Moacyr Félix
Pensar, ou ser poeta, é interrogar-se interrogando o mundo que está dentro de nós,
o mundo que é o nosso ser, o mundo em que descobrimos no outro a nossa vontade, o
mundo em que nos descobrimos história. (Mas o que significa, que coisa existe/ aqui e
agora a pedir canto ou lágrima?/ Que é o ser de agora? O que nele é o homem?/ Que
encaixa o mundo em nosso eu plurificado?/ E o que em nós então se sofre, vida ou razão/
a nos doer fora de nós, no mundo a nós somado?)
Sozinho, o homem não se explica: tudo fica absurdamente sem sentido, terrível.
Olhando apenas com imanências fechadas, qualquer pergunta mais funda pelo sentido da
vida humana acabaria sendo somente um lúcido convite à loucura. E qualquer ato de
pensar acabaria sempre pregando nos olhos da noite “a lua/como um buraco de bala na
azul abóbada de espanto”. A aranha tece teias e morre, e nada disso a perturba ela não se
sabe aranha, e não indaga, portanto, e sob o risco mortal de perder-se em antecipações do
nada, pelas significações do que ela é ou do que ela faz. É, eu não vejo outro jeito a não
ser o de definir o homem como pontifex, fazedor de pontos e essencialmente ponte ele
próprio. Sei que isso não explica tudo: grandes perguntas ainda ficam de fora. O acaso e a
eternidade, o destino último e a morte de tantos povos ou de cada um dos indivíduos, o
absoluto e o relativo, o ser e o tempo, a dor e a solidão, o trágico em suma, ainda estão aí,
como irrespondíveis esfinges desta atmosfera de trevas, misteriosa e pegajosa, que se
cola no mais fundo de cada individuação humana. E tem sido, e será ainda por muito
tempo, a matéria por excelência dos poetas maiores, que sempre a trataram de dentro do
próprio núcleo de um determinado tempo histórico, mas a partir de percepções nem
sempre audíveis para os que andaram apenas até as primeiras cortinas do ser. Ver-nos
assim como história e como ponte, ainda é com os conhecimentos que temos e sobretudo
com os que desconhecemos, a única resposta válida para a gente s e sentir gente ou
caminho do ser humano. Pensando bem, o Homem ainda é muito jovem sobre a
antiquíssima face da vida e no infinito- finito do cosmo. Ainda não se encontrou, ainda é
um ser a caminho dele próprio e ainda não se apropriou, na natureza, de uma natureza em
que se pudesse ver, distintamente, como natureza humana. O que somente acontecerá
quando os seus atos, todos os seus atos, deixarem de ser os atos da Necessidade que
tem de sobreviver, de manter-se com vida e com este seu rosto, que sabe informe,
incompleto, inacabado ( O trabalho, e a arte é trabalho,/só traz beleza/ se é a apropriação
do homem/natural/ na luta com a natureza/ o homem se ganha a si mesmo/ quando não
trabalha a esmo/ e vê / no ruído ou cadência das máquinas/ o não homem/ que necessita e
que usa/ como outrora usou/ as unhas e a própria fome) .
A liberdade é o único espaço que define o homem: incorporá-la ao seu existir como
a face esplendida e emergência do barro sofrido de todos estes séculos - eis o seu alvo, a
sua explicação, a sua história. E tudo se complica mais, quando sabemos que fazemos o
mundo e o mundo nos faz, que pensamos a história e que ela nos pensa. E que assim
somos condicionantes de E condicionados pelas estruturas de pensar e de sentir que
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criamos dentro da história e do mundo, as quais, por sua vez, também nos criam enquanto
inconsciência individual e social. Estamos, portanto, sempre pondo em xeque o que
pensávamos que havíamos pensado certo; ou os sentimentos que vieram a se radiografar
sem os conteúdos que os tornariam emocionalmente uma verdade.
Consciência, mais consciência, eis, portanto, o que compete ao homem. Ser homem
é o esforço diário para criar-se como fonte de libertações. E é de amargar quando
descobrimos, e isso ocorre a todo momento, que estamos sendo objetos, e não, sujeitos,
do que até há pouco definíamos como a nossa opção, o nosso destino (Sim, os mortos é
que ditavam as leis. / Como se fossem vivos, os mortos é que governavam o amor, o modo
de olhar a flor, o de produzir/ o pão e o prazer, e mais do que tudo a resposta/ as terríveis
esfinges que ainda vigiam a casa da noite). Os poetas que se questionam sem sentir e
aprofundar essas questões, vão sempre fazer uma poesia menor ou jogos verbais de curto
alcance, e os seus poemas nascerão sempre ornamentalmente agachados ao pé dos
poderes que os condicionam e os alienam. E acabarão servindo involuntariamente aquilo
que, às vezes, pensavam até estar combatendo. Em épocas como as de hoje, as
vanguardas exclusivamente formais caem, em sua maioria, nesta arapuca. Estou com
BRACQUE quanto disse que raciocinar é uma coisa pensar é outra. A irracionalidade dos
sistemas que nos dominam com o desempenho de raciocínios quase perfeitos, somente é
percebida quando a gente pensa. E a gente somente pensa quando liga, numa totalidade
religante, palavras acrescentando-se a palavras, frase ajustando-se a frases verso
somando-se a versos. E agora é bom repetir, mais uma vez, que o que ora se chama
“poesia social” ou “engajada”, e que é uma das linhas que procuro desde o meu primeiro
livro de juventude, não esgota, nem de longe, os raios quase que pensadamente infinitos
do fazer poético. Em épocas como esta, em que estão ameaçados e atingidos os valores
mais urgentemente ligados à existência, a poesia como instrumento de luta social e
exarceba e emerge, e a isso deve ser estimulada, para o primeiro plano. Em épocas assim,
é natural que a função da poesia se desloque prioritariamente para outras razões de ser
que não somente aquelas que lhe deram origem. Exigir de um artista ou de um poeta, no
entanto, que o seu poema ou a sua música apareçam exclusivamente engajadas na
temática assim dita social, isso é uma besteira, um erro, uma deformação dos próprios fins
que esta exigência, em última análise, se diz atrelada. Toda obra de arte é engajada,
quando é verdadeiramente uma obra de arte; e isso porque ela é participante do impulso
básico do ser humano para a liberdade, ou seja, para a beleza da vida. O que se pode, em
épocas de crise, é indagar ao poeta ou ao artista, mas enquanto cidadãos, por uma
solidária definição de caráter político. Caso contrário, não vamos mais nem entender o
quanto de humano persiste, vibra, e se movimenta, intelectual e emocionalmente nas
cantigas de roda, ou nas canções folclóricas de amor e de infância e de solidão e de
trabalho, que estão presentes na história de todos os povos.
As existências e as lutas do homem se situam em vários planos de luta de classes,
planos que não podem ser desligados, que se interpenetram uns aos outros e se fundem
na formação de um tempo histórico global, que é o de seu passado, o do seu presente e,
importantíssimo, o do seu futuro, o do seu devenir. A vida é pluralmente imensa em sua
complexidade, sabemos disso. No entanto, volta e meia caímos na tentação- por ser mais
fácil - de reduzi-la em sistematizações de dois ou três conceitos, em sistematizações que
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são como janelas abertas para o oportunismo e o sectarismo, esses dois ladrões
especialistas em roubar a profundidade do efêmero na interioridade dos homens. O
importante, portanto, é evitar as petrificações do maniqueísmo e do esquematismo que
servem somente aos que querem parar a vida, ou conserva-la em seus desastres. E
aceitar a existência como sinônimo de dialética, como centro de contradições que se
confrontam/ ( Exilado no maniqueísmo que separa/ o que separado não existe/ entre o
tempo e os seus horários / no seu ser de ser no ser contrário.../ Exilado no esquematismo
que não solda/ e que, portanto, não vê/ no soldado o povo e no povo o exército/ sob a
camisa a pele e sob a pele o homem/ desnudo com as perguntas que não o vestem/ no
quarto de um filho morto). E saber também que estamos atravessando a maior
transformação havida na história do homem, aquela que se abre para horizontes que
entontecem a nossa imaginação, horizontes que a ciência e a tecnologia não nos permitem
mais sentir com a vagueza dos sonhos ou dos sonhos ou dos pesadelos, pois esticam o
nosso espanto e a nossa vertigem até aqueles novos mundos que já tornaram
efetivamente possíveis daquí a duzentos anos. E lembrar que transformar-se é viver (“Stirb
und verde” , já comandava o velho GOETHE). Ter consciência de que estamos forçando
as portas de saída de muitos e muitos séculos. E, por isso, não esquecer o agora, o único
ponto donde podemos dar algum sentido ao depois. Esse agora em que “o poste seria
apenas mais um poste/ com seu halo boêmio de luz,/ se também não fosse os homens que
consumiu”. Esse agora em que no olho sofrido de todos os oprimidos é que enxergamos o
verdadeiro rosto de todos os opressores. Esse agora/ que cotidianamente nos exila entre a
morte e a vida, entre a esperança e o desespero, entre os inicios e os fins, “entre os meus
poemas de madeira erguida/ no céu mais baixo e mais sujo da cidade/ e sem outra
serventia que a de cruzes/ ou flauta de bambú tascando as luzes/ em que se enfrentam/
-mosca e aranha- / a sexta feira santa e os meus domingos”.
Em suma, eu acho tudo isso muito grande, grande demais. E acho
melancolicamente ridículo, no meio de tudo isso, os que ainda pensam que a “poesia” é
uma espécie de princesa, e separam e isolam e diferenciam hierarquicamente- e com
afinco a “prosa” da “poesia”, a “linguagem poética” da “linguagem cotidiana”, o povo dos
“intelectuais”, e o trabalho manual do trabalho “intelectual”( não sei e não quero saber o
que entendem por essas coisas ou o que pensam estar diferenciando, quando
estabelecem essa hierarquia: sei que a época é de fazer pão, um pão do tamanho dos
horizontes físicos e culturais deste final de século, e que não se pode perder tempo com os
que ficam brincando de “arte pura”, atrás daqueles jardins erudidamente abrigados sobre
os muros de suas babás econômicas e sob os toldos dos governantes).
O homem, como ser totalizante fala e pensa em tudo que faz, fala e pensa com o
corpo todo. Para métodos de análise e pesquisa, necessários sob certos aspectos, é que
a gente descobre ou inventa categorias abstratas, corta conceitualmente as fatias do Ser,
busca teoricamente a particularidade, imobiliza o peixe longe do mar, disseca-o... O que é
tarefa para os especialistas, técnicos e cientistas. Criar é outra coisa, exige o esforço, nem
sempre dicionarizado, para as totalizações em busca das totalidades; é o movimento do
peixe no mar, a integração vivida da sua peixicidade com toda água e todo ar coexistente
sobre a terra, ou seja, com a vida. E se acrescentar-mos a isso as recentes revelações da
micro-física de que, o pesquisador faz sempre parte do sistema experimental, então sim,
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desmorona-se o idealismo ilusionista desses que se instalaram-se nas poltronas de uma
objetividade que nunca existiu e nem pode existir. Em se tratando de poesia a criação
cultural, e para evitar distorções do que eu penso, é sempre bom racapitular as
observações fischerianas de que, se “a arte é o meio indispensável para esta união do
indivíduo com o todo”, jamais ela é também” uma mera descrição clínica do real” no seu
jogo de sombras e luzes, pois no seu desejo de “se identificar com aquilo que ele não é,
mas tem possibilidade de ser”, o artista ou o poeta não eliminam e nem podem eliminar os
resíduos daqueles elementos mágicos que, aliás, são inerentes á natureza original da
própria arte. Ser poeta é tornar social uma individualidade, é reunir; é religar; é revelar a
revelação oculta entre as coisas e os fatos; é ver e fazer ver, os reais fios da vida sob a
pseudoconcreticidade das aparências, que os esconde de nós; é capturar o ser nos
movimentos em que ele se faz sob as capas do aparecer. Ao recolher pelas janelas de
sua noite os pedaços de sua cidade e de seu tempo, o poeta, ao soldá-los sobre os fios de
uma unidade a que aspira, trabalha com os elementos emocionais de um claro-escuro que
nele brilha como o olho do homem que enlouquece/ por ter bebido o céu em plena treva/
porque não havia mais estrelas/ e a única luz era a do fogo/ no coração central da Terra.
Moacyr Félix
Encontros com a Civilização Brasileira,
nº 3, setembro 1978