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BERENICE CAVALCANTE

A
REVOLUÇÃO FRANCESA
E A MODERNIDADE

COLEÇÃO
REPENSANDO A HISTÓRIA GERAL

CONCEPÇÃO

JAIME PINSKY (UNICAMP)

COORDENAÇÃO

HILÁRIO FRANCO JÚNIOR (USP)


BRAZ AQUINO ORANCATO (PUC-RGS)

EDITORA CONTEXTO
ISBN 85-85134-81-X

SÃO PAULO - 1990


Nota de Esclarecimento

Caro leitor(a)

Este livro fora digitalizado pelo Projeto Prometheus, que


tem por objetivo, a digitalização de toda e qualquer obra
acadêmica e literária que seja de fundamental importância para
o enriquecimento do conhecimento de toda a sociedade, pois
acreditamos que as mesmas citadas não devem permanecer nas
limitações dos poucos exemplares oferecidos nas bibliotecas
públicas ou privadas, como tão pouco, nas livrarias a preços
inacessíveis a grande parte da população de nosso país.
Entretanto, condenamos e repudiamos veemente a pirataria,
pois ela faz seus lucros sobre o que mais condenamos, os altos
preços por aquilo que deveria ser de acesso gratuito a todos, o
conhecimento. Mediante a isto, e em reafirmação dos valores do
Projeto Prometheus, esta obra é oferecida a toda sociedade de
maneira total e perpetuamente gratuita. Vedada toda forma de
lucro sobre ela e/ou uso que não seja exclusivamente o do
ascender do conhecimento pessoal ou coletivo.

Atenciosamente.
Projeto Prometheus.
Sumário

A Autora no Contexto ......................................... 07

1. O Tema da Revolução Francesa ..................... 09

2. O Antigo Regime Francês ............................. 14

3. Iluminismo e Revolução ............................... 24

4. Cultura e Revolução ................................... 54

Conclusão ..................................................... 67

Sugestões de Leitura ....................................... 69

O Leitor no Contexto ....................................... 71


A AUTORA NO CONTEXTO[07]

Berenice Cavalcante é graduada em história pela Faculdade de


Filosofia da antiga Universidade do Brasil. Obteve o título de Mestre em
História, em 1975, no ICHF-UFF, com uma dissertação sobre O
"Movimento Católico Leigo na Década de Trinta" e o de Doutor em
História, em 1983, na FFLCH-USP. com uma tese sobre o "Partido
Comunista Brasileiro".
Entre suas publicações principais destacam-se Certezas e Ilusões —
os comunistas e a redemocratização da sociedade brasileira, Tempo
Brasileiro e, na mesma editora, a organização do volume sobre História e
Literatura, reunindo os textos dos conferencistas que participaram do
ciclo do mesmo título, enfocando a obra de Machado de Assis.
Atualmente é professora de história moderna e contemporânea dos
Departamentos de História da PUC-RJ e do ICHF-UFF.
A seguir, um rápido bate-papo com a autora;

1. Por que ao aceitar o convite leito pela Editora Contexto, escolheu o


tema sobre a Revolução Francesa?

R. Em primeiro lugar porque é um assunto com que tenho grande


familiaridade e um vivo interesse, que, aliás, vem de longa data. A razão
deste interesse é em parte compreensível pelo próprio argumento que
desenvolvo no livro, e que chamo de sua "contemporaneidade". Além
desse aspecto, considero que em história poucos temas permitem, como
a Revolução Francesa, que o pesquisador tenha contato com tamanha
riqueza e pluralidade de interpretações, construídas segundo as mais
diversas tendências historiográficas. Os adeptos da simples empiria,[08]
os românticos, os socialistas, os marxistas, os conservadores, todos se
debruçaram sobre o tema. Seu estudo é um pouco uma espécie de
"escola de formação" do historiador.

2. Seria possível mencionar uma questão que considerasse a mais


intrigante nesse processo?

R. Sou um pouco avessa a solicitações que impliquem escolhas desse


tipo, que sugere uma definição superlativa. Aliás, no livro falo na questão
da complexidade da revolução, o que significa reconhecer que há vários
aspectos intrigantes, Feita essa ressalva, eu mencionaria um ponto
destacado por Tocqueville: a dupla potencialidade da revolução que
comporta forças libertárias e forças despóticas. Essa questão, que o
intrigou há mais de um século, permite-nos compreender hoje a
autonomia do político e do Estado; e a razão de a revolução não se
encerra em 1789, com a Declaração dos Direitos do Homem, e a
conseqüente definição dos princípios de uma sociedade burguesa e
liberal.

3. Considera possível reconhecer a influência do pensamento


iluminista e dos acontecimentos da Revolução Francesa sobre o processo
de independência brasileira?

R. Sim, desde que se resguardem certos limites e se reconheçam as


singularidades dessa influência. Em primeiro lugar, porque a realidade
social brasileira era muito distinta da francesa: sua condição colonial, sua
estrutura econômica e social com base no trabalho escravo, a forte
presença da Igreja (principalmente dos jesuítas, que aqui praticamente
chegaram com os primeiros colonos), e o baixo nível cultural da
população, circunscrevem as condições da "leitura" daquelas idéias. Em
segundo lugar porque, grosso modo, tomaram contato com aqueles
pensadores no período em que permaneceram estudando em
universidades européias, principalmente Coimbra. Lá também, a tradição
do pensamento escolástico era forte e obstaculizou a expansão de um
pensamento crítico anticlerical.
Finalmente, porque — com exceção da Conjuração Baiana — esses
movimentos sempre foram conduzidos pelas elites ricas e cultas,
portanto refratarias à igualdade social. O que as movia era resguardar ou
restaurar sua posição dominante na sociedade. Esse propósito não era
em nada comparável ao que acontecia em França e que demonstra que
seu interesse era antes reformar do que revolucionar a sociedade. Por
último, mesmo quando incorporaram a idéia de "razão" como promotora
do progresso, não raro o fizeram através de uma construção ambígua,
em que ela aparecia ao lado do reconhecimento de uma ordem
transcendente e, assim, não rompem com a tradição.

1. O TEMA DA REVOLUÇÃO FRANCESA[09]

O propósito de abordar o tema da Revolução Francesa oferece aos


historiadores grandes atrativos e inúmeros desafios. É verdade que esses
desafios não têm tido, ao longo do tempo, potencial para paralisar, ou
mesmo desestimular os pesquisadores. Um breve relance na bibliografia
sobre o assunto revela justamente o oposto, uma grande quantidade de
títulos, abordando períodos diversos, focalizando diferentes atores,
propondo novas interpretações, construídas a partir de perspectivas
teórico-metodológicas várias, conduzindo a conclusões, não raro,
radicalmente opostas. O tema parece inesgotável e mantém seu forte
poder de atração entre os estudiosos que renovam, e revêem análises
que começaram a ser construídas simultaneamente ao desenrolar dos
acontecimentos.
De fato, o processo revolucionário que abalou tão profundamente a
sociedade francesa no final do século XVIII e que de forma diversa
atingiu as demais sociedades européias, influenciou outros movimentos
revolucionários, atemorizou e entusiasmou diferentes segmentos sociais
mesmo nas longínquas regiões coloniais, impôs-se à reflexão de
políticos, pensadores, filósofos, romancistas e historiadores.
A Revolução Francesa, ainda no século XVIII, foi objeto de análise de
Burcke e Kant, exemplos primeiros do empenho em buscar um sentido
ou uma explicação para acontecimentos vistos como inesperados e
imprevisíveis por seus contemporâneos. A falta de "familiaridade" com
aqueles acontecimentos foi o denominador comum da obra de três
famosos historiadores franceses no século XIX: Guizot, Michelet e
Tocqueville.
[10]O tempo parece não esmorecer o interesse e a curiosidade
intelectuais ao longo do século XX, produzindo novas interpretações que
oscilam ao sabor de acontecimentos políticos, refletindo debates
apaixonados, forjando as novas tendências historiográficas, demolindo
antigos mitos, substituindo heróis, continuando a freqüentar os gabinetes
dos especialistas em ciências sociais e humanas. Porque o assunto,
definitivamente, não se constitui em patrimônio dos historiadores.

Como entender a persistência do interesse e da curiosidade? Como


explicar que, contrariamente ao que ocorro com outros temas, o estudo
da Revolução Francesa atravesse diferentes conjunturas mantendo viva a
busca de seu esclarecimento, não sendo relegado a plano secundário
como assunto menor?
É interessante notar que, em meio a tantas discussões,
interpretações díspares, revisões críticas e reconstituições históricas tidas
como "definitivas", um aspecto aparentemente pouco significativo,
parecendo mais um detalho de somenos importância, ou quem sabe
resquício de uma repetição monótona e pouco imaginativa, a Revolução
Francesa permaneça inabalável em seu posto de marco temporal
assinalando o fim dos tempos modernos e o início dos tempos
contemporâneos. Contudo, é este aspecto — aparentemente pouco
significativo — da simples periodização que pode fornecer um indício
para que se desvende o segredo de seu forte poder de atração enquanto
tema de estudos.
Antes de tudo, é importante sublinhar seu caráter universal.
Os efeitos dos acontecimentos — desde os menos significativos, aos
mais relevantes — que integram a chamada Revolução Francesa, não se
circunscrevem aos limites de história de França. Por esta razão, podem
ser identificados a um divisor de águas entre épocas de características e
dinâmicas distintas.
Acontecimentos como: a queda da Bastilha, a prisão e condenação do
rei, a Declaração dos Direitos do Homem, a proclamação da República, a
organização de clubes jacobinos, a abolição dos privilégios nobiliárquicos,
a promulgação da constituição, a adoção do sufrágio universal, o
estabelecimento de uma nova noção de propriedade, apenas para citar
os fatos mais conhecidos, cada um a seu tempo e a seu modo, assinalam
o rompimento com a tradição e a fundação de uma nova ordem.
Em outros termos, é a construção de uma nova ordem que recusa
não apenas as antigas estruturas políticas e sociais, com as quais se
contundia o Antigo Regime — expressas na monarquia absoluta e na
sociedade desigual e hierárquica, como também valores e concepções
predominantes até então. Assinala, portanto, a etapa final do[11]
processo de secularização das estruturas de poder e de cognição da
própria história, inaugurando a chamada modernidade ocidental.
Em termos genéricos pode-se identificar essa modernidade com a
fundação da sociedade burguesa, calcada nos princípios da igualdade e
da liberdade — típicas da lógica do mercado — e assinala também a
passagem da condição de súdito à de cidadão.
Nos cenários políticos e ideológicos em que se desdobram as
diferentes etapas desse processo, reflexos de projetos políticos diversos
o perspectivas opostas acerca dos projetos revolucionários, os franceses
protagonizaram experiências históricas inéditas. São elas: a politização
da questão social, as experiências democráticas e republicana, e os
primeiros projetos socialistas. Todas são questões de extrema
contemporaneidade e podem explicar não apenas a sua prolongada vida
como tema de estudos, como também ser ponto de referência e modelo
para práticas políticas atuais.
É justamente dessa riqueza, da pluralidade de interpretações e de
matrizes explicativas, que decorrem os desafios, resumidamente
expressos na dificuldade de explicar esses acontecimentos, e na de
escolher que versão privilegiar.

ALGUMAS VERSÕES E MUITOS DEBATES:


A COLOCAÇÃO DE UM PROBLEMA

Na impossibilidade de se resenhar o conjunto dos textos que


integram a extensa listagem bibliográfica sobre a Revolução Francesa,
dois conjuntos de questões serão mencionados a seguir para que se
tenha uma noção, ainda que gorai, dos debates contemporâneos em
torno da questão da natureza da revolução e de suas causas. Vale
lembrar que cada uma delas tem seus acólitos e seus críticos. E que a
construção desse panorama objetiva não apenas orientações de leituras
futuras como uma melhor compreensão do plano desta obra.
A interpretação da Revolução Francesa como modelo "clássico" da
revolução burguesa desfruta de razoável prestígio entre os historiadores.
Apoiando-se nas teses de Marx sobre a via revolucionária de
passagem do feudalismo ao capitalismo, esta versão combina leis gerais
da história para explicar a mudança de modos de produção, com
problemas de ordem particular a estrutura específica da sociedade
francesa no fim do Antigo Regime e sua base aristocrática. Os
acontecimentos são explicados à luz da luta de classe que oporia
aristocracia a burguesia, em torno da manutenção ou abolição da
feudalidade. Esse[12] modelo de interpretação privilegia como temas
principais o problema da propriedade e da questão agrária, e a
participação dos camponeses e das massas populares urbanas, em
especial os jacobinos. Os primeiros considerados os "árbitros" da
revolução e os segundos como expressão das forcas mais radicais da
revolução.
A explicação assim estruturada em torno da contradição entre dois
tipos diversos de sociedade, sendo a superação da ordem antiga pela
nova considerada como uma lei histórica, dá aos acontecimentos
revolucionários um caráter inevitável. Dito em outros lermos, integra um
conjunto de fatos que possuíam um razoável índice de previsibilidade. A
passagem do feudalismo para o capitalismo é então entendida como uma
"necessidade histórica".
Alguns críticos dessa interpretação apontam as fragilidades da visão
construída sobre a base do conflito entre burguesia e aristocracia.
Consideram a realidade social francesa no Antigo Regime mais complexa
e, portanto, irredutível a esta simples polaridade. Invertem essa
interpretação ao chamar atenção para a formação de uma nova elite,
integrando setores daquelas duas classes e impondo a revisão da
natureza dos conflitos e tensões sociais do período.
Numa outra vertente, as análises sobre a situação agrária no final do
Antigo Regime têm insistido nas teses sobre o desenvolvimento de
formas capitalistas no campo ao longo do século XVIII, fragilizando ainda
mais o argumento fundado no conflito entre feudalismo e capitalismo, ou
aristocracia e burguesia, que se constitui no substrato daquela
interpretação. Na perspectiva econômica, pesquisas mais recentes
tendem a abrandar o caráter de "crise" daquela sociedade, que teria
conhecido relativo crescimento e lembram que as transformações no
regime de propriedade eram um fato, durante o reinado de Luís XVI.
Pode-se concluir deste conjunto de argumentos que pensar a revolução
como provocada por tensões inerentes ao sistema feudal não seria um
bom caminho para sua compreensão. Na hipótese da existência e do
aguçamento dessas contradições seria mais compreensível esperar que a
revolução ocorresse em outras sociedades do leste europeu, como já
apontou Tocquevílle em meados do século passado.
Para que se defina o caráter da revolução há que se definir
previamente qual de suas etapas, ou qual de suas "revoluções" melhor
identificaria a mudança. Em termos de periodização, significa optar por
1789 ou por 1793. Isto é, atribuir maior relevância à Declaração dos
Direitos, ao período constitucional, a vitória dos princípios do liberalismo
e à conquista da liberdade; ou privilegiar a Convenção Jacobina e o
esforço de ampliar as conquistas revolucionárias ao preço do sacrifício da
liberdade, em prol da igualdade e da imposição do terror.
[13] Em sentido diverso, historiadores que se situam em outro plano
de compreensão dos processos de mudança, recusando explicações
organizadas a partir dos conflitos sociais, ou da preeminência dos fatores
de natureza econômica, atribuem importância ao papel desempenhado
pelas idéias dos filósofos iluministas.
Para esses historiadores, as obras de Voltaire, Diderot, Rousseau e
Montesquieu, em que pesem as diferenças que guardam entre si, têm
em comum o lado crítico ao Antigo Regime e à Igreja, parceira do rei no
controle do poder. Seus textos desempenharam importante papel na
derrocada do Antigo Regime, por condenarem o obscurantismo e o
predomínio das "trevas", com os quais os filósofos identificavam as
sociedades submetidas ainda ao pensamento escolástico. E, ainda por
difundirem a crença na razão como portadora do progresso e da
felicidade, substituindo então os antigos deuses por uma crença
secularizada.
Essa interpretação também tem seus críticos que levantam dúvidas
quanto à possibilidade de novas idéias terem a força de mudar regimes
políticos e sociais. Acrescentam ainda o argumento que destaca um certo
grau de acomodação dos filósofos ao cotidiano da sociedade francesa, ao
convívio com as elites, esvaziando assim seu conteúdo revolucionário.
As interpretações sobre o papel desempenhado pelas "Luzes" na
Revolução Francesa merecem ser reexaminadas para que se desvende a
importância da constituição de uma opinião pública. Esta forjaria uma
nova concepção de poder, não mais alocado no Estado, mas na
sociedade, pré-condição para a experiência da cidadania, com a qual se
confunde o processo revolucionário.
Tendo em mente que estas brevíssimas referências às explicações
que desfrutam de maior aceitação entre os historiadores, ficam distantes
da constituição de um quadro mais fiel da extensa bibliografia sobre as
origens da revolução, destaque-se que elas aglutinam em torno de si os
temas mais polêmicos dos debates acadêmicos. Por esta razão, inspiram
O prosseguimento das pesquisas por aqueles que aceitam o desafio.
O capítulo que se segue da continuidade à discussão sobre as
possibilidades de compreensão dos fatores que levaram à derrocada da
monarquia absolutista na França e à abolição dos princípios
aristocráticos.
Por esta razão, privilegiará uma discussão sobre as estruturas de
poder e seus mecanismos de reprodução.
O foco incidirá sobre a dinâmica social, considerada como o centro
das tensões de uma sociedade profundamente diferenciada e
hierarquizada e que pretende manter seus privilégios, vale dizer, sua
dominação e seu poder.

2. O ANTIGO REGIME FRANCÊS[14]

A MONARQUIA ABSOLUTISTA

Para que sejam compreensíveis os acontecimentos que transtornaram


tão profundamente a sociedade francesa, é necessário proceder a um
recuo no tempo e considerar o processo de centralização do poder, tal
como se verificou no reinado de Luís XIV, no final do século XVII.
Nestes termos, importa avaliar em que medida a reunião das funções
governamentais na figura do soberano imprimiu uma nova dinâmica às
relações sociais e ao exercício do poder que geraram as graves tensões
que terminaram por minar o sistema.
De início é preciso fixar que a centralização de poder, típica da
monarquia absolutista significou — do ponto de vista do rei — o controle
de um duplo monopólio: o monopólio fiscal e o monopólio da violência.
Do ponto de vista da nobreza francesa, descendente das tradicionais
famílias proprietárias de terra e a quem cabiam, de longa data, os
encargos guerreiras e militares, a perda dessas funções significou
conseqüente submissão ao monarca, que se impunha como o "senhor
dos senhores".
Essa passagem, que não se operou pacificamente e, pelo contrário,
enfrentou acirrada concorrência entre as famílias rivais, teve motivações
variadas, delas não se excluindo as questões religiosas e a disputa por
território.
O que importa sublinhar para a compreensão dos acontecimentos
aqui analisados é que a centralização de poder se concretizou num[15]
quadro dominado por uma competitividade plurissecular, cujas origens
remontavam aos séculos XV e XVI.
É de se notar que nesse longo período a acomodação dessas forças
sociais implicou em profundas transformações. Isto, de forma tal que não
apenas se mantivesse a hegemonia do mais poderoso, como ao mesmo
tempo se eliminassem os concorrentes em potencial e se mantivesse o
povo subordinado.
Como podem ser descritos esta acomodação e o exercício do
monopólio do poder?
Para tanto é preciso retornar ao duplo monopólio real mencionado
acima. Através da manutenção do controle fiscal, o rei centralizou o
recolhimento de impostos e, vale lembrar, colocou sob seu controle
atividades até então desempenhadas pelos senhores.
O significado dessa mudança pode melhor ser avaliado quando se
considera, em primeiro lugar, que as necessidades financeiras eram
crescentes, seja para financiar as guerras, seja para pagar o numeroso e
dispendioso corpo de funcionários necessário à manutenção da máquina
administrativa ou, enfim, para manter o alto padrão de vida da família
real e de seu círculo, a corte.
Além deste aspecto, que revela a permanência e constância na
obtenção de novos financiamentos — quer sob a forma da criação de
novos impostos, quer de empréstimos contraídos junto à burguesia — , o
que importa é que tais práticas corrompem os princípios mesmos sobre
os quais se assentavam os esquemas de fidelidades entre os nobres.
Por sua importância, esse ponto merece ser visto mais
detalhadamente.
Para a solução das contínuas e crescentes necessidades financeiras, e
para o preenchimento dos cargos que compunham a estrutura
burocrática do remo, o rei valia-se de dois expedientes básicos: os
empréstimos e a venda de cargos públicos e títulos de nobreza.
Em qualquer um desses procedimentos, as relações monetárias eram
o mediador. Assim, o rei garantia fidelidades através de uma relação de
compra e venda, e não mais através da distribuição de torras, como de
praxe nas relações entre senhores.
Há uma certa ambigüidade nesse proceder. Ao mesmo tempo em que
se pretende o estabelecimento de vínculos de dependência e fidelidade,
conforme os padrões tradicionais, eles se estabelecem sobre novos
valores que nada têm em comum com suas origens feudais.
Além desse aspecto, que minou os princípios e os valores sobre ao
quais assentavam-se tradicionalmente as solidariedades, a questão dos
empréstimos e da distribuição (ou venda) de cargos introduz outros tipos
de modificação.
[16]Com relação aos empréstimos, o rei só podia obtê-los junto aos
grandes comerciantes e financistas franceses. A burguesia que florescia
nas cidades e nos portos, através das atividades mercantis e manufaturei
rãs, constituía-se na única lente para obtenção desse recurso.
Quando os recursos financeiros não eram obtidos através da compra
de cargos ou de títulos de nobreza, o credor recebia em troca algum
outro tipo de proteção ou privilégio. Explica-se dessa forma a distribuição
de monopólios comerciais, característicos do mercantilismo — a política
econômica típica das monarquias absolutistas.
Em qualquer dos casos, o que se observa é que não eram todos, e
sim, alguns membros da burguesia que se beneficiavam das concessões
reais e participavam do esquema de proteção e privilégios. Mais do que
isto, os representantes da burguesia que se encaixavam n situação
constituíram a nova nobreza, a nobreza togada, ou os parvenus, que só
tinham em comum com a nobreza sangüínea, de origem militar e
guerreira, o fato de ostentarem um titulo nobiliárquico.
Os altos cargos militares e eclesiásticos não eram postos à venda e
eram preenchidos exclusivamente pela nobreza tradicional. Mas, nem por
isso ficaram imunes aos elementos corruptores das novas práticas. Ao
receberem essas sinecuras eram simultaneamente introduzidos no
mundo das relações monetárias, sendo essas pensões — senão a única
— a principal fonte de renda, pois as demais haviam passado para as
mãos do rei.
Assim, o rei tanto continuou a desempenhar seu papel de primeiro
cavaleiro do reino, no que tange à obediência às hierarquias de origem
nobiliárquica, como incorporou um novo papel, o de chefe de negócios.
Aburguesou os nobres e enobreceu os burgueses.

A SOCIEDADE DE CORTE
E A LÓGICA DO PRESTÍGIO

É compreensível associar-se monarquia absoluta à figura do rei. De


fato, nada mais correto do que destacar-se o papel central
desempenhado pelo monarca na vida desse sistema. Correto ainda
porque, como um bumerangue, as decisões partiam desse centro e a ele
retornavam, de forma a fortalecer esse poder.
Contudo, mesmo reconhecendo esse movimento, cabe indaga como
isso foi possível, considerando-se que manter e reforçar seu poder
significava controlar rivalidades, obstaculizar as ambições de seus rivais,
subordinar a massa do povo e garantir a expansão da burguesia - porque
dela dependia.
[17]Para que tal ocorresse, há que se considerar o papel
desempenhado pela corte. Dito de forma mais enfática: reconhecer que a
corte instituiu-se em instituição fundamental da monarquia absoluta e,
por extensão, do poder do monarca.
No caso da sociedade francesa à época da revolução, a corte
instituía-se de aproximadamente quatro mil famílias que viviam ao redor
do rei em Versalhes, recebendo pensões. E pode ser considerada como o
microcosmo da sociedade. Como esclarece Norbert Elias, afirmar a
existência de urna sociedade de corte, significa afirmar que a Corte é a
sociedade, na medida em que ela constitui uma formação social onde são
definidas, de maneira específica as diferenças e hierarquias que
caracterizam as relações sociais como um todo. Assim, a vida na corte
funcionava não apenas no seu próprio interior, mas também para o
conjunto de sociedade que nela deveria espelhar-se e diferenciar-se.
Que relações sociais são essas, e como expressam e reforçam o
poder do monarca absoluto?
Em primeiro lugar, a reunião dessas famílias em tomo do rei, e a
proximidade em que vivem permite ao monarca um controle mais efetivo
com relação a possíveis tentativas de usurpação do poder. Mantendo-os
sob sua vigilância constante, constrói simultaneamente uma rede de
dependências, ao mesmo tempo em que pode jogar, ao seu sabor, uns
contra os outros, dificultando uniões perigosas, explorando a
concorrência entre os pares, ao invés de eliminá-la.
O coração desse sistema é constituído pela lógica da dependência ou
a lógica do prestígio.
De um lado, como já foi descrito, a dinâmica irradia-se do rei, através
de suas inúmeras concessões, entre as quais se destacam as pensões.
Não é demais frisar que ao perderem parte significativa de fontes de
renda, receberam - à guisa de compensação - pensões reais. Viviam,
literalmente, às custas do rei.
Por outro lado, quanto maior era essa dependência, maior era o
prestígio do beneficiário. E a mesma mão que concedia, podia retirar Ou
diminuir, Esse jogo nutria-se de disputas e rivalidades, permitindo por
sua vez, que o rei pudesse manter sempre seu poder individualiza-a
medida em que ele era o árbitro absoluto nessa relação. Assim, o rei
compensava o que lhes retirara, mantendo-os em posição privilegiada,
no sentido que se emprestava a esse termo à época. Privilegiada porque
significava a proximidade do rei, a participação em sua vida, e o
recebimento de pensões. Portanto, privilegiada, porque dependente.
Nos diversos graus de prestígio e dependência em que se
organizavam estabelecia-se a hierarquização e diferenciação dos
membros da corte, e dai irradiava-se para fora porque ela deveria servir
para[18] identificar os não privilegiados, isto é, os plebeus, de quem
importava guardar distância e subordinação.
Nestes termos, a "sociedade de corte" funcionava num duplo sentido.
Significava reconhecer que a sociedade tinha uma corte e que a corte era
a sociedade, na medida em que reunia suas características, e dinâmica
fundamentais.
Data desse período (e dessas necessidades) a criação de uma série
de normas de conduta, de regras rígidas o detalhadas, definição de uma
vida etiquetada que objetivava não apenas tornar os antigos guerreiros
mais civilizados, aprendendo a conviver em público e a controlar suas
paixões, como também, lançar mão de outro recurso que não
exclusivamente a violência para a realização de seus objetivos.
Os procedimentos etiquetados, que desciam a minúcias sobre lugares
a serem ocupados, a ordem de entrada nos salões, a distinção daqueles
que podiam entrar no quarto do rei para assistir ao seu despertar, a
definição de cores que poderiam ou não ser usadas em indumentárias,
regravam o convívio diário e tornavam absolutamente visível a ordem
hierárquica em vários sentidos; de cada um dos nobres em relação ao
rei, dos nobres entre si e dos nobres e plebeus - estes, naturalmente,
pela exclusão.
A esses era reservado o lugar de público-plateia desse grande teatro,
dessas formas dramatizadas de se representar o poder. As festas, as
paradas, as procissões, as festas religiosas eram os momentos em que o
poder vinha a público, expunha-se na sua forma centralizada e
hierarquizada.

O ESTADO DE COMPROMISSO

Pelo exposto pode-se depreender que a monarquia absoluta fundava-


se sobre uma base muito precária, que combinava elementos de
convivência problemática.
Por ter-se tornado um permanente pólo de atração de dinheiro, o
Estado absolutista torna-se também o promotor da mobilidade social.
Este ponto é fundamental para as interpretações que aqui se
desenvolvem. O que ocorreu em França desde o reinado de Luís XIV, até
ás vésperas da revolução, decorreu - em larga medida - das tensões
sociais geradas por essa mobilidade e pela desfuncionalidade que
imprimiu ao sistema.
Isso porque a monarquia absolutista estabeleceu-se sobre a
destruição da autoridade tradicional dos senhores e das comunidades
locais.[19] Segundo François Furet, desta destruição decorre o
compromisso instável entre a manutenção dos princípios de organização
social herdados do período feudal - as ordens ou estamentos - e a
construção de um Estado moderno.
O propósito era conciliar a reprodução da pirâmide social, composta
pela diferenciação hierarquizada entre o clero, os nobres e o povo e, ao
mesmo tempo, promover a prosperidade do reino. Unificava o mercado
nacional, racionalizava a produção e a troca, destruindo as velhas
comunidades agrárias.
Pesquisas recentes têm mostrado a progressiva transformação das
estruturas agrárias francesas em função da expansão da propriedade
explorada por mão-de-obra assalariada. A resistência ao avanço dos
arrendamentos e da grande e da média propriedade era feita, não por
nobres e sim pelo campesinato, que permanecia apegado à defesa das
garantias da sobrevivência da comuna.
Para além dos fatores meramente econômicos relacionados à relativa
prosperidade do reino, esta modernização gera uma dinâmica social nova
- essa dinâmica incompatível com a manutenção do outro compromisso
firmado; a preservação dos princípios de organização social fundados nos
privilégios nobiliárquicos.
Não apenas cria uma outra nobreza, originária de representantes
bem sucedidos do mundo de negócios, como também cria uma estrutura
social paralela e contraditória em relação à primeira: uma elite dirigente.
Pode-se assim melhor compreender a impossibilidade de manutenção
da antiga solidariedade entre a nobreza, minando a tradição nobre sobre
a qual se mantinha e corroendo e substituindo os valores que
sedimentavam essa solidariedade.
Ao contrário, o que se observa é o fracionamento desse grupo e sua
tensão permanente, e são os conflitos intranobiliárquicos que dão a
tônica do período.
A boa vida da corte jamais foi assimilada pela pequena nobreza ou
nobreza provinciana, que vivia dos rendimentos cada vez mais magros
de sua propriedade e que não desfrutava também da proteção das
pensões reais.
São exemplo perfeito da desfuncionalidade do sistema, pois
mantinham títulos de nobreza sem exercerem as prerrogativas de
direito, ocupando, na prática, plano secundário na vida social e política
do reino.
Esta situação realimentava não apenas seu tradicional desprezo pelos
plebeus - de resto, um dos poucos fatores a uni-la a outros grupos
nobres - como a levou a nutrir áspera hostilidade ao dinheiro e,
conseqüentemente, a sua expressão social: os novos nobres.
[20]Em sua oposição aos parvenus, a nobreza provinciana tinha
numerosos aliados entre representantes da "velha nobreza". A "reação
aristocrática", que se manifesta no reinado de Luís XVI, não se limita a
apenas resguardar os princípios de diferenciação e hierarquização entre
nobres e plebeus, mas, sobretudo, reage à nova feição que estes
princípios assumiam em decorrência dos processos de enobrecimento
através de compra de títulos. Assim, à antiga distinção nobre/plebeu,
acrescentara-se a nova: nobre ou enobrecido. Ou então: nobre - desde
quando?
O Edito de 1781, dirigido contra os nobres que não descendiam de
quatro gerações de sangue azul, expressa de forma significativa a
resistência da nobreza tradicional em reconhecer legitimidade numa
nobreza criada pelo dinheiro e pelo Estado absolutista.
Por seu turno, a nobreza togada, alvo dessas hostilidades e dessa
oposição, identifica-se - com algumas dificuldades - ao grupo em que
teoricamente se incorporava. Vivia fora da corte, cuidando de seus
negócios, e fazendo oposição tanto ao grupo de Versalhes, quanto aos
seus representantes locais, os intendentes.
Não restou sequer a solidariedade entre os integrantes da nobreza
dirigente ou aristocracia, porque se compunha de elementos muito
diversificados: velhas famílias feudais, a alta nobreza militar, bispos
cortesãos, financistas aliados às grandes famílias e os intendentes
membros da alta burocracia de Versalhes.
Desprovidos de homogeneidade social ou econômica que lhe desse
coesão, os membros desse segmento social moviam-se motivados por
sua ambição em relação ao poder e em relação aos mecanismos de
mobilidade social instaurados pela monarquia.
O sistema de elites concorrentes, instaurado por Luís XIV, nem
sempre pode funcionar sob seu controle, menos ainda com seu sucessor,
cujas práticas mais ainda abastardaram os princípios, mesmo quando -
aparentemente - parecia resguardá-lo. Luís XVI cassava antigas
concessões ou nomeações. O intuito, porém não era depurar a nobreza
como a iniciativa pode sugerir, e sim, confiscar os cargos para colocá-los
à venda outra vez.
A forma peculiar com que o Estado absolutista promoveu a
mobilidade social criou-lhe dificuldades entre seus principais beneficiários
em potencial, pois, para a burguesia, aquele sistema era fonte também
de insatisfações.
De fato, para a burguesia esses mecanismos revelavam uma dupla
inadequação. Comparada à sua relativa prosperidade, ao aumento de
fortunas e á expansão de seus membros, a possibilidade de integrar-se
ao grupo dominante era relativamente pequena, e atingia apenas[21]
uma parcela menor desse segmento social. Na prática, funcionava tomo
um sistema comparável ao de uma loteria em que apenas alguns poucas
ganhavam a sorte grande. Os que ficavam de fora engrossavam as
fileiras dos descontentes e aumentavam as pressões por mudanças.
Para além desses fatores de natureza mais quantitativa relacionada à
incapacidade de esse sistema absorver o grupo como um todo, ressalta-
se também que essa era a única alternativa oferecida aos plebeus. Ou
seja, integrar-se ao Estado, à sua corte, à sua burocracia, à sua
magistratura, etc., etc.
É dessa combinação esdrúxula entre as formas arcaicas e sua
atualização, entre o "velho" e o "novo", no esforço de combinar a
tradição ao moderno, que decorrem os conflitos entre a sociedade de
ordens e o absolutismo.
Os princípios sobre os quais se funda a mobilidade social - por leu
turno a saída possível para realizar o instável compromisso - complicam
e desonram o mecanismo de ascensão e os valores tradicionais. Ao
mesmo tempo em que sangue azul não oferecia mais nenhuma
possibilidade de ascensão social, nem detinha mais antigas atribuições, a
nobreza é mantida como segunda ordem do reino e detentora de
privilégios. Em contraste, através do Estado e a partir da reunião de
fortunas, participa-se da elite dirigente, deixando cada vez mais sem
expressão política e sem função na sociedade as famílias tradicionais.
O descontentamento generalizado, a rivalidade entre os grupos e a
crescente disputa pelo poder às vésperas da revolução, traduziram-se
em três "projetos" para a sociedade francesa, representando três
carrinhos possíveis.
Ainda que não se consubstanciassem em projetos políticos formais,
expressaram as expectativas alimentadas no interior desses grupos. O
primeiro desses projetos correspondia ao sonho de uma certa volta ao
passado. Nutria-se de comparações com a nobreza polonesa, conhecida
por sua hostilidade ao Estado e por querer manter suas prerrogativas
clássicas. Integrava aqueles que se opunham à centralização do poder e
que acalentavam esperanças de uma descentralização futura e de
restabelecimento das unidades senhoriais.
Na margem oriental do Reno, a Prússia também inspirava um outro
sonho entre os nobres. Sem negar a necessidade de modernização do
Estado, supunham poder operá-la em seu proveito, isto é, mantendo o
monopólio dos principais cargos públicos.
Finalmente, o exemplo que vinha do outro lado do canal da Mancha:
uma monarquia à inglesa, constitucional e parlamentar.
[22] Na verdade, nenhum desses caminhos foi possível, embora seus
representantes se tivessem feito presentes em diferentes momentos da
revolução. Essa diversidade de perspectivas explica, em parte, as
marchas e contramarchas enfrentadas pelo processo revolucionário em
seus desdobramentos posteriores, e justifica sua periodização em várias
etapas. Ou melhor, em diversas "revoluções"

A REBELIÃO DAS "ORDENS"

Em termos da identificação desses vários momentos revolucionários,


há um período que é chave para sua compreensão e para a demarcação
da queda do Antigo Regime. Engloba os acontecimentos compreendidos
entre a instalação dos Estados Gerais em maio de 1789, e a Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão na noite de A de agosto.
Nesse período, que é mediado pela queda da Bastilha e pelos
levantes camponeses do verão que disseminaram o chamado "grande
medo", ambos assinalando a entrada na cena pública da multidão de
pobres e oprimidos, manifestam-se as tendências que marcariam a
revolução nos anos seguintes, e definem os marcos que balizariam as
discussões e as lutas posteriores.
Na impossibilidade da reconstituição detalhada desse quadro, o que
se pretende é chamar atenção para aspectos que permitem sustentar as
interpretações apresentadas acima. O primeiro deles foi a vitória do
Terceiro Estado recusando a votação por ordem, como determinava a
tradição, e estabelecendo o voto por cabeça. Sua rebeldia, confirmada
alguns dias depois no famoso juramento da sala do Jeu de Paume -
firmou a igualdade entre os representantes eleitos e permitiu que se
declarassem em Assembléia Nacional, em 17 de junho. Embora o rei
aceitasse tornar-se um monarca constitucional e propusesse a abolição
dos privilégios fiscais, mantinha-se irredutível em sua intenção de
conservar as dízimas, as rendas e os deveres feudais e senhoriais.
Não apenas o caráter conservador da proposta do monarca, como
também a falta de unidade e solidariedade entre os representantes das
ordens evidenciaram as dificuldades de negociação e criaram um
impasse inicial para as decisões dos Estados Gerais. No entanto, o
importante nesse período é que se firmam os princípios da soberania
nacional e da igualdade que se incluem entre as principais conquistas da
Revolução.
Tais princípios completam-se com a Declaração dos Direitos do
Homem, que coloca um ponto final nos princípios sobre os quais
assentava-se[23] a sociedade hierarquizada, e anula, no mesmo golpe,
todo tipo de privilégios. Naquela noite estabeleceram-se os princípios da
sociedade liberal e democrática firmada sobre a conquista da igualdade e
da liberdade dos cidadãos franceses.
Não obstante, é sabido que a revolução não se encerrou aí. Ou
melhor, que se segue um período de grande instabilidade política, no
qual as conquistas revolucionárias não logravam consolidar-se, o que as
revogações de constituições recém-promulgadas podem exemplificar. A
revolução também se desviou de seu curso parlamentar, ganhou as ruas,
deixou de ser pacífica e a violência instalou-se como aliada da liberdade,
por mais estranho que possa soar.
De 1789 a 1815 a monarquia foi abolida, a república proclamada,
estabelecida a ditadura jacobina, deflagrado o golpe do Termidor e do 18
Brumário de Napoleão, tendo antes passado pela experiência do Diretório
e do Consulado. Durante esse período os princípios e as bandeiras
revolucionárias foram reinterpretados, suspensos, ampliados ou limitados
conforme entendiam as forças sociais presentes no embate político.
Entre elas, inclusive, figuravam as antigas elites dominantes, com seu
contingente de nobres falidos e inconformados com a perda de seus
antigos privilégios.
A referência à instabilidade que se seguiu à abolição da monarquia
justifica-se para sublinhar a relação entre a Revolução Francesa e a luta
pelo poder, uma sociedade dividida em facções opostas em torno do
entendimento sobre quem deveria dominar, e sob que forma política
deveria se organizar o Estado. Sua motivação é, portanto, de natureza
essencialmente política.
Dessa complexidade resulta também a impossibilidade de reduzir a
Revolução Francesa a uma equação simples do tipo capitalismo versus
feudalismo, ou burguesia versas aristocracia. Ao contrário, revela os
impasses e as enormes dificuldades vividas no confronto das diversas
expectativas em torno de dois de seus temas centrais: igualdade e
liberdade.

3. ILUMINISMO E REVOLUÇÃO[24]

Os primeiros a construírem a identificação entre as idéias dos


filósofos franceses do século XVIII e a revolução foram os próprios
lideres revolucionários.
Variando de acordo com as circunstâncias do momento e as
tendências políticas, a preferência poderia ser Voltaire ou Rousseau, o
primeiro mais significativo para os girondinos, o segundo para os
jacobinos. Rousseau, ou "Jean-Jacques", como a ele se referiam - o
amigo da natureza, a alma sensível e o defensor da justiça e da
igualdade - foi a referência principal do período em que a ampliação dos
direitos da cidadania e o princípio da igualdade social destacam-se como
prioridades da revolução.
A preocupação em fundar novos valores que legitimassem a ordem
nascente impunha que se eliminasse os vínculos identificados com a
ordem anterior. Nesse movimento de rompimento com a tradição, inclui-
se o estabelecimento de uma outra relação com o tempo, através da
fixação de um novo calendário e da escolha de novos heróis. Entre esses
incluíam-se os filósofos cuja memória deveria ser preservada e o culto
ser respeitado.
Essas foram as razões da "panteonização" de Voltaire e Rousseau.
Com a transferência dos restos mortais dos dois filósofos para o Panteão,
respectivamente em 1791 e 1794, a revolução os homenageava
duplamente: como "precursores" e como "inspiradores".
A despeito das diferenças que marcaram a obra dos dois filósofos, o
que importava nessa iniciativa era o que poderiam representar em
comum. E essa pretensa sintonia, destacada nos discursos feitos[25] por
ocasião das duas solenidades, sublinhava os méritos decorrentes do
talento e dos serviços prestados por ambos á humanidade. O mérito
assim compreendido, não guardava nenhuma relação com nascimento,
títulos hereditários, feitos de guerra, etc., e com tudo mais que se
identificasse à tradição, ou seja, ao passado que se pretendia destruir.
Lideres revolucionários de matizes diversos buscavam assim explicar
a origem da revolução o ganhar legitimidade. Aos filósofos se tributaria a
formulação das idéias que eles colocaram em prática, pondo fim a um
período que passaria a ser identificado aos preconceitos, ao
obscurantismo e à tirania.
Sobre esses pilares inicia-se a propagação de um ideário que
colocava iluminismo e revolução como imagens que se espelhavam. A
homenagem que unia na posterioridade o que fora separado em vida -
não é demais relembrar as enormes discordâncias entre os dois filósofos
-, cumpria ainda uma outra finalidade. Ela permitia interpretar o
iluminismo como um movimento homogêneo e contínuo, cuja tarefa teria
sido preparar a revolução.
Ainda que parte da historiografia reproduza esse tipo de
interpretação, ela convive com trabalhos que conduzem a outras
conclusões.
No que concerne ao papel de "inspiradores" o de "precursores"
desempenhado pelos filósofos, outros aspectos muito importamos têm
sido recuperados pelos historiadores para que se repense essa relação.
Se esses novos enfoques não chegam ao ponto de negar totalmente
aquela relação, buscam, no entanto, matizá-la e torná-la menos
homogêneas e continuas.
É preciso que se chame atenção para o fato de que se as idéias dos
filósofos iluministas tinham em comum o fato de criticar e rejeitar a
sociedade do Antigo Regime, faziam-no de óticas e perspectivas di-
versas, partiam de premissas opostas e, em conseqüência, a relação de
cada um deles com os diferentes momentos da revolução foi igualmente
muito diversa.
As idéias de Voltaire, por exemplo, estariam mais próximas da
constituição de uma monarquia ilustrada, ou seja, do governo do príncipe
"esclarecido", pressupondo apenas reformas e não uma revolução. Isto
reflete sua grande influência sobre o imperador Frederico II da Prússia
(1740-1786), sempre referido como "déspota esclarecido". Nesse caso,
as idéias de Voltaire influenciaram a modernização do Estado
empreendida pelo imperador, numa engenhosa combinação do "velho" e
do "novo", tudo feito para manter inalterada a base aristocrática da
sociedade prussiana e promover a marcha da "civilização". O caso
francês escaparia a essa regra porque, ali, as idéias[26] dos filósofos
teriam sustentado uma autêntica revolução, e essa seria a razão da
homenagem.
Como explicar esse quadro?
A tarefa não é simples pois dela têm se ocupado muitos historiadores,
que nem sempre concordam cm suas explicações. Saber se os filósofos
influenciaram ou não a revolução c, em que medida o fizeram, exige -
parece-nos - o tratamento prévio de outras questões. Antes de
aprofundar a relação das idéias com sua aplicação, isto é, com a obra da
Revolução, é necessário conhecer as condições em que foram gestadas.
Esse é um pressuposto para a determinação de seu conteúdo
"revolucionário" e o grau maior ou menor de contestação à ordem.
Assim, guardando relativa distância das interpretações espelhadas
entre iluminismo e revolução, encaminharemos a análise das relações
entre iluminismo c Antigo Regime para relacionar o surgimento das
novas idéias a um estilo de vida e à estrutura da monarquia absoluta.
A questão posta nestes termos permite articular o iluminismo com o
processo mais amplo de desenvolvimento da Razão, cuja origem remonta
ao Renascimento o toma feições próprias em função dos traços
característicos da sociedade francesa descritos no capitulo anterior.
Portanto, sua relação com a revolução seria perceptível por um caminho
bem mais complexo e tortuoso do que aquele constituído pelo ideário
revolucionário na última década do século XVIII.

A REPÚBLICA DAS LETRAS, OS SALÕES E A VIDA MUNDANA: O


ESPRIT DE FINESSE

Tocqueville, aristocrata francês, autor do livro O Antigo Regime e a


Revolução, escrito em meados do século XIX, foi dos primeiros
historiadores a indagar por que os "homens de letras" se tornaram as
principais figuras políticas no reinado de Luís XVI c que efeitos essa
situação feria produzido para a história de França. Embora não chegue a
responder integralmente à pergunta, seu texto indica algumas pistas
interessantes.
A primeira delas é nos chamar atenção para a importância dos
"homens de letras" - as "principais figuras políticas" - no século XVIII. De
passagem, ele nos apresenta a forma singular de inserção desses
"letrados" na vida social. Esta é uma pista preciosa para quem pretende
desvendar as relações entre as novas idéias e a revolução.
Diferentemente de seus congêneres na Inglaterra c na Alemanha onde,
respectivamente, não ocupavam nenhuma função pública, ou se
alheavam em construções filosóficas abstratas ou se dedicavam ao
cultivo da literatura simplesmente, a "república das letras" francesa era
justo o oposto.
Segundo Tocqueville a importância da "república das letras" decorria
do fato de serem

Ouvidos discorrendo todos os dias sobre a origem das sociedades e


suas formas primitivas, sobre os direitos primordiais dos cidadãos e das
autoridades, sobre as relações naturais e artificiais dos homens, sobre os
erros e a legitimidade dos costumes e sobre os próprios princípios das
leis. Penetrando desse modo até as bases da constituição de seu tempo,

Nesse conciso balanço dos temas sobre os quais se pensava e se


escrevia à época, Tocqueville recenseou autores de "sisudos tratados" e
de "simples canções". Mesmo assim, naquelas indicações é possível
perceber, de forma implícita, referências a obras clássicas do iluminismo
francês, entre as quais se destacam as Cartas Filosóficas e O Ensaio
sobre os Costumes, de Voltaire; O Contrato Social e o Discurso sobre a
Desigualdade entre os Homens, de Rousseau, e O Espirito das Leis, de
Montesquieu. Mais adiante voltaremos a essas obras. Nesse ponto é
importante registrar que a "República das Letras" era constituída por um
número muito maior de autores, nem todos com mesma notoriedade,
mas com interesses e curiosidades, não raro, muito próximos.
Para além do interesse e da curiosidade por esses assuntos, outros
fatores atraiam os jovens franceses - inclusive da província - para Paris,
alimentando o sonho de integrar-se ao grupo dos iniciados, e participar
do monde, como se dizia então.
O que haveria de tão atraente na condição de filósofo? O que haveria
de tão especial no monde? Essa expressão, difícil de ser traduzida,
recobria o círculo fechado da vida mundana parisiense, a freqüencia aos
salões, a convivência com uma elite intelectual que presava o saber,
aprimorava o gosto e a formação de uma opinião.
Possivelmente o impulso para ingressar nesse meio era alimentado
pelo desejo de "também serem ouvidos", não apenas pelo monde, mas
quem sabe talvez até pelos monarcas, viver num castelo, seguindo os
passos de Voltaire, ou ganhar notoriedade através da aceitação na
Academia de Letras.
Essa não é uma hipótese remota, pois significava alcançar status e
ter prestígio. Como se buscou sublinhar no capitulo anterior, essa
palavra-chave para o entendimento dos mecanismos de reprodução
social no antigo regime.
Ao que parece, os "homens de letras" não escaparam da atração
exercida pelo poder. A carreira de escritor conferia uma "certa nobreza
ao autor", como bem registrou Voltaire, ainda que não se referindo
explicitamente à situação em Franca. A definição, porém, aplica-se
perfeitamente àquela realidade, não apenas porque a própria carreira
deste filósofo o comprova - é suficiente lembrar os cinqüenta anos que
separam a surra que levou a mando do cavaleiro de Rohan e aclamação
pública em seu retorno a Paris -, mas porque significava ter distinções,
diferenciar-se. Ter uma "certa nobreza" significava, de uma forma ou de
outra, inserir-se na "lógica da dependência", pois a fama e a notoriedade
faziam-se acompanhar de pensões e benesses reais.
Por caminhos e meios diversos daqueles utilizados pela burguesia
enriquecida, os homens de letras buscavam um mesmo objetivo usufruir
de privilégios, ter algum grau de identificação com a nobreza integrar a
nova elite que se formava então.
Esse era o caminho mais fácil para se aproveitarem do crescimento
do mercado de livro durante o século XVIII. A combinação fortuita de
diversos elementos como a duplicação do número de alfabetizados, em
função das mudanças operadas no sistema educacional,
paralelamente[29] à expansão econômica, podem explicar não apenas o
aumento do público leitor como uma disponibilidade maior para a leitura.
Disso resultou o grande movimento editorial. Todavia, é sempre bom
lembrar que o sucesso nesse meio e a possibilidade de ser lido
dependiam não tanto dos méritos individuais, mas do status que
alcançara. Pois o que vigorava então não era a lógica do mercado e sim a
do prestigio. Os livros eram publicados em função não das qualidades do
escritor mas das amizades que ele construía e era capaz de cultivar.
Nesses termos, como é possível atribuir aos integrantes da "república
de letras", uma postura revolucionária, se uma parte considerável dela
integrava a elite da sociedade?! A resposta dependerá do sentido
emprestado ao termo "revolucionário".
Elite que freqüentava os salões, como os de Mme. Geoffrin,
d’Holbach, de madame Necker e madame Sauvin, considerados os mais
famosos de Paris. Ali, os intelectuais com fama já reconhecida
pontificavam, expunham suas idéias, tomavam conhecimento das
novidades do meio artístico em geral, promoviam talentos novos ou
barravam expectativas de outros. Os salões constituíam-se assim em
passagem obrigatória para todos aqueles que almejavam o
reconhecimento público e a ascensão social.
Também de forma semelhante ao que acontecia aos burgueses, a
carreira de escritor podia operar a ascensão social, mas as portas de
passagem eram muito estreitas e não podiam dar acesso a todos. Nesse
meio também funcionava aquela espécie de "mobilidade lotérica", na feliz
expressão de Tocqueville.
Produzia também os seus "excluídos" e, portanto, gerava conflitos e
tensões antagonizando - no caso da "república das letras" - a elite dos
philosophes à boêmia literária, como se verá em parte subseqüente
deste texto.
Os salões tiveram ainda importância no desenvolvimento do gosto, de
uma mesma linguagem e um certo "estilo" típico do século XVIII
Francês.
Os salões desempenharam importante papel no aprimoramento um
estado de espirito, que guarda relações muito estreitas com os modos de
pensar do período e, conseqüentemente, com o iluminismo.
O esprit de finesse, como era designado, distanciava-se tanto do
gosto, quanto das posturas em voga no século XVII. A época do
classicismo o que predominava como moda, ou como estilo em meios
eruditos, era a busca de uma atitude séria, a utilização da expressão
mais justa entre as várias possíveis, para expressar corretamente um
pensamento.
[30] Predominava a preocupação com a construção escrupulosa das
frases, evitando-se a utilização de sinônimos, de palavras com o sentido
semelhante porque concebia-se à época que a verdade era simples e
clara; e esta deveria ser a forma de exposição.
Nessa busca de um mais elevado nível de perfeição causava profundo
desagrado e prova de mediocridade, a utilização de expressão duvidosa
ou a demonstração de insegurança em opiniões e preferências. Era
inadmissível e inaceitável a utilização de uma palavra imprópria. Era o
momento áureo da busca da noção de exatidão.
O pensamento deveria ser estruturado solidamente, através do
encadeamento lógico das idéias, pautando-se pela objetividade que
deveria marcar toda exposição.
Contrastando com esse rigor, o esprit de finesse do século XVIII
consistia, segundo a definição de Voltaire em seu Dicionário Filosófico, na
"arte de não exprimir diretamente seu pensamento, mas deixá-lo
facilmente perceber-se: é um enigma".
Essa espécie de arte da adivinhação tão apreciada entre as elites
francesas pressupunha um estilo de pensar e conversar em que se
sugeriam muitas coisas sem dizê-las explicitamente, combinando a
delicadeza com a fineza de expressões.
O enigma, tão caro ao "espírito" do século XVIII, não negava a
existência de uma estrutura lógica necessária ao pensamento, mas
considerava que ela deveria permanecer oculta.
O segredo constituía-se em peça-chave do movimento de expansão
das idéias à época do iluminismo. Ele será tratado de forma mais
detalhada um pouco mais adiante, cabendo por ora tão-somente fazer o
registro e associá-lo ao esprit de finesse.
Um pensamento assim concebido utilizava-se em sua elaboração de
constantes comparações, alusões delicadas e não raro empregava
palavras com a possibilidade de serem entendidas em sentido diverso do
habitual.
Nessa espécie de jogo em que se processavam as conversas que
animavam a vida nos salões era possível também o estabelecimento de
relações entre idéias que em princípio tinham pouca coisa em comum,
aproximando coisas distantes, ou, inversamente, separando o que
parecia unido.
O pensar e o conversar, encarados como uma arte, utilizavam-se com
muita freqüência de figuras de linguagem como metáforas ousadas, para
que sempre o pensamento fosse expresso apenas em parte, ficando o
restante por conta da imaginação. Podia também nuançar o pensamento
através de uma ligeira falsidade como meio de acrescentar delicadeza a
um pensamento, pois o "espírito" era o charme da conversação.
[31] Assim brevemente esboçado esse era o estado de espírito
naquela época e guarda muita sintonia com o próprio iluminismo.
Na verdade, quando deixaram de se guiar pela razão lógica e
geométrica imperante no século anterior, o que os movia era o propósito
de encontrar novas formas de conceber as coisas, de esclarecê-las e
desvendar todos os aspectos, inclusive os menores detalhes e nuanças
de uma realidade que se percebia diversa e mutável.
Uma realidade assim concebida estimulava a criação das mais
variadas formas de expressão, ordenadas e combinadas de forma nova,
mais apropriada às novas descobertas.
O esprit de finasse liberava a imaginação, abrindo infinitas
possibilidades de acesso à pluralidade dos dados da natureza. E assim
cumpria seu papel "revolucionário".

A ENCICLOPÉDIA

Parte da historiografia sobre a Revolução Francesa indica a


elaboração da Enciclopédia de Diderot e D'Alembert, entre 1751 e 1777,
como uma das datas-chave para a periodização dos acontecimentos que
assinalam a derrocada do Antigo Regime em França.
Seja por essa associação que já lhe confere considerável grau de
importância, seja porque assinala uma nova orientação na história do
pensamento científico, a menção é obrigatória para quem busca uma
resposta mais consistente para as relações entre iluminismo e revolução.
A referência justifica-se ainda porque sua elaboração guarda também
identidade com o esprit de finesse descrito acima.
Duas definições de Diderot são exemplares para o argumento que
aqui se desenvolve: 1) o mundo: "uma diversidade infinita eternamente
em movimento"; 2) o universo: "um imenso conjunto de corpos agindo e
reagindo uns sobre os outros, e onde todos, em certa medida, destroem-
se para se recompor de outra forma. Não pode haver paz absoluta nesse
universo porque tudo está em movimento num fluxo perpétuo... as
formas que tomam as coisas na natureza não são jamais definitivas".
O mundo assim concebido, num contínuo fluxo de elementos
heterogêneos, é a imagem mesma do esprit de finesse, onde as idéias
são expressas num mesmo fluxo posto que se sucedem, se entrecruzam
e não são jamais as mesmas.
Assim, a concepção da Enciclopédia - essa obra de uma "sociedade
de letrados", conforme o Discurso Preliminar de D'Alembert -, se[32] faz
em um meio em que fervilhavam perguntas sobre a vida e o ser, em
suas diversas manifestações. As respostas não poderiam mais ser
encontradas no interior de concepções ligadas ao passado, pois estavam
presas à noção de um princípio ordenador para toda esta diversidade.
Ficavam igualmente renegadas as visões que postulavam uma ordem
para o universo fixada de uma vez por todas.
Encaminhar em outros termos a questão da ciência e do saber era o
ponto central para os idealizadores da Enciclopédia. Dedicaram-se à
tarefa de rearranjar um conjunto de conhecimentos e descobertas
isoladas, abrangendo campos os mais diversos do conhecimento como a
história, a botânica, a geografia, etc., de uma forma que não se
submetesse à antiga crença na existência de um sistema.
Impunha-se, pois, definir o princípio que guiaria a organização e que
abrigasse as infindáveis possibilidades oferecidas pelo espírito humano
para colocar em ordem o conhecimento.
Partindo então da noção de que cada ciência possuía seus próprios
princípios e formava um todo individual dotado de uma estrutura
particular, voltada para um objeto determinado, pensaram ser possível
reconhecer algumas "regiões" ou "ilhas", umas maiores, outras menores.
Seria impossível, contudo, conhecer a sua ligação com o continente.
Assim concebido, o método seguido na Enciclopédia pode ser
comparado ao método dos geógrafos, algo que se aproximaria de um
mapeamento, em que cada verbete correspondia a um território
determinado e comportava também regiões inexploradas. Da mesma
maneira como o ponto de vista dos geógrafos influía na elaboração dos
mapas, na Enciclopédia os verbetes - escritos por aproximadamente
duzentos colaboradores - assumem feições diferentes em função de seu
autor. Essa é a marca característica de seus vinte e oito volumes; cada
artigo, cada assunto, cada colaborador tem na obra sua linguagem e
estilo próprios.
A nova postura adotada pelos enciclopedistas revela ainda uma
distinção e uma inovação em relação às concepções sobre as formas de
estudo das ciências naturais. Relegando a plano secundário a prática da
observação sistemática que caracterizava os procedimentos dos
estudiosos da natureza, o novo método orientava-se pelas pesquisas
experimentais, mais adequadas às diversidades individuais e próprias à
expansão do livre curso do espírito humano.
Como a própria expressão do esprit de finesse os enciclopedistas
postulavam uma dupla possibilidade. Ao mesmo tempo em que
libertavam os diferentes saberes do isolamento a que estavam
condenados até então, ao reuni-los numa única obra criaram as
possibilidades para[33] que fossem estabelecidas as relações, as mais
diversas entre eles, em função do ponto de vista adotado. Essa
possibilidade de infinitas formas de agrupamento do conhecimento
humano sobre a natureza, além de reproduzir um quadro mais fiel à
própria natureza - que não fazia classificações de "reinos" humano,
animal e vegetal - significava, no campo do conhecimento, a conquista
da liberdade, tão cara aos homens daquele período.
Na perspectiva dos enciclopedistas, a atividade científica deveria
cumprir um duplo objetivo: a exploração dos fatos particulares e, através
das descobertas sucessivas e simultâneas, a criação de um conjunto bem
ordenado submetido a determinadas leis. Esse agrupamento, contudo,
não se confundiria com o estabelecimento de um "sistema" tal como
entendia a tradição. Servia exclusivamente para agrupar fatos isolados
na diversidade oferecida pelo espetáculo do universo. O conhecimento
desses fatos isolados constituía-se no fim último das ciências.
No plano do conhecimento, a Enciclopédia firmava os valores
inerentes ao esprit de finesse ao constatar o isolamento e a diversidade
das relações possíveis entre eles, e nesse proceder, expandir a atividade
criadora do espírito humano.
Essa nova maneira de conceber a ciência permite ainda desvendar
mais um aspecto novo e de grande importância para a compreensão das
mudanças relacionadas ao iluminismo.
[34] A Enciclopédia merece bem a identificação como a obra do
Século das Luzes ao reconhecer a impossibilidade de os homens terem
acesso à realidade da vida ou à verdade absoluta. Como já foi
mencionado, existiriam sempre os espaços vazios dos "territórios
inexplorados". Pagando tributo a Newton que afirmava que o único
caminho possível para o conhecimento era a experiência e a observação,
os enciclopedistas estabeleceram as fronteiras entre o cognoscível e o
incognoscível. Ao estabelecerem a relação entre sensibilidade
(experiência) e intelecto (entendimento), excluíram a religião - domínio
por excelência da verdade revelada - da esfera do saber,
circunscrevendo-a à esfera do crer. Significava retirar o conhecimento do
controle da Igreja e submetê-lo aos intelectuais comprometidos com o
iluminismo.
Das várias implicações dessa nova concepção destacam-se: uma
nova relação entre conhecimento e poder e o reconhecimento de que a
inteligência permaneceria submetida a uma razão criadora, que lhe era
superior. Dessa dupla constatação derivava o importante papel que
concediam à ciência: estar a serviço da "razão", agora entendida como
uma "aquisição", como um "fazer", para organizar a vida coletiva e
instaurar o reino da justiça e da felicidade.
Nessa perspectiva, não caberia à ciência abrigar curiosos e diletantes,
uma vez que sua existência seria fundamentalmente prática.
Esse é o aspecto "revolucionário" da filosofia das Luzes, sua crença
na educação e no pragmatismo inerentes ao avanço das ciências: ensinar
aos homens o que é justo e bom, e a conhecer o que é belo, contribuindo
para eliminar os preconceitos e para abrir novas possibilidades de se
alcançar a felicidade.
Em resumo, a contribuição da Enciclopédia consistiu em fundar uma
nova concepção de ciência ao redefinir sua prática e afirmar que somente
a razão criadora poderia fornecer as regras para a condução da vida nas
coletividades. Como reconheceu Diderot, "a razão significa para o
filósofo, o que a graça significa para o cristão".
Vejamos com um pouco de detalhe como Voltaire e Rousseau, os dois
filósofos homenageados e imortalizados como precursores da Revolução,
encararam essas novas concepções.

VOLTAIRE

Na obra de Voltaire (1694-1778) um traço muito característico


destaca-se em primeiro plano: seu conteúdo crítico. Se é verdadeiro que
ele preparou a Revolução Francesa, fê-lo ensinando os homens a[35]
pensar. A pensar de uma maneira geral, e sobre a realidade a que
estavam submetidos, de uma maneira particular.
Fosse lançando mão das experiências mais próximas de seus leitores
ou interlocutores, fosse buscando referências longínquas e que não
integravam mesmo o mundo mais próximo, Voltaire tinha sempre em
mente mostrar os absurdos que imperavam na sociedade. Assim, tanto
podia tomar um exemplo extraído da realidade oriental, quanto de
práticas religiosas ou da legislação francesa. O que importava era
demonstrar as contradições reinantes na sociedade e assim encaminhar
o raciocínio no sentido de que todo o legado da tradição fosse re-
examinado. Esse era o ponto central de sua crítica, e seu estilo, afinado
com o esprit de finesse sob a forma dialética, incitava o pensamento a
reavaliar criticamente as formas de existência social.
Seu estilo de argumentação desenvolvia-se como uma espécie de
jogo entre os interlocutores, em que os lances eram dados pelo
permanente vaivém do pensamento, através do recurso a analogias, do
contraste de situações, e da criação de inumeráveis fatos concretos que
poderiam ser mencionados para confirmar ou negar um argumento.
Logo, o método consistia na construção de um argumento claro e
preciso que deveria ser confrontado com os fatos disponíveis. Um
clássico exemplo desse proceder, e que também serve para ilustrar o
anticlericalismo de Voltaire, pode ser extraído de sua sugestão aos
franceses de fazerem um contraponto entre o que o catolicismo lhes
ensinava e o que observavam na vida cotidiana, numa clara alusão aos
absurdos da sociedade. Ou, numa expressão mais condizente com seus
pontos de vista, em sua falta de razão.
Não só o catolicismo foi alvo de sua crítica, mas a religião como um
todo, encarada como fonte de preconceitos, obscurantismo, ignorância e
intolerância. Com Voltaire, o processo de secularização recebe impulso
significativo.
Em larga medida, a religião foi um de seus alvos principais. Voltaire
entendia que os homens, a despeito de todas as diferenças que
guardavam entre si, partilhavam a recusa em aceitar tudo que não
estivesse claro.
Com essa premissa organizando seu pensamento, Voltaire encontrou
na sociedade do Antigo Regime uma realidade pródiga em exemplos e
situações para alimentar seu discurso crítico. Estes, em que pese a
variedade dos assuntos que abordavam, eram pontuados por sua forte
atração pela negação, por sua paixão demolidora, embora não raro
contrapostas a uma certa ironia cética com relação à sua própria
afirmação.
[36] A atração pela negação era o corolário imediato do ponto de
vista inabalável de que a faculdade crítica era o elemento fundamental
da razão humana. Quanto à ironia, além de ser ela mesma uma negação,
e de poder, no limite, realimentar o jogo argumentativo, derivava muito
possivelmente da certeza que partilhava com outros filósofos de seu
tempo, de que os homens permaneceriam ignorando os segredos do
mundo.
Todavia, ao lado do ceticismo inevitável a uma constatação desse
teor, dialeticamente, ele alimentava ainda mais sua revolta contra o
reino da desrazão e atacava implacavelmente a intolerância.
Tudo isso em nome de uma luta sem tréguas contra todas as formas
de dogmatismo e predeterminação que obstaculizaram o acesso à
verdade. Consoante o espírito da época, pregava a substituição dos
procedimentos tradicionais por uma disciplina científica, fundada na
experiência e na atitude crítica.
Desse esboço das idéias de Voltaire, como entender que possa ter
influenciado a revolução?
Além de ter ensinado os homens a pensar criticamente, levando-os a
rejeitar o que apontou como os "absurdos" de seu tempo, Voltaire
alimentava os desejos de reformas da sociedade. Segundo seu
pensamento, era possível criar um novo tipo de sociedade fundada a
partir dos princípios fixados pelas Luzes, em que as leis fossem produto
da razão absoluta e soberana em suas avaliações, livre de todos os
preconceitos.
Todavia, sabe-se também que a revolução em muito se distanciou de
Voltaire, e renegou mesmo alguns de seus pontos de vista. Na verdade,
no plano político esta relação era mais delicada, e quando se passou a
enfrentar a questão de quem deveria fazer as leis, a incompatibilidade
dos ideais predominantes entre os revolucionários e o filósofo tornou-se
clara. A rigor, após 1791, tornaram-se mesmo opções excludentes.
Segundo ele os capazes de executarem essa tarefa eram os homens
"esclarecidos", os desprovidos de preconceitos, os filósofos enfim. Aos
filósofos cumpriria a tarefa de dirigir a opinião pública. Essa era sua
primeira obrigação, e deveria começar a ser cumprida junto às classes
dominantes da sociedade. Vencida essa etapa poderiam se ocupar do
povo, mas cuidando para que não aprendessem a ler, pois considerava
que o maior serviço que poderiam prestar à humanidade era distinguir os
homens cultos e letrados dos imbecis.
De forma bem mais enfática, Voltaire explicitou sua posição numa
correspondência a Damillaville, em 1766: "O povo deve ser dirigido e não
instruído; ele não é digno de sê-lo. Quarenta mil sábios, é mais ou[37]
menos o que eles precisam". Como seu correspondente não partilhasse
esta opinião e defendesse mesmo a posição contrária, Voltaire contra-
atacou: "Entendo por povo a massa que só tem os braços para viver.
Duvido que esse tipo de cidadão jamais tenha tido tempo e capacidade
para se instruir morreriam de fome antes de se tomarem filósofos".
Mesmo reivindicando a liberdade para que todos pudessem pensar
por si sós, expressar sem constrangimentos de nenhuma espécie as suas
idéias, e tendo ajudado os homens a acreditarem que todos eram
dotados dessa faculdade, Voltaire não a considerava como sendo a
mesma entre os homens. Em sua opinião, haveria sempre uma elite
esclarecida, os filósofos, e ao lado deles a massa dos que deveriam ser
guiados e iluminados por eles.
Não deixava assim de reconhecer a desigualdade entre os homens e,
mais ainda, de conceber a sociedade dirigida por um outro tipo de
aristocracia, constituída pelos homens cultos e letrados.
Essa era uma das razões pelas quais nutria tanta admiração pelo
reinado de Luís XIV, considerando-o o século mais esclarecido, e que
muito contribuíra para o progresso da civilização, com o qual identificava
um "sentido" para a história.
Apesar das discordâncias que o processo revolucionário terminou por
evidenciar, muitas das idéias de Voltaire foram incorporadas pelos
girondinos. É possível mesmo que por influência desse grupo algumas
medidas adotadas na Constituição de 1791 tenham se inspirado no
controvertido pensador. Entre elas, a liberdade de imprensa, a reforma
do processo civil e a adoção do sistema de assalariamento para os
pobres.

ROUSSEAU

Os motivos que levaram Rousseau (1712-1778) a criticar e rejeitar a


sociedade do Antigo Regime são de natureza radicalmente distinta
daquela apontada na parte referente a Voltaire.
As diferenças são mais facilmente perceptíveis sob o ângulo da total
inadaptação de Rousseau à vida em Paris. Contrastando com Voltaire,
que tanto se esforçou para ser aceito no monde e integrar-se à elite
francesa, Rousseau ali foi sempre um estranho no ninho.
Os modismos, a sofisticação e o gosto pelas conversas alimentadas
pelos vôos da imaginação, típicas do esprit de finesse, do artificialismo
da vida social, foram os principais responsáveis por sua inadaptação
àquele meio.
[38] Rousseau era originário de família simples e perdeu a mãe muito
cedo. Desde pequeno desenvolveu o gosto pela leitura, hábito adquirido
nas longas noites em que seu pai o ensinou a ler. Era tímido e
introvertido, parecendo sempre absorto em seus sentimentos. Não tinha
nenhum traquejo social, tendo mesmo dificuldades em manter o ritmo de
um diálogo numa situação de convívio social.
Com estas características, ao chegar a Paris com quarenta anos de
idade, vindo de Genebra, sentiu-se sempre deslocado. Nunca perdeu sua
condição de estrangeiro, permanecendo apegado aos valores que
cultivara em sua solidão.
A transferência para a capital proporcionou-lhe experiências vitais e
que muito influenciaram sua obra. Até aquela época nunca havia escrito.
O convívio social regido pelas atitudes polidas e etiquetadas em que era
fundamental a aparência; onde a impressão que se deve causar no outro
era sempre mais importante e guardava certa independência com relação
ao que se era verdadeiramente; em que a opinião do outro era referência
constante, fizeram Rousseau perceber a impossibilidade de o homem ser
ele mesmo e de eles reconhecerem-se entre si. Anulava-se o ser em
detrimento do parecer.
Foi em meio à profunda nostalgia e à sensação de deslocamento que
viveu então, em que o sentir pesava mais que o pensar, que começou a
desenvolver suas concepções sobre uma nova humanidade.
Rousseau era impulsionado pela recusa dessa existência de fachada,
que impunha aos homens o viver num mundo de aparências,
impossibilitando o seu verdadeiro reconhecimento e abafando a
verdadeira vida que residia no íntimo de cada um.
Em seu entendimento, tanto a desigualdade quanto os maus
sentimentos que proliferavam no mundo eram estranhos à alma humana
e resultavam das transformações sofridas pela humanidade em seu
esforço de, através do progresso, sair do estado natural.
O pano de fundo que sustentou essas formulações de Rousseau
preservava, na forma secularizada, o esquema cristão da evolução
histórica. Este concebia a existência de três momentos: o Éden, a queda
e a salvação. Em Rousseau, esse tempo original seria o estado de
natureza, seguido por uma longa decadência. Ou seja, o estado social,
no qual se encontravam. Comportava a possibilidade de redenção, que
não se confundiria com o regresso ao passado, que o filósofo sabia ser
impossível. Portanto, não significava a volta ao estado de natureza,
embora devesse restaurar a condição original, a verdade das origens, do
homem primordial.
Para Rousseau o dilema que se colocava então resultava - por um
lado - da constatação da impossibilidade de um retorno ao estado[39] de
natureza, à idade da inocência e da igualdade. E, por outro, da
constatação de que não haveria a conciliação entre estado de natureza e
estado natural. Todo o mal da sociedade derivava do fato de uns
dependerem dos outros, pois no mundo só havia senhores e escravos
que se corrompiam mutuamente, contrariando assim a sua própria na-
tureza. O que fazer para que a humanidade civilizada se regenerasse e
os homens reencontrassem e recuperassem a liberdade perdida?
A alternativa proposta por Rousseau para esse dilema girava em
torno de dois eixos principais.
O primeiro deles pode ser referido ao Contrato Social, que seria a
solução política para preservar a sociedade e permitir que os homens
recuperassem sua liberdade e se unissem por laços mais estreitos. O
contrato restauraria o bem supremo do homem, sua faculdade de se
governar. Como isto seria possível?
Segundo Rousseau, através da substituição da vontade dos homens
por uma vontade impessoal, a vontade geral. Somente ela poderia
elaborar leis e, colocada acima dos homens, ser a única instância a
governá-los. Todos obedeceriam e, portanto, desapareceria a divisão
entre dominantes e dominados, sendo está a condição de recuperação da
liberdade perdida.
A noção de vontade geral é básica para a compreensão das propostas
de Rousseau. Ela supõe a constituição de uma comunidade na qual se
integram indivíduos que outrora viviam isolados. Na nova comunidade, a
sua vontade e a vontade comum são uma mesma vontade. Os homens
não se submeteriam mais a nenhuma vontade particular, pois a lei assim
estabelecida seria um poder impessoal. Esta é a noção de liberdade civil
que consiste em só obedecer à lei.
A ordem civil, tal como Rousseau a concebe, desenvolve um novo
tipo de bondade inexistente no homem natural, pois nesse estágio não
existiam nem a sociabilidade, nem a moralidade. Nesse outro estágio, os
princípios sobre os quais repousaria o Estado seriam explicitados num
código moral que regraria a vida dos cidadãos. Assim, ele se torna um
ser moral, senhor de si mesmo, agindo de acordo com sua consciência.
Todas as suas aptidões deveriam ser canalizadas no sentido de torná-
lo parte integrante de um todo. Nesta nova forma de existência, ele
encontraria a felicidade, porque a felicidade de cada um seria a felicidade
da coletividade.
Cada um dependeria do conjunto, sem o qual nada poderia ser feito.
Desse princípio decorreria o grande fator de regeneração da sociedade,
pela constituição de um forte fator de coesão e de sentimento patriótico,
elevando os homens acima de seus interesses individuais.
[40] Nesse processo, a educação desempenharia um papel
fundamental e a ela Rousseau dedicou especial atenção, sendo este o
outro princípio organizador de suas idéias. A educação se incumbiria de
ensinar aos jovens essa nova compreensão de individualidade que só
adquiria sentido em função da relação com a coletividade, nada signi-
ficando fora dela.
Em seus textos literários, em especial a Nouvelle Heloïse, Rousseau
aprofunda esse ponto. Além de emocionar seus leitores ensinando-os a
falar de coração para o coração, e inaugurando mesmo um tipo de
literatura mais sentimental e valorizadora no íntimo de cada um e das
instâncias da vida privada, como o amor, o casamento, a maternidade, a
educação dos filhos, etc., ele cria uma relação também nova entre a vida
pública e a privada. Rousseau elimina as fronteiras entre essas duas
instâncias da vida cotidiana ao apagar as distinções entre a moralidade
privada e a virtude pública.
A constante necessidade de se identificarem à coletividade, preenchia
toda a existência dos cidadãos, incitando-os a manterem essa união
sempre viva. A consciência de que isolados não eram nada, faria com
que cada um estendesse seu amor a todos os outros. O Estado cuidaria
de organizar festas públicas para realimentar os sentimentos de
fraternidade, os laços de união entre os cidadãos, que se sentiriam
sobretudo como irmãos, como amigos.
Essa nova concepção de humanidade unida por sentimentos de
fraternidade, integrando homens virtuosos, sem ódios, inveja e
competitividade, foi um dos elementos que mais fortemente conquistou
para Rousseau a admiração e a popularidade do povo.
O sentimento de não-pertencimento à sociedade, experimentado por
Rousseau em Paris, era o mesmo sentimento de exclusão vivido pelo
povo. O filósofo tocou-lhes também o coração porque seu ideal de
homem confundia-se também com o ideal revolucionário do cidadão,
dado que ambos tinham origem no mesmo sentimento.
Acrescente-se ainda que, com suas idéias, construiu um novo
conceito de democracia. Com ele - e não com Voltaire - foram
valorizados os homens cuja existência cotidiana não tinha nada de
especial, e que até então não tinham desempenhado nenhum papel
relevante na história. Eles aprenderam a reconhecer o seu valor, que
residia no simples ato de existir. Esse valor de democracia, baseada no
homem simples, tal como é encontrado no povo, assinala também um
traço distintivo de sua obra.
A ele deve-se creditar também o reconhecimento de uma outra forma
de igualdade entre os homens; a condição de todos experimentarem as
mesmas emoções e as mesmas reações.
[41] O homem descrito por Rousseau diferencia-se não somente das
concepções de Voltaire, como também daqueles que imperaram na
sociedade do Antigo Regime, submetido à ordem hierárquica. Em
contraste, Rousseau sublinha simplesmente o fato de serem homens, e
isso é que os igualava Sua imagem era o homem do povo que preservara
em formas mais puras os valores naturalmente humanos.
Um balanço geral da influência de Rousseau sobre a Revolução deixa
transparecer algumas dificuldades, a começar pela identificação mais
imediata que habitualmente se faz com o período da ditadura jacobina.
Na verdade, a conquista do sufrágio universal e a exaltação da
democracia direta são inspiradas no Contrato Social, e é possível
também que algumas medidas tomadas em favor dos pobres tenham
derivado de seu Discurso sobre a Desigualdade. Quanto à adoção de uma
economia dirigida, que também caracteriza o período, é menos provável
porque ele pronunciou-se muito pouco sobre essas questões.
No que se relaciona à mentalidade revolucionária, sua influência
também é perceptível, sobretudo no plano da moral.
A apropriação pela política de suas idéias sobre educação inspirou e
entusiasmou aqueles que acreditavam na possibilidade de abandonar as
práticas legadas secularmente, romper com as convenções passadas e
construir uma ordem fundada na verdade natural. Uma frase do Emile é
exemplar nesse sentido, pois afirma: "Pais e mães, o que é factível é o
que quereis fazer". A crença no agir e nas potencialidades da intervenção
humana é transparente nesta afirmação.
Além desse aspecto, vale lembrar que suas idéias sobre regeneração,
autonomia, igualdade, bondade do povo e seu ideal de virtude foram
apropriadas em etapas diferentes da revolução. É verdade que, em
algumas situações, ao sabor das necessidades do momento. Desse caso
não escapa nem mesmo sua utilização por um adversário da revolução
que recuperou sua afirmação de que "nenhum homem sensato poderia
destruir as instituições e a monarquia francesa, estabelecidas por um
período de mil e trezentos anos".
Fora da esfera da política sua influência foi acentuada no campo da
literatura. Com a Nouvelle Heloise inaugura-se um novo estilo, que
marcaria a produção no século seguinte. A Rousseau também se associa
a origem do romantismo e o impulso às narrativas autobiográficas.
A vida modesta que levava, sempre se recusando a receber pensão
ou auxílio financeiro de qualquer espécie, impôs-lhe muitas dificuldades.
Em alguns momentos, para garantir sua sobrevivência, fazia transcrições
de partituras musicais. Tudo isto influiu para que o povo visse nele a sua
própria imagem: a do homem humilde e virtuoso.
[42] Um contraponto final entre Voltaire e Rousseau indica que
ambos refletiram criticamente sobre a sociedade do Antigo Regime, e
acreditaram na possibilidade de a filosofia auxiliar os homens em sua
conduta futura. Neste ponto, porém, cessa a convergência de seus
pontos de vista. Voltaire condenava o cristianismo como a própria
negação da razão, enfatizava a faculdade humana de pensar, e nesta
potencialidade depositava as suas esperanças para o futuro, numa nova
idade da humanidade, mais feliz e mais esclarecida.
Rousseau rejeita as formas de vida de sua época por não serem
conforme à natureza, e sonha com a possibilidade de redenção humana
que recupere as condições naturais. Para ele, o homem sente antes de
pensar, e por esta razão importa-lhe mais o que ele experimenta, a
bondade que lhe é natural e sua necessidade de amar e ser amado.

A FRANCO-MAÇONARIA

A outra instituição social do Antigo Regime que, paralelamente à


"República das Letras", teve papel decisivo na expansão dos valores,
idéias e práticas típicas do iluminismo foi a franco-maçonaria. Ambas
desenvolveram um mesmo estilo, uma mesma linguagem e uma mesma
conduta, compreensíveis quando se recupera a estrutura política da
monarquia absoluta.
De fato, ao retirar dos súditos qualquer possibilidade de participação
política, ao negar-lhes quaisquer meios de expressar sua opinião e influir
no processo decisório, a monarquia absolutista colocava os súditos na
condição de privados do acesso à esfera pública.
Nessa situação não havia distinção entre nobres e plebeus, ricos e
pobres, leigos e eclesiásticos, pois eram todos igualmente ignorantes dos
assuntos públicos. No entanto, no caso da nascente burguesia e da nova
elite que se formava em decorrência da venda de títulos de nobreza e de
cargos públicos instaurada pela monarquia absolutista, essa interdição
agravava as tensões por explicitar o desequilíbrio entre a conquista de
status social e do crescente prestígio, e a ausência de expressão política.
De forma um tanto esquemática é possível identificar a esfera pública
ao exercício do poder monárquico e, conseqüentemente, a ela associar a
figura do soberano. A ele caberia cuidar do que fosse comum a todos os
súditos. Por esta razão dela estariam excluídos os interesses e as
opiniões individuais, fonte de permanentes conflitos e divisões no interior
da sociedade.
[43] É importante lembrar que a liberdade de juízo constitui-se em
experiência fundamental para a compreensão da modernidade ocidental.
Renascimento e reformas religiosas foram processos fundantes do
desenvolvimento da subjetividade e da liberdade de escolha que
constituem traços característicos do indivíduo moderno.
A formação da monarquia absolutista se opera no quadro de conflitos
e tensões sociais geradas em conseqüência dessas novas experiências. O
novo Estado enfrenta as divisões que se instauraram na sociedade,
distinguindo responsabilidade e convicção.
A solução encontrada para que se mantivesse a ordem entre os
súditos e a paz entre os homens transfere para o espaço privado o
exercício da liberdade. Aí os homens poderiam diferenciar-se e seguir
sua consciência e sua moral.
Historicamente, o surgimento de novos valores se operou a partir do
âmbito privado ao qual o Estado absolutista reduziu seus súditos, e onde
desenvolveram a experiência de "estar em liberdade secreta", como dizia
um ditado da época.
Nesses termos fica compreensível a interpretação do iluminismo
referido ao processo mais amplo de passagem da condição de súditos à
de cidadãos, aí compreendidas algumas transformações fundamentais.
Todas elas, porém, passíveis de serem reduzidas ao movimento de
passagem da opinião da esfera privada para a esfera pública.
Observada com um pouco mais de detalhe, essa solicitação de
publicização e de livre acesso da opinião à esfera pública, significava
refundar essa noção - e esta foi a obra da Revolução.
A esfera pública seria referida não mais ao Estado, e sim, à
sociedade, constituída por aqueles que são portadores de uma "opinião",
vale dizer, de cidadãos.
O processo de formação de opinião restrito à instância privada do
convívio social, desenvolveu-se nas discussões nos salões, clubes, cafés
e academias[44], onde se reunia um número cada vez maior de leitores
e de pessoas interessadas nas idéias dos filósofos iluministas.
Nessa ambiência gestou-se o desejo de reformas segundo a crença
de que as "Luzes" se confundiam com o progresso e a civilização. Por
essa razão o iluminismo pode ser interpretado como o fecho do processo
de secularização, pela crença que difundiu na possibilidade de uma
planificação moralmente justificada, em tudo subordinada à razão. O
tema da salvação que predominara na cultura cristã vê-se assim
transmudado para o plano terrestre ao se desenvolver uma nova religião
secularizada e obediente a uma nova divindade: a razão iluminada.
Essa estrutura explica que os locais privilegiados para discussões
fossem apolíticos, como as bolsas de comércio, os cafés, as academias e
as lojas maçônicas. Esses eram espaços sociais por excelência fio sentido
de não se confundirem com os espaços estatais. E explica que as funções
políticas que desempenharam se realizassem por vias indiretas.
Dentre essas diversas instituições destaca-se a franco-maçonaria Por
demonstrar, de forma exemplar, a relação entre moral e política, tal
como se processou no século XVIII francês.
Esta questão é fundamental por revelar os valores morais como os
que deveriam constituir a política, ou melhor, a forma indireta como se
concebia a intervenção política através da intervenção moral. O centro da
dialética entre moral e política residia no "segredo". O partilhar de um
segredo, essência de todas as sociedades maçônicas, unia seus membros
através de um elo que não era nem de natureza religiosa, nem política,
mas sim, moral.
O conteúdo do segredo poderia variar de uma loja para outra. O que
importava era o que representava, a possibilidade de participar de uma
vida nova.
A cerimônia de iniciação dos novos membros significava a
descoberta desse mundo, de uma comunidade de irmãos, sem diferença
de classe ou crença religiosa. Essa união, cimentada pelo segredo, tinha
como reverso a permanente desconfiança e a cautela com relação aos
que não pertenciam à loja e com a traição. Assim, o reverso da função
protetora exercida pelo segredo constituía-se em sua força como
instrumento de dominação, o que implicou no desenvolvimento de
práticas minuciosas de controle e informes secretos.
A função protetora que desempenhava para os associados
reafirmava a separação entre o campo da moral (dos valores, dos
princípios e das virtudes) e o campo da política (do Estado). Disso
resultava a dupla frente de batalha dos maçons: contra a Igreja, que
chamava a si a responsabilidade de velar pelos padrões morais, e contra
a monarquia absolutista. O segredo protege e delimita o âmbito social,
campo em que a moral deveria se desenvolver e, assim, garante a união
de seus membros e promove a felicidade dos cidadãos.
Nas lojas maçônicas reinava um outro deus e um outro soberano: a
virtude. Por esta razão o maçom era obrigado a prestar obediência à lei
moral, desenvolver o autocontrole de sua consciência, e mostrar-se
sempre virtuoso e independente do soberano.
As lojas maçônicas constituíram-se, assim, nos espaços onde se
desenvolveu uma nova sociabilidade, que alimentava as expectativas de
construção de uma nova sociedade, mais fraterna e obediente a novos
valores morais.
[45] Antes mesmo de concretizarem suas expectativas, a integração
à franco-maçonaria potencializava a consciência de um mundo novo
fundado sobre uma outra humanidade, desconectada do mundo exterior,
por não se orientar por seus ordenamentos políticos e religiosos. O
próprio isolamento em que os maçons viviam do mundo exterior
desenvolvia entre os membros das lojas a consciência de sua qualificação
moral. E, portanto, de sua superioridade e competência para julgar os
não iniciados, aqueles que permaneciam do lado de fora, isto é, os que
não pertenciam à sociedade secreta.
Desse julgamento não escapavam obviamente os assuntos políticos -
embora submetidos a considerações e veredictos de natureza moral, em
função mesmo de sua intenção de fundar uma outra sociedade e, por
essa razão, negarem-se a reconhecer conteúdo político aos seus
propósitos.
De qualquer forma, dessa acepção resultava que, se diretamente não
se imiscuíam em questões políticas, viviam conforme uma lei que
implicaria, mais cedo ou mais tarde uma mudança na ordem
estabelecida. Ainda que de forma indireta, a moral que cultivavam
constituía-se em ameaça à soberania do rei. É importante não esquecer
que - segundo os princípios da monarquia absolutista - somente o rei
detinha autoridade para decidir sobre o que era justo ou injusto, o certo
e o errado. E, além disso, grande parte das críticas à rainha Maria
Antonieta e aos membros da aristocracia dirigiam-se aos seus vícios e
corrupção. Embora organizados em torno de finalidades explicitamente
apolíticas, os maçons constituíram-se em forças políticas indiretas, seja
por seu propósito de disseminar uma nova moral, seja porque em função
de sua crítica moral, todas as lojas maçônicas eram obrigadas por sua
constituição a darem proteção e asilo aos que se rebelassem contra o
regime, desde que fossem moralmente inatacáveis.
Não é detalhe de menor importância lembrar que Robespierre era
chamado de "Incorruptível" e líderes revolucionários como Brissot,
Danton e o próprio abade Sieyes, entre outros, foram membros de lojas
maçônicas parisienses.

O JACOBINISMO

Dificilmente o tema do jacobinismo é abordado pela literatura


especializada sem que se destaque a radicalização revolucionária do
período (1792-1795); a ação dos clubes sans-culottes e a ascensão do
movimento popular, a ampliação das conquistas sociais e a proclamação
da república igualitária; o reconhecimento do sufrágio universa e[46] as
primeiras experiências democráticas. São moedas correntes nas
considerações sobre aquela fase do processo revolucionário francês.
Quanto às suas relações com o iluminismo, que é o que aqui nos
interessa, não costuma merecer muita atenção. Grosso modo, a questão
é resolvida trazendo-se Rousseau à cena em seu papel de "inspirador"
daquela etapa revolucionária. Sua sombra estaria por trás da política
implementada pelo Comitê de Salvação Pública.
Não se trata de refutar esse tipo de interpretação: ele repousa sobre
uma sólida base, constituída por argumentos consistentes e, em certa
medida, irrefutáveis.
Em que pesem as ambigüidades do pensamento de Rousseau, suas
concepções de igualdade, a glorificação do povo e sobretudo a defesa da
vontade geral são os indicadores mais fortes de sua influência. Todavia,
como já foi apontado anteriormente, a relação entre a filosofia das Luzes
e a revolução não pode ser espelhada, dado que elas não se
correspondem mutuamente. Essa relação não pode ser estabelecida a
partir de transposições simples e imediatas. A lembrança do tema da
violência é uma boa referência para o que aqui se está dizendo.
De fato, o recurso à violência e o ideário de Rousseau são impossíveis
de conciliar. Sua reconhecida repulsa a essas práticas não condiziria com
a guilhotina e com a implantação do terror. Além do mais, não se pode
esquecer que as restrições à liberdade, inerentes ao período do terror,
representavam justo o oposto de suas concepções acerca da moralidade
do novo homem.
Aliás, na maior parte da bibliografia sobre o tema, o terror parece
não se ajustar a nenhum modelo de interpretação do jacobinismo, sendo
seu caráter de excepcionalidade freqüentemente evocado para
interpretá-lo como fruto das circunstâncias. Nessa perspectiva, o terror
não se identificaria com o jacobinismo, e a condenação à morte na
guilhotina teria sido recurso inevitável face à situação momentânea. A
fuga do rei, a coligação das potências absolutistas européias contra a
França revolucionária, e sua ligação com aristocratas franceses teriam
imposto a necessidade de "salvar" a revolução da reação "contra-
revolucionária". Isto é, o terror e a violência seriam recursos
indispensáveis e circunstanciais para eliminar os inimigos da revolução.
Segundo essa linha de interpretação, representada principalmente
por Albert Soboul, a partir de 1792 a revolução atravessou um período
extremamente delicado. Ao lado do medo "nacional", representado pela
guerra e pela ameaça da invasão estrangeira, a revolução vivia também
o medo "social", representado pelas revoltas camponesas daquele verão,
e pela crescente pressão dos sans-culottes, insatisfeitos[47] com a
Constituição de 1791 que os eliminava da condição de eleitores, e pela
não resolução da questão agrária. As dificuldades de abastecimento e a
fome que grassava em Paris naquele momento exacerbavam as paixões
e tanto explicaria a ascensão dos jacobinos quanto a adoção do terror.
Sob essa ótica, a questão do jacobinismo não guardaria maiores
relações com o iluminismo, a não ser nos termos em que foi estabelecida
em partes anteriores deste texto: a incorporação de alguns princípios de
"Jean-Jacques" e a celebrada "panteonização".
No entanto, é possível recuperar o fio da meada e restabelecer a
relação entre o jacobinismo e o iluminismo, do que resultará inclusive a
revisão do tema da violência, que perderia assim seu caráter de medida
circunstancial.
Ao se restabelecerem os nexos entre iluminismo e jacobinismo, este
último assumiria um lugar de destaque como um fenômeno central da
revolução por expressar a ruptura mesma do tecido histórico nos termos
em que foi interpretado por Agustin Cochin, historiador francês do final
do século XIX.
[48] Nesta perspectiva de análise, o primeiro passo é aproximar o
jacobinismo das inúmeras associações literárias, câmaras de leitura,
clubes que se disseminavam pelas províncias e que mantinham uma
ativa rede de correspondências.
Posto nestes termos o jacobinismo teria uma natureza e uma
dinâmica próprias por promover um outro tipo de sociabilidade e por
poder ser interpretado como um tipo de sociedade que Cochin chamou
de "uma sociedade de pensamento".
O que a caracterizaria? E em que medida esta interpretação pode
auxiliar na compreensão do jacobinismo como um fenômeno
revolucionário que romperia com as estruturas do Antigo Regime?
Em primeiro lugar, porque uma sociedade de pensamento significava
o estabelecimento de novas formas de relacionamento social, eis que
seus membros deveriam se despojar de todas as particularidades
concretas de sua existência social. Em lugar das tradicionais inserções
marcadas pelo pertencimento a uma ordem ou a um estamento da
sociedade tradicional, seus membros estavam unidos pela identificação
com uma idéia.
Consoante ao espírito dominante na época, valorizador das
discussões e das elaborações mentais, a sociedade de pensamento uniria
seus integrantes pelo partilhar de uma mesma idéia, ou de uma mesma
opinião.
Opinião esta construída não necessariamente em relação a uma
situação concreta, mas que era o resultado de uma discussão capaz de
fazer as opiniões convergirem num consenso entre seus membros. Como
se tratava somente de pensar, e não de agir, esta opinião tinha, por esta
razão, a possibilidade de construir-se livremente, isto é, com
independência em relação a situações reais.
O que importava era a produção do consenso, pois este - por seu
turno - estabelecia a igualdade entre seus membros. O partilhar de uma
opinião ocupa, assim, o lugar das antigas formas de sociabilidade e, por
esta razão, prefigura a experiência de cidadania e de democracia.
Esse é o ponto que se pode identificar com o rompimento, a vivência
de uma experiência nova regida por uma dinâmica radicalmente distinta
da que caracterizava a sociedade do Antigo Regime.
A experiência democrática no interior das sociedades de pensamento
não depende das condições sociais e, sim, da relação com a abstração de
uma idéia que se constitui, pois, como elemento fundamental da
igualdade. Os homens são iguais porque se identificam com um mesmo
pensamento, ou a uma mesma opinião.
A dinâmica da sociedade de pensamento pressupõe a desagregação
dos princípios sobre os quais se assentava o ordenamento social[49] do
antigo regime, a saber, os estamentos. Seus membros relacionavam-se
entre si não como integrantes de uma ordem, mas enquanto indivíduos.
Essa nova experiência trouxe consigo um duplo debilitamento: o da
solidariedade corporativa entre os membros de uma ordem, e o da
autoridade tradicional fundada na diferença e na hierarquia.
A noção de democracia nessas organizações, da qual o jacobinismo é
uma variante, não se exaure nesses aspectos. Seu complemento é a
concepção de democracia pura, por não comportar a mediação de
representantes. Todos opinam, todos participam.
Como a opinião que assim se constitui não é redutível a interesses
particulares, passa a significar a expressão infalível da coletividade. Esta
infalibilidade decorria do próprio fato de ser obra coletiva o que alimenta,
por seu turno, o culto do social.
Nesse particular, o período de dominação do jacobinismo e exemplar,
como a fase em que esse culto foi extremamente exacerbado em sua
dupla acepção, isto é, a valorização da coletividade enquanto instância
de produção do verdadeiro, e como povo-rei. Dito em outros termos, é a
vontade da coletividade que a todo momento se traduz em leis. É a
vitória do livre-pensamento, ou seja, da nova expressão de
individualismo, caracterizado pela relação livre de cada um com uma
idéia.
Ainda que essa concepção de democracia pura implique posto
funcionamento de assembléias coletivas cotidianas, não escapa da
criação de uma "máquina", ou seja, da criação de alguma instância que
faça esse mecanismo funcionar, no sentido de recriar constantemente o
consenso.
Quer se conceba o funcionamento de uma sociedade de pensa mento
quer se considere o relacionamento entre várias dessas sociedades -
sendo essa a situação que mais se aproximaria do período dominado
pelos jacobinos - a permanente produção do consenso não se realizaria
sem as depurações.
É importante observar com um pouco mais de detalhe este ponto.
Vistas sob este ângulo, as depurações não seriam então recursos
esporádicos, fruto de condições momentâneas e excepcionais. Ao
contrário, são parte integrante da "máquina" que põe o sistema para
funcionar - um instrumento através do qual se reproduz o consenso, por
eliminar permanentemente a diferença. Com as depurações, os jacobinos
estendiam sua influência e seu controle por toda a sociedade.
A hipótese aqui sustentada é a de que a eliminação -
independentemente da forma em que se realizasse - é parte integrante
desse tipo de sociedade.
[50] A guilhotina seria o paroxismo de um procedimento inerente à
vicia da "República das Letras" - por exemplo, através da prática do
"terror seco", com o qual se demolia a reputação de alguns escritores.
Um exemplo dessas práticas era o conhecido incitamento de Voltaire
para se "esmagar o infame". Suas cartas e panfletos propagandísticos
costumavam terminar com esse enfático apelo. O que ele entendia por
"infame" pode ser conhecido através de suas próprias palavras:
Esmaguemos os fanáticos e patifes, suas hipócritas declarações, seus
miseráveis sofismas, a história mentirosa, o amontoado de absurdos.
Não permitamos que os possuidores de inteligência sejam dominados
pelos que não a têm - e a geração futura nos deverá a razão e a
liberdade.

Executar o apelo era uma operação bem definida e que comportava


uma série de procedimentos como o inquérito, a discussão, o julgamento
e a execução, que naquelas circunstâncias significava a condenação
pública ao desprezo.
O que importa é sublinhar que a imperiosa necessidade de se recriar
o consenso tem em seu reverso essa permanente triagem. Esta -ao
excluir alguns - funciona como elemento aglutinador do restante, numa
lógica semelhante à do "segredo" da franco-maçonaria.
A hipótese aqui sustentada é a de que nessas organizações que
prezavam a importância do social e da opinião consensual, a prática da
exclusão era elemento constitutivo. Portanto, era algo que se integrava à
sua lógica e que independia de circunstâncias momentâneas.
Para Cochin, o que teria havido na França durante a ditadura jacobina
seria o desdobramento de um processo iniciado em tomo de 1750 nas
lojas maçônicas e nas sociedades literárias e, sem nenhuma relação com
o poder. Em 1793, época do terror sangrento, deu-se a culminação desse
processo quando o jacobinismo - em nome do povo - substituiu a
sociedade e o Estado.

A BOÊMIA LITERÁRIA
O historiador norte-americano Robert Danton propõe uma
interpretação muito original das relações entre iluminismo e revolução. A
originalidade decorre, em larga medida, de seu entendimento sobre o
ofício do historiador. Com sólida formação em antropologia, Danton se
classifica como um historiador etnográfico porque, ao se dedicar à
história da cultura da França no século XVIII, o faz considerando a
maneira[51] como as pessoas comuns entendiam o mundo e construíam
suas interpretações sobre a realidade a que estavam submetidas.
Essas referências iniciais justificam-se para sublinhar alguns traços de
sua postura teórico-metodológica, e salientar que seu trabalho se rege
pela preocupação de captar as diferenças que identificam as sociedades
em épocas distintas. A aparente simplicidade desta afirmação dilui-se
quando a aplicamos especificamente a um objeto de estudo, pois sua
operacionalização significa não apenas eleger outras fontes documentais
para análise, como também atribuir um outro conteúdo aos temas em
pauta. Com muita firmeza ele adverte os historiadores para os perigos de
se deixarem seduzir por uma falsa familiaridade entre o seu presente e o
passado que pretendam reconstruir.
Para o historiador da cultura este risco levaria ao equívoco de se
supor que há dois séculos os franceses pensavam e sentiam da mesma
forma que nós.
Assim, seu trabalho se propõe a reconstituir e respeitar as formas em
que o conceito for entendido à época e que significado lhe atribuíam.
Nestes termos para ele importa menos saber o que pensavam e, sim,
como pensavam. No caso de uma pesquisa sobre o iluminismo, esta
perspectiva implica na adoção de um procedimento que respeite o ponto
de vista dos autores da época, por mais estranhos que eles nos possam
parecer em determinadas circunstâncias.
Foi este estranhamento que ele experimentou ao deparar com uma
lista de pedidos encaminhada a um livreiro na Suíça. Os títulos ali citados
como "filosóficos" não condiziam com o entendimento que hoje se tem
sobre o tema. Títulos como Vênus no claustro ou A freira de camisola: O
cristianismo desvendado: Thérèse, a filósofa e Margot, a companheira do
exército, não correspondiam à idéia que hoje se tem sobre filosofia e
nem sobre iluminismo. Segundo Darnton, esta lista - que mais parecia
"um monte de lixo" - de alguma forma terminou por incorporar-se à idéia
de filosofia que se tinha naquela época.
Em suas pesquisas sobre a vida intelectual na França do século XVIII,
ao lado de nomes conhecidos do pensamento francês ele descobriu um
verdadeiro mundo de subliteratos, da "boêmia literária", constituída por
escritores que não desfrutavam do status dos integrantes da "república
das letras". Viviam isolados e contavam sempre com poucos recursos,
pois eram os excluídos do monde e, portanto, não recebiam pensões.
Suas considerações sobre a "boêmia literária" reforçam as
interpretações sobre as tensões criadas pelo sistema de ascensão social
através do prestígio, que - por sua própria natureza - só recobria um[52]
grupo limitado, o que significava manter na condição de excluídos o
contingente maior da sociedade.
Suas conclusões possibilitam também o encaminhamento da questão
levantada por Tocqueville a respeito das razoes que poderiam explicar a
"paixão" que parecia empolgar os franceses e tornar compreensível a
"indignação" que experimentaram ao contemplar a sociedade em que
viviam.
Os literatos da boêmia expressavam suas idéias nos libelle, uma
espécie de panfleto que disseminava o sentimento de repulsa pelo Antigo
Regime, sempre tratado de forma apaixonada, em tom insolente
difamador e caluniador.
Os panfletos que circulavam e eram lidos principalmente nos cafés -
uma espécie de "salão" das parcelas menos favorecidas da sociedade -,
tinham como assunto predileto e alvo principal de sua mordacidade, o
monde. Escolhiam preferencialmente personagens da corte, membros da
aristocracia, freqüentadores dos salões e das academias, assim como a
hierarquia eclesiástica como personagens dos casos escandalosos e
sensacionalistas, com o que pretendiam demonstrar a corrupção
instaurada no reino, a degeneração e decadência moral da aristocracia.
Importa chamar atenção para o fato de que, mesmo sendo uma
literatura que se nutria de escândalos, de "segredos de bastidores", de
detalhes da vida íntima de personagens importantes da corte, entre os
quais não escaparam nem o rei, a rainha e o poderoso cardeal de Rohan,
o que estava em foco era a questão moral.
Ainda que não elaborassem propostas, nem submetessem à opinião
pública projetos de reforma para a sociedade, os libelles eram
instrumentos permanentes de denúncias. A seu modo contribuíram para
desgastar ainda mais a imagem do Antigo Regime, sua decadência e
falta de autoridade moral.
Estes "Rousseau de sargeta" como os apelidou Danton, viviam numa
realidade muito distinta daquela que imperava para os literatos bem-
sucedidos. Nesse underground não vigiam princípios, nem estavam os
libelles submetidos a certas regras implícitas de "civilidade" das demais
instituições do Antigo Regime. Entre eles reinavam uma acirrada
competitividade e um profundo despeito pelo sucesso alcançado por
todos que haviam conseguido penetrar no monde. Este foi o caldo de
cultura em que ferveu seu ódio pelas elites.
Numa certa medida esse é o limite de sua campanha "revolucionaria".
Disseminar o descontentamento, insuflar a repulsa pelas elites, atacar os
privilégios e desmoralizar os poderosos, eram os objetivos de sua
campanha contra o status quo.
[53] Rétif de Ia Bretonne talvez seja uma exceção nesse meio. Se,
por um lado, pôde integrar esse submundo pelo estilo de vida que
levava, antes da revolução publicou várias obras contendo projetos de
reformas reunidas sob o título de "Idéias Singulares", e que constavam
de um plano para a reforma da educação, da ortografia, a reforma da
prostituição e uma reforma social baseada na eliminação da propriedade
privada.
Não está em jogo a excentricidade de sua obra e, sim, o interesse em
reforçar o argumento sobre o peso que àquela época exerciam as
questões morais. Os libelles raramente propunham reformas, limitavam-
se a denunciar a decadência moral, mas cumpriram importante papel
para a revolução.
Danton é enfático ao concluir que o extremismo jacobino nutriu seu
verdadeiro timbre "neste ódio que subia das entranhas, e não nas
refinadas abstrações de uma bem tratada elite cultural", dando assim
sua versão para as relações entre iluminismo, jacobinismo e revolução.
Esta interpretação inclui ainda uma consideração final de que a
revolução teria virado pelo avesso o mundo cultural e, no cumprimento
dessa tarefa, bebeu na fonte das concepções antielitistas cultivadas com
paixão pela "boêmia literária".
A revolução destruiu as instituições onde florescera a elite intelectual
do Antigo Regime, os salões e as academias; revogou a censura,
eliminou as pensões, e aboliu os privilégios.

4. CULTURA E REVOLUÇÃO[54]
Com extrema lucidez e certa dose de perplexidade, Tocqueville
traduziu o sentimento vigente na França pós-revolucionária ao afirmar:

Retrocedo de época em época até a mais remota antigüidade, mas


não encontro paralelo com o que está se passando perante os meus
olhos; como o passado deixou de lançar a sua luz sobre o futuro, a
mente humana vagueia na escuridão.

O que esta afirmação nos permite desvendar de imediato é o traço


inaugural da modernidade ocidental, o rompimento com a tradição. A
ausência de todo e qualquer paralelo com as experiências pretéritas
apresenta-se, na expressão do pensador francês, como uma constatação
trágica, por remeter os homens ao espaço do desconhecido.
Ao reconhecer que o passado não iluminaria mais o futuro, o que
Tocqueville testemunha é a nova maneira como se passou a relacionar o
passado, o presente e o futuro. Registra a mudança fundamental que se
operou em relação aos planos de historicidade, isto é, a forma como os
homens entendiam o próprio tempo histórico e as relações que
estabeleciam entre os três momentos que o constituem. O que está a
nos indicar é a mudança no próprio entendimento que passaram a ter da
história, a qual perdeu as características que a identificava no período
clássico, quando se concebia que "sem a história nada se pode provar".
Desde a antigüidade o conhecimento dos fatores históricos era
valorizado por seu caráter de exemplaridade. Assim, a história "mestra
da vida" importava porque as experiências passadas podiam orientar
ações futuras. Desta visão derivou a força da tradição e a forma pela
qual, através dos séculos, entrelaçavam-se o passado e o futuro.
O abandono do passado, e, por extensão, da valorização do "espaço
de experiência" redimensiona o espaço de "expectativas" com o qual se
confunde o futuro, que se apresentaria então pleno de infinitas
possibilidades, e impossível de ser balizado pelos exemplos extraídos do
passado. A abertura deste espaço e esta mudança radical de concepção
foram obra da revolução, pois dela se originou a crença de que os
homens podem controlar a história e, vale dizer, construir o futuro. A
idéia de construtibilidade substituiu a força da tradição na condução dos
assuntos humanos.

O MODERNO CONCEITO DE REVOLUÇÃO

Consta que na noite de 14 de julho de 1789, ao tomar conhecimento


da queda da Bastilha, da fuga dos prisioneiros e da derrota das tropas
reais, o rei Luís XVI teria indagado ao Duque de La Rochefoucauld-
Liancourt o que estaria ocorrendo, e se se tratava de uma revolta. O
Duque respondeu negativamente, dizendo tratar-se de uma revolução.
O que teria permitido ao Duque refutar o rei e propor outra
designação? Para ele tratava-se de fenômenos distintos, que não podiam
ser confundidos. Em que residiria a diferença?
Hannah Arendt nos informa que aquela data assinalaria não apenas a
destruição do grande símbolo do poder do Antigo Regime, como também
a utilização, pela primeira vez, do termo "revolução" revestido de um
significado político diverso do que lhe emprestavam até então. O diálogo
comporta então uma dupla diferenciação: entre revolta e revolução, e
entre dois significados neste último termo.
É verdade que desde os séculos XVI e XVII os dois termos não eram
utilizados de forma intercambiável, embora não fossem mutuamente
excludentes. De uma maneira geral, utilizava-se os termos revolta,
levantes, insurreições e rebeliões em relação aos movimentos
camponeses, aos sangrentos conflitos religiosos que conflagraram, as
sociedades européias naquela época.
O que importa, não apenas para o esclarecimento do famoso diálogo,
mas para a compreensão de valores inerentes à modernidade ocidental
que se instauraram com a revolução francesa, é que sob aquelas
diferentes denominações englobavam-se movimentos que tinham, pelo
menos, duas características em comum.
[56] Todos eram entendidos como uma guerra civil, isto é, distúrbios
- não raro apaixonados - entre facções rivais, que dividiam
momentaneamente a sociedade, mas que se mantinham no interior da
concepção de sociedade estamental que era preservada, a despeito dos
conflitos que durante certo período perturbavam a ordem estabelecida.
Nenhuma dessas revoltas fora capaz de alterar a estrutura social.
Além deste aspecto pode-se também interpretar a classificação feita
pelo rei como expressão de experiências passadas, comparando aquela
situação a outras perturbações da ordem ocorridas no reino.
Provavelmente referia-se a situações anteriores, assimiladas pelo poder,
pois todas as revoltas foram abafadas e não provocaram mudanças
substantivas na ordem social.
Já o termo revolução, naquele mesmo período, era utilizado como
uma metáfora inspirada no vocabulário das ciências da natureza, mais
particularmente em Copérnico, cuja obra A Revolução dos Corpos
Celestes cunhou o seu sentido inicial.
Originando-se, pois, de um vocabulário astronômico, o termo
"revolução" designaria movimentos rotativos dotados de uma certa
regularidade. Assim compreendido, o conceito de revolução comportava
a idéia de repetição, de obediência a um movimento cíclico e que se
processava com independência em relação à intervenção humana.
Transposta para o terreno da história, essa compreensão do termo
revolução inspirada no movimento dos corpos celestes, se identificaria
com a noção de restauração, por pressupor um retomo a um ponto
original. Neste entendimento assimila-se a idéia de revolução como um
movimento restaurador da ordem e que representaria a manifestação de
concepções valorizadas de uma relação predominante do presente com o
passado. Ou seja, a consciência social que se tinha à época aplicaria o
conceito originado nas ciências naturais a acontecimentos históricos que
respeitavam a tradição e, mesmo, buscavam restaurá-la.
Foi com essa metáfora do eterno retomo que a Revolução Inglesa do
século XVII foi interpretada. Esta imagem não se aplicava aos anos sob o
domínio de Cromwell, e sim a 1660, com a destituição do Longo
Parlamento e o restabelecimento da Monarquia. Também a 1688, com a
chamada Revolução Gloriosa que, sem apelo à violência, expulsou os
Stuart e restaurou o poder monárquico.
Um outro exemplo pode ser extraído das imagens construídas pelos
peregrinos que migraram para a América e dos panfletos e da
propaganda revolucionária à época da independência, quando sentiam o
debilitamento e o esvaziamento das liberdades tradicionais em função da
política adotada pela monarquia inglesa. Com a Lei do Selo e a[57] Lei
do Chá sentiram-se usurpados em antigos direitos. Reportavam-se à
tradição de uma monarquia limitada no seu poder pela força das leis que
estariam sendo reinterpretadas ou desrespeitadas.
No entanto, a definição do Duque mencionada anteriormente sobre os
tumultos do 14 de julho corno sendo uma revolução, comporta um outro
entendimento deste conceito que não mais derivava do estabelecimento
de uma relação com o passado. A queda da Bastilha não significava um
retorno a um ponto de origem, nem a perda de um direito adquirido e
nem a uma liberdade legitimamente instituída.
Naquele momento o recurso à metáfora enfatizava o caráter de
irresistibilidade daquele processo. Como as estrelas, a massa popular, a
multidão de pobres e oprimidos que invadia a cena pública obedecia a
uma força irresistível e irrevogável. O Duque discordava do rei por
considerar que ele nada poderia fazer para impedi-la de cumprir seu
movimento. Definia assim a sua diferença em relação aos movimentos
do passado.
O reconhecimento da revolução como dotada de uma natureza
inexorável (irresistível e irrevogável), identifica o novo significado de que
fala H. Arendt, e que tomaria força nos discursos dos revolucionários e se
firmaria nas novas teorias políticas do século XIX, através do conceito de
necessidade histórica. A revolução passou a ser entendida como um
processo vital - indispensável, portanto, ao curso da história.
Indispensável porque com ela se promoveria a emancipação social.
O que permitiu que o termo revolução abandonasse suas origens
naturais e adquirisse um novo significado, foi a experiência inédita vivida
no século XVIII francês de que os homens podiam mudar sua existência
social através da revolução, e que a pobreza também não era um dado
natural, pois derivava de condições históricas. Esta foi a herança do
jacobinismo e de sua visão muito particular sobre o objetivo
revolucionário.
Da ênfase do jacobinismo na questão da igualdade social derivam
algumas noções que sobreviveram ao período em que lideraram o
processo revolucionário. A primeira delas diz respeito à tematização da
"questão social", isto é, a politização da questão da pobreza, fato inédito
até então. Simultaneamente, conjugou revolução à superação da
miséria, ao elevar a resolução da questão social à razão mesma das
revoluções. Por seu turno, a libertação dos homens da esfera da
necessidade, ou seja, da situação de privação em que viviam, constituía-
se no argumento central sobre o qual assentava-se a noção de
necessidade histórica aplicada à revolução. Dito em outros termos, o
acontecimento revolucionário era um acontecimento "necessário" e
"irresistível" no curso da história.
[58] Pode-se agora melhor compreender a perplexidade de
Tocqueville. A revolução, ao privilegiar o agir humano, o fez em função
da libertação da ordem antiga e, portanto, da instauração do novo.
Assim, não poderia buscar um retorno ao passado, e a ausência desta
referência deixava os homens a "tatear na escuridão".
Este passo em direção ao futuro e ao desconhecido foi registrado por
Diderot ao reconhecer que ninguém sabia o que iria se seguir à
revolução. A mesma incógnita transparece na constatação de Rousseau
ao considerar que as monarquias européias deveriam desaparecer, mas
o que se seguiria, ninguém podia saber.
Desde então, o campo conceituai sobre a revolução incorporou alguns
traços com que vem sendo utilizado na cultura ocidental.
Em primeiro lugar, sua aplicação como um coletivo singular (a
revolução), parece unir em si o curso de todas as revoluções que se
operam nos diferentes campos. O termo assumiu preeminência como
princípio regulador dos conhecimentos e ações humanas, associando-se
sempre a fenômenos que convulsionam a história.
Numa outra perspectiva, a valorização do agir e a crença que os
homens podem construir a história, decorrentes das experiências pós-
1789, significou a transferência para o plano terrestre das antigas
expectativas religiosas de salvação. A perspectiva escatológica que
predominara nas concepções tradicionais despe-se de seu conteúdo
religioso, e assume as formas seculares da libertação na vida terrena. O
paraíso seria conquistado em vida e no reino dos homens.
Mais do que isto passou-se a conceber a possibilidade de acelerar sua
conquista através da revolução.
Com a revolução modifica-se também a concepção de tempo. Em
primeiro lugar porque, como já foi comentado anteriormente, a revolução
dava as costas ao passado e vivia o presente em função do futuro. A
noção recém-descoberta da construtibilidade da história supõe a crença
na possibilidade de controlar o tempo e de acelerá-lo, alcançando o
futuro mais rapidamente.
Quando Robespierre justificou a adoção de medidas de caráter
excepcional e o recurso ao terror, justificou-se perante os cidadãos
franceses como sendo iniciativas necessárias para "acelerar" o curso da
revolução, exemplificando assim a crença nas potencialidades humanas
de construir a história e submetê-la a um ritmo mais rápido.
Da nova relação passado/presente/futuro, em decorrência dos
fenômenos revolucionários, alteraram-se as várias visões sobre o
passado.
Em contraste com as práticas tradicionais de reconstituir a história
narrando sempre os mesmos, acontecimentos, segundo uma mesma[59]
perspectiva, abrem-se as possibilidades de interpretações diversas. Esta
novidade foi fruto das divergências e entendimentos opostos que se
manifestaram naquele processo. A história mesma da revolução foi a
primeira a sofrer estas constantes reinterpretações. De acordo com os
interesses e as situações particulares próprias às diversas facções,
tiravam-se conclusões diferentes sobre o passado e reinterpretavam-se
os acontecimentos sob nova ótica.
A meta das revoluções é o futuro das sociedades. Como já se viu
anteriormente, concebe-se como objetivo das revoluções a emancipação
social de todos os homens através da mudança das estruturas sociais.
Desde que a aprovação da Declaração dos Direitos Humanos, em agosto
de 1789, abriu caminho para ações futuras em nome da ampliação da
conquista de liberdade e igualdade, as revoluções passaram a se
identificar com um determinado modelo social. Babeuf, o líder da
Conspiração dos Iguais, em 1795, afirmou que a Revolução Francesa não
terminaria enquanto a exploração e a escravidão não fossem abolidas.
A noção de revolução permanente é um desdobramento desta
característica. Para a consecução de seus objetivos temporal e
espacialmente, a revolução deve durar até a sua concretização final.
Esta[60] era a visão de Robespierre, que em discurso em 1794
considerava "que a metade da revolução do mundo estava terminada e
que faltava completá-la na outra metade".
Para concluir, o moderno conceito de revolução, tendo como centro a
idéia de libertação social e a construção de uma sociedade mais justa e
igualitária, distancia-se, em conseqüência, da noção original de
restauração da ordem com a qual foi introduzida no vocabulário político
no século XVII.
Este último ainda foi o sentido aplicado à Revolução Inglesa. Em
contrapartida, o caso francês, tal como foi visto por seus idealizadores,
ao romper os laços com a tradição, pretendeu fundar uma nova ordem. A
noção de fundação expressava a idéia da revolução como um divisor de
águas, um marco a distinguir um antes e um depois. Com ela deveria se
(re)iniciar o curso da história, que assim teria um começo e um fim A
este respeito, vale lembrar que em 1792 - com a abolição da Monarquia
e a proclamação da República - inicia-se um novo calendário, sendo
aquele o ano que assinalaria o início de uma nova era.
É esta concepção que tem alimentado a mentalidade revolucionária
que ganhou força no século XIX. Ainda que postulando novos valores
(razão, liberdade, progresso, revolução) no lugar dos antigos padrões
religiosos (Juízo Final, imortalidade da alma), não deixa também de ser a
expressão secularizada do pensamento escatológico cristão por
representar a possibilidade de "salvação" total. A revolução
desempenharia assim um papel crucial nos tempos modernos por
viabilizar o nascimento de um campo secular dotado de dignidade
própria, a política.

A CONQUISTA DO MUNDO HISTÓRICO

Nas considerações anteriores acerca do moderno conceito de


revolução já foi sugerido que a experiência revolucionária do século XVIII
não deixou a concepção de história imune a transformações. Em
decorrência do rompimento com a tradição altera-se a noção de
historicidade isto é, a maneira como a consciência social entendia a
relação entre o passado, o presente e o futuro.
A alteração não se restringe a esse aspecto e assume amplitude
maior. É possível a identificação naquele período das origens da
concepção de história ainda presente na atualidade. Ernst Cassirer é inci-
sivo sobre este ponto, e dele tomamos emprestado o título desta seção,
por traduzir - de forma sucinta - a essência da questão.
[61]A possibilidade de se falar na "conquista do mundo histórico"
reside num duplo entendimento, por fundar e assegurar uma
conceptualidade própria e por não deixar de pagar tributo à noção
mesma de um mundo em construção.
As origens dessas mutações são da mesma natureza daquela
apontada nas considerações sobre o iluminismo: as questões gerais
relacionadas ao espírito do século XVIII, a expansão do racionalismo e
dos debates científicos e metodológicos acerca dos critérios de acesso à
verdade. Não excluem a hipótese que relaciona o surgimento desta
concepção de história à condição de privados de participação na esfera
da política, que caracterizava a condição dos súditos do monarca
absolutista. Acrescente-se que o acirrado espírito crítico do período
nutria-se dos fracassos políticos e financeiros do regime, aí se incluindo a
crítica ao grande poder da Igreja, que se constituía em obstáculo às
reformas políticas e administrativas necessárias para a promoção do
progresso.
Da combinação destes fatores resultou uma reviravolta importante,
porque até então os historiadores sempre tomavam o partido do
governo. Não poderia ser de outra forma, seja porque eram historiadores
"oficiais", isto é, nomeados pelo rei, segundo a lógica imperante no
Antigo Regime, seja porque um de seus assuntos prediletos era a
genealogia da monarquia. Não se registravam diferenças entre as várias
obras, pois exerciam seu ofício mais ou menos como "continuadores",
porque contavam sempre a mesma história, mudando apenas o estilo.
O campo próprio à história permaneceu meio indefinido no século
XVII, sendo ocupado também pelos chamados "antiquários" que, grosso
modo, se ocupavam dos assuntos e das fontes que os historiadores
deixavam de lado. Esse grupo era formado por eruditos que se
dedicavam a reunir e estudar as tradições e os vestígios do mundo
antigo, seguindo um caminho aberto pelos humanistas dos séculos XV e
XVI.
Historiadores e antiquários foram vítimas, no século XVIII, dos
ataques dos filósofos iluministas, que censuravam a ambos por
esquecerem que a história deveria ser uma "reinterpretação" do passado
e que somente com este proceder seria possível formular conclusões
sobre o presente.
Este é um primeiro ponto a ser ressaltado, a forte preocupação com o
presente, e o esforço em fixar um sentido para a história. Em que pesem
as diferenças entre as concepções de Bayle, Voltaire e Montesquieu,
pode-se afirmar que a obra historiográfica desses três filósofos
empreende a "conquista do mundo histórico" pelo esforço em determinar
as relações entre o universal e o particular a idéia e a realidade, as leis e
os fatos. Partilham também o mesmo desprezo[62] pela ficção, pelas
fábulas históricas que consideravam produtos de pura invenção e, como
dizia Bayle, sendo a "verdade a alma da história deve ser libertada da
mentira".
Assim como naquela época a matemática era o modelo para o
conhecimento exato, os filósofos buscaram instituir a história como um
modelo metodológico para as ciências do espírito. Para tanto, o primeiro
passo seria emancipá-la da teologia.
Negando a interpretação de matriz religiosa foram os primeiros a se
interrogar sobre se o curso da história era determinado por forças
inconscientes, o "espírito do tempo" ou pelo caráter nacional.
Foram também pioneiros na adoção de um ponto de vista filosófico
para separar o acidental daquilo que poderia ter um valor típico e
universal, e para explicar a correlação entre os fatos.
A nova orientação dada à história deslocou o interesse do campo
tradicional com o qual se ocuparam seus antecessores que escreviam
histórias da monarquia, de guerras, de assuntos políticos, enfim, para
ocupar-se de assuntos que até então não eram valorizados. Os objetos
prediletos passam a ser o comércio, a indústria, as artes e
principalmente a civilização, sendo este o tema central para o
reconhecimento da questão que os mobilizava em relação à história, o
conhecimento da evolução geral da sociedade.
Vale lembrar que o desprezo e a rejeição pela barbárie unia os
filósofos e os levava a considerar os homens letrados e os "espíritos
cultos" como promotores do progresso e da civilização.
Tomemos uma vez mais o exemplo de Voltaire.
Entre seus textos sobre a história - História de Carlos XII, O Século
de Luís XIV e o Ensaio sobre os Costumes - é neste último que se pode
melhor depreender seus pontos de vista, bem como reconhecer o lugar
que o autor ocupa na fundamentação deste saber. O mérito resulta do
fato de ter encaminhado a questão da história partindo de pressupostos
radicalmente distintos dos que então se adotava entre historiadores e
antiquários. Assume um ponto de vista secularizado e distancia-se no
tempo, escreve sobre épocas passadas, para alcançar condições de um
melhor julgamento, teoricamente desapaixonado, guiado apenas pela
razão.
O destaque ao texto dos Ensaios pode ser explicado pelo fato de
Voltaire o ter dedicado à marquesa Châtelet, que se queixava da
dispersão do saber histórico e se interrogava sobre as possibilidades de
os acontecimentos históricos serem submetidos a leis, tal como fizera
Newton em relação às ciências naturais, na qual ela era formada.
Voltaire entusiasmou-se pela questão posta pela marquesa porque
não era muito diverso o seu ponto de vista. Ele considerava a
história[63] um "amontoado de absurdos" e acreditava ser possível
desvendá-la através do método analítico.
Numa publicação suplementar aos Ensaios, Voltaire afirmava que:

em lugar de acumular uma série de fatos em que um é destruído por


outro, há que escolher os mais importantes e seguros para proporcionar
ao leitor um sentido e colocá-lo em situação que possa formar um juízo
sobre o fim, o renascimento e os progressos do espírito humano e que
aprenda a conhecer o caráter dos povos e seus costumes.

Além de anunciar a necessidade de hierarquização dos


acontecimentos para se chegar à compreensão da história, Voltaire
promove o deslocamento do centro de gravidade da história política para
a história do espírito, entendida como a categoria que recobria a
totalidade do acontecimento interno e das mudanças experimentadas
pela humanidade. Assim é preciso considerar a religião, a arte, as
ciências e a filosofia para que se possa reconstituir um quadro total de
todas as fases atravessadas pelo espírito para chegar ao ponto atual.
Todavia, o propósito de constituir a história deste "espírito"
defrontava-se com o aparente paradoxo de duas idéias presentes em
suas formulações, e que pareciam irreconciliáveis: a crença no
progresso[64] da humanidade e sua convicção de que a humanidade não
mudava a sua natureza.
Sem abandonar nenhuma das duas idéias Voltaire distingue dois
níveis em que se desdobra o processo histórico. Um diria respeito à
natureza humana mais íntima, que difundiria a unidade e estabeleceria
princípios invariáveis e autênticos, e que permaneceriam sempre os
mesmos. As mudanças só ocorreriam na superfície, no terreno da
cultura, reino da variedade e de manifestação de costumes diferentes.
Elucidou a dúvida da marquesa ao reconhecer que ao historiador
caberia uma tarefa que não era muito distinta da do investigador da
natureza. Como este, o historiador deveria desvendar - em meio à
mudança e à variedade dos fenômenos -, a lei oculta que lhes dava
inteligibilidade. Recusando as explicações teológicas, Voltaire identificou
a razão como força fundamental. Este era o sentido da história: dar
visibilidade e transparência à razão. Não era um fim e, sim, um meio,
pois o que se esperava dela era a verdadeira realização do conhecimento
do homem moral.
Suas concepções sobre história articulam-se às suas demais
formulações. Ganham relevância pela importância que lhe concede ao
reconhecê-la como meio através do qual se educaria e ilustraria o
espírito humano. Constituía-se assim em peça fundamental da noção de
progresso e aperfeiçoamento da civilização que ajudou a disseminar.
Além de sedimentar o pragmatismo típico da filosofia iluminista, algumas
de suas idéias sobre a história permanecem vivas, informando
concepções diversas na atualidade.
Ao buscar identificar um sentido para a história (a civilização),
Voltaire descartou o acidental e meramente individual e desvinculou sua
explicação de pressupostos teológicos, compreendendo-os no plano da
imanência, e propondo leis para seu desvendamento. Portanto, em lugar
do privilégio dos acontecimentos (do plano visível da história) recorreu
ao invisível (os fundamentos), para entender a unidade e a diversidade,
no tempo e no espaço.
Em sua época, contudo, contribuiu para aumentar o fosso que
separava os filósofos dos antiquários, principalmente por negligenciar a
exatidão do detalhe, por deixar de lado o pormenor "inútil" - com que se
ocupavam os antiquários - e só valorizar as generalizações.

HISTORIA E CIDADANIA

A revolução fez triunfar a concepção de história dos filósofos, depois


sistematizada por Condorcet, um herdeiro direto da Enciclopédia,[65]
que assim a compreendia: "Uma reflexão sobre a evolução dos povos e
das civilizações, um estudo do passado indispensável para a análise do
progresso da humanidade nas vias da razão". Tratava-se, pois, de fazer
da história um dos terrenos privilegiados de demonstração do sentido da
existência social.
O elevado posto a que foi promovido pelos filósofos não condizia com
o lugar secundário que a história ocupava no ensino, onde nem mesmo a
legislação revolucionária a retirou da condição de complemento dos
estudos clássicos e da aprendizagem do latim, e de passageira
clandestina dos programas oficiais. Permaneceu em sua posição
relativamente marginal por não integrar os programas regulares das
aulas. Fazia parte dos "exercícios públicos" nos feriados, às quintas-feiras
e aos domingos, como registra François Furet.
No Collège de France havia uma disciplina "História e Moral", em
meio a um conjunto reunido sob a referência de Ciências Morais e
Políticas. Haveria outros exemplos que talvez sugerissem uma lenta
expansão do ensino da história, mas não eliminariam o visível contraste
entre a importância que progressivamente assumia em meio ao clima
reformador do período final do Antigo Regime e mesmo durante a
Revolução, com o seu status pedagógico.
Esse descompasso comportava, na verdade, duas ordens de
problemas: em primeiro lugar constituí-la como uma disciplina, e
conceder-lhe um lugar no sistema educacional para que pudesse realizar
a pedagogia do cidadão. Estas duas ordens de questões foram resolvidas
somente no século XIX, embora obedecessem a dinâmicas e tempos
distintos.
A instituição da história como disciplina, isto é, tornar-se uma
matéria ensinável, foi impossível ao longo do século XVIII e nas
primeiras décadas do XIX, porque estava dividida entre duas atividades
intelectuais que se ignoravam ou se desprezavam. Eram elas: erudição
(típica dos antiquários com sua acentuada preocupação com o passado e
com a precisão do detalhe), e a filosofia (mais voltada para o sentido da
história, isto é, da relação entre o presente e o futuro). A total
discordância entre eles quanto aos métodos, aos objetos e mesmo sobre
o que era a história, constituía-se em obstáculo difícil de ser transposto.
À indefinição sobre o que era a história, a Revolução - com suas
marchas e contramarchas -, acrescentaria mais uma dificuldade, a de se
definir qual a história a ser narrada. A antiga genealogia da nação, à qual
se dedicaram os historiadores dos séculos XVI e XVII, recontando as
aventuras de Childerico, Clóvis e Joana D'arc tornara-se impraticável.
[66] A Revolução desprezava esse interminável passado nacional,
pois afinal queria livrar-se do peso da monarquia e da feudalidade.
Assim, tomava-se difícil - senão impossível - constituirá história
nacional que seria o terreno próprio à pedagogia do cidadão. A Revolução
dividiria os franceses em duas "nações" opostas, cada uma
correspondendo a uma metade de sua história, pois até a Restauração de
Felipe D'Orléans, com o estabelecimento da Monarquia de Julho, em
1830, não era possível amar o Antigo Regime sem detestar a Revolução
e vice-versa.
Esses obstáculos foram transpostos inicialmente por Guizot, professor
da Sorbonne, ao fundir a tradição dos historiadores à dos antiquários,
através da noção de "fato histórico", e pela valorização da massa
documental a ser estudada (textos, fontes e monumentos) como meio de
reconstituição do passado; e da reconciliação da história nacional com a
história da civilização.
Estes foram os pontos de vista que estruturaram suas concorridas
aulas de história e que lhe custaram a destituição do cargo em 1822, por
atacar o regime em nome do Terceiro Estado, da antiga Monarquia e da
marcha da civilização. Esse tipo de visão sem dúvida se legitimou com a
própria história, porque a Monarquia de Julho, fruto das barricadas de
Paris, fez confluir as duas tradições nacionais, a da burguesia e a da
nobreza.
A história nacional francesa libertava-se da "maldição feudal" em que
se aprisionara por fixar-se no estudo desse período, e instituía-se, na
base do discurso enciclopedista, na fonte de civilização de que é
portadora.
Desde então, dotada de um campo específico e de um método
próprio, a história passou a desempenhar papel central na constituição
da cidadania.
Apenas um último adendo. Em 1886, a Faculdade de Letras de Paris
criou um curso sobre a Revolução Francesa, transformado em 1891
numa cadeira da Sorbonne da qual Aulard foi o primeiro titular. Esta
iniciativa veio somar-se à revista Revolução Francesa fundada em 1881 e
à Sociedade de História da Revolução, de 1888.
No início do século, Jaurés e Mathiez, os dois maiores historiadores
socialistas da Revolução fundaram, respectivamente em 1903 e 1908, a
Comissão de Pesquisa e de Publicação dos Documentos, relativos à vida
econômica da revolução, e os Annales Révolutionnaires.
Não cabe recensear as instituições ligadas ao estudo da Revolução e
que se multiplicaram a partir dessas iniciativas. Apenas sugerir a
relevância do tema para o estudo da nação francesa e que desde então
tem se processado de forma indissociável da história da modernidade
ocidental.

CONCLUÇÃO[67]

Como se evidencia ao término da leitura, este não é um livro sobre a


história da Revolução Francesa no sentido da narrativa dos
acontecimentos e da descrição de seus momentos mais relevantes.
É uma exposição que elegeu três questões como forma de abordar o
tema. Esta escolha foi presidida pelo intuito de demarcar a
contemporaneidade das reflexões sobre a Revolução. Essa
contemporaneidade, ou seja, sua presença viva na atualidade, seria
perceptível em campos variados. Na impossibilidade de abarcarmos
todos em seu conjunto, optamos por destacar aqueles que possivelmente
mais sensibilizariam um público leitor das áreas de ciências sociais e
humanas.
Assim, buscamos situar inicialmente a análise da questão da
Revolução Francesa no campo das relações sociais e políticas do Antigo
Regime, suas práticas e seus valores, e verificar como estes - ao
permitirem sua reprodução - geravam as tensões e os antagonismos
sociais que terminariam por destruí-los. O importante de ser fixado é a
íntima conexão entre estas estruturas e suas práticas correspondentes e
a gestação de duas das principais bandeiras da revolução - a igualdade e
a liberdade. O mesmo enfoque aplica-se à compreensão da conquista da
cidadania, ou seja, da constituição da sociedade, integrando homens
portadores de uma opinião pública.
Nesse nível, a análise do iluminismo torna-se imprescindível e reforça
o enfoque adotado de buscar na dinâmica político-social do Antigo
Regime, a compreensão de acontecimentos tão imprevisíveis quanto
relevantes. O que se buscou retratar foi, inicialmente, como o
iluminismo, de formas as mais diversas, traduziu as esperanças de
reforma e como ganhou vida, em instituições próprias do Antigo Regime.
[68] Todavia, o tema do iluminismo com o privilégio que concede à
razão e à crença em sua potencialidade como promotora da felicidade,
isto é, a crença numa sociedade melhor, contamina as gerações futuras.
E se firma como matriz do pensamento das mais importantes correntes
filosóficas do século XIX, em particular do positivismo e do marxismo.
Antes de encerrar, um alerta finai ao leitor para a complexidade do
tema, para seus aspectos múltiplos e contraditórios e para a impos-
sibilidade de reduzir sua compreensão a fórmulas simplificadas e
esquemáticas, um fenômeno homogêneo e unitário. E, em conseqüência,
um convite para que reflita e extraia a sua conclusão entre as que aqui
são sugeridas.
SUGESTÕES DE LEITURA[69]

ARENDT, Hannah. Sobre a Revolução. Lisboa, Ed. Moraes, 1976.


O enfoque filosófico da autora pode causar algumas dificuldades
iniciais ao leitor não familiarizado com esta disciplina. Vale a pena
o esforço pela originalidade de suas interpretações sobre o
conceito da revolução, sobre o jacobinismo e as polêmicas
comparações com a Revolução Americana.
DARNTON, Robert. Boêmia Literária e Revolução. São Paulo
Companhia das Letras, 1987.
O livro reúne os artigos da pesquisa feita pelo autor na documentação
inédita dos arquivos de Neuchâtel, na Suíça. Situa-se no campo
da história das mentalidades, trabalhada num diálogo intenso com
a antropologia. Reúne um conjunto de ensaios bem característico
de sua perspectiva relativizadora em história.
ELIAS, Norbert. A Sociedade de Corte. Lisboa, Editorial Estampa,
1989.
Texto recomendado aos interessados em aprofundar os
conhecimentos sobre a sociedade do Antigo Regime. O autor
trabalha na perspectiva sociológica e tem outras publicações
sobre o período, do qual é um especialista.
FALCON, Francisco José Calazans. O Iluminismo. São Paulo, Ática,
1986.
O texto destina-se especialmente aos estudantes universitários.
Tem o caráter monográfico e suas qualidades maiores são a
clareza da exposição, o conteúdo das informações e as referências
bibliográficas, que reúnem obras fundamentais sobre o assunto.
FURET, François. Pensar a Revolução. Lisboa, Edições Setenta, 1988.
Como sugere o título desta obra, de autoria de um dos mais
importantes historiadores contemporâneos, ela não descreve, mas
problematiza o tema de revolução. Apresenta interpretações
originais elaboradas numa perspectiva crítica e fundadas sobre
sólida base conceituai.
[70]GODECHOT, Jacques. A Revolução Francesa. Cronologia
Comentada. 1789/1799. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1989.
Leitura fundamental para o conhecimento dos fatos relacionados à
historia da revolução. Como indica o próprio título, os
acontecimentos são dispostos em ordem cronológica e
comentados, de forma crítica e com traços da erudição que
caracteriza o autor.
LABROUSSE, Ernest e MOUSNIER, Roland. O Século XVIII. A
Sociedade Francesa perante a Revolução. H.G.C. Tomo V; Vol. 1.
São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1969.
Um dos melhores resumos sobre os acontecimentos relacionados à
Revolução.
A originalidade da interpretação não é sua marca principal, mas
oferece ao leitor informações e descrições importantes sobre o
assunto.
PERONNET, Michel. Vocabulário Básico de Ia Revolución Francesa.
Barcelona, Ed. Critica, 1985.
Obra de referência útil para a identificação e o conhecimento dos
principais termos relacionados à história da revolução.
SOLE, Jacques. A Revolução Francesa em questões. Riq de Janeiro,
Zahar, 1989.
O livro do professor de História Moderna da Universidade de
Grenoble, França, permite ao seu leitor tomar conhecimento das
principais interpretações sobre a Revolução Francesa,
apresentadas e comentadas criticamente.
STAROBINSKY, Jean. Os emblemas da razão. São Paulo, Companhia
das Letras, 1988.
Leitura recomendada para quem se interessa pelo conhecimento
das formas de representação e pelo universo simbólico. O autor,
especialista em história da arte, analisa a obra de pintores (como
Goya e David) e músicos (como Mozart), relacionando-os à
ambiência do iluminismo.
TOCQUEVILLE, Alexis de. O Antigo Regime e a Revolução. Brasília,
Editora Universidade de Brasília, 1979.
Texto clássico sobre o assunto e, por esta razão, leitura
indispensável. Através de uma lúcida análise sobre o Antigo
Regime o autor desenvolve suas teses, extremamente originais e
tratadas com o estilo elegante que o caracteriza.

No campo da literatura há pelo menos duas obras cuja leitura em


muito enriquece os conhecimentos sobre a Revolução. 7793, de Victor
Hugo e Um conto de duas cidades, de Charles Dickens.

O LEITOR NO CONTEXTO[71]

Alguns temas relacionados à Revolução Francesa merecem um


tratamento mais aprofundado. Entre estes, sugerimos:

1. No campo da história comparada, confrontá-la à Revolução Ameri-


cana (1776). Esta proposta oferece a possibilidade de desenvolvimento
de um trabalho em história, estabelecendo as diferenças que
singularizam processos que podem ser englobados sob a mesma rubrica.
O entendimento da questão da liberdade e da igualdade, assim como a
ausência da questão social nos acontecimentos relacionados à indepen-
dência norte-americana, apresentam-se como pontos privilegiados para o
desenvolvimento desta reflexão.

2. As relações entre revolução e religião. Este é um assunto que não


tem despertado muita atenção entre os pesquisadores contemporâneos,
embora Edgard Quinet e Jules Michelet, no século passado, tenham
desenvolvido hipóteses interessantes sobre as diferenças entre as
sociedades "reformadas" e as que permaneceram católicas.
O tema pode ainda ser pensado sob outras óticas, que focalizem os
efeitos sobre a sociedade das medidas da descristianizacão e do culto
dos mártires, promovidas pela ditadura jacobina de Salvação Pública em
1793.

3. Aprofundamento da tese sobre as "várias revoluções" compreendi-


das pela Revolução Francesa, através, por exemplo, de comparação
entre 1789 e 1793. O que se propõe é uma reflexão sobre os conceitos
de liberdade, igualdade, cidadania e nação, tal como foram construídos
em cada um daqueles momentos.

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