadeiro Sangue, é consagrado,
venerado e recebido em memória do sacrifício
oferecido na cruz; pois o Senhor diz: “Fazei isto em
minha memória” [Lc. 22,19; 1 Cor. 11,24–25].
Mas eles negam duas coisas. A primeira: que o Corpo e
o Sangue de Cristo sejam oferecidos a Deus. Portanto,
embora eles admitam que o verdadeiro corpo de Cristo
está no altar, eles negam que esse verdadeiro Corpo
seja oferecido a Deus.
A segunda: que sobre o altar haja uma “hóstia” ou
sacrifício para expiação dos pecados [no latim,
“hostiam” significa “vítima”], tanto dos vivos como dos
mortos.
Ambas as coisas [ditas pelos luteranos] são
[aparentemente] baseadas na doutrina da Epístola aos
Hebreus, onde claramente parece que, pelos pecados
do mundo, toda a oferta do Corpo de Cristo, feita
apenas uma vez na Cruz, é suficiente. Daí concluem
que, embora o culto ao Corpo de Cristo em memória da
sua paixão e morte tenha sido instituído pelo próprio
Cristo, a oferta do seu Corpo como hóstia [vítima] pelo
pecado é uma invenção humana, contrária aos textos
da Sagrada Escritura.
Terceiro capítulo — Pela instituição de
Cristo, a Eucaristia é imolada (Ex
institutione Christi Eucharistiam
immolari)

Porém, nós, católicos, sabemos que nos textos sagrados


está registrada a imolação da Eucaristia. Os
evangelistas, certamente (especialmente São Lucas 22,
e mais ainda São Paulo, em 1 Coríntios 11), nos dizem
que, depois de muitas outras coisas que Nosso Senhor
Jesus Cristo fez no jantar, ele lhes ordenou: “Fazei isto
em minha memória”. Essas palavras, sendo de Jesus
Cristo, devem ser muito bem examinadas, tanto no
pronome “isto”, quanto no verbo “fazei”, bem como
“em memória de mim”.
¶ Para entender o que é indicado pelo pronome “isto”,
deve-se examinar as palavras anteriores. O que precede
é que Jesus tomou o pão, deu graças, partiu-o, deu-o e
disse: “Tomai e comei, isto é o meu Corpo, que se
partiu por vós”, ou segundo São Lucas, “é dado”. E
imediatamente acrescentou: “Fazei isto em minha
memória”. Como o pronome “isto” não se limita a
apontar alguns e não apontar outros das coisas que
precedem, segue-se que indica a totalidade daquelas
que precedem.
¶ A palavra “Fazei” contém muitos mistérios, pois
[Cristo] não diz: “Dizei isto”, mas, “Fazei isto”, para
apontar que o que é ordenado não consiste em dizer
mas em fazer, e que o “dizer” que aqui aparece não é
“dizer” algo, mas sim “fazer” algo; para que
entendêssemos que as palavras da consagração são
palavras que produzem o que significam. Ao adicionar,
“em memória de mim”, ele distingue “fazer” de
“comemorar”. Ele não disse mais expressamente:
“Comemore isso”, mas sim: “Fazei isto em minha
memória”. Nosso Senhor Jesus Cristo ordena que
“isto”, i.e., tudo o que precede, seja feito em memória
dele. O que é ordenado é “faça isto” e que seja feito
“para lembrar” Nosso Senhor Jesus Cristo.
¶ Como nas palavras para fazer isso entende-se não
apenas “fazer” o Corpo de Cristo [i.e., consagrar a
Eucaristia através das palavras e dos atos de
consagração], mas também “fazer” o Corpo de Cristo
“que é partido ou dado” por nós, é claro que Nosso
Senhor Jesus Cristo nos ordenou que “façamos” o seu
corpo que por vós se rompe e se dá, como se dissesse:
“Que se imola por ti”, porque só se rompe e se dá assim
que se rompe e se dá na cruz (isto significa “ele se
sacrifica”) por você. Portanto, [dizer para] “fazer”
[consagrar] o meu Corpo que se sacrifica por vós é o
mesmo que [dizer para] fazer o meu Corpo na
medida em que se sacrifica por vós.
¶ Para você entender melhor o que dizemos, note que
se Nosso Senhor Jesus Cristo tivesse acrescentado as
palavras “que é partido por vós” ou “[que é] dado por
vós” apenas para expressar a verdade [da presença] de
seu Corpo, teria sido suficiente dizer: “que você vê em
minha pessoa”, ou algo assim. Mas longe de Nosso
Senhor Jesus Cristo uma linguagem imprecisa, porque,
negado isso, toda certeza é retirada das palavras. Isso
seria se perder em meio a infinitas possibilidades. Ao
dizer, então, “que é partido ou dado por você”, significa
exatamente: “fazei [consagrai e oferecei] meu Corpo
como ele é oferecido por você, e fazei o mesmo em
memória de mim.”.
¶ “Fazer isto” em memória de Cristo é mais do que
fazer o Corpo de Cristo consagrando-o, porque é
também fazer o Corpo de Cristo que é dado e partido
por vós. É também mais do que lembrar de Cristo,
porque é fazer, em memória de Cristo, o seu Corpo que
por nós é dado e partido. Além disso, dar-se e partir-se
por nós é o mesmo que morrer por nós, já que doar-se
genericamente significa oferecer-se, e partir-se
significa especificamente a forma de se oferecer, ou
seja, partindo-se: Ele se entregou a Deus na Cruz
através do partir de suas mãos, pés e lado por nós.
Portanto, quando Nosso Senhor Jesus Cristo ordenou
“Fazei isto em memória de mim”, Ele ordenou: “Fazei
isto por meio da imolação em memória de mim”. Fazer
“o Corpo de Cristo que se imola” é fazê-lo imolando-o
ou por meio da imolação, de modo que seja o Corpo de
Cristo enquanto é imolado. Se não fizermos essas duas
coisas: 1ª) fazer o Corpo de Cristo “consagrando-o”; e
2ª) “imolando” o que é dado e partido por nós, não
fazemos “o Corpo de Cristo na medida em que se
imola”. A isso se acrescenta outra coisa, a saber, 3ª)
fazê-lo “em memória” de Jesus Cristo.
¶ Perceba, leitor prudente, o que foi feito na Ceia do
Senhor para que você entenda como corresponde
instituição com instituição, feito com feito e imolação
com imolação. A ceia pascal, instituída em memória da
partida do Egito, consistia no ato de uma imolação, de
modo que tal ceia era a imolação do cordeiro pascal. Da
mesma forma, Nosso Senhor Jesus Cristo, ao terminar
a imolação do cordeiro pascal, institui em si a nossa
nova Páscoa, quando se imola dizendo: “Este é o meu
Corpo que vos é dado ou partido”, “Fazei isto em
memória de mim”. Como se dissesse verbalmente o que
exprimia com o facto da substituição: “Tal como até
agora celebrastes a Páscoa em memória da partida do
Egipto, doravante fazei isto em memória da minha
imolação”. Como se ele estivesse falando acerca da
mesma substituição da velha Páscoa pela nova, e
dissesse: “Aquela Páscoa você fazia imolando-a em um
jantar comunitário; agora fazei isto imolando-o [o
Cristo Eucarístico] em uma mesa comunitária em
minha memória”. Assim, pela mesma substituição da
velha Páscoa pela nova, fica implícito que quando ele
diz: “Fazei isto em memória de mim”, ele quer dizer
que deve ser feito por meio da imolação, visto que na
velha Páscoa era feito deste modo.
¶ Que tal é o sentido autêntico deste mandamento é
provado pelos fatos relatados de São Paulo em 1
Coríntios 10. São Paulo lista entre as coisas imoladas o
pão santo e o cálice do Sangue de Cristo; [ele] trata
nossa mesa como um altar; e ele coloca aqueles que
comem e bebem da mesa do Senhor como aqueles que
comem e bebem coisas que foram imoladas. Com isto
fica claro, por um lado, que os Apóstolos
compreenderam o mandamento de Cristo “Fazei isto
em memória de mim” como [sendo uma ordem a] fazer
a Eucaristia imolando-a; por outro lado, que na Igreja
de Cristo, no tempo dos Apóstolos, a Eucaristia não era
apenas um sacramento, mas também um sacrifício; e,
além disso, é considerada como a imolação do Corpo e
do Sangue do Senhor não só nos usos da Igreja e nos
livros dos Doutores, mas também na Sagrada
Escritura.
As palavras do apóstolo são estas: “Fuja da adoração
aos ídolos. Já que falo com pessoas prudentes, julgue
por si mesmo o que digo. O cálice da bênção que
abençoamos, não é a comunhão do Sangue de Cristo? O
pão que partimos não é a comunhão do Corpo de
Cristo? Porque todos nós que participamos do mesmo
pão, embora muitos, nos tornamos um só pão, um só
Corpo. Considere a Israel segundo a carne; aqueles que
comem das vítimas entre eles não têm uma parte no
altar? Quero dizer com isso que o ídolo ou o que é
sacrificado aos ídolos vale alguma coisa? Não, mas as
coisas que os gentios sacrificam, eles sacrificam para os
demônios e não Deus. E eu não quero que vocês
tenham qualquer parceria com os demônios; Você não
pode beber o cálice do Senhor e o cálice dos demônios.”
Isso é o que ele diz.
Com estas palavras fica claro que o Apóstolo coloca o
“pão que partimos” e o “cálice da bênção” na mesma
categoria das vítimas de Israel e das coisas sacrificadas
aos demônios; que coloca a mesa do Senhor na mesma
categoria que o altar de Israel e a mesa dos demônios; e
coloca aqueles que comem da mesa do Senhor e bebem
daquele cálice na mesma categoria daqueles que
participam das vítimas de Israel e comem coisas
mortas para demônios. Com essas razões, ele afirma
que eles não podem tomar parte nas coisas sacrificadas
a Deus e aos demônios.
Se o pão e o cálice de Cristo não fossem sacrificados a
Deus, todos os argumentos de Paulo, tanto sobre as
coisas sacrificadas ao verdadeiro Deus por Israel e aos
demônios pelos gentios, entrariam em colapso.
Mas seu testemunho de como o pão e o cálice de Cristo
foram imolados em seus dias é tão claro que dispensa
explicação.

Quarto capítulo — Pela instituição de


Cristo, a Eucaristia é imolada para a
remissão dos pecados (Ex institutione
Christi immolari Eucharistiam in
remissionem peccatorum)

Com o mesmo mandamento de Nosso Senhor Jesus


Cristo e seguindo o mesmo procedimento, a outra coisa
que os luteranos negam pode ser facilmente refutada:
que existe [na Eucaristia] uma hóstia [vítima] para a
expiação dos pecados.
Em São Mateus 26,28, Nosso Senhor Jesus Cristo,
tomando o cálice, não apenas disse: “Este é o meu
Sangue que será derramado por vocês”, mas também
acrescentou: “Para a remissão dos pecados”, e
finalmente: “Fazei isto em memória de mim.”
Assim, no mandamento: “Fazei isto”, inclui-se fazer o
Sangue de Cristo no cálice, imolando-o, não só
enquanto se derrama, mas também enquanto é
derramado por muitos para a remissão de seus
pecados. O que exatamente essas palavras significam é
que, assim como o derramamento de sangue para a
remissão dos pecados é a própria vítima cruenta pelos
nossos pecados, da mesma forma, fazer, como tal, o
cálice [incruento do Sangue que é derramado para a
remissão dos pecados] é realizar o único imolar do
cálice de Sangue, assim que for derramado, para a
remissão de pecados, enquanto realiza a mesma
[única] remissão. Derramar para a remissão de
pecados é fazer a mesma remissão até onde for
possível, independentemente do efeito. Portanto, não é
uma invenção dos homens, mas [serve] para
compreender e obedecer ao mandamento divino não
apenas de oferecer o corpo e sangue de Cristo sob as
espécies de pão e vinho em memória de Nosso Senhor
Jesus Cristo, mas também oferecê-los em expiação
pelos pecados. Além disso, o usual em todas as Igrejas
[a imolação de Cristo], não só latinas e gregas, mas
também armênias, persas e outras espalhadas pela
terra, é a melhor interpretação desta lei, pois desde os
tempos antigos sempre a interpretaram dessa forma.
Quinto capítulo — Objeções da Epístola
aos Hebreus contra o Sacrifício da
Missa (Obiectiones ex Epistola ad
Hebraeos contra sacrificium Missae)

Baseando-se em muitas passagens da Epístola aos


Hebreus, cap. 7 a 10 inclusive, os luteranos se levantam
contra essas duas coisas estabelecidas.
<Contra> a celebração diária da oferta da Eucaristia,
eles respondem com três argumentos.
Em primeiro lugar, por causa da multiplicidade de
sacerdotes. Pois, de acordo com esta epístola, a
diferença entre Cristo, o sacerdote do Novo
Testamento, e o sacerdote do Antigo Testamento é que
Cristo é único, enquanto este último teve que se
multiplicar, visto que Cristo é eterno, enquanto este
último era temporário. Portanto, é inconveniente
afirmar no Novo Testamento uma Hóstia para a qual
um único sacerdote, Cristo, não é suficiente, mas
requer um sacerdote que suceda a outro segundo a
sucessão temporal, como vemos o que acontece com o
sacrifício da Missa.
Em segundo lugar, por causa da repetição da oferta.
Pois de acordo com esta Epístola, a diferença entre o
sacrifício do Antigo Testamento e o do Novo consiste
em que o primeiro era repetido todos os dias pelos
sacerdotes simples e todos os anos pelas mãos do Sumo
Sacerdote; ao passo que agora não se repete nem todos
os dias nem todos os anos, mas é oferecido apenas uma
vez. Portanto, é inconveniente afirmar no Novo
Testamento um sacrifício que deve ser repetido com
frequência.
Terceiro, por causa do que é oferecido. Pois de acordo
com esta Epístola, a diferença entre o sacrifício do
Antigo Testamento e o do Novo consiste em que então
o sacerdote fazia uso do Sangue de cabras e outros
animais, enquanto agora Cristo ofereceu seu próprio
Sangue apenas uma vez.
Portanto, é inconveniente dizer que Ele se ofereceu por
nós sob as espécies do pão e do vinho, visto que
ofereceu a si mesmo mais do que o suficiente uma vez.
<Contra> a Eucaristia ser uma hóstia para a expiação
dos pecados, eles também apresentam três
argumentos.
Em primeiro lugar, por causa da reiteração, porque
nesta mesma Epístola a reiteração das Hóstias é
atribuída à incapacidade das Hóstias do Antigo
Testamento de apagar os pecados. Se elas pudessem
limpar os pecados, elas teriam deixado de se oferecer: é
por isso que no Novo Testamento a oferta da Hóstia
que tira os pecados não tem que ser repetida. Seria
inconveniente, então, afirmar no Novo Testamento
uma hóstia para a remissão dos pecados que deva ser
repetida, como a Missa.
Segundo, por causa da suficiência do sacrifício de
Cristo. Porque Cristo, oferecendo-se na cruz com uma
única oferta, consuma todos os que se aproximam dele,
etc. Portanto, adicionar no Novo Testamento outra
Hóstia para a remissão dos pecados seria cometer uma
injúria contra a enorme suficiência da hóstia de Cristo
para todos os pecados do mundo.
Em terceiro lugar, por causa dos pecados perdoados,
porque (como indicado naquela epístola), onde não há
mais pecados para expiar, uma hóstia não é necessária
para eles, mas já foram abolidos graças ao Novo
Testamento que permaneceu rubricado com a morte de
Cristo. Portanto, no Novo Testamento não há espaço
para outra hóstia na remissão de pecados.

Sexto capítulo — Resposta às objeções


(Responsio ad obiecta)

O fundamento da verdade e da compreensão das várias


declarações da Sagrada Escritura sobre o sacrifício e o
sacerdócio do Novo Testamento é que há apenas uma
Hóstia, que foi simplesmente e absolutamente imolada
em si mesma apenas uma vez pelo próprio Cristo, mas
que sob certo aspecto é imolada todos os dias por
Cristo por meio dos ministros em sua Igreja.
Portanto, no Novo Testamento há uma Hóstia cruenta
e uma Hóstia incruenta, mas confessamos que a Hóstia
cruenta é Jesus Cristo oferecido apenas uma vez no
altar da Cruz pelos pecados de todo o mundo, e que a
Hóstia incruenta foi instituída por Cristo e é o seu
Corpo e Sangue sob as espécies do pão e do vinho,
como indicam as citadas Escrituras. Na verdade, a
hóstia cruenta e a hóstia incruenta não são duas
Hóstias, mas uma, porque o que é Hóstia [em ambos] é
a mesma coisa [i.e, Cristo]. O Corpo de Cristo que está
em nosso altar não é diferente daquele oferecido na
Cruz, nem o Sangue de Cristo que está em nosso altar é
diferente daquele derramado na Cruz.
O que é diferente é o modo de imolação desta única e
mesma Hóstia. Porque aquele caminho único,
substancial e original era sangrento, já que [Cristo]
estava em sua própria figura, derramando seu Sangue
na cruz quando seu Corpo foi partido; ao passo que
esta, quotidiana, externa e acessória, é um caminho
incruento, na medida em que, sob as espécies do pão e
do vinho, representa, a título de imolação, Cristo
oferecido na Cruz. Por isso, no Novo Testamento, a
Hóstia cruenta e incruenta é única, tanto em termos da
realidade que se oferece como da forma como é
oferecida, embora haja uma diferença, visto que a
última via — a imolação incruenta — não foi instituída
como uma forma diferente de imolar em si mesma,
mas apenas em relação à hóstia cruenta da Cruz. Isso é
evidente para aqueles que entendem e compreendem
que, se uma coisa só existe em relação a outra, só existe
uma coisa. Portanto, eu diria que não se pode afirmar,
propriamente falando, que no Novo Testamento há
dois sacrifícios ou duas hóstias ou duas oblações ou
imolações (não importa o nome que seja dado) pelo
fato de haver a Hóstia cruenta de Cristo na Cruz e a
Hóstia incruenta de Cristo no altar. Só existe uma
Hóstia oferecida uma única vez na Cruz e que
permanece, em forma de imolação, pela repetição
diária de acordo com o que Cristo instituiu na
Eucaristia.
Em nosso altar, incorporamos a perduração da Hóstia
que foi oferecida na Cruz. Mas como que o que é
oferecido na cruz e no altar é o mesmo — visto que o
que é oferecido na cruz e o que é oferecido no altar é o
mesmo Corpo de Cristo — é claro que a Hóstia no altar
não é diferente daquela da Cruz, mas aquela mesma
Hóstia que foi oferecida apenas uma vez na Cruz
perdura, embora de outra forma, no altar, por Cristo:
“Fazei isto em minha memória”. Se você relacionar
essas duas coisas, isto é: “Fazei isto” e “em minha
memória”, você vai perceber que aquela mesma e
idêntica coisa que foi feita então faremos novamente
em memória de Cristo: aquilo que então se partiu e se
derramou é o que perdura sob as espécies de pão e
vinho em memória de Cristo.
Depois do que foi dito, vamos esclarecer as objeções
uma a uma.
¶ Para a primeira, sobre a unidade do sacerdote. No
Novo Testamento há apenas um sacerdote, Cristo, e Ele
mesmo é o sacerdote em nosso altar, pois os ministros
não consagram o Corpo e o Sangue de Cristo a título
pessoal, mas na pessoa de Cristo, como provam as
palavras de consagração. Então, eles O oferecem
atuando nas vezes de Cristo. O sacerdote não diz: “Este
é o Corpo de Cristo”, mas antes: “Este é o meu Corpo”,
fazendo — na pessoa de Cristo, como Ele ordenou:
“Fazei isto” — o Corpo de Cristo sob as espécies de pão.
Quando somos respondidos que é inconveniente
afirmar no Novo Testamento uma Hóstia para a qual
Cristo não é suficiente, mas precisa de outros ministros
para sucedê-lo, respondemos dizendo que afirmar uma
Hóstia diferente que requer uma sucessão de
sacerdotes não é o mesmo que afirmar a permanência
da mesma Hóstia oferecida na Cruz, exigindo uma
sucessão de ministros. O primeiro não se adequaria ao
estado do Novo Testamento; enquanto a segunda está
de acordo com ela, ou seja, que permanece em vigor a
única vítima que foi oferecida apenas uma vez.
¶ À segunda, sobre a repetição, dizemos que no Novo
Testamento o sacrifício ou oferta não se repete, mas
que o único sacrifício que foi oferecido uma vez
permanece [em nossos altares], na forma de imolação.
A repetição ocorre apenas no modo de perdurar, não na
coisa em si que é oferecida. Além disso, o mesmo modo
que se repete não concorre com o sacrifício por si só,
mas [existe] para comemorar a oferta na Cruz de uma
forma incruenta.
Tal repetição não contradiz a doutrina da Epístola aos
Hebreus, como é provado por aquelas palavras que
dizem que se o sacrifício do Novo Testamento fosse
repetido, seria necessário que Cristo sofresse várias
vezes. É claro que essas palavras se referem à repetição
do sacrifício [cruento] e não à repetição desta forma
instituída por Nosso Senhor Jesus Cristo.
¶ À terceira, que se refere ao que é oferecido, dizemos
que ao fato de que Cristo uma vez derramou seu
próprio Sangue, de maneira mais que suficiente e
abundante, convém a ele permanecer na Sagrada
Eucaristia, em forma de imolação daquele único e
suficiente derrame de sangue na Cruz.
¶ Respondendo à primeira das objeções contrárias à
Eucaristia na medida em que é uma hóstia pelos
pecados, concordamos em dizer que no Antigo
Testamento a reiteração da hóstia foi decretada por
causa de sua impotência para apagar os pecados. Com
o que nos é respondido, [a saber] que é inconveniente
dizer que no Novo Testamento as hóstias devem ser
multiplicadas pelos pecados, se fala-se propriamente,
concordamos em tudo, porque na Missa a Hóstia não
se multiplica, mas, em cada Missa, a mesma Hóstia que
foi oferecida na cruz e que permanece na forma de
imolação é comemorada novamente.
¶ À segunda, dizemos que é estranho ao espírito dos
fiéis até mesmo pensar que a Missa é celebrada para
complementar a eficácia da Hóstia que foi oferecida na
Cruz. A Missa é celebrada como um veículo para a
remissão dos pecados que Cristo obteve para nós na
Cruz, de tal forma que, assim como não existe outra
Hóstia, nenhuma outra pode nos alcançar a remissão
dos pecados. Do mesmo modo que Cristo “entrou nos
céus por seu próprio Sangue” e segue sendo “sacerdote
por toda eternidade para interceder por nós” (como
está escrito na epístola mencionada), também segue
estando conosco através da Eucaristía, através da
imolação, para interceder por nós. Assim como a
máxima suficiência e eficácia do sacrifício no altar da
Cruz não exclui que Cristo está no céu cumprindo seu
ofício de intercessão por nós, tampouco exclui sua
permanência entre nós por meio da imolação, para
interceder por nós. Da mesma forma que a intercessão
contínua de Cristo no céu por nós não anula a única
intercessão de sua morte, tampouco — e menos ainda
— anula sua permanência no caminho da imolação
para interceder por nós e nos fazer participar do
remissão dos pecados realizada no altar da cruz,
quando sua intercessão é realizada através do mistério
que está oculto sob as espécies do pão e do vinho (o do
céu se realiza por meio de Cristo na mesma figura em
que foi crucificado) .
Desse modo, se houvesse margem para qualquer
derrogação, o fato de Cristo, depois de sua morte,
interceder sob sua própria figura iria derrogar mais da
única intercessão de sua morte do que fazê-la sob outra
aparência, visto que a primeira intercessão supõe uma
espécie de intercessão suplementar, enquanto esta
segunda apenas supõe um modo cerimonial de
intercessão que está mais de acordo conosco.
¶ À terceira dizemos que, com uma pitada de sal, deve-
se entender que nossos pecados foram perdoados pela
morte de Cristo, isto é, pela morte de Cristo que nos é
aplicada por meio dos sacramentos que Ele instituiu.
Nisto todos os cristãos concordam.
Entre os sacramentos instituídos por Cristo está o da
Eucaristia, instituído por Cristo como uma imolação. É
o que declaram as próprias palavras de Cristo e de São
Paulo. Se, depois de terem recebido o Baptismo, há
cristãos que precisam do perdão dos seus pecados, a
Hóstia da Eucaristia pode ser usada para os perdoar,
aplicando-lhes a eficácia da morte de Cristo; e se eles
não precisam ter seus pecados perdoados, serve para o
alimento da alma, bem como comida e bebida do
corpo. Embora o sacramento da Eucaristia tenha sido
instituído como uma imolação para aplicar àqueles que
o celebram a expiação dos pecados feita pela cruz de
Cristo, não foi instituído apenas para esta, mas
também para outros bens da alma.
¶ Consequentemente, o Sacrifício da Missa, que a
Igreja celebra segundo o ensinamento de Cristo e dos
Apóstolos, está de acordo com tudo o que está escrito
na Epístola aos Hebreus. E isto admitindo a extensão
dos termos à Hóstia da Eucaristia, pois sei que segundo
o seu sentido genuíno, o Autor daquela Epístola trata
dos sacrifícios de sangue, demonstrando a excelência
do sacrifício cruento — que Cristo ofereceu ao instituir
o Novo Testamento — em relação a todos os sacrifícios
do Antigo Testamento. Mas parece que é conveniente
admitir essa extensão para que a verdade católica seja
clara.
Dado em Roma, em 3 de maio de 1531.
Tratado do Sacrifício da Missa, editado pelo Revmo.
Tomás de Vio Caetano, Cardeal de São Sisto.
— Tradução feita por Villian Cuauhtlatoatzin.

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