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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

CENTRO DE CIÊNCIAS
DEPARTAMENTO DE BIOLOGIA
INSTRUMENTALIZAÇÃO PARA O ENSINO DE CIÊNCIAS IV
PROF. DR. RAPHAEL FEITOSA

DIEGO COSTA FARIAS

RESENHA CRÍTICA DA OBRA DIDÁTICA DE CIÊNCIAS NATURAIS NA


PERSPECTIVA HISTÓRICO-CRÍTICA

FORTALEZA
2020
A obra Didática de Ciências Naturais na perspectiva histórico-crítica é de
autoria do brasileiro Antonio Carlos Hidalgo Geraldo. É licenciado e mestre em
educação pela UFMT e Doutor em educação pela Faculdade de Ciências da
Unesp. Professor da UFMT, Geraldo se dedica, sobretudo, ao campo da
didática geral e de ciências naturais.
O livro é dividido em: palavras ao leitor, introdução, quatro capítulos que
são subdividos em tópicos, referências bibliográficas e sobre o autor. Ele expõe
o resultado de uma extensa pesquisa em didática e relações entre os princípios
metodológicos do lecionar, da didática do ensino de Ciências Naturais e a
Pedagogia Histórico-Crítica.
2009, ano em que a obra de Geraldo foi publicada, também foi um ano
importante na educação brasileira como um todo. Tivemos a conquista do piso
salarial dos professores, em, ao menos, R$ 950,00, sendo garantido pelo
próprio Ministro da Educação, Fernando Haddad, que os munícipios que não
tivessem condições de cumprir com a lei, teriam suporte do Governo Federal.
Além disso, teve a proposta de criação do fundo especial para a Educação com
os recursos advindos da exploração do petróleo na camada do pré-sal. O ano
de 2009, também levou o Congresso Nacional a aprovar a obrigatoriedade do
ensino dos quatro aos 17 anos, ademais o Presidente Lula sancionou o projeto
de lei garantindo a qualquer pessoa o acesso ao Ensino Médio público e
gratuito. 2009 também foi o ano da grande reformulação do Exame Nacional do
Ensino Médio (ENEM), que se tornou o maior vestibular do país e o maior
ingresso de estudantes para o Ensino Superior.
O professor do Vale comenta no livro que Geraldo tem a intenção de
detectar os princípios metodológicos que regem o processo de ensino e a
prática pedagógica dos professores das ciências naturais. Já o autor apresenta
como principal objeto de estudo a teoria do processo de ensino escolar das
ciências naturais na educação básica. Salienta que seu objetivo é dar o
suporte, teoricamente, aos princípios metodológicos e associá-los aos
elementos do processo didático, por meio de uma proposta de didática de
ciências naturais, na perspectiva histórico-crítica.
No capítulo I “Fundamentos teóricos para uma didática de Ciências
Naturais na perspectiva Histórico-Crítica”, Geraldo começa com algumas
indagações do tipo: “Como surgiu a educação para o homem? Qual a
importância dessa educação para o mesmo? Como se manifesta essa
educação como fenômeno social na atualidade?” Em seguida, o autor
responde esses questionamentos com apontamentos fundamentados na teoria
histórico-social da formação do homem, como espécie biológica e como ser
social, como espécie “inorgânica”, com capacidades de produção dos seus
bens necessários para sua sobrevida, sociabilidade, razão e linguagem.
Ainda no mesmo capítulo, o autor conta como há a formação do “homem
inorgânico” que é sua cultura, humanidade, afirmando até que o ser homem é
algo adquirido com o tempo:
“Em suma, o homem não nasce
homem, forma-se homem, desenvolve
sua humanidade, apropriando-se dos
elementos culturais acumulados
socialmente e historicamente,
objetivando-se nesses elementos
culturais já existentes e nas criações e
inovações por ele desenvolvidas.”
O processo de assimilação da cultura e da educação será reforçada ao
longo desse primeiro capítulo. Esse processo de que o homem é como uma
folha em branco e vai sendo “preenchido” através da aquisição histórico-social,
ao longo de toda a vida. Essa ideia, que demonstra uma certa passividade do
indivíduo frente ao pensamento e, logo, a sua existência, sendo um mero
receptor de informações, pensamentos e ideias, coloca em xeque a célebre
frase, do filósofo e criador do pensamento cartesiano, René Descartes (1596-
1650), “Penso, logo Existo”. Descartes, acreditava que bastava o fato de ser
dotado da característica de pensar, inata e inerente, o homem já seria homem
completo e humano, guarnecido da sua existência. O que na época o filósofo
não contava é que existia uma superestrutura acima do indivíduo, que pensa
por ele e lhe dita os passos a serem dados pelo mesmo. Essa superestrutura
coincide com os diferentes contextos políticos, sociais e econômicos nos
diferentes tempos e espaços.
Não obstante, o autor ao postular, de forma categórica, a Pedagogia
Histórico-Crítica, contrapõem essa problemática da superestrutura que governa
o homem. Ao dizer que a educabilidade é um escape dessa questão:
“O processo educativo é determinado
dialeticamente pela infraestrutura e pela
superestrutura da formação social onde
ocorre.”
Contudo, isso nos leva a pensar que a educação estaria refém das
classes dominantes, de eventuais regimes totalitários e do sistema capitalista
como um todo. Afinal, como disse Louis Althusser na obra A ideologia e os
aparelhos ideológicos de Estado:
“A escola contribui para a reprodução
da sociedade capitalista ao transmitir,
através das matérias escolares, as
crenças que nos fazem vê-la como boa
e desejável.”
Entretanto, ao se valer da Pedagogia Histórico-Crítica, Geraldo nos
mostra que a educação, se valendo dessa pedagogia, proposta por Demerval
Saviani, deve tomar lado e defender os oprimidos quando injustiçados pela
sociedade:
“A pedagogia, como teoria e prática da
formação do homem contemporâneo,
deve posicionar-se quanto aos conflitos
e contradições sociais e quanto ao
direcionamento que as práticas
educativas dão para as finalidades e
formas no que diz respeito ao tipo de
homem e de sociedade que se quer
conscientemente construir.”
Dessa forma, a PHC tem grande relevância no atual sistema de ensino,
visando uma grande demanda de discentes, a pedagogia se preocupa com a
realidade de cada um e de seus mais diferentes contextos sociais. Tal prática,
de uma certa forma, faz um reparo histórico, visto que ao longo do tempo, nas
mais diversas sociedades, o ensino ele sempre foi elitizado e distante da
realidade dos estudantes.
“Cabe lembrar que, no início do século
XX, o caráter propedêutico e elitista do
ensino secundário tornava as disciplinas
escolares mais próximas das disciplinas
acadêmicas e científicas. A adoção, na
época de livros didáticos universitários
nas escolas secundárias pode ser
tomada como evidência da maior
proximidade entre as disciplinas
acadêmicas e escolares.”
(MARANDINO; SELLES; FERREIRA,
2009)
Atualmente, o mundo enfrenta a maior crise sanitária em 100 anos. A
pandemia da Covid-19, causada pelo novo coronavírus, abalou as estruturas
do mundo capitalista ao derrocar a economia das potências mundiais,
desestabilizar Governos, colapsar sistemas de saúde pelo mundo a fora.
Mesmo com um saldo de quase 70 milhões de infectados e quase um milhão e
meio de mortos, a pandemia também foi marcada por uma onda de fake news
e desinformação. Mais de um século separa a atual crise sanitária do novo
coronavírus da pandemia de gripe espanhola de 1918, a pandemia mais mortal
da história, com um número de mortos estimados entre 50 a 100 milhões. Lá
no começo do século XX, no âmbito de uma das maiores tragédias enfrentadas
pela humanidade, não faltou receitas de remédios “milagrosos” para conter a
‘espanhola’. Teve quinino, água tônica e há quem diga que a caipirinha foi
inventada para conter os sintomas da influenza, todos sem a menor chancela
da ciência e da medicina. Agora, em pleno ano de 2020, a falta de crédito na
ciência, sobretudo por líderes populistas, demagogos e autoritários, levaram a
politização da pandemia e ajudaram na disseminação do vírus. Donald Trump
dos EUA e Jair Bolsonaro do Brasil, lideraram esse movimento anti-ciência,
com cloroquina e ivermectina, além de se posicionarem contra o
distanciamento social, para conter o vírus, o saldo não foi de se surpreender,
os dois países acumulam os maiores números de vítimas da Covid-19 do
mundo, respectivamente. Nesse caso e em outros mais diversos, a ciência e o
crédito devido a ela salvam vidas.
Nessa perspectiva, Geraldo, em seu livro, Didática de Ciências Naturais
na perspectiva histórico-crítica, mais especificamente no capítulo II,
“Conhecimento científico e ensino de Ciências Naturais”, aborda que o ensino
de Ciências Naturais deve estar fundamentado nas especificidades de cada
área das ciências na sociedade atual. Ressalta a importância das teorias
científicas para as forças produtivas do homem, pois estas servem como
instrumento de produção e de reprodução da existência material humana, além
de ser instrumento ideológico na sociedade contemporânea. Além disso, ele
explicita que o conhecimento científico foi construído historicamente e deve ser
compreendido como parte dos resultados dos esforços humanos no processo
de produção social de sua existência. Para tanto, são necessárias as práticas
sociais educativas que medeiam o processo de apropriação do conteúdo
histórico sociocultural a ser assimilado pelas novas gerações.
Ao terminar o capítulo, Geraldo, de forma ingênua e utópica, cita as
sociedades à margem do sistema capitalista e, citando Vale (1998), diz que a
educação científica é uma válvula de escape para a autonomia dessas
sociedades. Sem dúvidas, a educação, sobretudo nas Ciências Naturais, é
libertadora. Contudo, essa discussão precisa ser aprofundada para que se
chegue na raiz da questão, o currículo. De acordo com Silva (2002), o currículo
é implementado nas escolas de forma controladora, sendo necessário uma
mudança na forma como o ensino está idealizado:
“O currículo na escola está baseado na
cultura dominante: ele se expressa na
linguagem dominante, ele é transmitido
através do código cultural dominante.
As crianças das classes dominantes
podem facilmente compreender esse
código, pois durante toda sua vida elas
estiveram imersas, o tempo todo, nesse
código. Esse código é natural para elas.
[...] Em contraste, para as crianças e
jovens das classes dominadas, esse
código é simplesmente indecifrável.
Eles não sabem do que se trata.”
Assim, o currículo pode ser reflexo dos grupos dominantes nos quais
estão inseridos. Verifica-se, também, que as práticas de ensino não são
resultado das decisões docentes, já que exige a atuação dos vários campos
existentes. O processo educativo está inserido na cultura, é por ser expressão
da cultura que modela as aprendizagens, sendo então o currículo um mediador
do que se intenciona e o que se constrói no aprendizado.
Dessa forma, para além do que Geraldo diz sobre que o ensino de
Ciências Naturais, bem como o conhecimento científico, deva ser socializado
“como processo e como produto”, com vistas à práxis social, é necessário
reestruturar os currículos, com base na teoria crítica, abordando conteúdos que
estejam interligados à realidade dos educandos, tais como a desigualdade
social, visando à transformação da sociedade, além de reconhecer que é pela
cultura que a escola transmite as experiências acumuladas socialmente aos
alunos. É necessário formar sujeitos conscientes das relações de dominação
ocorridas no contexto em que estão inseridos.
Já no capítulo III “O objeto de estudo e os elementos fundamentais da
Didática do ensino de Ciências Naturais”, o autor classifica a Didática em geral
e específica e argumenta que, com base em suas especificidades, as
atividades de ensino objetivam a apropriação-assimilação dos conhecimentos
sistematizados de forma crítica e significativa, as habilidades motoras e
intelectuais, bem como o desenvolvimento da autonomia intelectual dos alunos.
Logo adiante, Geraldo explicita a composição geral de uma escola e
elenca elementos fundamentais para o processo didático, que são observados
nas escolas. Bem, a composição explicitada diz mais do que poderia ser e
menos de como é na prática. É bastante contraditório pincelar uma realidade
da educação, sobretudo a educação pública brasileira, que, em sua maioria, o
conteúdo é defasado, o ensino é arcaico, com professores desmotivados e
desvalorizados, com uma aprendizagem capenga, os métodos de ensino e
aprendizagem sem a menor sintonia de tempo e espaço e os meios de
organização estrutural das escolas totalmente precários. Dessa forma, é
imprescindível que o professor, ao estudar esses elementos, adeque-os à sua
realidade e a de seus alunos e escola.
Ademais, o autor entra no tocante ao ensino das Ciências Naturais e
explana a importância da compreensão da natureza e das relações entre as
ciências, a tecnologia e a sociedade. Além disso, Geraldo relata que o ensino
de Ciências Naturais é relevante para a visão científica do mundo, da sua
criatividade, da sua autonomia intelectual e da sua preparação para o trabalho
e para o exercício de cidadania. Ainda, o autor, se valendo da teoria histórico-
cultural, faz uma abordagem de extrema relevância acerca do processo da
aprendizagem, ressaltando que esse dinamismo é resultado da assimilação-
apropriação dos conteúdos, pensamentos, bem como dos elementos que
constituem a humanidade, ou seja, a cultura.
Para respaldar seu posicionamento, ele afirma que o papel do professor é
fundamental nessa marcha da fixação do conteúdo da experiência humana,
entretanto, aqui cabe cautela, pois, entendendo de uma forma errada, o
processo de ensino-aprendizagem entra em um ciclo vicioso, com a figura do
docente superestimada centralizada no processo, tirando o protagonismo do
aluno, como Paulo Freire já criticava o que chamou de “Educação bancária”,
onde o aluno nada sabe e o professor é detentor de todo o conhecimento e que
irá ‘depositar’ o conteúdo nos alunos, fazendo um processo vertical entre o
educador e o educando.
Além disso, é nesse capítulo que Geraldo apresenta, de forma integral, a
proposta de Demerval Saviani e que rege o seu livro. De forma, clara e
objetiva, o autor elenca os “passos” da Pedagogia Histórico-Crítica (PHC). Vale
ressaltar, que Geraldo foi feliz ao explicitar os passos da PHC e de forma
sequencial mostrar como seria essa didática no ensino evolutivo, de saúde, no
enfoque ambiental etc. Dessa maneira, o autor oferece um norte para docentes
da área de Ciências Naturais, sobretudo Biologia, de como aplicar essa
pedagogia em sala de aula. Terminando o capítulo, Geraldo fala sobre o
método e o define como “o procedimento e os meios para se atingir os
objetivos”. Para isso, o homem deverá planejar e sistematizar sua ação para
contemplar determinado objetivo. Daí a importância dos planejamentos de aula.
No capítulo IV, e último, “A aula como unidade estrutural e articulada do
processo de ensino” é discutida a aula como forma organizativa básica do
ensino, na qual o professor utiliza métodos e estabelece objetivos para que
todos os alunos dominem os conteúdos e desenvolvam habilidades. Para
ilustrar, tomemos a aula como uma célula. A célula é a unidade básica da vida,
responsável pelo bom funcionamento do organismo como um todo, assim
como a célula, a aula tem essa função estrutural e organizativa e é responsável
pelo bom funcionamento de todo o processo de ensino-aprendizagem. Nesse
sentido, é um processo de mediação, no qual os elementos do processo
educativo, bem como a multidimensionalidade do processo didático
manifestam-se e estruturam-se em seus diversos aspectos.
Em relação ao plano de aula, o autor apresenta um modelo desenvolvido
de acordo com a proposta metodológica apresentada por Saviani e os
princípios metodológicos da PHC expostos anteriormente. De um modo geral, o
plano de aula deverá conter: tema, objetivos; conteúdos; técnicas didáticas;
introdução composta pela problematização inicial e contextualização;
desenvolvimento composto pela instrumentalização, análise, síntese;
conclusão; avaliação; recursos; cronograma e bibliografia.
Ao escrever a obra Didática de Ciências Naturais na perspectiva histórico-
crítica, Geraldo se valeu de teorias de outros autores que discutiam as
problemáticas relações entre a Ciência e a disseminação do conhecimento, ora
acumulado pelo ser humano, para a aprendizagem escolar. Para o autor, a
formulação de uma proposta para o ensino de ciências naturais deve se
ancorar no materialismo histórico dialético. Assim, Geraldo segue a Pedagogia
Histórico-Crítica (PHC) de Demerval Saviani, autor muito citado ao longo da
obra.
Nessa perspectiva, a autor instiga os professores de Ciências Naturais,
sobretudo os iniciantes, para adotar essa pedagogia em sala de aula que visa a
prática social e sua transformação. Com a crescente demanda social e a
ascensão dos novos agentes, se faz necessário um ensino utilitário, que
respeite os conhecimentos prévios dos estudantes e que transforme suas
realidades. Dessa maneira, a leitura da obra resenhada é de fundamental
relevância para adoção dessas práticas pedagógicas.
REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE, C. ‘Fake news’ circularam na imprensa durante surto de
gripe espanhola no Rio em 1918. 2020. Disponível em:
https://portal.fiocruz.br/noticia/fake-news-circularam-na-imprensa-durante-surto-
de-gripe-espanhola-no-rio-em-1918. Acesso em: 17 dez. 2020.
ALTHUSSER, L. Aparelhos Ideológicos do Estado: nota sobre aparelhos
ideológicos do Estado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985.
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 50. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011.
GERALDO, Antonio Carlos Hidalgo. Didática de ciências naturais na
perspectiva histórico-crítica. Campinas, São Paulo: Autores Associados,
2009.
MARANDINO, M.; SELLES, S. E.; FERREIRA, M. S. Ensino de Biologia:
histórias e práticas em diferentes espaços educativos. São Paulo: Cortez,
2009. 215 p.
MILLIKAN, B. Trump e Bolsonaro: semelhanças alarmantes frente à
pandemia. semelhanças alarmantes frente à pandemia. 2020. Disponível em:
https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-08-27/trump-e-bolsonaro-semelhancas
alarmantes-frente-a-pandemia.html. Acesso em: 17 dez. 2020.
SILVA, T. T. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do
currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. 156 p.

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