Você está na página 1de 49
FE a ners Piratas colegao Teatro Manuel Antonio Pina Os Piratas-Teatro Ese, de repente, te visses a bordo de um navio\ de piratas? Nao fazes dela de como foste 1s para, s6 sabes que tens de salvar a tua mae, mas 0 Capitao toma-te por um dos seus grametes...No meio do desespero, acordas e pensas que tudo nao passou de ‘um terrivel pesadelo. Mas ogo te apercebes que ainda ‘wazes na cabeca o lengo vermelho de pirata...Terdisido sonho ou realidade? rier Cac aan rial A colecao Educagio Literaria retine obras de referéncia da literatura portuguesa e universal indicadas pelas Metas Curriculares de Portugués cepelo Plano Nacional de Leitura. precomme €11,00 | aaa pee — Manuel Antonio Pina eee Peete NV Te Pina nasceu em 1943, no: Beret heat no Porto, Licenciado em Direito pela Meeeome estat Geeteee ote publicidade. Abragou, depois a earreira Cem eae anaes Preece en rrricad Pree oie rere ee? juventude e de textos poéticas, entre beeen tar creer criatividade. Brincando comas palavras Peete en eres Teer are ea aera Serene ne er erect Com uma vasta e diveisificada obra, ee ene eae crear Or mr arene (1984), 0 Tépl (1986), foi reconhecido e premiado Rte ey Conor ensue eo STENT aoe) Os Piratas Teatro Os Piratas Teatro Os Piratas Aor: Manat Annio ina = Terao: Cia Manso _ Manuel Anténio Pina PU aitera epost: spat in niin mre A presente obra constitui a adaptagao para teatro da novela Os Piratas, de Manuel Anténio Pina. ‘A adaptagao foi feita pelo proprio Autor, no quadro do uma residéncia na Companhia Pé de Vento, do Porto, realizadia com o apoio da Fundagao Calouste Gulbenkian. Cen: Acena 6 desnivelada, © nivel inferior é constituido pelo quarto de uma casa pobre: uma cama de ferro, uma cémoda; alguns li- ras e cadernos sobre a cémoda; uma cadetra, Uma porta a direita, 0 mesmo nivel serve ainda de sala, apés mudanca de aderegos: a cémoda passa a ter um vaso de flores so- bbre um ‘chaperon" de renda; a cama é substituida por uma mesa rodeada por trés cadeiras. Brevesescadas dao para o nivel superior, 0 s6t@o, um ‘metro acima, ‘As escadas constituem outro ‘espaco” auténomo.em- ‘bora escasso: & um “espaco entre realidades’ um lugar de passagem. No sétao amontoa-se todo o tipo de velharias: pithas de caixas, alguns brinquedos, pneus, uma maquina de costura, um manequim, a inevitdvel arca. Paus altos e cordlas, uma ou duas pipas. Bancos e cadetras velhas. Enure os dois niveis, uma janela alta para a rua (0 chao do sétao encontra-se aproximadamente ao nivel do tergo inferior da janela, pelo que esta pertence tanto 40 “espago do quarto/sala” como ao “espace do s6tdo"). A janela tem largas cortinas brancas soltas Os espagos relatives do quarto/sala e do sétao distri- buem-se aproximadamente no sentido da diagonal do paleo, de modo que um e outro possam dispor de toda a profundidade de cena. Personagens Manuel ¢ Ana, adolescentes ambos; Capitio dos pi- ratas (voz e vulto); Mae de Manuel Cenal Sérao, Meio da tarde Dia de tempestade. A chuva bate furiosamente na ja- nla, 0 vento agita as cortinas. O ruido do mar embravecido ao fundo, (O gemido da ronca. Quando abre o pano, Manuel e Ana estéo, de pé, em silencio, olhando pela janela. Agua caindo pelas vidra- ‘as, 0 “espaco do quarto” esta invisivel (negro). ANA (De costas, diante da janela) — Que tempestade! Se algum barco sai hoje ao mat, afunda-se! MANUEL (Zambém de costas) — 0s barcos hoje nao saem. O mar esta muito bra- ANA — Omar e aterm... MANUEL — £0 céu, € 0 céu também... Vem af uma trovoa- da. ANA, — Uma trovoada? Deus nos livre! Nao dés azar! MANUEL (Volta-se para Ana, erguendo os bracos ameacadoramente) = Breresrrummmt ANA (Recua, assustadia) — Nao sojas palerma! Assustaste-me, MANUEL 8 (Rindo) —Nao me digas que tens medo de trovoadas. ANA, — Etu nao tens?... Palerma, MANUEL (Dé-tne a mao) — Pronto, Ana, desculpal (Ainda a rir:) Eu no tro- vejo mais. Um trovao ld fora. ‘Ana e Manuel estacam, assustados. MANUEL Eungo te dizia’... ‘Ana puxa Manuel para o centro da cena. ANA —Sai da janela! Pode cair algum raio! 10 ‘MANUEL Os raios caem nom: — Ora, um rai Ana senta-se num banco. ‘Manuel vai sentar-se numa cadeira. A cadeira tem uma perna partida e Manuel quase se desequilibra. ANA, (Rindo alto) — Ah, ah! Os raios.a cair no mare tua cair no chao. Manuel muda de cadeira e vem sentar-se ao lado de Ana, MANUEL (Woltando-se para a janela) —Lembras-te do nauftégio?.. Foi num dia de tem- pestade assim. ANA —Nio falesnisso..E triste. (Otha emt volta, proc rando mudar de assunto:) As coisas que a tua mae aqui ‘uardal (Pega numa boneca semidesfeita:) Nao me di- ‘gas que tu também brincavas com bonecas! Outro trovao. Ana encothe-se de medo. MANUEL (Sem tirar os othos da janela) — Foi no dia em que fomos despedir-nos do meu pai... Chovia e trovejava... Como agora, Ana levanta-se e anda de um lado para o outro, mi- rando as coisas espalhadas no sétao, até que se detém diante da area. Lé fora, um edo ladra furiosamente. MANUEL —Achas que a América é muito longe? ANA (Sem olhar) — Bu set ld! £ do outro lado do mar, deve ser longe. MANUEL — 0 meu pai nfio escreve hé trés semanas! A minha ‘mae nao fala, mas eu set que esté aflitissima. A wiltima ver que escreveu disse que ia trabalhar para outra {brica, A minha mae tem medo que the tenha acon- tecido alguma coisa. (Pausa:) Lembras-te do senhor Albino? ANA MANUEL (Aponta para a janela) — Morava na casa ali defronte, mesmo do outro Jado da rua. Foi para a América ea familia nunca mais souibe dele. ANA — Ora... Um dia, quando ninguém estiver & espera, aparece... (Pae-se de joelhos diante da arca, ¢ tenta abri-la:) 0 que 6 que haverd aqui dentro? ‘Manuel fica um momento em siléncio, othando para a Janela, Finalmente levanta-se e aproxima-se de Ana. MANUEL — Devem ser roupas e coisas assim. A minha mae tem a mania de guardar tudo, ANA (Cheia de curiosidade) — Abrimo-a? E se c4 estivesse um tesouro?. | MANUEL (Baixando-se ao lado de Ana) — Um tesouro?! Em minha casa?... $6 se for uma te- soura... ANA — Abrimo-a, abrimo-la? MANUEL —Esté bem, abre-se.. Debrucam-se os dois sobre a arca tentando, em wo, abri-ta. ANA, —Esté fechada a chave. MANUEL — Qual chave qual carapucal Esta é perral (Afasta- -se, @ procura de qualquer coisa com que abrir a arca. Volta com uma tesoura ferrugenta:) Olha, enconttei a tal tesoura... Agora s6 falta o tesour Esforcam-se ambos por abrir a arca com a tesoura. ‘Manuel vai buscar o banco e senta-se, tentando for- ‘gar a arca. Ana esté de joethos a seu lado. 0 vento continua a soprar Ié fora e a chuva a cair De vezem quando, ao longe, soa a ronca. Depois de vérias tentativas, Manuel e Ana conse- guem finalmente abrir a arca. 16 ANA (Inclinada para dentro da arca) — Ena, tanta tralhat MANUEL — Bundo te dizia? Ana puxa um velho vestide preto de dentro da arca. ANA — Olha! Parece a batina do Padre Timéteo! MANUEL (Tira-the 0 vestido da mao, rindo) — Di cé... (Meteo vestido pela cabera e poe as méos, imitando 0 padre:) Caros irmaos... Rezai pelos vossos pecados... Gem pai-nossos e cem ave-marias... Quem da mais, quem dé mais? Ana riesalta @ volta de Manuel. De repente, Manuel cala-se e fica quieto ¢ muito sé- rio. Ana deixa também de ri, e para diante dele a olhd- -lo, sem compreender. = | —oquea tant | MANUEL (De cabeca baixa e bragos caidos ao longo do corpo) —Nada, lembrei-me do nausrégio... ANA — Do naufrégio? Outra vez? Oh, Manuel... — 0 Padre Timéteo, na catequese, pediu-nos que | | wo ete! 6 ANA — Sei li jf foi ha tanto tempo. MANUEL — Rezimos um tergo intelro. © Padre Timéteo dizia que, se rezassemos todos juntos, Nossa Senhora salva- ‘va os néufragos. Nossa Senhora ouvia as criangas, por- que as criangas Ihe faziam lembrar o filho, que morreu. na cruz. (Pausa:) Lembras-te do nome do navio? Era 0 “Dover... Morreram todos... Nossa Senhora ndo nos ouviu..,. Até acendemos uma vela, mas despedacaram- -se todos nas rochas... ‘Ana sentowse de nove, Regularmente, ao longe, soa a ronca, ANA Nao fales nisso, 6 muito triste, ‘Manuel senta-se ao lado de Ana. ‘MANUI — Bu fui ld, & Ponta de Santo Anténio... Fiquei no cimo da falésia a ver. O navio estava deitado de lado as ondas passavam-Ihe por cima, varrendo tudo. Esta- ‘va tio perto! Quase se Ihe podia tocar... Viam-se os ma- rinheiros no meio do nevoeiro, correndo de um lado para o outro, com os bragos no ar, a pedir ajuda... Mas ‘0s bombeiros nao conseguiram atirar 0s cabos, e mor- reram todos. O navio afundou-se, s6 ficou a proa de fora — Buse. MANUEL — Ainda lé esté, meio desfeito... Quando 0 vejo ain- da hoje me arrepio todo... ‘Manuel levanta-se e despe 0 vestido, atirando-o para MANUEL — 86 depois 6 que soubemos que tinham todos morrido, Logo nesse dia deu & costa o corpo de um ho- ‘mem, despedacado. (Pausa:) A minha mae diz. que 0 19 mar atira 0s néufragos ao terceiro dia, ao quinto dia e a0 nono dia... (Pausa:) O tergo a Nossa Senhora nao valeu de nada, ‘Manuel fica em silencio, MANUEL — Sabias que, antigamente, as pessoas acendiam fogueiras nos dias de tempestade para enganar os na~ vios e os fazerem naufragar? Depois apanhavam na praia as cargas e as riquezas que 0s navios levavam... _Até vinha gente do outro lado da ila! ANA, — Bu sei, 6 horrivel! Nao fales agora nisso. Continua a chover. A ronca, ao longe, ndo para de gemer. ANA, — Nao fales mais nisso... Ana aproxima-se de novo da arca. Pega na mao de Manuel e puxa por ele ANA — Anda! Vamos procurar coisas na arca. Ana recomega a mexer no fundo da arca. ‘Manuel esté de pé, a seu lado, Ana tira um chapéue coloca-o na cabega de Manuel Depois tira um velho xaile de renda branca e poe-no na sua prépria cabeca. ANA —Fica-me bem, fica-me bem? (Ollia em volta:) Nao hhé por aqui um espetho? MANUEL (Sorrindo) —Pareces uma notva... ‘Manuel acaba por debrucar-se também sobre arca, Ana continua a vasculhar e ergue-se com um lenco vermetho na mao. ANA —Bisto? 0 que é isto? a [J] = Mamuetontretecesubtamente MANUEL (Pegando no lengo) —Olengo vermelho! ANA, (Ao lado de Manuel, cheta de curiosidade) —0 que 6, 0 que 6? Parece um lengo de pirata. MANUEL (Num murmuirio, ftando paradamente o lenco) —Eé.. | ANA (neréduta) —£um lenco de pirata? Oh, Manuel, nao mintas... Diz-me, diz-me... MANUEL —Eumlengo de pirata, j disse! ‘Manuel fta o lengo. Ana tira-tho da mao e observa-o, curiosa, a ANA — Nao acredito. Nao existem piratas! ‘MANUEL — Existem, existem! Se eu te contasse... Manuel torna a pegar no lengo. ANA, MANUEL — Nao sei se existem ou nao existem... B uma hist6- ria to estranha... As vezes acho que foi um sonho, ou- tras vezes... Nao sei... Fol no dia do naulragio... Nunca contei isto @ ninguém... Até a mim me custa a acre- ditar.. —Conta, conta! MANUEL — Nao... Nao sei... Tu nao acreditavas, Ana, —Acredito,juro! ‘Manuel faz uma pausa. O vento atira furiosamente a chuva contra a janela, MANUEL (Virando-se para Ana) =F depois nao te ris de mim? 2% ANA (Faz um gesto, jurando com a mao sobre a garganta) —Nao, juro! Conta, conta, Ana forca Manuel e sentar-se sobre a arca e sentd a seu lado, dando-the 0 braga. Manuel pousa 0 lenco vermelho nos joethos e olka 0 vazio. ANA — Conta, conta! MANUEL — Nao sei se foi um sonho ou nao... Foi no dia do naufrégio do “Dover’... Nessa noite eu nao conseguia dormir... Nao me safam da cabega os gritos dos mari- nheiros a pedir ajuda... Chovia muito ¢ havia trovoa- da, As luzes apagam’se lentamente. O vento, a chuva, a ronca, Um relémpago atravessa o céu Cena2 Acendemt-se lentamente as lzes no ‘espago do quarto” Noite. Penumbra, sombras A chuva eo ruido do mar, ao longe, owvem-se agora distantemente. ‘Manuel estd deltado na cama, em pljama, de othos abertos e com as maos sob a cabeca. Silencio. O vento agita levemente as cortinas da janela, Do escuro, ouve-se uma voz (vinda das sombras, do “espaco das escadas"). voz (Num murmtirio) —Manuel 28 Manuel, sobressaltado, soergue-se na cama, othando em volta. Depois acaba por voltar a dettar-se. voz (Do escuro) Manuel... ‘Manuel soergue-se de novo, MANUEL (Assustado) Quem é2... Quem esté af? Silencio. ‘Manuel senta-se na cama, esfiegando os olhos e pers- crutando a escuridao do quarto. Levanta-se e vai a ja rela, othando para fora, Ruido da chuva na janela, ‘Manuel senta-se de novo na cama. voz —Manuel... Anda, vem! MANUEI. 20 (Respondendo para o escuro) — Quem? Eu? voz — Sim, tu... Vem depressa.... Esti a fazer-se muito tarde. MANUEL (Othando em volta) —Nao compreendo... Devo estar a sonhar.. voz Nao, nao é um sonho...(Insistindo:) Vem, anda... Depress. MANUEL (De novo virado para o escuro das escadas) —Mas... Eu. ‘Uma méo invisivel pega na mao de Manuel e puxa-o. Aos poucos, Manuel deixa-se levar, oferecendo ape- nas uma ténue resisténcia, mud Seymn mn prec Bes onto zero ren NED DP Te Rvirre ne meer ne Rn tet eT MANUEL EN ee tementent st MANUEL (Sem compreender) — Mas... Eu... Estou acordado ou estou a dormir? voz — Estés acordado, meu tolo! Vem! (A mao puxa por Manuel com mais firmeza:) Depressa. MANUEL (afito) — Diz-me o que é que aconteceu & minha mae! Ao longe, a ronca eo mar. ‘MANUEL (Mais alto, detendo-se mais uma vez) 0 que aconteceu & minha mae? voz — um barco piratat Vao assaltar a ha e levar as mulheres! Tens que salvar a tua mae! (A mao forna a puxar por Manuel:) Vern depressal MANUEL 8 (Muito assustado) —Piratas? Onde? voz — Aqui... Esto agora a ancorar... Anda depressa, vem! Enquanto Manuel é arrastado para o escuro, o mare @ronca, como a tempestade, sao cada vez mais nitidos. ‘Manuel liberta-se, por momentos, da mio que o levae tenta pegar na sua capa, que est nas costas da cadletra. Acadeira cai ea capa também. Manuel, assustado, deita alguns livros ao cho, Acaba por regressar apressadamente em diregao és escadas (a0 escuro). MANUEL (Num grito abafado) iratas! A minha mae! ‘Manuel mergulha no escuro, agarrando-se as escadas. 0 quarto fica lentamente na obscuridade, enquanto se acendem luzes translicidas sobre o “espaco das escadas Manuel, muito assustado, sobe as escadas, inclinado, com medo de ser descoberto, Espreita para cima, Cena3 Tlumina-se 0 nivel do sétao, junto @ janela. As trathas do sétdo tornaram-se cenograficamente no tombadilho de um navio pirata: um gradeamento de madeira; paus altos/mastros; cordame; pipas; uma caixa de pé/bitdcuto da bissola; as cortinas da janela batidas pelo vento/velas enfiunadas.. ‘Ao fundo deste espaco, num éeran, sombras de pira- tas: nltos de perfile de frente eem atitudes e movimen- tos dispersos, sombras de cordame; alguns piratas subindo; outros com os bragos no ar, brandindo espa- as; hipétese dea “tripulagao" ser constituida por somi- bras de bonecos atrés da cena; 0 vulto do capitao, de grande chapéu largo e com uma perna de pats, uma es- pada numa mao e um dculo noutra, no entanto, movi- ‘mentar-se-é e interviré na agao. 28 Barut infernal de vacese de passscorrendodeum J lado para outro. reas sempre o ruid do mar e da tempestade, agora | to ato e mut préximo. eg | ‘VULTO DO CAPITAO | (Dando ordens & tripulacao, aos berros) — Baixem as velas, suas bestas! Olhem-me as ver- _gas, que 0 vento esta a dar de popa! Mexam-se ou atiro- -vos a todos aos tubardes! © Capitao corre furioso, coxeando, de um lado ao outro do tombadilho, Manuel estd escondido ao cimo do “espago das escadas’ entre cordas e caivas MANUEL —Meu Deus! Os piratas! caPITAO (Sempre aos berros) —Mexam essas pernas, suas bestas, ou enforco um! Depressa antes que nos descubram! Baixem as velas! Gritaria e correrias dos pivatas. Manuel afunda-se ainda mais no seu esconderijo. Subitamente, 0 Capitao dé com ele eapontasthe aes- pada. cAPITAO (Virado ameacadoramente para o lugar das escadas, onde Manuel se esconde) —Etuai, 6 grumete! O que é que estas af a fazer? Mexe-te também, ou vais para os tubardes! Vai-me buscar uma garrafa! Mexe-te! Descoberto, Manuel poe-se de pé, transido de medo. CAPITA (Cada vez mais furioso) — Nao ouviste, grumete dum raio? Vai-me buscar outra garrafa! Mexe-te! ‘Manuel, como um autémato, cheto de medo, obede- ce, enquanto 0 Capita continua a berrar e a dar ordens 4 tripulagao. CAPITAO, — Preparar para a abordagem! Mexam-se, seus ani- mais! Manuel, aterrorizado, traz uma garrafa ao Capltao, 39 Jficando depois paralisado diante dele. © Capitao emborca ruidosamente a garrafe. CAPITAO (Voltando-se de novo para Manuel) =O que € que estis a fazer ai parado? Nunca me viste? Vai apagar os lampioes! (Apontando com a espa- da para 0 chao:) E apanha o raio do lengo! Nao quero ver ninguém sem o lengo na cabegal Manuel baixa-se e apanha o lengo vermetho do chao, Ata-o a volta da cabega e regressa, correndo, ao seu esconderijo. 0 Capitao otha com um iongo deulo para terra, cAPrTio (Dé de repente um salto) —Terra, terra! Tudo a estibordo, tudo a estibordo! Grande algazarra no navio. Os piratas gritam e cor- vem. CAPITAO a | | —Botes & agua, botes & 4gual Ao assalto! Queimem. iI tudo! Apanhem as mulheres, apanhem as mulheres! ‘Manuel, aflitssimo, salta do esconderija. Otha por um momento os piratas e 0 Capitdo aos saltose aos gri- ts, € corre para as escadas. Tropega no cordame e ca. | Levanta se de novo e precipita-se pelas escadas. MANUEL Meu Deus! A minha mae! Tenho que salvar aminhamael Apagam-se lentamenie as luzes. = Cena4 “Espaco do quarto” na penumbra como na Cena 2. O resto do pateo estd invistuel Continua a ouvir-se a gritarta dos piratas e o baru- Tho das espadas e da tempestade no mar. CAPITAO — Apanhem-nas! Apanhem-nas! ‘Manuel surge, descendo em correria as escadas. Traz ainda o leno vermelho atado & cabega, MANUEL (Corre precipitadamente para aporta do quarto gritando) —Mae, mae! Foge! ee 14 Manueltenta abrir porta do quarto, mas nto con- MANUEL ‘s segue. —E.um sonho, tem que ser um sonho! Tenho que am ilcsperadiemaa a 08 putas frhador na acordes tenho que acordr! Se nto acordo ele leva porta, minha mie! MANUEL Manuel senta-se na cama, sacudindo-e desespera CAPITAO ‘MANUEL || (Voz vinda do sétao) — Tenho que acordar, tem que ser um sonho, tem. | —Para terra! Remem, remem, suas bestas! | que ser um sonho! | Ruido de objetos que tombam do lado de lé da porta, Abre-se entao a porta do quarto ea Mae, assustada, dentro da casa, Passos em correria e gritaria abafada entra eacendea tus, MANUEL, 0 quarto ilumina-se. Desaparece subitamente o ba- rulho dos piratas. Me nto e 0 mar s6 se ou — Meu Deus! Ié esto cé em casa! Estamos perdi as a esmo.o vento e.0 mar s6 se ouvemn ‘agora muito ao tonge. dos! f ‘Manuel atira-se para cima da cama, tapando os ow - Pe 1a da cama, tapandc | MAE uuidos com as maos. (Correndo para a cama) —0 que foi, 0 que foi? (Abragando Manuel) Tiveste uum pesadelo, nao foi? 46 ‘Manuel abraca com forga a Mae. ‘MANUEL (Olhando em volta e escutando, ainda assustado) — Foi um pesadelo, mae, deve ter sido um pesade- Jo... MAE (Abragada a Manuel) — Bu também tive pesadelos esta noite. Um pesa- defo horrivel, com homens com espadas a entrarem pela casa dentro! (Aperta Manuel com mais forga:) Deve ter sido por causa do naufrégio, icémos os dois muito impressionados... MANUEL —Deve ter sido, mae... 40 MAE —E por causa do temporal... Havias de ver a casa! Quando acordei com os teus gritos, a porta estava aberta e 0 bengaleiro no chao... Parece que andou 0 Diabo ca em casa! Deve ter sido o vento... O corredor esté cheio de areia e tudo fora do sitio... (Afasta docemente ‘Manuel de s:) Etu? (Observando-o:) Estis todo molha- do... (Da de repente conta do lengo que Manuel tem ainda atado 4 volta da cabeca:) F que ¢ isso que tens, na cabeca?... (Rindo:) Oh, Manuel, que engracado que estés! Pareces um pirata... Onde é que arranjaste isso? MANUEL —Depois conto-te, mae, depois conto-te, ‘A Mae tira o lengo da cabeca de Manuel epousa-o na cama. Depois forca-o ternamente a deitar-se MAE — Va, dorme... Vira-te para o outra lado e dorme, que jé é muito tarde... (Aconchegando-o:) Amanha nao vais & escola, eu vou falar com o st, professor e pego- -Ihe para te mandar os deveres de casa por um colega. ‘Manuel deita-se na cama e a Mae aconchega- -Ihe os cobertores. MAE — Dorme... Eu também vou deitar-me, que estou muito cansada... (Pausa:) Sabes que a esta hora, na América, esté a comecar a anoitecer? O teu pai tam- bém deve estaragora a deitar-se... Vamos dormir como ‘se estivéssemos todos juntos em casa, est bem? MANUEL — Bstd bem, mae... ‘A Mae belja Manuel e afasta-se. MAE —Até amanhé, se Deus quiser. MANUEL Aw amanha, mie. A Mae fecha a luz do quarto esa. 0 quarto fica de novo na penumbra Manuel tapa a cabeca com os cobertores. As luzes de cena apagam-se lentamente. 14 fora, a tempestade amainow. Cenas Tlumina-se 0 "espaco do sétao" como na Cena 1. mesmo cendirio da Cena 1. ‘Manuel e Ana estao sentados sobre a arca. [Nota do Autor: “continuacdo" da Gena I; a cena recomeca, por §ss0, com ambos na posigao em que se encontravam no final desta.) MANUEL —Nao acreditas, pois nao? ANA (Com a cabeca baixa e as més entre os joethos) —Acredito, pols... ‘Manuel poe-se de pé. Bi ec = ‘MANUEL — Foi tudo ha tanto tempo... Deve ter sido a minha mie quem guardou o lengo na arca, Manuel pega no lenco efita-o. Ana guarda silencio por um momento, Depois levan a 0s olhos para Manuel, ANA —Mas, se foi um sonho, como é que tu apareceste com olenco na cabega? MANUEL B isso... Nao sei, ndo consigo compreender. (Pausa. Mudando de tom:) Eu sabia que nao ias acredi- tar Ana levanta-se e mete o brago a Manuel. ANA —Acredito, juro-te, Mas... E tudo tao estranho. ‘MANUEL 5 — Nunea contes & minha mae. Eu nao the contel nada. ANA — Juro que nao conto, & um segredo nosso, no conto nada ninguém. ‘Ana fita o lengo na mao de Manuel, Depois senta-se de novo na arca, ANA — Foi assim que nés nos conhecemos, lembras-te? MANUEL ~ Assim como? ANA — Por causa do naufrigio do "Dover" MANUEL — Ah... Mas isso foi depois... Foi quando tu vieste para cé. 5 Ana torna a levantarse e aproxima-se da janela. Manuel segue-a. A chuva ¢ 0 vento amainaram definitivamente, Distante, apenas se ouve ainda, de vez em quando, a ANA — Nao, estou 6 a pensar, MANUEL —Apensar em qué? ANA —Apensar em tudo... ‘MANUEL —Bm tudo o qué? 56 ANA —Em tudo... As luzes extinguem-se, Aas poucos, comega a owvir-se um som de sinos ao Tonge (“raccord” para a cena seguinte). Cena6 “Espaco da sala? Noite. Um pequeno pinhetro de Natal a um canto. ‘Mesa posta para trés pessoas. Entra @ Mae de Manuel, trazendo uma travessa na MAE (Chamando para fora) — Manuel! A Mae coloca a travessa na mesa e volta a chamar. MAE — Manuel! A Mae vem é porta e chama de novo. se MAE —Manuel, a cefa jé est na mesa, Vern. A Mae regressa para junto da mesa e Manuel entra. [Nota do Autor: Manuel vestido diferentemente, mes- ‘mo que pouco, da Cena 1, sugerindo que. presente cena decorre noutro “tempo! num passado narrado,} MAE (Woltando-se para Manuel) Anda, senta-te. A comida esté a arrefecer. ‘Manuel e a Mae sentam-se é mesa e comegam a co- mer. MAE — Pus também um prato e um talher para o teu pai £ Natal, quem sabe se ele nao aparece sem nés espe- rarmos? Gosta tanto de fazer surpresas... Comem os dois em siléncio. — Sabes que chegaram as familias dos marinheiros do navio afundado? Coltados... © mar jé atirou mais ttés corpos a praia... (Repara no siléncio de Manuel:) Desculpa, nao devia falar de coisas tistes... Amanha é Dia de Natal, ndo devia estar a falar destas coisas.. (Pausa, Mudando de assunto:) Queres que te dé jé.atua prenda? ‘MANUEL Nao, mae. $6 & meia-noite. 60 MAE —Acho que vais gostar... F uma coisa de vestr.. MANUEL —Nio digas, mae, néo digas! $6 meia-n MAE — Pronto, eu nao digo nada, A Mae levanta-se ¢ abre uma gaveta da cémoda, ti- rando um prato com bolas e colocando-o sobre a mesa, MAE —Fizbiscoitos de limao., A Mae torna a sentar-se, MANUEL — 0 Padre Timéteo contou-nos que no navi ha ‘um rapaz. O jornal diz que se chamava Rober... Tinha 10 anos... Vinha no bote que 0 navio langou logo que encalhou e que se partiu contra os rachedos... Mas ja apareceram os corpos todos do bote, ¢ o dele nib... MAE —Eusei. A mae dele ¢ uma senhora inglesa, uma no. bre. Também chegou ontem, com as outras familia. Ela e a noiva dele, uma menina de 9 anos, chamada Ana... Vi as duas na missa por alma dos néufragos. Coitada! Perder assim um filho... Tao novo... (Pausa:) ‘Tinha a tua dade... A Mae levanta-se outra vez e traz, de cima da cémo- da, um cesto com algumas pecas de fruta, Tira o prato da frente de Manuel e poe-the um de sobremesa. MAE — Come uma laranja... Queres que a descasque? F, depots, come os biscoitos.. (Chega-the também 0 rato dos biscoitos:) Ficaram-me muito bons. ‘Manuel roda, distratdo, a laranja na mao. MANUEL — Eu também as i... Andavam as duas a passear na praia, a olhar para o mat, MAE —Ela 6 muito bonita, nao é? a MANUEL —Quem?... MAE ~ — A menina. E to branca e tao bonital (Pausa, ‘A Mae tira @ laranja das maos de Manuel e comeca a descascar-Iha:) Dizem que um mago disse & senhora Inglesa que ofilho einda est vivo, que se salvoua nade... Ela julga que ele pode estar porai, em qualquer sitio da costa, ou em algum ilhéu abandonado... (Suspirando:) Coitadinha... (Pausa. Mudiando de tom:) Mas nao fale- mos mais disso... MANUEL — 0 Padre Timéteo contou-nos também que en- contraram um caixote na praia com uma cruz lé den- to, Ble pensa que aquilo quer €um designio qualquer de Deus... alguma coisa, que MAE (Entregando a laranja descascada a Manuel) Pram sad toe lacs 08 cues Ean | Toma, comealarnja Edepasvalearanjerque dag 2 pouco siohors defrmos para ania da meine, 6 MANUEL —Achas que ela também vai a missa da meta-noite? MAE —Quem? MANUEL —Amenina, A Mae levanta-se e comeca a tirar a mesa. (tristemente) —Afinal o teu pai nao veto. Manuel levanta-se também. ‘MANUEL — Achas que elas irdo & missa? MAE —Nio sei. Blas estao as duas tao cansadas, coitat has... Ea senhora inglesa parece tio doente.. Manuel faz mengao de ajudar a Maea tirar a mesa, 65 MAI — Nao, deixa, eu faco isso. Vai-te arranjar que jé é tarde. Veste a capa, que esti fio, A Mae forga docemente Manuel em diregao a porta, ‘Manuel dirige-se para a porta. A Mae vai atrds dele MAE —Tomna, leva um biscoito... Manuel sai. A Mae fica sozinha, em siléncio, irando a mesa. Poe a cesta da fruta e 0 prato dos bolos em cima da comoda. As luzes extinguem-se lentamente, Cena7 “Bspaco do sétao? Dia. Manuel esté & janela, de costas para 0 ptblico, othando pensativo para a rua. Chove suavemente, MAE (Em voz off) —Manuel! Surge a Mée, vinda das escadas, de avental. MAE — Que estis a fazer? Jé acabaste os deveres? (Apro- xima-se de Manuel:) Nao estejas a apanhar frio, que ests constipado! (Pde-the a mao na testa:) Estis cheio de febre, amanha é melhor nao ires & escola, A Mae pega na mao de Manuel e puxa-o em direcao fs escadas. MAE ~ Nao gosto que te ponhas para aqui s ‘Anda, vou fazer-te o lanche... Pode ser que a Ana apa- Ela ea senhora gostaram da rega e lancham os doi marmelada que Ihes mandei? MANUEL —Gostaram... Principiam ambos a descer as escadas. MAE — Amanha fago mais e tomas a levar-Iha... [Nota do Autor: cena de passagem: tem por objetivo su- sgerir uma breve passagem de tempo e dura o necessévio para a mudanca do cenério da sala para 0 quarto. Ma- uel est vestido com a mesma roupa da cena anterior) Cena8 Quarto. Fim da tarde. ‘Manuel esté de cama, doente. Entra a Mae com uma carta na méo, MAE — Oha, o teu pai escreveu... Também esteve doen- te, como tu. (Sentando-se na beira da cama:) Na Amé- rica ainda faz. mais frio do que aqui! Mostra a carta a Manuel, que se soergue pega nela. MAE — Diz ele que tem estado sempre a nevar... Neve... Nunca vineve... Meu Deus, que frio deve ser! MANUEL (Othando a carta) —Ele nao diz quando vem? MAE — Nao, Mas diz.que talvez em breve If possamos ir nds. (Acaricia a cabega de Manuel:) Nao gostavas de ver neve? ‘Manuel entrega de novo a carta & Mae e volta a dei- arse, MANUEL — Nao sei. (Pausa:) Era bom era que ele voltasse. Na fabrica das conservas é estio a meter gente outra ver... Podia arranjar trabalho cé. MAE —Poisera,poisera... (Pausa:) Um dia volta, (Procu: rando mudar de assunto:) Pomaste 0 comprimido? ‘MANUEL MAE a = Queres outro copo de leite? MANUEL —Nao, mae, obrigado. Pancadas na janela. ‘Manuel ea Mae vottam-se. Rosto de Ana sorrindo a janela, MAE (Levantando-se, alvorocada) —Ea Anal Velo visitar-te! A Mae dirige-se para a porta e sai. ‘Manuel ajeita a roupa da cama. A Mae regressa pouco depois com Ana. [Nota do Autor: Ana vestida e penteada diferente- ‘mente das Cenas 1 ¢ 5 do sétao, de modo a sugerir um tempo distinto.] ANA (Entrando) —Estés melhor? MANUEL —Estou, muito obrigado. MAE —Ainda tem um bocadinho de febre... Mas segun- escola outra vez, (Pausa:) E a senhora? da-feira jé vai Est melhor? ANA a (Para.a Mae) — Lady Elisabeth? Nao, esta cada vez mals fraca.. Ficou a dormir no hotel... MAE —Coitadinha... 0 que ela osté a softer... Mudando de tom:) Ba Ana? Jé lanchou?... Vou buscar-Ihe um bo- cadinho de torta de laranja... (Dirige-se para a porta). ANA —Nio se incomode, obrigada. A Mae sai. Ana e Manuel ficam sés. Ana sorri. A Mae regressa com dois pratos com torta. Entrega um @ Ana e outro ao Manuel MAE —Toma, Manuel, esta muito boa MANUEL —Nao quero, mae, obrigado. MAE —Vé li, s6 para fazeres companhia & Ana. Ana senta-se na cama, segurando 0 seu prato. Manuel soergue-se, com 0 prato sobre o travesseiro. MAE (Saindo de nove) — Agora fiquem os dots um bocadinho a conversar {que eu vou ld dentro e ja venko. AMae sai, Ana fica um momento em siléncio e, depots, volta-se para Manuel, ANA — Lady Elisabeth esté muito mal, nao digas nada & tua ma . Nao quer ir-se embora, nem sequer abre as cartas que recebe de Inglaterra... Nunca fecha as jane- las, nem apaga aluz, nem de noite, sempre a olhar para omar. (Pausa:) 0 que maisme afligeé que ndo chora... 75 Esté convencida que, se chorar, Robert morte. ‘Manuel otha-a sem dizer nada, Afasta 0 prato e torna a meter-se sob os lengéis. ANA —Teve um sonho, sabes? Viu Robert apanhado por piratas e levado no barco deles pelo mar fore, para muito longe... Esté convencida de que os piratas hao de voltar &ilha e que, entao, tornaré a encontré-lo. (Pausa:) Passa os dias fechada no quarto, a tentar dor- mir e sonhar © mesmo sonho, para ver Robert outra, MANUEL (Surpreso e assustado) —Um bareo de piratas? Robert... ANA — Sim, Pediu-me que te contasse o sonho dela. Nao ‘quer que mais ninguém o saiba, nao digas nada & tua ‘mae, ndo? Nem ao capelao que a confessa ela 0 contou. MANUEL 7 —Amim? Porqué a mim? ANA, —Nao sei. Gosta muito de i! E estranho, malte conhe- ce...Mas és tinica pessoa da ilha de quem ela gosta. A Mae abre a porta e entra novamente. MAE (Para Ana) — Entio a torta? Estava boa? (Para Manuel, repa- rando que ele mal tocara no doce:) Oh, Manuel, néo co ‘meste nada... Uma torta de laranja to boa... Ana poe-se de pé. ANA, —Tenho que me ir embora... Lady Elisabeth pode precisar de mim. MAE (Para Ana) — Ja? (Pegando-the na mao:) Tem razio, Ana, vi, va... Ela precisa de companhia, coitadinha. ANA (Para Manuel) — Até amanha. Vé se ficas bom, sim? MAE — Até amanha, Ana. Eu amanha fago um bolo para levar a senhora... Saem as duas, Manuel fica de novo sb Vira-se de lado e cobre a cabega com os cobertores, Extinguem-se as luzes. Cena9 S61a0. ‘Mesmo cendrio das Cenas 1 e. [Nota do Autor: cena de ‘continuagao” do tempo edo lugar delas}. Ao longe, a tempestade eo gemido da ronca. A.cena comeca com Manuel e Ana junto @janela, na ‘mesma situagéto em que terminam a Cena 5. ANA, — Parece que foi tudo ha tanto tempo... MANUEL —Pois parece. ANA (Sentando-se sobre a arca) —Tué que me fizeste lembrar estas coisas... Euntio queria... MANUEL (Aproximando-se eficando de pé a seu lado) —Tué que me pediste para eu conta ANA, —Fusei, desculpa. MANUEL — Nao estejas triste ANA — Eu nao estou triste, ‘MANUEL Nao estejas... ANA, (Erguendo a cabega para Manuel) —Nunca me tinhas falado do teu sonho, nem dos 61 piratas... MANU — Nao queria que ficasses triste... (Pausa:) & tudo Go confuso. As vezes acho que fol um sonho. Mas hé tantas coisas que nao compreendo. ANA — porque... Lady lisabeth, lembras-e?, também sonhou com os piratas.. Ese 0 sonho dela € 0 teu (Detém-se, alarmada:) Meu Deus! MANUEL (Tapando-the a boca) —Nao, nao digas nada, Nao quero ouvir. ANA, (Libertando-se) — Nao vés que. MANUEL (Afastando-se de repente) Bu sei, eu sei, Mas nao quero ouvir! oa ANA, MANUEL 83 (Docemente) —Nao quero contr... — Pronto, pronto, eno digo nada... ‘Ana ergue-se eaproxima-se dele. } ‘Manuel deixa-se cair sobre o banco, lange de Ana. ANA } MANUEL Tens que contar.Falaste nisso, agora quero saber. — Oh, Ana, se tu soubesses... Ha tantas coisas que nao te conte, MANUEL —Nao posso, nao sou capaz. Ana volta-se para ele. ' ANA, ANA (insistindo) t — Coisas que no me contaste? Mais coisas? O qué? —Conta, tens que contar! (Sentando-se a seu lado:) | Tem que ver comos pats nto tem? rn MANUEL (Num murmiirio) Tem... ANA —0 que 6? Conta! Depressa, ‘MANUEL — Nao posso, tenho medo que fiques zangada co: igo... ANA — Zangacla contigo? Nao sejas tolo, Nunca me hei de zangar contigo... (Puxando 0 seu banco para diante dele:) Mas tens que me contar, nao podemos ter coisas escondidas um do outro. MANUEL (Endireitando-se) Pronto, eu conto. (Encara Ana e, depois, baixa os olhos para o chao:) Lembras-te do contraste na pr ia em que me en- ‘com aquele pescador? do sonho, eu tinha adormecido outra vez. ANA 8s — Com 0 velho maluco? MANUEL —Sim, aquele que esteve na América... (Pausa:) Ele contou-me wma coisa terrivel... (Hesita de novo:) Nao sei se sou capaz de te contar. ANA Conta, agora que jé comegaste tens que me con- tar tudo! ‘MANUEL (Pondo-se de pé bruscamente) — Ble falou-me do meu sonho! ANA, — Do teu sonho? Do sonho dos piratas? O velho? Mas... Como... & que ele podia saber?. MANUEL — Nao sel... Sabia tudo... Perguntou-me se, depois Disse-me a5 queeu devia ter adormecido outra vez, porque os pira- ! tas regressaram, . } ANA \ (Ineréduta) | —0s piratas? Falou-te dos piratas? | | | Deena tee viu o barco dos piratas a rondar novamente a ilha e pensou: "O rapaz deve ter adormecido outra ver!" ANA, — Mas... Nao € possivel... Nao faz. sentido, MANUEL — Bu sei Por isso é que te disse que nao com- preendia, ANA, (Ansiosa) —E que mais? O que é que ele disse mais? = MANUEL (tum folego, sem se deter) —Disse quese escondeu nos rochedos a espreitar,e {que viu os piratas descerem um bote. E que o Capitio / gtitava com eles que procurassem 0 grumete! Que os | enforcava a todos se eles nao encontrassem o grumete! | | } ANA — Mas... O grumete. MANUEL ‘Sim, eu... Foi o que o Capitao me chamou no so- ho... i ANA, —Néo pode ser... | MANUEL — Pois nio! ANA —Edepois?. MANUEL 9 — Disse-me que os piratas andaram de um lado para 0 outro a minha procura e que, a certa altura, de- ram com um rapaz estendido entre as rochas e que pe- garam nele ¢ o levaram, Convenceram-se de que era eu, € que tinha caido © desmaiado! Meteram-no no barco e tomaram a zarpar para 0 ma (Num murmi- rio:) Um rapaz mais ou menos como eu, da minha idade.. ANA (Num grito sufocado) — Robert! Levaram mesmo Robert! Mas... MANUEL (Agarrando-se a Ana) —Vés, vés? Por isso é que eu ndo te queria contar. Ana pés-se também de pé e encostou-se @ janela com ‘0 oll fechados. ‘Manuel segura a cabeca entre as maos. MANUEL — Desculpa, Ana, desculpa! Eu nao tive culpa, eu nao tive culpa... Se calhar é tudo mentira, ele nao po- dia saber do meu sonho nem dos pirat... aT 3 ANA a (Woltando-se para Manuel) — Mas entio... 0 sonho de Lady Elisabeth... Robert ser levado pelos piratas... (Deixa-se air sobre a arca, confundida e angustiada:) Meu Deus! Eles levaram mesmo Robert! MANUEL — Nao pode ser, Ana, ndo pode ser! Foi um sonho, {foi s6 um sonhot ANA — Julgaram que eras tu! Levaram Robert... (Aba- nando a cabega:) Nao pode ser! Os piratas nao existem! Foi tudo um sonho! Como é que o velho sabia? Nao pode ser, nao compreendo... MANUEL (Muito aftito) —Pois nao. Nao pode ser. ANA —Meu Deus... 2 ‘MANUEL — Ves? Nao devia ter-te contado... ANA — Fui eu que te pedi, tinhas que contar, Mas... (Agarra Manuel pelos bracos:) Agora no contes a mais, ninguém, néo?! Nunca contes isto a ninguém! (Meten- do a cabeca entre as maos:) Meu Deus... MANUEL — Bu nao conto, juro! A chuva volta a cair com forga, eas cortinas estreme- ‘cem de novo com o vento. A ronca geme mais alto. ‘Manuel e Ana esto agora parados, de pé, dante da Janela, olhando a rua, ‘Manuel poe os bragos sobre os ombros de Ana. Ficam os dots longamente em silencio. Ana volta-se devagar e caminha em diregéo 4 arca, o ANA ANA 96 acho eu... Nao compreendo mas foi de certeza tudo um sonho... O naulrégio, os piratas, tudo, fol tudo um ‘sonho! $6 pode ter sido um sonho! Se deitarmos fora 0 (Pegando no lenco vermetho) | — Fica um segredo s6 nosso... Foi tuddo um sonho, } —Dés-mo, Manuel? ‘Manuel volta-se também. lenco até esta conversa foi um sonho... Amanhé acor- ano ‘damos e ndo nos lembramos de nada. — O qué? O lengor., Lado a lado, os dots ficam, como no inicio da peca, olhando em siléncio a rua ea chuva a bater nas vidragas | snuel poe o bra ymbros de Ana. —Sim, dés-mo? Manuel p 160 sobre os ombros de. As luzes, lentamente, extinguem-se, nde s luzes, rente, extingue? Claro que dou. Mas... | = (Guarda 0 tengo e aproxima-se de novo de Manuele dajancla) | — Nunca mais contes estas coisas a ninguém, esté bem? MANUEL — Eu nunca mais conto... Mas...

Você também pode gostar