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Apostila 2

Um convite ao mundo das feridas

Para que seja possível estimular a prevenção e realizar avaliação e


tratamento de feridas, esse módulo retoma brevemente os conceitos de fisiologia
da pele e o processo de cicatrização. Também sugerimos que você utilize algumas
ferramentas para identificar o perfil de atendimentos realizados no seu local de
trabalho, no contexto deste curso.

Pele e cicatrização

A pele é o maior órgão do nosso corpo, tem como função essencial


a proteção contra efeitos ambientais, como escoriações, perda de líquido,
substâncias prejudiciais, radiações ultravioleta e micro-organismos invasores.
Atua na contenção das estruturas do corpo e de substâncias vitais (especialmente
líquido extracelular), evitando a desidratação, que em situações de lesões extensas
podem ser graves, a exemplo das queimaduras. Outras funções importantes da
pele são a síntese e armazenamento da vitamina D, a regulação de calor através
da evaporação do suor, a função de sensibilidade através dos nervos superficiais e
suas terminações sensitivas que tornam possível sentir, por exemplo dor, calor ou
frio. (MOORE; DALLEY; AGUR, 2012; GUYTON; HALL, 2017).

A pele é formada por camadas. A epiderme, sua camada superficial, é


constituída por um epitélio queratinizado, pigmentado e avascularizado (sua
nutrição ocorre através dos vasos sanguíneos da próxima camada). A segunda
camada, a derme, é rica em fibras colágenas e elásticas, que proporcionam o
tônus cutâneo. Nessa camada se encontram os folículos pilosos, as glândulas
sebáceas e sudoríparas; é uma camada rica em vasos sanguíneos. (MOORE;
DALLEY; AGUR, 2012; GUYTON; HALL, 2017). Situado entre a derme e a fáscia
muscular encontramos o tecido subcutâneo, também conhecido por tecido
adiposo. É importante lembrar que o tecido subcutâneo é responsável pela maior
parte de reservatório de gorduras do corpo, assim sua espessura varia muito,
dependendo do estado nutricional da pessoa. Esse tecido, além de participar da
termorregulação, também oferece proteção à pele contra a compressão pelas
proeminências ósseas. (MOORE; DALLEY; AGUR, 2012)

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Quando uma dessas estruturas sofre agressões, levando a descontinuidade


do tecido, nosso organismo se prepara para realizar o processo de reparo tissular.
O processo cicatricial é comum a todas as feridas e independe do agente que
a causou. Didaticamente costuma ser dividido em três fases: inflamatória,
proliferação ou granulação e remodelamento ou maturação.

Fase Inflamatória: inicia imediatamente após a lesão de pele, com a liberação de


substâncias vasoconstritoras, que estimulam a cascata da coagulação. O coágulo
é formado por colágeno, plaquetas e trombina. As plaquetas se agregam nos vasos
rompidos e liberam fatores de crescimento e citocinas essenciais para o início e
a progressão da cicatrização de feridas. Dessa forma, a resposta inflamatória se
inicia com vasodilatação e aumento da permeabilidade vascular, promovendo a
quimiotaxia (migração de neutrófilos para a ferida). Neutrófilos são as primeiras
células a chegar à ferida, com maior concentração 24 horas após a lesão.
Neutrófilos produzem radicais livres que auxiliam na destruição bacteriana e são
gradativamente substituídos por macrófagos (CAMPOS; BORGES-BRANCO;
GROTH, 2007; MANDELBAUM; DI SANTIS; MANDELBAUM, 2003).

Os macrófagos migram para a ferida e são as principais células que fagocitam


as bactérias, desbridam corpos estranhos e direcionam o desenvolvimento de
tecido de granulação, antes dos fibroblastos migrarem e iniciarem a replicação.
Ainda, realizam a secreção de citocinas e fatores de crescimento, além de contribuir
na angiogênese, fundamentais na transição para a fase proliferativa (CAMPOS;
BORGES-BRANCO;GROTH, 2007; MANDELBAUM; DI SANTIS;MANDELBAUM,
2003).

Usualmente essa fase dura de 24-48h, mas pode se estender levando a


cronificação da ferida nessa etapa.

Fase proliferativa: constitui-se de quatro etapas fundamentais - epitelização,


angiogênese, formação de tecido de granulação e deposição de colágeno. Tem
início ao redor do 4º dia após a lesão e se estende aproximadamente até o término
da segunda semana. A epitelização ocorre precocemente. Se a membrana basal
estiver intacta, as células epiteliais migram em direção superior, e as camadas
normais da epiderme são restauradas em três dias. Se a membrana basal for
lesada, as células epiteliais das bordas da ferida começam a proliferar na tentativa
de restabelecer a barreira protetora (CAMPOS; BORGES-BRANCO; GROTH,
2007; MANDELBAUM; DI SANTIS; MANDELBAUM, 2003).

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A angiogênese é estimulada, caracterizada pela migração de células


endoteliais e formação de capilares. Os fibroblastos dos tecidos vizinhos migram
para a ferida, produzindo colágeno e transformando-se em miofibroblastos,
promovendo a contração da ferida. A parte final da fase proliferativa é a
formação de tecido de granulação (CAMPOS; BORGES-BRANCO; GROTH, 2007;
MANDELBAUM; DI SANTIS; MANDELBAUM, 2003).

Fase de maturação ou remodelamento: a característica mais importante desta fase é a


deposição de colágeno de maneira organizada. O colágeno produzido inicialmente
é mais fino do que o colágeno presente na pele normal. Com o tempo, o colágeno
inicial é reabsorvido e um colágeno mais espesso é produzido e organizado ao
longo das linhas de tensão. Estas mudanças se refletem em aumento da força
tênsil da ferida. A reorganização da nova matriz é um processo importante da
cicatrização. Fibroblastos e leucócitos secretam colagenases que promovem a
lise da matriz antiga.

A cicatrização acontece quando há equilíbrio entre a síntese da nova matriz


e a lise da matriz antiga. Mesmo após um ano a ferida apresentará colágeno menos
organizado do que o da pele sã, e a força tênsil jamais retornará a 100%, atingindo
em torno de 80% após três meses (CAMPOS; BORGES-BRANCO; GROTH, 2007;
MANDELBAUM; DI SANTIS;MANDELBAUM, 2003).

A imagem a seguir, ajuda a ilustrar o processo de cicatrização:

Fonte: Adaptado de PRZEKORA, 2020.

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O sucesso da cicatrização vai depender da extensão do tecido danificado e


de fatores intrínsecos e extrínsecos à ferida, como exemplificado a seguir:

Fatores locais

Edema: interfere na oxigenação e na nutrição dos tecidos em formação,


impede a síntese do colágeno e a proliferação celular e reduz a resistência dos
tecidos à infecção.

Infecção local, necrose e presença de corpos estranhos: prolongam


a reação inflamatória, provocam a destruição tecidual, inibem a angiogênese,
retardam a síntese de colágeno e impedem a epitelização.

Ressecamento: ferida sem umidade retarda nova epitelização.

Extensão e local da ferida: o comprometimento da perda tecidual em


extensão e profundidade e a localização da ferida interferem diretamente na
duração do processo cicatricial.

Pressão e técnica de curativo inadequada: a pressão contínua sobre


a ferida interrompe o fluxo sanguíneo e impede que ele chegue aos tecidos, e a
técnica de curativo inadequada, como limpezas vigorosas ou o uso de coberturas
secas podem provocar trauma mecânico à lesão.

Agentes tópicos inadequados: fármacos tópicos, como antibióticos,


usados indiscriminadamente podem desenvolver resistência bacteriana, e os
corticoides por tempo prolongado podem provocar reação de hipersensibilidade
e retardar a cicatrização.

Fatores sistêmicos

Nutrição: a cicatrização requer um aporte nutricional adequado. Qualquer


déficit nutricional relacionado ao comprometimento da capacidade de se
alimentar, perda de peso recente, distúrbios da desnutrição e a supernutrição
relacionada à obesidade predispõem ao desenvolvimento de lesões cutâneas e
retardam a evolução do processo cicatricial.

Hormônios: presentes nas situações de estresse, os hormônios podem


diminuir a reação inflamatória, inibir a oferta de leucócitos e a permeabilidade do
vaso, o que compromete a perfusão da ferida, diminui a resposta imunológica e
interfere no processo fisiológico da cicatrização.

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Idade: nos idosos, a cicatrização tende a ser mais lenta do que nos jovens,
devido a comorbidades, problemas nutricionais, imunidade, circulação, entre
outros fatores.

Doenças: doenças autoimunes, anemia e transtornos hematológicos


causam incompetência das veias e aumentam o risco de infecção, o que contribui
para diminuir a resistência do organismo aos agentes patológicos.

Medicamentos sistêmicos: algumas medicações interferem diretamente


no processo cicatricial, como os anti-inflamatórios, que reduzem a fase inflamatória
e retardam a cicatrização; além dos corticóides, que atuam imunodeprimindo
o paciente; e os antineoplásicos, que interferem na produção de colágeno e na
regeneração da epiderme, entre outros.

Insuficiências vasculares: o fluxo sanguíneo em quantidade inadequada


diminui a oxigenação tecidual, retarda e pode estagnar a cicatrização (CAMPOS
et al., 2016; BRASIL, 2008; MONTANARI, 2016).

O convite
Para além da atualização profissional, queremos que esse curso seja útil na
prática. Sugerimos então, a aplicação do questionário a seguir, para o levantamento
de dados relacionados aos atendimentos às pessoas com feridas na UBS e após,
um instrumento de avaliação das feridas.

Você possui um levantamento de dados sobre as pessoas com feridas


cadastradas à sua UBS? A partir das perguntas a seguir, você construirá um
panorama de sua realidade, podendo recorrer a esse conteúdo estratégico para o
planejamento de ações de curto, médio e longo prazo.

Æ Quantas pessoas necessitam de curativos na àrea que você trabalha?

Æ Quantos curativos são realizados por dia/semana/mês pela sua equipe?

Æ Existe um controle da quantidade de materiais utilizados para realização


desses curativos?

Æ Quais são as etiologias mais comum dessas feridas?

Æ Como estão ocorrendo as ações de prevenção e acompanhamento da causa


de base dessas feridas na unidade?

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Æ Quantas pessoas realizam na UBS seus curativos?

Æ Quantas pessoas com ferida são domiciliados/acamados?

Æ Os materiais que estão sendo dispensados para realização de curativos no


domicílio estão sendo suficientes/ está havendo sobra de materiais?

Æ A pessoa responsável por realizar os curativos no domicílio recebeu algum


tipo de treinamento pelos profissionais de saúde?

Æ Como está organizado o fluxo de atendimento/acompanhamento dessas


pessoas?

Æ De que forma você pode melhorar esse fluxo?

Æ Que materiais a UBS dispõe para a realização desse procedimento?

Æ Os materiais disponíveis atendem à demanda da unidade?

Æ As quantidades solicitadas de materiais estão de acordo com a demanda?

Caso você não tenha essas informações, procure registrá-las de uma forma
que faça sentido em seu processo de trabalho.

Raciocínio clínico
A segunda proposta apresenta um instrumento de avaliação de feridas,
que pode ser aplicado em todos os atendimentos que forem realizados a partir
de agora. Coletando todas essas informações, você terá condições de avaliar e
planejar o seguimento adequado do cuidado individualizado.

Você vai perceber que algumas informações já são do seu conhecimento,


pois muitas dessas pessoas já são acompanhadas por você há algum tempo, mesmo
assim é interessante que sejam retomadas e organizadas.

Esse instrumento pretende nortear a prática, podendo ser adaptado


conforme a sua realidade. Aplique para todas as pessoas com feridas, pois mesmo
aquelas que apenas retiram materiais na UBS é importante que você conheça e a
avalie também.

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Referências
ARMSTRONG, D. G.; MAYR, A. J. Basic principles of wound management. Waltham
(MA):
UpToDate, 20 Set. 2020. Disponível em:
h t t p s : // w w w. u p t o d a t e . c o m /c o n t e n t s / b a s i c - p r i n c i p l e s - o f - w o u n d -
management?source=bookmarks_widget.

BRASIL. Ministério da Saúde. Manual de condutas para tratamento de úlceras em


hanseníase e diabetes. 2ª ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2008.

CAMPOS, Antonio Carlos Ligocki; BORGES-BRANCO, Alessandra; GROTH,


Anne Karoline. Cicatrização de feridas. ABCD, Arquivos Brasileiros de Cirurgia
Digestiva. São Paulo, v. 20, n. 1, p. 51-58, março de 2007. Disponível em: http://www.
scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-67202007000100010&lng=
en&nrm=iso. Acesso em 17 nov. de 2019.

CAMPOS, M. G. C. A. et al. Feridas complexas e estomias: aspectos preventivos


e manejo clínico. João Pessoa: Ideia, 2016. 398p. Disponível em: http://www.
corenpb.gov.br/wp-content/uploads/2016/11/E-book-coren-final-1.pdf

GUYTON, A.C.; HALL, J.E. Tratado de Fisiologia Médica. 11ª ed. Rio de Janeiro:
Elsevier Ed., 2017.

MANDELBAUM, Samuel Henrique; DI SANTIS, Érico Pampado; MANDELBAUM,


Maria Helena Sant'Ana. Cicatrização: conceitos atuais e recursos auxiliares
- Parte I. Anais Brasileiros de Dermatologia, Rio de Janeiro, v. 78, n. 4, p. 393-
408, Ago. 2003. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S0365-05962003000400002&lng=en&nrm=iso. Acesso em 17
Nov. 2019.

MONTANARI, T. Histologia: texto, atlas e roteiro de aulas práticas [recurso


eletrônico] 3ª ed. - Porto Alegre: Edição do Autor, 2016. 229 p. Disponível em:
http://www.ufrgs.br/livrodehisto/.

MOORE, K. L.; DALLEY, A. F. AGUR, A.M.R. Anatomia orientada para a clínica. 6ª


ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2012.

PRZEKORA, Agata. A Concise Review on Tissue Engineered Artificial Skin Grafts


for Chronic Wound Treatment: Can We Reconstruct Functional Skin Tissue In
Vitro? Cells, v. 9, n. 7, 2020.

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