GUARULHOS – SP
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO..................................................................................... 4
9 DISCRIMINAÇÃO .............................................................................. 42
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9.2 A relação entre discriminação, preconceito e violência ............... 46
17 BIBLIOGRAFIA .............................................................................. 83
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1 INTRODUÇÃO
Prezado aluno!
Bons estudos!
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2 RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NO BRASIL
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Ao analisarmos a história dos negros no Brasil — principalmente no período
pós-escravatura, com a Lei Áurea, sancionada em 13 de maio de 1888 — e as suas
inúmeras dificuldades de inserção na vida social e laboral, Pesavento (1989, p. 83)
comenta que “[...] os egressos da escravidão, como negros, agregavam a este
quadro o estigma do qual eram portadores: eram visualizados ideologicamente
como uma força de trabalho inadequada para o trabalho regular, avessos à nova
ordem que se impunha”. A marca deixada pela escravidão nas populações negras
somente foi minimizada, segundo a autora, na segunda metade do século XIX,
período recente em termos históricos.
Essa desigualdade, o racismo e a discriminação que se estendem aos que
se distinguem dos padrões estabelecidos são produzidos histórica e culturalmente,
como resultado da assimetria de poder entre grupos identitários mais privilegiados
e grupos identitários discriminados. A problemática que envolve os processos
coloniais brasileiros, que evidencia a emergência de uma etnia mais poderosa e que
possui uma visão monoculturalista sobre o mundo, tem impactos na área
educacional.
Como alguns grupos de origens étnicas distintas foram privilegiados em
detrimento de outros, também nos aspectos que envolvem a educação, como, por
exemplo, o acesso à escolas de maior qualidade, devem ser criados mecanismos
que possam reparar essas discriminações históricas que prejudicaram alguns
grupos bem específicos, como os negros e os índios. Banton (2000, p. 457) define
o processo de racialização como o “[...] processo ou situação em que a ideia de raça
é introduzida para definir e qualificar uma população específica, suas características
e suas ações”.
Dessa forma, as pessoas são convencidas de que certas características
são intrínsecas de alguma raça ou etnia, o que se confirma por expressões como
“ele é italiano, por isso é mão fechada”, “o alemão é melhor com planejamento” e
“os índios são preguiçosos”. Essas frases são manifestações dessa racialização,
que acaba marcando e estereotipando uma etnia e/ou raça a partir de aspectos
relacionados a questões biológicas e fenotípicas (cor da pele, cabelo, formato do
nariz, espessura dos lábios, tamanho do crânio, etc.).
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Ao analisar essa estratificação social a partir de aspectos étnico-raciais
nos sujeitos, podemos identificar uma pedagogia que:
[...] educou o olhar deste sujeito branco que julga; ela educou seu modo
de compreensão sobre a pertença racial. Ela o educou para pensar que
ele, branco, não tem raça nem cor e, portanto, pode, do alto de seu estatuto
de incolor, julgar quem são, afinal, os “de cor” (KAERCHER, 2010, p. 87).
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mestiçagem das várias etnias que compõem a identidade nacional — ainda
apresenta traços de racismo que acabam por produzir situações de desigualdade
na sociedade. Uma das principais conquistas das lutas do Movimento Negro em
busca de positivação da sua identidade afro-brasileira foi a inserção dos estudos
sobre história e cultura afro-brasileira nos currículos escolares a partir da Lei nº.
10.639, de 9 de janeiro de 2003 (BRASIL, 2003).
Com relação ao currículo escolar, é evidente a existência de um jogo de
poder na seleção do que deve ser ensinado. A esse respeito, Passos (2008, p. 17)
argumenta que “[...] o currículo escolar, tal qual a sociedade brasileira, está pautado
numa compreensão de que apenas a cultura do colonizador — branca, masculina,
heterossexual e cristã — tem legitimidade para ser estudada”. Todos aqueles
saberes que não se enquadram nesses termos acabam excluídos da escola.
Muitas vezes, alguns grupos — cujos saberes não são considerados
legítimos para estudo nas escolas — são privados do acesso a uma educação de
qualidade e, consequentemente, das mesmas oportunidades que outros têm.
Devido a esses aspectos socioculturais enraizados na nossa história, cabe à escola
dar visibilidade e tornar positiva a maneira de pensar e agir em relação aos afro-
brasileiros, que representam uma significativa parte da população na atualidade.
Carneiro (2006, p. 99), admite que ainda existe nas escolas “[...] uma cultura
travada e preconceituosa, impermeável a aceitar o diferente e a conviver com o
desigual”. Talvez por esse fato tenhamos percebido a movimentação de muitos
grupos identitários em busca do seu espaço de aceitação e igualdade na sociedade
nas primeiras décadas do século XXI, no Brasil, entendendo que fazer parte das
discussões que ocorrem na escola é uma das formas mais potentes de modificar o
modo como se pensam os temas e os jeitos de viver.
Em resumo, temos a seguinte cronologia das alterações e modificações das
leis sobre raça e etnia na educação brasileira:
• LDB — Lei nº. 9.394/1996, art. 26, §4º;
• Lei nº. 10.639/2003, que alterou a LDB e acrescentou os art. 26-A e 79-B;
• Lei nº. 11.645/2008, que alterou a LDB, modificada anteriormente pela Lei
nº. 10.639/2003, no art. 26-A.
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A Lei nº. 11.645/2008, em vigência, propõe a seguinte redação para o
art.26-A da LDB (BRASIL, 2008, documento on-line): “Art. 26-A Nos
estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados,
torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena”. Assim,
é obrigatório para todas as instituições do sistema de ensino nacional também o
estudo da história e cultura indígena e afro-brasileira. É importante perceber que o
art. 79-B, acrescido à LDB pela Lei nº. 10.639/2003, não foi alterado, permanecendo
o dia 20 de novembro como o Dia da Consciência Negra.
Reforçando a importância de o respeito à diversidade ser considerado nos
currículos, de modo a ampliar o escopo da educação escolar que considera as
relações étnico-raciais, Silva (2007, p. 490) refere que:
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3 AÇÕES AFIRMATIVAS
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Das ações afirmativas podem derivar projetos especiais que auxiliem o
grupo em questão. Considere, por exemplo, as cotas sociais para estudantes de
escolas públicas. Reconhecidamente, as escolas públicas brasileiras não têm os
melhores índices de aproveitamento, salvo algumas escolas-modelo. Algumas
universidades públicas, então, contam com projetos de auxílio e tutoria nos estudos
para quem encontra dificuldades.
Alunos de escolas particulares podem chegar às universidades com bom
conhecimento em outros idiomas, fator que facilita os estudos de ponta e abre
oportunidades no mercado de trabalho, mas essa não é uma realidade para alunos
provenientes de escola pública, em geral. Por isso, há projetos de extensão que
oferecem cursos de idiomas, dos básicos aos aprofundados. Assim, ao deixar a
universidade, alunos cotistas e ingressantes por ampla concorrência terão os
mesmos conhecimentos, as mesmas bases e, consequentemente, as mesmas
oportunidades.
As políticas para provimento de equidade resultarão, algum tempo depois,
num contexto de igualdade. As políticas públicas voltadas para ações afirmativas
podem receber críticas que salientam a desigualdade no tratamento de grupos
sociais. As cotas raciais, por exemplo, são constantemente questionadas, e um dos
argumentos erroneamente utilizados é o de que elas seriam uma forma de
discriminação social. No entanto, elas são extremamente necessárias, porque não
se pode oferecer as mesmas oportunidades para grupos sociais com possibilidades
tão distintas. Fazê-lo seria compactuar com a manutenção das estruturas de
marginalização das classes sociais mais pobres, compostas em sua maioria por
afrodescendentes (AUGUSTINHO, 2019).
Se, no caso das cotas sociais, um aluno cotista precisa trabalhar para viver
e essa é sua prioridade, como ele pode manter o mesmo nível de aprendizagem
que um aluno de escola privada, que se dedica apenas aos estudos? Apenas o
tempo disponível para as atividades escolares já se torna um princípio de
desigualdade. A qualidade das escolas frequentadas, outro. A possibilidade de
permanência na universidade pública, especialmente em cursos de período integral,
sem suporte da universidade ou de programas sociais, outro desnível.
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Nesse cenário, sem as ações afirmativas e os projetos de auxílio delas
derivados, mesmo que esse aluno chegue à universidade, as possibilidades de ele
se manter nela são pequenas. Se conseguir finalizar o curso e se formar, ficaria,
ainda assim, em uma posição inferior. Afinal, a bagagem cultural e o capital
simbólico adquiridos por aqueles que têm melhores condições financeiras lhes
ofereceriam mais e melhores portas de emprego, fomentando as desigualdades
sociais.
As ações afirmativas podem ser destinadas a qualquer grupo social que,
por algum motivo, seja lesado em suas oportunidades de vida. Pessoas com
deficiência têm atualmente seu direito de estudar em escolas públicas comuns, o
que favorece a interação e o desenvolvimento social. Porém, podem precisar de
equipamentos, recursos ou atenção especial, dependendo da deficiência. Esse
auxílio, elemento da equidade, auxiliará o aluno com deficiência a ter os mesmos
estímulos e possibilidades que os outros, aprendendo e se desenvolvendo tanto
quanto eles, gerando, assim, uma situação de equidade.
Portanto, as ações afirmativas se baseiam na elaboração de ferramentas
que favoreçam a equidade, para depois se chegar à igualdade. As diferenças
precisam ser observadas e compreendidas na ação do Estado pelo bem de seus
cidadãos.
Como você viu, ao longo da trajetória das civilizações ocidentais, as
diferenças foram ainda mais aprofundadas. Quem tinha as melhores oportunidades
conseguia provê-las também para seus descendentes. Nesse sentido, as ações
afirmativas permitem ainda que a etnia marginalizada ocupe os espaços
necessários para que possa reificar seu valor (AUGUSTINHO, 2019).
No caso do povo negro no Brasil, as políticas de cotas raciais permitem que
o negro saia da condição de estudante para ocupar espaços e posições que lhes
eram negados, como o comando de uma sala de aula universitária, a chefia de uma
equipe médica e a responsabilidade por um grande projeto de engenharia civil. Ou
seja, todo e qualquer espaço de que os brancos e descendentes europeus
usufruíram quase com exclusividade por séculos. Essas políticas públicas não
privilegiam um grupo, mas fornecem ferramentas para que seus componentes
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tenham tantas oportunidades quanto qualquer cidadão, inclusive aqueles
beneficiados pelo privilégio branco. No panorama contemporâneo das estruturas e
das formas de relacionamento social, considerando os legados históricos para os
grupos dominantes e os que foram dominados, a justiça social se dá pela
observância das diferenças.
4 INCLUSÃO ESCOLAR
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Nas escolas brasileiras, é possível perceber essa pluralidade de
identidades, essa variedade de indivíduos que se distinguem culturalmente por
vários aspectos, sejam eles étnicos, religiosos, de gênero, de classe social (pobres
e ricos), geracional, deficiências de todas as ordens, orientações sexuais distintas,
etc. A todos deve ser garantido o direito à educação que promova uma
aprendizagem de qualidade, mas não se resume a isso. Walsh (2001) propõe que
— além do simples reconhecimento de grupos diversos, do respeito e da tolerância
— é necessário reparar e compensar os prejuízos decorrentes da assimetria de
poder existentes entre os grupos culturais durante o seu processo histórico de
constituição. Ou seja, a escola deve ser um espaço onde as desigualdades sociais,
econômicas e políticas não são ocultadas, mas reconhecidas e confrontadas
(WALSH, 2001). Dessa forma, a inclusão escolar emerge como movimento de luta
por direitos de igualdade entre os diversos e de afirmação das suas diferenças como
marcadores da sua identidade.
Deve-se cuidar, no entanto, para que as práticas inclusivas sejam
naturalmente engendradas no cotidiano escolar, não forçadas. Nesse sentido, o
professor precisa entender que “[...] os diferentes não possuem déficits de
aprendizagem, mas aprendem de uma forma peculiar e que mais do que
diagnósticos precisamos problematizar e negociar outras representações para
esses sujeitos” (LOPES; FABRIS, 2000, p. 3). Isto é, devemos deixar de olhar para
um aluno com ênfase naquilo que lhe falta, no que o torna incapaz em relação aos
demais — devemos focar nas suas possibilidades de aprender visando potencializá-
lo de forma particular.
Considerando alunos com deficiência, por exemplo, devemos promover
políticas públicas e programas educacionais visando à sua inclusão nas redes
regulares de ensino, compreendidos dentro do conceito da educação inclusiva.
Destacamos que, na Constituição Federal, art. 205, existe a garantia da educação
como direito de todos, reforçado ainda na LDB (BRASIL, 1996, documento on-line),
que traz, no art. 4º, III, o dever do Estado quanto à garantia de “[...] atendimento
educacional especializado gratuito aos educandos com necessidades especiais,
preferencialmente na rede regular de ensino”.
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O processo de inclusão de alunos com deficiências nas escolas regulares
não é fácil ou simples, pois demanda investimentos em recursos materiais e
humanos. Mesmo em meio às dificuldades durante esse período adaptação que
vivemos, incluir todos os alunos na escola é um grande passo adiante. Finalizando
nossa discussão sobre os aspectos que envolvem a inclusão escolar, devemos
considerar as diferenças entre os mais variados grupos culturais que frequentam a
escola, de forma a reconhecer os seus direitos à educação equitativa, entendendo
que existem muitos processos nas interações entre esses grupos no cotidiano
escolar. Logo, devem ser encarados com o olhar da alteridade e da participação do
outro na constituição das suas identidades.
Ao falarmos sobre equidade na educação, entendemos, acompanhando
as ideias de Franco (2007, documento on-line), que deve haver simetria, igualdade
no interior da escola quanto aos aspectos dos “[...] recursos escolares, organização
e gestão da escola, clima acadêmico, formação e salário docente e ênfase
pedagógica”. A pesquisa realizada pelos autores analisa como esses itens da
equidade intraescolar vão refletir diretamente na eficácia dessa instituição de
ensino, muitas vezes indo além do desempenho esperado. Como podemos
perceber, a busca por equidade, além de ser pensada sobre o campo social do qual
o aluno se insere, também deve ser analisada do ponto de vista do que as escolas
oferecem para os seus alunos, uma vez que a falta ou a carência desses itens
acabaria por reforçar as desigualdades sociais existentes.
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você sabe, a escola oferece conhecimento aos estudantes e assim imprime marcas
na sociedade. Contudo, ao mesmo tempo, como componente do tecido social, ela
reflete as formas de leitura social e de comportamento estruturadas exteriormente.
Por isso é que se diz que o racismo no Brasil é estrutural, ou seja, está presente em
muitas esferas sociais. Ele é reproduzido por padrões de comportamento históricos
e está presente também nas escolas, desde as séries iniciais, entre estudantes e
professores.
Você sabe o que é o racismo? O racismo é a ideia, manifestada ou não, de
que uma etnia é inferior a outra, em habilidades ou possibilidades. Ele gera
discriminação, marginalização e desigualdade social e econômica. Assim, o racismo
deixa marcas estruturais nas biografias das vítimas, cerceando suas possibilidades
emancipatórias e de mobilidade social. Ou seja, ele reproduz desigualdades e
impossibilita que as vítimas transcendam as dificuldades sociais e econômicas que
lhes foram impostas.
O racismo se estabelece quando uma etnia histórica ou economicamente
(no geral, há uma combinação dos dois fatores) privilegiada, por meio de ações
segregadoras e discriminatórias, reproduz padrões de marginalização e
desigualdade. As leituras de mundo eurocêntricas, motivadas pelo expansionismo
imperialista do século XIX e aprofundadas no século XX, fizeram com que
caucasianos — pessoas de pele clara com origem europeia não ibérica e detentoras
do poder econômico e militar nas expansões territoriais — estruturassem as
sociedades como se a sua compreensão cultural fosse central. Assim, outras
comunidades e culturas deveriam se encaixar no modelo. Com o passar do tempo,
expressões sociais que não fossem semelhantes às suas eram descartadas,
ignoradas ou reprimidas (AUGUSTINHO, 2019).
Você pode se perguntar: então, o racismo só acontece a partir das ações
discriminatórias de brancos caucasianos em relação a não brancos (negros,
indígenas, hispânicos, orientais, árabes, entre outras etnias)? A resposta é não. O
racismo acontece quando há a discriminação de um cidadão em virtude de sua
etnia, seja ela qual for, independentemente de quem propaga a ação.
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No entanto, é muito importante compreender: o racismo, quando associado
ao privilégio e ao poder econômico e cultural, exclui, marginaliza, impede acessos
sociais e, em sua forma mais cruel, mata. Nas sociedades ocidentais, são os
brancos os detentores dos privilégios e do poder econômico. Por isso, as ações
discriminatórias desse grupo social têm impactos negativos muito mais profundos
do que uma ação empreendida por alguém não branco.
Você já reparou que, nas periferias, favelas e comunidades carentes, a
maior parte da população é negra, ainda que composta também por pessoas de
diferentes etnias? Já observou que os trabalhos braçais e os menos remunerados
são desempenhados por pessoas negras? Por que isso acontece? No Brasil, último
país ocidental a findar a escravidão, a população negra foi marginalizada a partir da
abolição, quando não encontrou qualquer respaldo para a manutenção digna de sua
vida no País, muito menos possibilidade de retornar às comunidades ancestrais. A
força de trabalho do povo negro escravizado foi substituída pela mão de obra —
remunerada — de imigrantes europeus. Sem trabalho e expulsa das senzalas que
abriam espaço para as colônias, a população negra passou a viver à margem da
sociedade, formando comunidades distantes dos centros das cidades e vilas.
Os sobreviventes não conseguiam espaço nas novas estruturas pós-
abolicionistas. Assim, o subemprego, a moradia indigna e distante e a
impossibilidade de acesso à educação reproduziram por gerações as condições de
vida desiguais. Por isso, no Brasil, o racismo tem ainda um recorte de classe
(FERNANDES, 2008). As classes mais pobres são compostas em sua maioria por
pessoas negras, e a configuração das estruturas sociais reimprime em cada
geração os impedimentos de acesso aos elementos que poderiam inserir a
população negra num contexto de igualdade social e econômica. Um desses
elementos, como você pode imaginar, é a educação.
Decorre daí a necessidade de reparação, especialmente por meio da
facilitação do acesso à educação formal continuada até a universidade. Esse é um
dos únicos dispositivos que oferecem a possibilidade de rompimento do ciclo da
pobreza para esse grupo social. Ainda assim, no mercado de trabalho, esse grupo
pode sofrer racismo. Tal racismo não se relaciona apenas às suas características
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físicas, mas também ao eventual recebimento de algum auxílio reparatório ao longo
da vida. Profissionais que foram cotistas, por exemplo, têm suas capacidades
intelectuais constantemente questionadas, mesmo que avaliações indiquem o seu
alto rendimento.
O racismo também pode ser definido como o apontamento de
características físicas, culturais ou religiosas como forma de ridicularização ou
menosprezo, como se os elementos apontados significassem a inferioridade do
sujeito. Você pode identificar ações racistas até mesmo construídas para se
passarem por “elogios”: “Ela é uma negra muito bonita”; “Aquele rapaz asiático é
muito trabalhador”; “Aquela criança indígena é muito inteligente”. Sempre que a cor
da pele ou a etnia é ressaltada num elogio ou no apontamento de alguma
característica, não é elogio, é racismo. Afinal, quando os mesmos elogios são
direcionados à etnia dominante, eles não vêm acompanhados do apontamento da
pele branca.
Em ambientes de trabalho, o apontamento de características físicas ou
elementos culturais e religiosos pode ser utilizado como pressão para um
“branqueamento” visual. Em alguns espaços, pessoas negras são estimuladas a
alisar os cabelos, cortá-los ou prendê-los, com a justificativa de que se tornariam
visualmente mais arrumados, elegantes. Elementos culturais como guias e
turbantes não são, normalmente, permitidos nos códigos de vestimenta das
empresas, embora colares e faixas não sejam problema. Reflita: por que essas
situações acontecem? Talvez porque esses elementos sejam uma manifestação
visual identitária, que informa aos contatos sociais o sentimento de pertencimento
do indivíduo à cultura negra. A cultura dominante, no entanto, pressiona para que,
visualmente, a herança identitária se apague e o indivíduo se torne mais “palatável”,
ou seja, mais próximo da cultura branca (AUGUSTINHO, 2019).
No ambiente escolar, além dos exemplos citados, que acontecem em todas
as esferas sociais, há formas específicas de racismo, presentes na elaboração e
nas matrizes curriculares. O apagamento da história dos povos negros nas aulas é
racismo. Ignorar a presença e a produção de escritores, historiadores e cientistas
negros é racismo. O reconhecimento desse cenário é o primeiro passo para que a
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escola possa inserir conteúdos que reflitam a história e as contribuições sociais e
científicas dos povos que constituem a nação. Dessa forma, os estudantes, ao
circular por novos contextos sociais, poderão estar mais receptivos,
compreendendo que a diversidade deve ser respeitada e acolhida.
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estavam. E a cultura nacional continua sendo reformulada, pois é plástica, mutante,
não é estática.
A configuração de domínio político e físico de uma etnia sobre outra
terminou por fundamentar a ideia de domínio ou superioridade cultural de brancos
sobre negros e indígenas. Mas, na sociedade brasileira contemporânea, sabe-se
que essa ideia é falaciosa. Por isso, Estado e sociedade têm se organizado, com
mais veemência a partir dos anos 2000, para a promoção da igualdade social, por
meio de políticas públicas de esclarecimento sobre discriminação e racismo, bem
como práticas sociais de valorização da cultura negra. A escola é parte fundamental
desse processo, redirecionando ações a partir de projetos nacionais.
Em 1996, surgiu o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH),
formulado para promover estratégias de proteção dos direitos humanos
fundamentais e proteger grupos sociais vulneráveis no Brasil. Entre os focos
principais do programa, estava a diminuição da marginalização social de pessoas
negras e das práticas de racismo, minimizando desigualdades e promovendo a
equidade social.
É preciso refletir: a Lei nº 10.639/2003, que instituiu a obrigatoriedade da
presença de conteúdos da história e da cultura afro-brasileiras nas matrizes
curriculares da educação, foi promulgada apenas em 2010, mais de um século após
a abolição da escravatura. Além da legitimação da identidade negra, essa ação
permite que a sociedade brasileira reconheça a importância e as contribuições
culturais, econômicas e políticas do povo negro à história nacional. Mas não se pode
esquecer de que a demora para a implementação de políticas como essa causou
um profundo impacto negativo em vidas de pessoas negras. Esse reconhecimento
pode incentivar uma nova leitura da constituição social brasileira (AUGUSTINHO,
2019).
Nessa nova leitura, negros, indígenas e imigrantes — aqueles que
imigraram como colonizadores ou aqueles que imigraram nos séculos XX e XXI
buscando asilo político, terras de paz ou oportunidades de emprego e vida estável,
vindos da Europa, da África, da Ásia e da América Latina — devem ter o mesmo
espaço, a mesma importância e as mesmas possibilidades de crescimento,
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educação, saúde; enfim, vidas saudáveis e protegidas. A referida lei visa, portanto,
a estabelecer patamares interpretativos de igualdade na contribuição histórica, para
que relações entre raças e etnias diversas se deem de forma respeitosa, sem
racismo ou discriminação.
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cultural brasileira. Além disso, o estatuto também prevê a obrigatoriedade desse
conteúdo na formação de professores e profissionais da pedagogia, para que
educadores tenham em sua formação a noção cristalizada da importância das
contribuições dos povos negros.
Na busca por uma educação destinada a todos os cidadãos, que considere
as diversidades de cada grupo e as respeite, o Ministério da Educação no Brasil
promove uma série de ações e programas para integrar grupos sociais
marginalizados à escola. A ideia é que as diversidades sejam consideradas, não
suprimidas. A seguir, você pode ver alguns exemplos (BRASIL, 2013).
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• Bolsa Família: é um benefício financeiro mensal para famílias em
situação de vulnerabilidade social extrema, desde que as crianças e adolescentes
em idade escolar (de 6 até 17 anos) sejam mantidos na escola. De acordo com o
Ministério da Educação, há acompanhamento do rendimento escolar de cada um
dos estudantes.
6 ETNIA E RAÇA
Somos todos iguais? Essa questão é muito complexa, e é sobre ela que
vamos nos debruçar neste capítulo. Para iniciar a discussão, precisamos saber que,
apesar de termos em comum a condição de humanidade, temos origens biológicas,
territoriais e culturais diferentes, e isso faz com que tenhamos diferenças não só no
modo de viver a vida, mas também em aspectos físicos.
Segundo Neves (2006), as principais espécies hominídeas consideradas
cruciais para a história da evolução humana datam de sete milhões de anos atrás.
De lá para cá, o bipedismo, o consumo de proteína animal, a fabricação de
ferramentas, o desenvolvimento do cérebro e a construção da vida em sociedade
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permitiram que o homem chegasse aos dias atuais como o conhecemos. Entretanto,
é importante considerar esse aspecto temporal e pensar nos processos biológicos
pelos quais a nossa sociedade passou:
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muitas vezes percebidas pelas cores — que compõem a base para as sociedades
que conhecemos hoje? Para isso, vamos estudar o próprio termo raça e
problematizar os seus usos.
Cabe deixar de lado o termo raça usado pelas ciências biológicas e tão
difundido nos séculos XVIII e XIX, que entendiam como pertinente a ideia de raças
humanas para diferenciar os grupos sociais — e até mesmo hierarquizá-los —, para
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compreender que a única raça existente é a raça humana. Neves (2006)
compreende que o termo raça só faz sentido se for utilizado no âmbito sociológico,
no qual são levadas em consideração as origens do grupo, tanto pelos traços
fisionômicos como pelos aspectos culturais, abarcando as suas complexidades
históricas e a identidade dos seus membros.
Silva e Soares (2011) destacam que esse “novo” uso do termo vem se
consolidando; porém, em outros momentos, diferentes conceitos tentaram dar conta
de identificar os grupos sociais de forma que considerassem a sua pluralidade sem
hierarquizá-los, como explicam a seguir:
Para que você possa entender como esses conceitos foram utilizados
diante das questões histórico-sociais, vamos enfatizar alguns momentos da história
26
mundial e até mesmo da história nacional pertinentes a essa compreensão. É
importante perceber que alguns usos políticos dos conceitos de raça e etnia podem
explicitar diferenças entre grupos sociais dispostas pelos poderes político e
econômico ou mesmo pretendem invisibilizar aspectos específicos de culturas que
vivem no mesmo espaço territorial, a partir de uma suposta de ideia de democracia
racial.
O primeiro destaque aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial (1939–
1945). O plano alemão de conquista do mundo se valia da diferenciação dos grupos
sociais para hierarquizar uns sobre os outros e valorizar a dita raça ariana: os
descendentes de uma das três grandes sociedades humanas provenientes do
Cáucaso (região da Europa Oriental e da Ásia Ocidental, entre o Mar Negro e o Mar
Cáspio). Mazowe (2008) destaca que os nazistas optaram pelos velhos padrões
coloniais europeus, tanto em termos geopolíticos como em termos de questões
raciais, para impor as suas ideias imperiais, exterminar povos considerados
diferentes dos seus e se apresentar como raça superior.
Assim, essa era uma estratégia política de Adolf Hitler (político alemão que
foi líder do Partido Nazista) para dividir os grupos sociais, mas também fazer com
que os arianos apoiassem esse regime político por medo de morrer, como analisa
Foucault (1996, p. 210):
[...] o regime nazista não terá como único objetivo a destruição das outras
raças. Este é apenas um de seus aspectos. O outro [aspecto] é o de expor
a própria raça ao perigo absoluto e universal da morte. O risco de morrer,
a exposição à destruição total é um princípio inscrito entre os deveres
fundamentais da obediência nazista e entre os objetivos essenciais da
política.
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de fato, a tarefa de aniquilar fisicamente cada um dos homens, mulheres e crianças
pertencentes a um povo determinado [...]”.
Diante desses números, percebemos como determinado uso da ideia de
raça pode ter consequências perversas e aterrorizantes. Um segundo destaque
para pensar nos conceitos estudados neste capítulo é em relação à difusão de uma
suposta democracia racial no Brasil do século XIX. Assim como o nosso primeiro
exemplo, essa proposta também tem implicações políticas de modo a invisibilizar
as disputas raciais da constituição do povo brasileiro.
Freyre (1995) apresenta uma convivência quase harmoniosa entre brancos,
indígenas e negros desde a colonização do Brasil, trazendo a ideia de que não havia
disputas raciais, imposições culturais ou mesmo resistência por parte dos povos
colonizados. A sua perspectiva era de evidenciar traços de diferentes culturas que
formaram o que hoje conhecemos como a cultura brasileira, mas essa leitura foi
apropriada politicamente pelos governantes da época para dizer que havia no Brasil
uma democracia racial. No entanto, apesar de esse ter sido um discurso oficial por
muito tempo, os cidadãos reconhecem no cotidiano das cidades brasileiras que isso
é um mito, como explicita Hasenbalg (1979, p. 239):
28
narrativas nacionais pelo viés da miscigenação é excluída pelo seu virtual
desaparecimento, uma vez que o branqueamento é concebido mediante a
própria ideia de miscigenação.
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subordinada é intrinsecamente diferente e alienígena; (c) de monopólio sobre certas
vantagens e privilégios; e (d) de medo ou suspeita de que a raça subordinada deseje
partilhar as prerrogativas da raça dominante.
Logo, as populações que se sentem prejudicadas em função do preconceito
racial têm se organizado em movimentos sociais e se articulado para fazer valer os
seus direitos sociais. Considera-se que as ações políticas afirmativas:
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universidades estaduais para pretos e pardos (Maggie; Fry, 2004). A partir
de 2002, o debate e a implementação de políticas de ação afirmativa com
viés racial, com foco no sistema de cotas, estenderam-se por diversas
universidades públicas, tanto estaduais como federais. Em sua ampla
maioria, com regras variadas, foram definidos mecanismos centrados na
auto declaração dos candidatos. Já a UnB, além de ser a primeira
universidade federal a adotar o programa, estabeleceu critérios adicionais
à auto declaração para definir os beneficiários, ou seja, quem seriam os
"negros".
A implantação das cotas não se deu sem polêmicas, e desde então são
produzidas avaliações sobre o programa em inúmeros estados. As principais
críticas à política de cotas destacadas por Guarnieri e Melo-Silva (2017, p. 185)
desde a sua implantação em 2012 apontam:
Por outro ladro, também é preciso evidenciar pontos que foram vantajosos
e que conseguiram provocar uma nova configuração da população no acesso à
educação superior. Logo, a mesma pesquisa destacou:
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das ideias e normas sociais que produziu com o passar dos tempos e que procurou
transmitir de geração em geração.
A vida em sociedade, algumas vezes, faz com que determinadas etnias
tenham mais poder e dominem as demais. Isso afeta a produção das identidades e
pode abalar a construção da autoimagem dos sujeitos dominados e inferiorizados.
Quando a cultura de um grupo étnico é vista como superior e procura servir como
padrão para todas as demais, pode haver efeitos indesejáveis, como o racismo e a
discriminação étnico-racial.
32
identidades, veja algumas características inerentes a ela: negação; diferença;
relação.
Os sujeitos constituem a sua identidade a partir da negação daquilo que
não são. Ou seja, sou “branco” porque não sou “negro” ou “amarelo”; sou um sujeito
“calmo” pois não sou “nervoso” ou “agressivo”. Esse mesmo mecanismo que faz
alguém definir quem é (ou pretende ser) exclui as demais possibilidades,
normalmente inserindo o sujeito em um sistema de classificação social que possui
representações simbólicas sobre as diferentes categorias. Ou seja, quando alguém
se posiciona como “branco”, por exemplo, assume todos os significados que essa
classificação proporciona. Isso inclui os privilégios históricos, bem como uma
posição que simbolicamente denota maior confiança, ou que é associada à
competência profissional, etc.
O segundo elemento que você deve considerar é que a identidade é
produzida também a partir da marcação da diferença. Assim, um sujeito é da forma
como é porque é diferente dos demais com os quais não se identifica. É importante
você notar que “[...] a diferença é um elemento central dos sistemas classificatórios
por meio dos quais os significados são produzidos [...]” (WOODWARD, 2012, p. 68).
O problema com a questão da diferença ocorre quando ela é utilizada dentro desse
sistema classificatório para realizar juízo de valor e construir representações ruins,
negativas e que inferiorizam algumas identidades.
Isso foi muito recorrente, por exemplo, durante os processos colonizadores
no Brasil. Nesse contexto, assumiu-se a identidade europeia (dos colonizadores)
como a central, mais importante e poderosa do que todas as demais. Nesse
processo, indígenas e negros foram representados como subalternos, inferiores,
selvagens e sem cultura. Convém reforçar ainda que
“[...] temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza;
e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos
descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as
diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as
desigualdades [...]” (SANTOS, 2003, p. 56).
33
As diferenças são marcadores que constituem as pessoas, as tornam seres
singulares e especiais. Dessa forma, devem ser reconhecidas e valorizadas
socialmente.
O terceiro aspecto talvez seja o mais importante de todos: o caráter
relacional da identidade. A identidade é produzida a partir das relações nos grupos
sociais e nas instituições que fazem parte das experiências dos sujeitos: “Nós
participamos dessas instituições ou ‘campos sociais’, exercendo graus variados de
escolha e autonomia, mas cada um deles tem um contexto material e, na verdade,
um espaço e um lugar, bem como um conjunto de recursos simbólicos [...]”
(WOODWARD, 2012, p. 29).
Os campos sociais são importantes e decisivos para que as relações e
interações sociais ocorram e, assim, contribuam para que os sujeitos produzam
suas identidades. Nesse contexto, a escola é uma importante instituição, que as
crianças frequentam de forma obrigatória a partir dos 4 anos de idade no Brasil e
que acolhe aos mais diversos grupos étnicos e culturais. As escolas também
possuem seus contextos particulares e seus simbolismos. Por exemplo, uma escola
pública pode ser muito diferente de uma escola privada nas questões estruturais,
curriculares e, até mesmo, em relação ao público que atende
O processo de formação da identidade também envolve aspectos
psíquicos. O indivíduo produz tanto selfs sobre si mesmo quanto sobre todos os
demais com quem convive, formando o seu autoconceito. Segundo Goñi e
Fernández (2009, p. 25), “[...] o conceito que uma pessoa tem de seu self surge das
interações com os outros e reflete as características, expectativas e avaliações dos
demais [...]”. O autoconceito se relaciona estreitamente com a autoimagem e com
a autoestima que os sujeitos possuem. Por sua vez, segundo mendes et al. (2012,
p. 7),
A autoimagem é uma descrição que a pessoa faz de si, a forma como ela
se vê, estando esta percepção também relacionada ao modo como os
outros a percebem. Por seu turno, a autoestima é uma avaliação que o
sujeito faz de si, estando esta valoração relacionada também com o modo
como os outros o avaliam [...]
34
Como você pode perceber, durante o processo de formação das
identidades, existe uma estreita relação entre o autoconceito, a autoimagem e a
autoestima, o que tem importância significativa. Caso o sujeito, ao conviver em seus
campos sociais, perceba que simbolicamente sua identidade é representada como
inferior ou excluída em relação às demais, pode ter sérios problemas de autoestima
e autoimagem. Nesse caso, ele assume para si as representações distorcidas que
o desvalorizam. É o que acontece, por exemplo, com identidades culturais
minoritárias que sofrem estigmatizações, preconceitos, racismo e violências
diversas.
Bee e Boyd (2011, p. 284), ao analisarem o autoconceito e o ambiente
escolar, comentam que “A criança em idade escolar também começa a ver suas
próprias características (e as de outras pessoas) como relativamente estáveis e,
pela primeira vez, desenvolve um sentido global de seu próprio valor [...]”. É possível
inferir que, na escola, os mecanismos de produção das identidades encontram
terreno fértil para que as mais variadas relações e interações necessárias se
estabeleçam. Cabe ao docente estar atento, percebendo e intervindo sempre que
esse processo possa ser prejudicado por práticas racistas ou preconceituosas
durante suas aulas.
Você já viu que a formação das identidades individuais ocorre a partir das
relações estabelecidas entre os grupos e instituições sociais às quais os sujeitos
pertencem. Essa formação também envolve os aspectos internos, ligados ao
desenvolvimento psicológico. É aí que são estabelecidos o autoconceito, a
autoimagem e a autoestima. Da mesma forma, a cultura tem importância
fundamental. Por meio dela, os indivíduos aprendem as práticas sociais discursivas
(o que se diz) e não discursivas (o que se faz) do seu grupo étnico. A cultura, dessa
forma, envolve todos os simbolismos e representações que foram estabelecidos
com o passar das experiências históricas do grupo. Ela costuma servir como
balizador, como norte a guiar as ações futuras daqueles que fazem parte de
35
determinada etnia. Assim, as características étnicas contribuem significativamente
para a formação das identidades.
Como exemplo, considere algumas alusões a traços ou comportamentos
culturais de determinadas etnias: “o povo alemão sabe melhor como poupar”, “os
italianos são mais acolhedores e hospitaleiros”, “os indígenas são mais
espiritualizados e desapegados dos bens materiais”, etc. Essas afirmações
procuram essencializar os traços de uma identidade étnica, o que pode ou não ser
verdadeiro para todos os que compõem a etnia (OLIVEIRA; CANDAU, 2010, p. 16).
A formação das identidades culturais e étnicas é um processo histórico e
social produzido nos embates de poder e força entre as etnias existentes. No
decorrer da história brasileira, houve, acompanhando as tendências internacionais,
o favorecimento de algumas etnias. Além disso, ocorreu a construção de
representações simbólicas que favorecem tais etnias e, ao mesmo tempo,
desqualificam e inferiorizam todas as demais, produzindo grandes desigualdades
sociais e raciais.
Dessa forma, os mecanismos de colonização no Brasil estabeleceram uma
relação entre cor e raça que serviu para classificar as populações, bem como para
executar a “[...] inferiorização de grupos humanos não europeus, do ponto de vista
da produção da divisão racial do trabalho, do salário, da produção cultural e dos
conhecimentos [...]” (OLIVEIRA; CANDAU, 2010, p. 16). A colonização não se deu
somente no território físico, na materialidade dos recursos e na exploração da mão
de obra do colonizado, mas também colonizou os saberes, impôs novas formas de
pensar e agir socialmente.
As sociedades ocidentais e, mais particularmente, a sociedade brasileira
desenvolveram um processo de racialização em que foram cristalizadas algumas
características essenciais ao sujeito moderno, que serve de referência a todos os
demais. Louro (2011, p. 65) reforça essa ideia ao argumentar que “[...] no contexto
da sociedade brasileira, ao longo de sua história, foi sendo produzida uma norma a
partir do homem branco, heterossexual, de classe média urbana e cristão [...]”.
Dessa forma, as minorias sociais são compostas por todos aqueles que por
quaisquer motivos não se encaixem na norma: as mulheres, os negros, os
36
indígenas, os homossexuais, aqueles que possuem outras religiões (como as de
matriz africana), as pessoas com deficiência, os pobres, etc. Embora, em grande
parte dos casos, esses grupos apresentem-se quantitativamente maiores do que os
que servem de referência, são considerados minoritários devido à sua falta de força
e de poder nas relações sociais.
O professor, ao desenvolver suas atividades na escola, deve estar atento
para que as suas aulas não reforcem uma estratificação social que se vale dos
aspectos étnico-raciais dos sujeitos. Ele não deve ceder espaço a uma pedagogia
que “[...] educou o olhar deste sujeito branco que julga; ela educou seu modo de
compreensão sobre a pertença racial. Ela o educou para pensar que ele, branco,
não tem raça nem cor e, portanto, pode, do alto de seu estatuto de incolor, julgar
quem são, afinal, os ‘de cor’ [...]” (KAERCHER, 2010, p. 87). Ou seja, o docente,
seja ele branco, negro ou de qualquer outra cor de pele, deve ter consciência de
que as características étnicas influenciam e são importantes para a formação da
identidade e, consequentemente, da autoimagem e da autoestima de seus alunos,
coibindo práticas racistas e preconceituosas.
Ao analisar a produção histórica relativa ao conceito de racismo e suas
modificações com o passar das décadas no Brasil, Guimarães (2004, p. 33)
comenta que
O autor faz uma crítica e um alerta ao fato de que no Brasil entende-se que
não há racismo devido ao mito da democracia racial. O fato de haver miscigenação
na formação do povo brasileiro não faz com que, naturalmente, as relações sociais
sejam harmônicas e justas. O mito da democracia racial mascara o grande abismo
que é produzido desde a época colonial e reproduzido em instituições como a
escola, colocando alguns grupos étnicos em condição desigual, marginalizada e
empobrecida.
37
Você deve entender que “[...] a identidade étnico-cultural, mesmo quando
aparece como marginalizada, excluída, não é uma realidade muda, simples objeto
de interpretação. Ela é fonte de sentido e de construção do real. Os processos
culturais são processos conflitivos [...]” (KREUTZ, 1999, p. 83). Os conflitos
normalmente surgem a partir dos movimentos sociais de algumas etnias em busca
de sua igualdade de direitos políticos, econômicos e sociais, procurando quebrar a
hegemonia de poder que se instituiu historicamente. Como exemplo, considere o
movimento negro brasileiro, que, com suas lutas, conseguiu incluir nos currículos
escolares a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura afro-brasileiras por
meio da Lei nº. 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Além disso, esse movimento teve
participação decisiva na implantação do sistema de cotas raciais e sociais nas
universidades públicas e na criação do Estatuto da Igualdade Racial, entre outras
conquistas que visam a reparar danos históricos causados às etnias
afrodescendentes.
A escola, como instituição social que se estende a todos,
independentemente de sua identidade étnico-cultural, deveria promover cursos que
“[...] alargassem a compreensão que os/as estudantes possam ter de si mesmos/as
e de outras pessoas, ao examinar eventos que enfoquem um senso de
responsabilidade social e moral [...]” (GIROUX, 1995, p. 91). Dessa forma, cabe à
escola, ao professor, conduzir seus alunos a:
38
8.3 O posicionamento do professor frente ao racismo e à injúria racial
39
Como exemplo, considere o caso de um professor que atua com uma turma
de alunos do 5º ano do ensino fundamental de uma escola de periferia. Tal escola
recebe crianças e jovens em condições de vulnerabilidade social. Na turma em que
o professor trabalha, existem dois grupos étnicos com uma rivalidade muito grande,
que se manifesta tanto entre os meninos quanto entre as meninas. Um grupo é de
alunos afrodescendentes e o outro é de alunos que se consideram “brancos”.
O professor decide analisar o contexto dos alunos, conhecer sua vida social,
as particularidades de sua rotina diária. Assim, ele percebe muitas semelhanças
entre eles. Com base nisso, resolve confrontar ambos os grupos e provocá-los a
pensar sobre a sua condição social. Para iniciar a discussão, o tema escolhido é a
situação de pobreza em que se inserem, as perspectivas e planos que têm para o
futuro, suas angústias e desafios cotidianos, seus problemas familiares, entre outras
situações. No decorrer das aulas, o professor realiza algumas dinâmicas de grupo
e abre o canal de comunicação para que todos se manifestem sempre que acharem
oportuno.
As trocas de experiências entre os estudantes negros, brancos e todos os
demais que não se identificam com esses dois grupos são muito produtivas e
significativas. Muitos percebem semelhanças em suas relações na sociedade, nas
mazelas que lhes afligem socialmente, na carência dos bens materiais, nos
sofrimentos sentidos durante a infância, nas frustrações, decepções e mágoas
familiares, nos planos para o futuro e nas perspectivas que possuem. Essa vivência
faz com que os grupos de alunos se aproximem muito e une a todos já no primeiro
bimestre. Resolvidas as questões que provocaram o choque cultural entre os jovens
alunos, não há mais problemas de ofensas raciais ou estereótipos de qualquer
natureza. O diálogo torna os estudantes mais tolerantes, respeitosos e acolhedores
das diferenças.
Oliveira e Candau (2010) refletem sobre a importância do reconhecimento
de todos os grupos étnicos nos debates interculturais realizados nas escolas
visando a uma educação antirracista. Eles afirmam que:
40
em preconceitos e comportamentos discriminatórios [...] (OLIVEIRA;
CANDAU, 2010, p. 32).
Para que isso possa ser realizado pelo docente, é necessário que haja
conhecimento, interesse e posicionamento sobre essas questões tão importantes e
presentes na sociedade. A proposta é que os alunos entendam que a diferença
torna os sujeitos ricos e não os deprecia ou inferioriza.
Cabe aos professores e professoras, no decorrer de suas práticas docentes,
independentemente do nível educacional em que atuam, da educação infantil ao
ensino superior, “[...] promover processos de desconstrução e de desnaturalização
de preconceitos e discriminações que impregnam, muitas vezes com caráter difuso,
fluido e sutil, as relações sociais e educacionais que configuram os contextos em
que vivemos [...]” (CANDAU, 2012, p. 8). Para que possa superar esse desafio, você
deve estar atento às questões apresentadas de:
• naturalização;
• igualdade e diferença;
• currículo escolar;
• culturas;
• interações.
A naturalização de características que se relacionam com alguma etnia
específica deve ser observada pelo professor. Assim, pode ser contestada e
desconstruída junto aos seus alunos. Dessa forma, conforme explica Hall (2016), a
naturalização muitas vezes opera para fixar as possíveis “diferenças” que são
produzidas dentro de uma lógica etnocêntrica e monocultural. Partindo desse
princípio, é comum que os alunos utilizem expressões e noções naturalizadas sobre
determinadas etnias. É o caso da associação dos afrodescendentes com esportes
de luta e corrida. Nesse caso, se propõe que essa seja uma “verdade” recorrente a
todos os negros, o que os exclui de outras realizações, ao mesmo tempo em que
interfere outras etnias de ter sucesso nessas modalidades.
A igualdade e a diferença devem sempre ser colocadas em discussão. Elas
são importantes para a formação das identidades étnicas e culturais de todos os
alunos, marcando que as diferenças existem e constituem os sujeitos. Por sua vez,
41
a igualdade remete aos direitos que todos possuem. Da mesma forma, o currículo
escolar deve ser observado com atenção pelos professores, em cada detalhe, na
seleção de conteúdo, textos, livros didáticos e técnicas a serem utilizadas. Deve-se
reconhecer que todo saber carrega consigo o poder de produzir um entendimento
sobre o mundo.
Ao trabalhar junto aos alunos os processos de formação de suas
identidades culturais, os professores podem valer-se do importante recurso das
histórias de vida desses sujeitos. Ao narrar a sua trajetória, os alunos exercitam o
processo de escolha de suas memórias e percebem os aspectos que lhes são mais
caros e pertinentes. Da mesma forma,
9 DISCRIMINAÇÃO
42
os seres humanos, para, em seguida tratar desse fenômeno social a partir da cultura
ou da construção simbólica que é amplamente difundida na sociedade.
Segundo o dicionário Houaiss, a discriminação é um conceito que envolve
a distinção, que, aplicada à vida em sociedade, trata de uma quebra de sentido de
igualdade (HOUAISS; VILLAR, 2001). Esse é um bom ponto de partida para esta
investigação, que continuará a partir da análise de alguns filósofos contratualistas
sobre o tema da vida em sociedade, uma vez que é do período Iluminista que
herdamos o ideal de uma vida igualitária entre todos os cidadãos e que se funda na
ideia de que a garantia de direitos individuais é um elemento fundamental para a
dignidade humana.
Desse período, três filósofos que tratam do inatismo serão destacados para
a análise, a saber: Locke, Hobbes e Rousseau. O primeiro, Locke (1983), critica o
inatismo e toma o ser humano como uma tábula rasa, em que nada está
previamente escrito. Já Hobbes (1979) e Rousseau (1978) abordam o inatismo
segundo a ideia que fazem da “natureza humana”, ou uma abstração sobre o
comportamento humano a partir de um momento que antecede o contrato social, o
qual denominam “estado de natureza”.
Locke (1983) também trata do “estado de natureza”, condição na qual a
razão orientaria a conduta social segundo uma lei natural na qual é fundamental a
atenção ao princípio de igualdade, sobretudo ao prejuízo da vida, da saúde, da
liberdade e das posses. Para o filósofo, é a razão que torna possível a conduta
natural, e não um conhecimento inato.
A ideia de “estado de natureza” é distinta entre Hobbes (1979) e Rousseau
(1978). Enquanto o primeiro afirma um caráter egoísta inato, que orienta a conduta
humana a uma visão competitiva da vida, em que todos realizamos um movimento
que consiste em se aproximar do que nos agrada e se afastar daquilo que nos
desagrada, Rousseau (1978) ressalta a capacidade de todos de se associarem em
torno de vontades gerais, que seriam as responsáveis pela alienação coletiva da
liberdade natural em favor da aquisição da liberdade civil. Se pensarmos a
discriminação em termos individuais, a teoria de Hobbes (1979) nos levaria a
conclusões interessantes, no entanto, em ambos os casos, é difícil derivar o
43
comportamento discriminatório pela análise de grupos sociais uns contra os outros,
seja por seu caráter cultural, físico, religioso ou comportamental.
Pensar a discriminação enquanto um fenômeno social que afronta a
igualdade entre todos os seres humanos como o resultado de ideias que são
adquiridas por meio de nosso convívio social torna mais apropriado, ao debate, o
seu desenvolvimento de análise a partir do campo da cultura, uma vez que dela
derivam os aprendizados de significados comumente atribuídos para descrever o
mundo e orientar nossa conduta coletiva.
Aqui, utilizaremos o conceito de cultura exposto por Geertz (1978), que trata
a cultura enquanto significados que são produzidos e compartilhados amplamente
em sociedade e que sustentam as nossas relações sociais.
44
distintas. Por exemplo, se tomarmos a população brasileira como um todo, podemos
separar o conjunto compostos por mulheres, negras e homossexuais para, então,
avaliar o modo como participam da sociedade por meio de indicadores sociais e
também interpretar as evidências culturais que afirmam ou negam a influência
dessa população em comparação ao todo, ou mesmo a outra estratificação, como
a dos homens, brancos e heterossexuais. Entre esses conjuntos, não há qualquer
interseção e, portanto, as assimetrias quanto a indicadores de emprego, renda, nível
educacional, moradia ou violência podem ser comparados com a finalidade de
incorporar evidências empíricas para a interpretação social a respeito do fenômeno
da discriminação.
A análise de problemas sociais, como a discriminação, pela sociologia, não
pode abrir mão de dados empíricos para ser capaz de cumprir as etapas do método
científico, que observa recorrências no mundo, formula hipóteses para explicar o
fenômeno, colhe dados empíricos — sejam eles numéricos ou a partir do registro
de fatos que corroborem uma interpretação — e, por fim, fundamenta uma teoria ou
formula uma lei geral que apresenta relações de causa e consequência para uma
multiplicidade de situações que cumpram as mesmas premissas.
É evidente que o fenômeno da discriminação é persistente ao longo da
história humana, mas se buscou deixar claro, nesta primeira seção, que a cultura
desempenha um papel preponderante para a análise do tema e que estabelece
relações de poder capazes que podem ser interpretadas pelo modo como justificam
a atribuição de valor humano diferente a determinados grupos na sociedade,
inferiorizando-os e mantendo privilégios já estabelecidos. Esse jogo de poder se dá
por meio da aplicação de forças, que atuam em diferentes camadas da vida em
sociedade e são percebidas a partir do modo como alteramos nossa perspectiva
para abordar os problemas sociais derivados da discriminação. Por todos os
diferentes olhares, fica evidente a formação de preconceitos e a violência que
perpetuam as desigualdades sociais (MARIN, 2020).
45
9.2 A relação entre discriminação, preconceito e violência
46
coletiva que se dá a partir da perspectiva de “estabelecidos” e “outsiders” (ELIAS;
SCOTSON, 2000).
Os autores identificam no grupo “estabelecido” um maior grau de coesão
social, o que explica sua maior eficiência na aplicação de forças para se manterem
em espaços de poder, evidenciada pelas organizações comunitárias existentes —
a participação nessas organizações garantia status diferenciado perante os demais
habitantes. Essa coesão também possibilitava ao grupo “estabelecido” um rápido
compartilhamento de significados entre seus membros, uma vez que todos se
conheciam de longa data. Esse processo inicial é chamado por Elias de
“estigmatização” e ocorre quando o conjunto de preconceitos individuais se torna
parte de um grupo (ELIAS; SCOTSON, 2000).
Nessa obra, os sociólogos apresentam anotações realizadas a partir de
depoimentos espontâneos dos “estabelecidos” que tornam evidente a classificação
dos “outsiders” como pessoa de categoria inferior (ELIAS; SCOTSON, 2000). É
possível notar, nessas anotações, que são realizadas generalizações ao grupo
“outsider” que confrontam os valores cultivados pelo grupo “estabelecido”, como
com relação a higiene pessoal, caráter, preferência política ou hábitos de consumo
alcóolico. Esses pequenos preconceitos, conforme vão tomando um caráter de
grupo, transformam-se em estigmas que caracterizam pejorativamente o grupo
“outsider”.
É curiosa e pertinente a referência de Elias com relação ao papel da fofoca
nesse processo, uma vez que a informação circula de maneira muito mais eficiente
entre um grupo coeso socialmente do que em um fragmentado, como é a
característica da população residente no conjunto habitacional (ELIAS; SCOTSON,
2000). A piada, a caricatura e a generalização são aplicadas de modo a depreciar
o alvo das informações transmitidas entre os habitantes antigos da comunidade e
que foram ouvidos pelo pesquisador, o qual registrou, também, impressões sobre o
tom de voz e o vocabulário utilizados na fofoca, cuja motivação subjetiva era
enfatizar a superioridade de um grupo em detrimento de outro (ELIAS; SCOTSON,
2000).
47
Essa análise realizada por Elias (ELIAS; SCOTSON, 2000) e que vai do
indivíduo para o coletivo é também empreendida por Almeida (2019), que descreve
o racismo estrutural, que se inicia com o preconceito, individual, baseado em
estereótipos, e a discriminação, a partir da qual um grupo se beneficia com a
aplicação da força para a manutenção do poder.
Para Almeida (2019), a discriminação possui uma concepção individualista
segundo a qual as ações de violência são praticadas por grupos isolados ou
indivíduos que se comportam irracionalmente, contrários a uma ética que se regula
juridicamente a fim de punir ou indenizar, o que bastaria, na opinião de alguns, para
resolver o problema do racismo. Para o autor, embora sejam chocantes os
exemplos que justificam a análise individualista do problema da discriminação na
sociedade, deve-se também atentar para uma abordagem institucional e estrutural
sobre o problema, porque essas, sim, dão uma dimensão do processo histórico que
mantém as desigualdades e impede certos estratos sociais de participarem de
forma justa dos jogos de poder que se estabelecem ao longo da vida dos indivíduos
em sociedade.
Pela concepção institucional, Almeida (2019) chama a atenção para a
compreensão de como a cultura e os padrões estéticos são estabelecidos e para o
modo como são preenchidos os cargos de instituições públicas e privadas. Assim,
é chamado de racismo institucional aquele que se repete segundo uma orientação
que mantém os sistemas sociais estáveis.
Já a análise do racismo pela perspectiva estrutural abrange a sociedade
como um todo, o processo de constituição dos indivíduos e o funcionamento de
diversas instituições públicas ou privadas, de modo que a responsabilização jurídica
não satisfaz as premissas necessárias à mudança social necessária para a
prevenção e para o combate à reprodução de desigualdades baseadas em um jogo
de poder, que reforça as assimetrias ao longo do processo político e histórico da
sociedade.
Os preconceitos são fonte da discriminação e organizam simbolicamente o
estrato social que desempenha o papel de “outsider”, que, portanto, é excluído das
diferentes organizações sociais, seja de instituições públicas ou privadas, nas quais
48
o jogo de poder pode ser amplificado e influenciar o funcionamento dessas
instituições e da cultura como um todo.
Qualquer tipo de discriminação que se desenvolve historicamente, a ponto
de influenciar o processo político de uma sociedade, pode ser analisado quanto ao
seu desenvolvimento estrutural, a partir das marcas que deixa ao longo da história
e de relatos sobre diferentes conflitos que mobilizam a opinião pública de modo
cada vez mais intenso, na mesma proporção em que se popularizam os dispositivos
capazes de produzir textos, sons e imagens a serem publicados em servidores
conectados à internet.
Os registros de violência moral ou física que determinados grupos sociais
sofrem viralizam on-line e mobilizam a atenção pública sobre o tema da igualdade.
Normalmente, trazem imagens fortes, que nos fazem imediatamente repudiar o uso
da violência, notadamente expressa em função de raça, gênero, orientação sexual,
religiosa ou de qualquer situação que indique uma identidade coletiva
discriminatória. O que alerta Almeida (2019), aplicado ao racismo, é que a
sociedade deve focar seus esforços nos pilares estruturantes da discriminação, e
não apenas criminalizar atos isolados, com a finalidade de viabilizar uma sociedade
da qual todos participem de modo igualitário.
A elaboração de medidas para a promoção de ações afirmativas é a
principal atitude tomada por instituições públicas e privadas para tentar romper
diversas formas de discriminação que estão estruturalmente presentes na
sociedade, como é o caso daquela que identifica os grupos humanos segundo
funções que devem desempenhar na sociedade, os chamados “papéis sociais”
(CASTELLS, 2010), segundo os quais, por exemplo, as mulheres são associadas
ao trabalho doméstico ou pessoas negras devem assumir posições de servidão.
Por isso, são criadas políticas de cotas raciais para a ocupação de
empregos ou de vagas em instituições de ensino superior, o que torna possível à
sociedade desvincular a ideia de funções sociais associadas a categorias de
estratificação e permite igualdade de oportunidades para a diversidade humana que
compõe a sociedade como um todo.
49
9.3 Consequências da discriminação para a dignidade humana
50
Estados Unidos, o que culmina com a aprovação, em 1964, da legislação que
garante os direitos civis (Civil Rights Act) a todos os cidadãos e criminaliza a
discriminação baseada em raça, cor, religião, orientação sexual ou nacionalidade.
No Brasil, o artigo 5º da Constituição Federal (BRASIL, 2016), que trata de
direitos e deveres individuais e coletivos, prevê a igualdade perante a lei e protege
a vida, a liberdade, a igualdade, a segurança e a propriedade de todos os brasileiros
e estrangeiros residentes aqui. Nota-se, evidentemente, o alinhamento da
legislação brasileira aos ideais do Iluminismo; entretanto, apesar disso, o Brasil é
um dos países mais desiguais do mundo, e a discriminação contra mulheres, negros
e homossexuais se expressa de modo estrutural em diversas perspectivas de
análise social, como trabalho, renda, escolaridade e violência.
Após a promulgação da Constituição Federal de 1988, outras iniciativas
legislativas foram realizadas para tentar mitigar o problema da discriminação sob a
forma penal, que tipifica crimes contra minorias, como os que ocorrem motivados
contra as mulheres e contra os negros. Já a legislação que se relaciona aos
homossexuais ou outros representantes da comunidade LGBTQ+ não foi aprovada
pelo Congresso Federal, mas, em 2019, o Supremo Tribunal Federal determinou
que os crimes de racismo sejam aplicados a esses casos até que uma lei específica
seja aprovada pelo poder legislativo.
A regulamentação de marcos legais que chamam a atenção para atos
discriminatórios na sociedade é importante, mas, como já mencionado
anteriormente, não bastam para o enfrentamento do caráter estrutural do problema.
Portanto, os governos, a sociedade civil organizada e as instituições privadas têm
se mobilizado conjuntamente para que a promoção da igualdade e a proteção da
dignidade humana se afirmem como direitos fundamentais no mundo em que
vivemos.
Entre as ações afirmativas que visam a promoção da igualdade, podemos
citar as políticas de cotas, que são aplicadas em universidades públicas, partidos
políticos, concursos públicos e no contexto do preenchimento de vagas de trabalho
em algumas empresas privadas. Essas iniciativas, muito questionadas na
sociedade atual, visam a promoção de ações que impliquem a melhoria de
51
perspectivas de mobilidade social, qualidade de vida e promoção da diversidade em
diferentes esferas públicas e privadas da vida em sociedade.
O problema da discriminação tem sido potencializado na atualidade em
virtude do registro de atos violentos contra minorias sociais com dispositivos móveis
e que são publicados em redes sociais, gerando ampla divulgação e comovendo
parcelas amplas da população em torno do tema da igualdade e da importância de
combater a discriminação com amplitude global (SUDRÉ, 2020).
No ano de 2020, uma agressão policial ocorrida na cidade de Mineápolis,
nos EUA, que levou à morte de um homem negro por asfixia, foi filmada e publicada
em redes sociais. As imagens do policial ajoelhado sobre o pescoço da vítima,
causando o sufocamento, viralizaram e motivaram diversos protestos, mundo afora,
sob o slogan Black Lives Matter (em português, vidas negras importam), chamando
a atenção da opinião pública global para o fato de que o tema da igualdade racial
ainda deverá percorrer uma longa trajetória até que se efetive enquanto uma prática
social amplamente aceita e respeitada por todos.
Entretanto, como lembra Almeida (2019), não é por meio do mero combate
à violência que o problema da discriminação pode ser enfrentado, já que isso pode
levar a sociedade a interpretações equivocadas sobre a centralidade do caráter
individual da discriminação — nesse sentido, o autor chama a atenção para o
aspecto estrutural do problema.
A discriminação, portanto, deve ser compreendida de modo cultural,
difundida na sociedade por meio de estratégias de dominação que mantêm a
centralidade do poder em grupos que são historicamente privilegiados e que
produzem a estigmatização de outros grupos como uma forma de colocar em
evidência seu valor inferior na sociedade.
É possível mudar esse quadro, mas a solução passa por uma ampla
conscientização sobre o modo como a discriminação está amplamente inserida na
sociedade, não se restringindo apenas a pequenos grupos ou indivíduos que
apresentam comportamentos desviantes, cuja violência é capaz de sensibilizar a
sociedade para a necessidade de mudanças. Contudo, ao mesmo tempo, faz com
que a real magnitude do problema seja minimizada pela exemplar punição de alguns
52
poucos casos isolados mobilizados pela opinião pública, relacionados a violência
física, enquanto a violência cotidiana, a segregação e a desigualdade de
oportunidades ferem direitos fundamentais que tentam ser implementados em
diversas partes do mundo há mais de 200 anos, ainda sem sucesso.
10 DESIGUALDADES ÉTNICO-RACIAIS
53
altas, brancas. Para ele, o termo “racismo” aparece como “preconceito de cor”
(FERNANDES, 1978).
A leitura da democracia racial era estimulada especialmente por duas obras
de Gilberto Freyre: Casa-Grande & Senzala e Sobrados e Mucambos. Freyre (1981)
produziu ensaios sociológicos de extrema importância, narrando as formas de vida
e a relação entre os núcleos sociais brancos e negros no Brasil pós-colonial. A
análise desse sociólogo, no entanto, é mais suave no tocante aos conflitos e
problemas vividos pelo povo negro após a abolição da escravatura, já que não
houve qualquer política de auxílio para aqueles que, longe de seu continente natal,
não tinham empregos ou moradia. Em 1955, a Organização das Nações Unidas
para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) financiou um projeto
desenvolvido por Florestan Fernandes e Roger Bastide sobre as possibilidades de
harmonia racial.
De acordo com Nogueira (2007), as leituras sobre as relações raciais no
Brasil e a condição do negro na estrutura social brasileira se iniciaram a partir de
três perspectivas: a interpretação afro-brasileira iniciada por Nina Rodrigues, que
tinha foco nas contribuições de africanos escravizados e seus descendentes na
cultura brasileira; a análise histórica de como o negro passa a fazer parte da cultura
brasileira, cujo principal expoente seria Gilberto Freyre; e a vertente sociológica,
que se preocuparia com a interpretação das relações sociais entre brancos e negros
na sociedade brasileira.
As duas perspectivas iniciais citadas por Nogueira (2007) tinham a
tendência a romantizar a presença do negro na sociedade e na história brasileiras,
salientando as cores trazidas por sua cultura, sua música, sua culinária. Mas,
embora não o negassem, tais perspectivas não refletiam sobre o fato de que essa
contribuição se deu forçadamente, já que o povo negro nunca foi convidado a
povoar terras brasileiras, mas foi forçado via escravidão. A dimensão da violência e
da segregação econômica vividas nos períodos pré e pós-abolição não era
mencionada.
A perspectiva das relações sociais entre brancos e negros se inicia no
Brasil, ainda de acordo com Nogueira (2007), em 1935, por meio de estudos
54
conduzidos na Bahia por Donald Pierson, publicados em São Paulo na Revista do
Arquivo Municipal e na Revista Sociologia. Durante as décadas de 1940 e 1950, a
presença do negro nos “sertões” brasileiros foi o foco dos estudos, com olhar
voltado para seu trabalho nos campos de cana-de-açúcar e nas usinas. Criava-se
o estereótipo do negro sertanejo. Mas foi entre 1950 e 1960 que, financiados pelos
projetos da UNESCO, sociólogos brasileiros e estrangeiros debruçaram-se sobre
as formas de relacionamento e os trânsitos sociais do negro no Brasil.
Se você considerar que no mesmo período, nos Estados Unidos, havia as
lutas pelos direitos civis da população negra, vai perceber que esse movimento
despertou o interesse de outros países em compreender as suas “relações raciais”.
Por isso, a questão da “situação racial” se torna preponderante: como o negro se
encontra nas sociedades pós-escravocratas? Como a raça que o dominava se
comportava então? Assim, há um deslocamento: do olhar romantizado sobre as
contribuições culturais do negro para o sangue e a violência envolvidos nessa
contribuição forçada. Além disso, passam a ser considerados os resultados
negativos para os descentes dos escravizados, em contraponto ao lucro e à
acumulação de quem os mantinha cativos.
Fernandes (1978), avaliando esse quadro, indica que a situação racial no
Brasil seria ainda de dominação; não uma dominação inteiramente baseada na
raça, mas na classe. Observe que, com isso, o sociólogo afirma que ainda havia
dominação: ocorrera uma transferência de poder simbólico de dominação após a
abolição da escravidão, uma vez que o povo negro não tinha retido a sua liberdade,
mas também não tinha espaço para ascender socialmente. Afinal, não havia
políticas sociais que os acolhessem como cidadãos tais quais os brancos, deixando-
os à própria sorte. Entre 1920 e 1940, a intensa migração europeia para o Brasil
encontrou aqui uma estrutura de acolhimento e de respeito à dignidade humana e
social que os negros nunca encontraram, especialmente por meio do trabalho formal
e da possibilidade de educação, o que, numa sociedade capitalista, pode significar
a manutenção ou a ascensão social.
Nogueira (2007, p. 291) afirma:
55
De um modo geral, tomando-se a literatura referente à “situação racial”
brasileira, produzida por estudiosos ou simples observadores brasileiros e
norte-americanos, nota-se que os primeiros, influenciados pela ideologia
de relações raciais característica do Brasil, tendem a negar ou a
subestimar o preconceito aqui existente, enquanto os últimos, afeitos ao
preconceito, tal como se apresenta este em seu país, não o conseguem
“ver”, na modalidade que aqui se encontra. Dir-se ia que o preconceito, tal
como existe no Brasil, cai abaixo do limiar de percepção de quem formou
sua personalidade na atmosfera cultural dos Estados Unidos.
56
As representações da Europa como central nos mapas não são acidentais. Elas
estão ali porque representam a visão dos povos que empreenderam as grandes
expansões marítimas a partir do século XIV. Para os expansionistas,
conquistadores de territórios, o centro do mundo era a própria terra natal, e o
restante, adjacência, territórios “descobertos”.
O problema dessa visão é que boa parte dos territórios descobertos nessas
jornadas eram novos apenas para os europeus, mas, por vezes, mantinham
sociedades centenárias e até milenares. Então, a descoberta só podia pertencer
aos povos europeus por meio da conquista e do domínio. Assim, houve a imposição
da cultura, das estruturas e até da constituição física do que seria “central”. Peles
claras e provenientes da Europa eram o centro, e o que não condizia com essa
descrição, periférico. Nas lutas pelo espaço social ao longo dos períodos de
dominação de um povo por outros, constituiu-se a ideia de que uma raça poderia
ser superior a outra. O nazismo, modelo político de extrema direita que precedeu a
Segunda Guerra Mundial na Alemanha, se constituiu baseado na ideia de
superioridade física, intelectual e moral da raça ariana, subjugando outros povos,
especialmente os judeus.
Os europeus não foram os únicos povos a empreender jornadas de
conquista e dominação de territórios. Muitas sociedades o fizeram, incluindo
sociedades orientais, árabes e africanas. Porém, a expansão imperialista do Velho
Continente, especialmente a partir do século XV, fez com que houvesse ali
centralização política e de poder econômico. Com os territórios dominados
tornando-se independentes, a partir do século XIX, houve a manutenção dos valores
imperialistas, criando uma leitura eurocêntrica de mundo.
Os conflitos étnicos tampouco se baseiam apenas na relação entre países
centrais e periféricos, mas o racismo se estabelece essencialmente por meio dessa
relação. Afinal, ele foi a motivação da escravização de sociedades negras diversas
com vistas ao lucro dos países colonizadores (AUGUSTINHO, 2019).
O racismo e os conflitos étnicos são derivados da ideia de que um povo é
central, superior, e que outros povos, com peles, fenótipos, culturas ou religiões
diferentes, devem ser inferiorizados. Mas, como você vai ver, há na interpretação
57
racista também um viés econômico, já que normalmente as raças e etnias que se
tentam subjugar passam a ser economicamente dominadas e exploradas.
O racismo e os conflitos étnicos, portanto, se constituem no exercício da
dominação e da violência, bem como da subjugação simbólica pautada na exclusão
e no apagamento da individualidade. No Brasil, o mito da democracia racial vem
constantemente sendo negado, e o racismo, apontado — especialmente pela
geração de brasileiros negros nascida a partir de fins dos anos 1980 e início dos
anos 1990. O racismo se mostra especialmente pela marginalização social da
população negra, assim como pelo encarceramento sumário do povo negro.
Religiões de matriz africana são discriminadas, a ponto de sofrerem atentados em
seus prédios, como apedrejamento e incêndios criminosos, especialmente no Rio
de Janeiro, onde fiéis não estão seguros para expressar livremente sua religião (o
que é garantido pela Constituição), correndo o risco de sofrer represálias.
Conflitos étnicos são disputas culturais. Normalmente, acontecem em
associação a uma disputa também territorial. Pode não haver a intenção de domínio
da outra cultura, mas de legitimação religiosa, cultural ou ancestral. Quando os
conflitos étnicos se associam a disputas territoriais, pode haver movimentos
separatistas, em que a comunidade pretende formar um novo Estado, pautado em
suas próprias características culturais e/ou religiosas. Quando essa intenção
separatista é completamente refutada pelo Estado em que a comunidade em
conflito se encontra, o desgaste pode evoluir para uma guerra.
O conflito entre Israel e Palestina pode ser considerado um conflito étnico
por disputa de território. Em 1947, a Organização das Nações Unidas (ONU)
delimitou um Estado duplo israelense e palestino, mas em 1948 foi criado o Estado
de Israel, que recebeu judeus de todo o mundo após o holocausto. Porém, a região
era previamente habitada por palestinos, árabes de cultura majoritariamente
islâmica. A disputa cultural se inicia especialmente por Jerusalém, a chamada Terra
Santa, território importante para cristãos e muçulmanos. Para palestinos, Jerusalém
ainda é árabe, e para israelenses, pertence aos hebreus. Os Estados tomaram a
frente do conflito, gerando ataques e ofensivas constantes, com períodos de paz e
outros mais violentos (AUGUSTINHO, 2019).
58
O racismo, por sua vez, é a inferiorização de uma raça associada à
supervalorização de outra. Existem novas abordagens sociológicas que indicam
que o racismo só acontece quando há a possibilidade de dominação estrutural ou
hegemônica da raça discriminada. Essa nova leitura indica que no Brasil, por
exemplo, o racismo se dá pela marginalização e pela inferiorização de pessoas
negras ou indígenas por brancos, porque os brancos são estruturalmente
dominantes, sendo maioria na arena política e na detenção de recursos financeiros.
Quando um indivíduo de cultura não dominante discrimina outra cultura ou
indivíduo de grupo social distinto, haveria então episódio de preconceito ou injúria
racial. Isso porque sua discriminação, embora possa ter impactos emocionais
negativos no indivíduo ofendido, não pode causar cerceamentos políticos ou
econômicos, porque ele não tem o poder estrutural. Vertentes sociológicas
tradicionais, por sua vez, indicam que racismo é toda e qualquer ação de
inferiorização, discriminação ou segregação de um grupo sociocultural baseada em
elementos culturais, religiosos ou fenotípicos, independentemente do grupo que
ofende ou que é ofendido.
O escopo biológico indica que a utilização do termo “raça” para seres
humanos é inadequada. Isso porque a raça seria a determinação de uma
subespécie, ou de várias subespécies, atreladas a uma espécie. Ou seja, ela
identificaria diferenças genéticas significativas entre grupos diversos, porém
pertencentes à mesma espécie. Seres humanos não possuem diferenças genéticas
significativas entre si a ponto de formar subgrupos. Pelo contrário, as estruturas dos
códigos genéticos são praticamente indistintas, independentemente dos fenótipos,
como cor da pele, cabelos e olhos e estrutura física. Por isso, a determinação do
termo “raça” a partir dos pressupostos biológicos é errônea.
Do ponto de vista sociológico, o termo “raça” tende a ser utilizado para a
identificação de grupos sociais com traços culturais, sociais e religiosos específicos,
havendo ou não características fenotípicas associadas (BOBBIO et al., 1998). No
caso da sociologia brasileira, esse termo é utilizado para identificar o racismo, ação
discriminatória vivida por indivíduos afro-brasileiros. Contudo, não é adequado,
considerando a leitura biológica, identificar grupos culturais quaisquer como raças.
59
11 CULTURAS AFRO-BRASILEIRA E INDÍGENA NA SOCIEDADE
BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA
60
Certeau (2009), em A Invenção do Cotidiano, analisou como o ser humano
consegue criar um modelo de comportamento denominado por ele de “arte de
fazer”. Fugindo dos padrões e regras impostos pelo modelo dominante, os
indivíduos inventam o seu cotidiano criando, de maneira sutil, diversas “táticas” de
resistência e sobrevivência, de modo que códigos e objetos são alterados em seu
benefício. Essa noção é de suma importância para que você possa compreender
como se deu a permanência de características culturais de africanos e indígenas na
cultura brasileira.
Essa questão evidencia as condições nas quais a nação brasileira foi
forjada. Estava em jogo um projeto político criado pela coroa portuguesa, que
deveria ser levado a cabo por indivíduos que vinham para a terra brasilis em busca
de fama e riqueza, incentivados pela notícia de que ouro e prata haviam sido
encontrados pela coroa espanhola no mesmo continente. Apesar de ser pioneiro no
processo das grandes navegações, o reino de Portugal não possuía condições
materiais suficientes para efetivar a conquista e a posse do território. Além disso,
havia total desconhecimento da fauna e da flora da região, uma vez que o litoral
brasileiro é formado por aproximadamente 7.300 km de extensão, habitados então
por povos distintos.
61
existência da alma indígena e sobre a possível conversão dos índios. Sobre essa
questão, veja o que afirma Laplantine (2007, p. 37–38):
O olhar europeu sobre a população nativa cria dois modelos que servem de
explicação para a percepção a respeito dos indígenas durante o processo de
colonização. Esses arquétipos inserem grupos inteiros sob uma mesma
denominação, estabelecendo modelos de ação perante a população nativa. São
eles: o “bom selvagem” e o “mau selvagem”. A definição de mau selvagem recai
sobre aqueles indivíduos que possuem estas três características: “estar nu ou
vestido de peles de animais” (aparência física); “comer carne crua/canibalismo”
(comportamentos alimentares); “falar uma língua ininteligível” (inteligência, a partir
da linguagem) (LAPLANTINE, 2007).
Na Figura 1, a seguir, você pode observar dois quadros pintados pelo
holandês Albert Eckhout, que esteve no Brasil entre os anos de 1637 e 1644. Neles,
é possível identificar a oposição entre o “bom” e o “mau” selvagem. A mulher tupi é
representada sob o viés maternal. Ela carrega a vida ao segurar seu filho no colo,
eliminando qualquer possibilidade de ameaça. Além disso, transporta um recipiente
com água e uma cesta com produtos manufaturados e veste uma saia branca
(inserida no seu vestuário pelos colonizadores). Na paisagem, é possível identificar
três características que fazem menção à colonização europeia nos trópicos: a
bananeira, planta introduzida no Brasil pelos portugueses; a paisagem colonial, com
a plantação de cana-de-açúcar; e a casa-grande no engenho.
62
Em contrapartida, a mulher tapuia carrega a morte, um cesto com uma
perna decepada. Na sua mão direita, ela segura a mão de outro indivíduo,
remetendo à prática do canibalismo. Está nua, mesmo que parcilamente coberta
por folhas, e calça sandálias de fibras vegetais. Já a paisagem representa a cena
de guerreiros armados, ao fundo, demonstrando a condição natural dessa
sociedade sem contato com os “civilizadores” europeus.
Esses olhares criados sobre a população nativa demonstram tanto o
posicionamento dos nativos em relação aos europeus quanto o modo como estes
últimos perceberam as trocas culturais entre os povos. De um lado, posicionam-se
aqueles que lutaram contra o invasor, mantendo suas práticas religiosas e culturais
e abertamente inimigos do europeu (maus selvagens). Do outro lado, figuram
aqueles grupos que aceitaram determinados aspectos da colonização, como
roupas, língua e religião, submetendo-se ao poder colonial, mas, apesar disso, não
conseguindo tratamento igualitário (bons selvagens).
63
11.3 Índios e negros na literatura brasileira
64
percepção sobre os indígenas no Brasil enquanto um ideal distante, que não pode
mais ser alcançado.
I-Juca-Pirama (“aquele que deve morrer”), escrito em 1851, é considerado
a obra máxima do autor. Ela conta a história de um nobre índio tupi que, após ser
derrotado, torna-se prisioneiro de outra tribo, os timbira. O guerreiro tupi encontra o
seu pai com saúde debilitada, pois está velho e doente, então toma uma decisão
inusitada, pedindo ao chefe timbira que o deixe voltar para a sua tribo para cuidar
do progenitor. Porém, na cultura indígena, esse ato é interpretado como covardia.
É isso o que pensa o seu pai quando o guerreiro retorna à tribo para informar a sua
decisão. O pai recebe o filho com desprezo e indignação, afinal este humilhou não
só a si, mas a toda a sua geração. Então, para provar o seu valor e recuperar a sua
honra, o guerreiro decide ir lutar sozinho contra os inimigos. Após vários combates,
a vitória é obtida e o chefe da tribo timbira encerra a luta. O pai reconhece o valor
do filho, digno de ser chamado novamente de tupi.
Em outro poema, Canção do Tamoio, um guerreiro da tribo tamoio explica
ao seu filho recém-nascido qual é o seu papel no mundo, como ele deve se
comportar frente aos perigos da vida. Ou seja, o pai informa ao filho que tipo de
comportamento é esperado que ele exerça, não só pelo seu pai, mas por todos os
membros da tribo tamoio e dos outros povos que vierem a ter contato com eles.
Veja:
I. Não chores meu filho; não chores, que a vida é luta renhida: viver é lutar.
A vida é combate, que os fracos abate, que os fortes, os bravos só podem
exaltar. II. Um dia vivemos! O homem que é forte não tema da morte; só
teme fugir; no arco que entesa tem certa uma presa, quer seja tapuia,
condor ou tapir. III. O forte, o cobarde, seus feitos invejam de o ver na
peleja garboso e feroz; e os tímidos velhos nos graves conselhos, curvadas
as frontes, escutam-lhe a voz! IV. Domina, se vive. Se morre, descansa
dos seus na lembrança, na voz do porvir. Não cures da vida! Sê bravo, sê
forte! Não fujas da morte, que a morte há de vir! [...] XI. E cai como o tronco
do raio tocado, partido, rojado por larga extensão; assim morre o forte! No
passo da morte triunfa, conquista mais alto brasão (DIAS, 1852).
65
“cor das safiras”, rosto “da alvura dos lírios” e “loiros cabelos”, porém não consegue
encontrar um guerreiro que a deseje, terminando por viver “[...] sozinha, chorando
mesquinha, que sou Marabá!” (DIAS, 1968, p. 325).
Essas representações da população indígena presentes nas obras literárias
criam um ideal que se encaixa em um perfil de guerreiros honrados. Assim,
impossibilita-se outra manifestação cultural e psicológica. Além disso, entra em
cena a crença em um tipo indígena preso no passado, que não conseguiu
acompanhar o desenvolvimento da civilização brasileira.
66
corrompido pelo sistema e simultaneamente corrompe a sociedade. Para o autor, o
Brasil deveria acabar com a escravidão, não por humanidade, mas para se livrar
dos incômodos desse sistema, incluindo aí a população afrodescendente.
Uma das personagens principais da obra de Macedo (1869, p. 157) é a
mucama Lucinda, “Uma escrava mucama da menina que em breve ia ser moça!”. A
menina chama-se Cândida e acaba de completar 11 anos de idade, ganhando como
presente, uma prática comum do Brasil oitocentista, uma jovem mucama, Lucinda.
No desenrolar da trama, o problema surge a partir do momento em que a mucama
Lucinda, corrupta e imoral, começa a fazer parte do cotidiano da doce e angelical
Cândida.
O uso de adjetivos para definir os comportamentos da mucama e da menina
é intencional por parte do autor; de um lado, há uma pessoa corrupta e imoral; do
outro, alguém doce e angelical. O contato entre elas cria uma rachadura no
comportamento que era esperado para uma moça que faria parte da sociedade.
Após várias conversas, a mucama percebe que a menina é ingênua e começa a
questionar seus conhecimentos sobre “ser moça” e “casamento”, maculando assim
sua pureza inicial. Segundo o autor, a escrava Lucinda, que em momento algum
demonstra inocência em suas atitudes, envenena a alma de Cândida com as
“explicações necessariamente imorais” (MACEDO, 1869).
Com essa narrativa, o autor tem por objetivo criar uma dicotomia entre as
protagonistas, Cândida e Lucinda. A primeira é uma menina branca, ingênua e pura
que é corrompida pela segunda, uma escrava negra e promíscua. Essa dinâmica
torna a sinhazinha “escrava da sua escrava” (MACEDO, 1869), uma vez que
desperta nela um desejo que não poderia ser conhecido naquele momento e que
só foi possível graças à convivência degenerante.
Para o autor emancipacionista, um dos piores males que a escravidão
gerava era o da convivência entre inimigos naturais, ou seja, senhores e escravos.
Segundo ele, “O escravo é necessariamente mal e inimigo do seu senhor. A madre-
fera escravidão faz perversa, e vos cerca de inimigos [...]” (MACEDO, 1869, p. 29).
Essa ideia é percebida quando, ao explicar a transgressão do caráter de Cândida
por Lucinda, o autor afirma que “[...] a ideia do casamento atirada ali de mistura com
67
a de moça feita confundiu ainda mais a pobre e curiosa menina abandonada à
companhia da mulher escrava [...]” (MACEDO, 1869, p. 172). Novamente, percebe-
se a suposta depravação que a escravidão trazia para os brancos. Era por meio do
“abandono à companhia da mulher escrava” que as sinhazinhas e a sociedade
branca em geral eram corrompidas aos poucos pelos negros escravizados.
Essa percepção negativa sobre as consequências que a presença dos
escravizados tinha no cotidiano da população não se resumiu às escravas
mucamas, estendendo-se a outro personagem de As Vítimas Algozes, Simeão, um
crioulo, o qual também é afetado psicologicamente pela ação degenerativa da
escravidão. O fato de o indivíduo ser um escravo alterava a sua percepção
emocional: Simeão não possuía a capacidade de amar, já que a escravidão o
degradava e arrancava toda e qualquer forma de sentimento puro. Veja:
O escravo não amava, não amou Florinda; mas em sua mente audaz, em
seus instintos escandalosos, revoltantemente ultrajadores e licenciosos,
lembrou, contemplando a senhora-moça, o que lembrava aproximando-se
da negra fácil, da escrava desmoralizada que lhe agradava e não fugia a
seus ignóbeis afagos (MACEDO, 1869, p. 51).
68
indivíduo, também negro, porém seu escravo. Essa violência era uma reação à
condição de vida imposta ao indivíduo escravizado:
Outro autor que também viveu e escreveu sobre o século XIX no Brasil,
enfocando o tema da escravidão, foi Castro Alves, conhecido como “o poeta dos
escravos”. Ele faleceu com apenas 24 anos, sem ver a abolição da escravidão nem
a publicação da sua obra máxima, Navio negreiro, de 1880. Nessa obra, ficam
evidentes os horrores da escravidão e as condições desumanas do transporte
marítimo dos “tumbeiros”, termo que designava popularmente os navios que
transportavam os escravizados na travessia transatlântica. Como o índice de
mortandade era elevado, a comparação com tumbas era evidente.
A obra é dividida em partes (cantos): (1) a descrição do belo natural, a
exuberância da natureza brasileira; (2) a descrição do belo humano, a valorização
dos marinheiros dos diferentes países; (3) a indignação ao ver o que se passa no
interior do navio, a estupefação; (4) a descrição dos horrores cometidos contra os
escravos; (5) a comparação da vida pregressa dos negros com o horror do
momento; e (6) a crítica ao Brasil, por se beneficiar da infame escravidão.
69
Geralmente, o debate sobre o racismo e as formas de combatê-lo vêm à
tona apenas nas datas de 19 de abril, para a população indígena, e 13 de maio e
20 de novembro, para os afrodescendentes. Esses marcos simbólicos, caso não
sejam devidamente problematizados, podem servir para reproduzir estereótipos e
reforçar visões negativas sobre as populações, transformando a escola em um
ambiente hostil para determinados grupos e anulando a sua função social de
aparelho que possibilita o acesso à cidadania e a emancipação dos indivíduos.
Ao analisar as ações dos movimentos sociais na busca por uma sociedade
mais justa e igualitária, percebe-se que a legislação avançou, possibilitando a
materialização de um aparato legal que diminua e iniba a prática de racismo em
território nacional. Sobre essa questão, Sousa (2005, p. 110–111) destaca o
seguinte:
Dizem até que falar de racismo é invenção do negro complexado, que tem
vergonha da própria origem. Felizmente esta cultura do silenciamento está
sendo superada, um resultado de décadas de lutas do movimento negro
organizado por todo este país e que vem obtendo importantes conquistas,
inclusive no campo legal, como, por exemplo: o art. 5º da Constituição
Federal de 1988, que torna “a prática do racismo crime inafiançável e
imprescritível”; a lei 3.198/2000, que institui o “Estatuto da Igualdade
Racial”; a lei 10.639/2003, que torna obrigatório incluir nos currículos
escolares a “história e cultura afro-brasileira”. Isso demonstra que avanços
estão sendo conquistados, apesar de ainda termos muito a buscar.
Gilberto Freyre, na sua obra máxima Casa-Grande & Senzala, de 1933, foi
o responsável por criar um mito que até hoje ecoa na sociedade brasileira, a ideia
de democracia racial. De acordo com esse autor, que era pernambucano e
descendente de antigos senhores de engenho da região, o Brasil seria a “mais
perfeita democracia racial do mundo”, pois o português teria criado nos trópicos uma
70
sociedade em que os preconceitos de raça ou cor teriam sido diluídos na mistura
entre brancos, negros e índios. Assim, teria forjado um ambiente propício para o
desenvolvimento de uma sociedade em que a prática de racismo era inexistente,
modelo bem diferente do de outras sociedades, como os Estados Unidos da
América, onde houve luta por direitos civis, segregação e ação de grupos racistas
como a Ku Klux Klan.
Esse mito começou a ser combatido nos anos 1950, pela chamada “escola
de sociologia paulista”. Autores como Florestan Fernandes e Fernando Henrique
Cardoso questionaram a existência de uma democracia racial no Brasil e passaram
a denunciar as condições nas quais a população negra brasileira estava inserida,
configurando, portanto, a primeira crítica contundente a Freyre e revelando o
racismo na sociedade brasileira após a abolição da escravidão (AUGUSTINHO,
2019).
A negação do racismo no Brasil reforça a ideia de que no país as condições
de vida e as oportunidades são iguais para todos, independentemente da cor de
pele, visão que não reflete a realidade. Em uma análise sobre o perfil étnico do
Brasil e o seu reflexo nas condições econômicas, o Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE, 2018) constatou que, em média, os brasileiros brancos
possuem salários maiores, sofrem menos com desemprego e possuem maior
acesso ao nível superior. Essa situação reflete o processo histórico iniciado pela
colonização portuguesa e atinge principalmente os grupos que foram historicamente
afastados das classes dominantes.
Ao combater o racismo no ambiente escolar, a escola cumpre a sua função
social. Nesse processo, os professores são peças fundamentais dessa
engrenagem. Identificar o racismo, compreender as suas consequências para a
formação do alunado e o seu consequente exercício de cidadania, reconhecer a
presença de estereótipos, bem como a ausência de embasamento durante a
formação inicial e continuada dos professores, é o caminho a ser seguido para,
enfim, ter uma educação antirracista. Sobre essa questão, Gomes (2009, p. 57)
afirma o seguinte:
71
[...] somos desafiados a realizar uma mudança epistemológica, no campo
da formação de professores (as) no Brasil, que vá além das velhas
dicotomias entre o escolar e o não escolar, o político e o cultural, o
instituído e o instituinte, ainda presente em vários currículos e práticas de
formação de professores [...].
72
No Brasil, essas denominações mudaram, dependendo do local de origem,
entretanto guardam semelhanças entre si.
Lutas por posse e manutenção das terras, seja por comunidades
tradicionais indígenas ou comunidades remanescentes de quilombos, refletem a
disputa pelo acesso à terra no Brasil, que ficou restrito a pequenos grupos com
capital necessário e que herdaram a posse da terra dos antigos senhores da região.
Todas essas questões evidenciam a luta pela sobrevivência de negros e indígenas
no Brasil de hoje. Assim, a resistência de índios e negros não terminou; ela não
ficou restrita ao passado, mas continua viva, existindo no Brasil contemporâneo.
Enquanto houver uma sociedade racista, que busca eliminar os indivíduos que
agem de modo diferente da classe dominante, a luta antirracista é necessária.
73
Holanda (1995, p. 43) aponta que os portugueses foram os pioneiros na missão de
colonizar o Brasil, sendo os “[...] portadores naturais dessa missão”. Os portugueses
que aqui vieram tentaram impor aos habitantes desta terra seus costumes, sua
religião e suas tradições. No entanto, o autor aponta ainda que “pouca coisa se
conservou entre nós que não tivesse sido modificada ou relaxada pelas condições
adversas do meio”. Contudo, manteve-se “[...] a obrigação de irem os ofícios
embandeirados, com suas insígnias, às procissões reais, o que se explica
simplesmente pelo gosto do aparato e dos espetáculos coloridos, tão peculiar à
sociedade colonial” (HOLANDA, 1995, p. 43).
Destaca-se, portanto, o fato de que não apenas os portugueses, como
também os holandeses e outros povos deixaram suas marcas no País, fornecendo
elementos constituintes da cultura brasileira. Ainda é necessário considerar que
também permaneceram características próprias, religiões, festividades e costumes
específicos de cada povo. Portanto, essa mistura de raças, etnias e todos os valores
e tradições deram origem à diversidade cultural da sociedade brasileira, que o
passar do tempo só fez intensificar.
Agora que você já está mais familiarizado com a noção de desigualdade,
considere a noção de cultura. A Declaração Universal da Diversidade Cultural, de
2001, em seu art. 1º, aponta que a cultura “[...] adquire formas diversas através do
tempo e do espaço. Essa diversidade se manifesta na originalidade e na pluralidade
de identidades que caracterizam os grupos e as sociedades que compõem a
humanidade” (UNESCO, 2002, p. 2). A referida Declaração foi aprovada por 185
Estados-membros e é o primeiro documento que busca promover a diversidade
cultural dos povos e a comunicação entre eles. A elaboração do documento deve-
se principalmente à necessidade de se preservarem riquezas culturais, ainda que
no contexto da globalização, que, dadas as suas características, acaba
distanciando as culturas ao aproximar os povos exageradamente.
Alves (2010) aponta que o crescimento dos mercados mundiais trouxe a
ampla sensação de que o mundo estaria vivendo um processo de homogeneização
cultural. Nessa perspectiva, foram feitos apelos no sentido de promover a
diversidade e as identidades locais, marcadas por grande variedade de línguas,
74
crenças, costumes, tradições. Segundo o autor, na América Latina, o receio de uma
unificação de culturas fez com que profissionais se organizassem, juntamente a
movimentos sociais, a fim de pressionar os governos locais para a defesa e a
promoção da identidade regional.
Ortiz (1999, p. 83) aponta que “[...] afirmar o sentido histórico da diversidade
cultural é submergi-la na materialidade dos interesses e conflitos sociais
(capitalismo, socialismo, colonialismo, globalização). A diversidade cultural se
manifesta em situações concretas”.
Assim, você pode considerar que a diversidade cultural são os diferentes
aspectos que compõem uma cultura: tradições, costumes, linguagens, formas de
organização familiar, política, religião, culinária, entre outras características próprias
de determinado grupo em determinada época. No entanto, de acordo com Ortiz
(1999, p. 82), é preciso ir além das diferenças:
[...] a diversidade cultural não pode ser vista apenas como uma diferença,
isto é, algo que se define em relação a, que remete a alguma outra coisa.
Toda “diferença” é produzida socialmente, ela é portadora de sentido
simbólico e de sentido histórico. Uma análise tipo hermenêutica que
considere unicamente o sentido corre o risco de isolar-se num relativismo
pouco consequente.
75
Nesse aspecto, o Brasil é extremamente rico. É um país marcado, desde
suas origens, por diversidade em vários aspectos. Cada civilização que aqui chegou
trouxe um pouco de sua cultura, suas formas de viver, se organizar e ver o mundo,
o que contribui para a heterogeneidade presente na atualidade. Entretanto, Ortiz
(1999) aponta que a diversidade presente no mundo antes do século XV era maior
do que a existente hoje. Muitas culturas, línguas, economias e costumes foram
desaparecendo com a expansão do colonialismo, do imperialismo e da
industrialização. Não se pode deixar de mencionar que a diversidade cultural no
Brasil é bastante evidente também entre as diferentes regiões do País. Norte,
Nordeste, Sul, Sudeste, Centro-Oeste: cada Estado tem características próprias,
que envolvem valores, costumes, linguagens, diferenças climáticas e nível de
desenvolvimento.
Machado (2011, p. 149) afirma que a diversidade deve ser vista “[...] como
um fenômeno dinâmico e multidimensional. O que deve ser preservado, portanto,
não é um dado estado dessa diversidade, mas a possibilidade de direito a ela”. O
autor aponta também que a diversidade deve ser fonte de criatividade e base para
transformações cabíveis. Ainda menciona que não se devem “relativizar direitos
humanos sobre o pretexto do respeito à diversidade”. O autor cita como exemplo
que não se devem “[...] violar direitos das mulheres sob o pretexto de convicções
religiosas ou práticas enraizadas culturalmente”.
Todos esses apontamentos direcionam para um conceito equilibrado de
diversidade, que a define como algo positivo, desde que as atitudes colaborem com
o desenvolvimento de competências e habilidades abertas às diferenças. Para
Machado (2011), não é o caso de reconhecer as pessoas apenas em suas
diferenças, mas de valorizar trocas, reconhecimento, curiosidade e interesse em
conhecer o outro.
76
15 CULTURA, MONOCULTURA, POLICULTURA E MULTICULTURALISMO NO
BRASIL
77
O termo monocultura, por exemplo, está associado à produção de um
único produto. Assim, uma monocultura pode ser considerada como uma unicultura.
Transpondo essa noção para a área das ciências sociais, não se pode afirmar que
no Brasil exista a monocultura, uma vez que o País é bastante rico em diversidade
cultural. Nele, há grande variedade de costumes, hábitos, crenças, enfim,
características que apontam para a existência da diversidade. Países como Japão
e China, por exemplo, adotam o monoculturalismo como forma de preservar a sua
cultura, excluindo influências externas. A adoção dessa estratégia se torna um
pouco mais fácil em sociedades mais homogêneas e com tendências nacionalistas,
o que não é o caso do Brasil (DORETO, 2019).
O termo policultura, por sua vez, relaciona-se ao cultivo de vários tipos de
produtos em um mesmo terreno, técnica muito aceita entre os povos indígenas, que
a utilizavam para diversificar a sua produção. Além dos indígenas, há registros de
que os quilombolas utilizavam essa técnica. Outro conceito que se destaca nesse
contexto é o de multiculturalismo, contrário ao monoculturalismo. Ele pode ser
entendido como a existência de várias culturas em determinada região ou país, no
entanto com uma cultura predominante entre elas. Países como Canadá e Austrália
adotam o multiculturalismo. A crítica é que o multiculturalismo pode provocar
desprezo e indiferença por pessoas que não possuem as mesmas características e
cultura e que porventura residam em países que adotam esse sistema. Isso ocorre
porque a diversidade cultural passa a ser considerada uma ameaça para a
identidade nacional.
Nas palavras de Santos e Nunes (2003, p. 26), o multiculturalismo
representa a “[...] coexistência de formas culturais ou de grupos caracterizados por
culturas diferentes no seio de sociedades modernas” e está associado a processos
emancipatórios e lutas pela afirmação das diferenças. Taylor (1997), por sua vez,
aponta que as sociedades estão se tornando cada vez mais multiculturais e
permeáveis, o que conduz à imposição de uma cultura sobre as outras. Falar em
multiculturalismo e no predomínio de uma cultura sobre outras implica pensar
também no papel do Estado perante essa questão. Ainda é preciso considerar que
o multiculturalismo exige tolerância, no que se refere a aceitar as diferenças e a
78
aceitar o outro de forma empática e com respeito. Caso contrário, podem ser
favorecidas situações de conflito, desentendimento e violência. Com relação ao
papel do Estado, ele deve contribuir para que a legislação seja de fato efetivada.
Além disso, deve criar medidas para evitar que determinadas situações ocorram em
razão das desigualdades existentes na sociedade.
Cada conceito possui suas especificidades, mas, de forma geral, deve
prevalecer o reconhecimento das diferenças. Assim, grupos que são considerados
minorias podem assumir o seu valor e lutar pela sua representatividade,
favorecendo a sua construção identitária.
Nessa perspectiva, o multiculturalismo deveria prevalecer sobre o
monoculturalismo, uma vez que todas as culturas e cada uma em especial devem
ser reconhecidas a partir de suas diferenças, de forma que nenhuma imponha seus
preceitos, valores e crenças às outras, para que nenhuma seja oprimida ou extinta.
Quanto ao Estado, ele deve considerar a diversidade cultural existente e lidar com
ela a partir dos direitos humanos, do reconhecimento da dignidade dos indivíduos e
do respeito às diferenças.
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público da cidadania? A defesa intransigente da diversidade cultural não
estaria levando mais à separação do que à aproximação entre as pessoas?
80
Entretanto, é necessário lembrar que a escravidão vivenciada por negros e índios
trouxe consequências importantes para a formação da sociedade. Ela ampliou
distâncias entre as pessoas, divididas por classes sociais, e afastou os negros (em
alguns casos, pobres e marginalizados) do acesso aos bens e serviços, situação de
preconceito e discriminação presente até hoje. Não menos importante, houve o
avanço das desigualdades na sociedade capitalista, em que predominam os
interesses ligados ao capital e aos lucros, diminuindo o acesso da classe
trabalhadora aos bens e serviços produzidos, o que a coloca em situação de
desvantagem.
Refletindo sobre a questão das desigualdades e diversidades, você deve
notar que a diferença entre as pessoas é uma das principais responsáveis por gerar
desigualdades (SCOTT; LEWIS; QUADROS, 2009). Se antes a diversidade
indicava apenas uma pluralidade de culturas humanas, hoje tem implicações
políticas. Tais implicações podem ser percebidas nas relações entre grupos cujas
desigualdades são evidentes, especialmente no que se refere a poder e resistência.
Silva, Guimarães e Moretti (2017) apontam que as desigualdades geradas
pela diversidade muitas vezes resultam em atitudes discriminatórias, no geral
aparecendo de forma sutil e velada, tendo como pano de fundo o discurso sobre
tratamento igualitário. Para os autores, quando determinadas características são
identificadas e pessoas ou grupos são rotulados, surgem os comportamentos
segregadores. Se estão em jogo pessoas ou grupos que já vivem em situação de
desvantagem social, é comum que eles também se sintam em condições de
inferioridade, assumindo esse papel. Assim, em vez de reagir a essa situação,
acabam se sentindo em situação de desvantagem.
Hobsbawm (2007, p. 11), por sua vez, considera a desigualdade como
resultado do mundo globalizado:
81
do novo século. O impacto dessa globalização é mais sensível para os que
menos se beneficiam dela.
82
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