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CAPÍTULO
MÁRIO THEODORO
A
o longo da leitura dos capítulos deste livro, o leitor se defronta com uma
questão recorrente: a difícil consolidação da temática da desigualdade
racial como objeto legítimo e necessário da intervenção pública. Dito
em outros termos, a construção da questão racial como campo de intervenção
política, no Brasil, ainda está por ser concluída. O debate aqui encetado sobre
as diversas formulações, ao longo dos últimos 120 anos, a respeito do papel do
negro na sociedade brasileira, sobre os determinantes sociais e políticos do lugar
que ocupa hoje, e sobre a evolução de sua condição social, explica, em grande
medida, esse alto grau de inação e o pouco envolvimento do Estado.
As chamadas políticas públicas, mediante as quais o Estado se faz presen-
te, consolidando direitos, desfazendo iniqüidades, fortalecendo a coesão social
e mesmo obstruindo ciclos viciosos de reprodução de desigualdades, parecem
ainda ausentes no caso do problema racial. De uma forma trágica e até emblemá-
tica, face a esse problema, onde as políticas públicas mais se fazem necessárias, é
lá que o Estado se omite e essas políticas escasseiam
Essa ausência não se deve apenas à falta de percepção da importância da
temática ou inexistência de sensibilidade para a questão. Ao contrário, ela pa-
rece se dever exatamente à sua grandiosidade e centralidade. A paralisia do
Estado é similar à da sociedade, onde largos setores ainda resistem a enfrentar
o problema.
168 AS POLÍTICAS PÚBLICAS E A DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL – 120 ANOS APÓS A ABOLIÇÃO
No Brasil o negro é pobre, em grande medida, e isso foi aqui visto, em capítu-
los precedentes, como decorrente da própria trajetória de racismo que permeia
a história do país. Mas o racismo, o preconceito e a discriminação não afetam
única e exclusivamente a população negra pobre. Em muitas situações, trata-se
mesmo de algo diverso. As práticas de racismo se evidenciam mais claramente
em situações onde o negro sai do seu lugar natural e se encontra em uma situ-
ação onde sua presença não é habitual, ou seja, nas posições de maior prestígio
social. Os dados sobre distribuição de renda, por exemplo, apontam, de forma
recorrente, que as desigualdades entre brancos e negros são maiores entre o
estrato de maior escolaridade.
Além disso, como mostrado no capítulo 5, as políticas de cunho universalista
de proteção social e de transferência de renda têm um papel importante na redu-
ção da pobreza, mas limitado no combate à desigualdade racial. Só com a adoção
de políticas específicas – valorizativas, de cotas nas universidades, de combate ao
racismo institucional e de ampliação dos espaços para os negros no mercado de
trabalho – é que se logrará reverter o quadro de iniqüidade racial.
Entretanto, em que pesem os dados existentes, atualmente, grande parte
do embate de idéias sobre as políticas de promoção da igualdade racial ainda
continua restrito ao tema da pobreza, caindo em uma armadilha que confunde
interlocutores ao identificar na pobreza as causas das diferenças observadas en-
tre brancos e negros nos mais diversos campos. É essa confusão que se destaca,
sobretudo, no debate sobre as cotas nas universidades. Sem levar em conta que
se trata de uma política de combate à discriminação racial e, em última análise
ao preconceito e ao racismo, alguns discursos, muitas vezes de forma até bem
intencionada, buscando um intangível consenso, advogam pelas chamadas cotas
para pobres. Assim, mais uma vez, é negado o mecanismo da discriminação e
recusado o tratamento preferencial aos negros.
As dificuldades se instalam então, ao invés de se dissiparem. Primeiramente
porque um programa de cotas nas universidades não está propriamente dire-
cionado para os mais pobres. Estes, em sua grande maioria, sequer concluíram
o ensino fundamental e, na idade em que deveriam estar cursando o ensino su-
perior, já estão participando do mercado de trabalho, muitas vezes em ocupa-
ções marcadas pela informalidade. As cotas vêm possibilitar o acesso àqueles
que atingiram um dado grau de educação formal, promovendo a ampliação das
174 AS POLÍTICAS PÚBLICAS E A DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL – 120 ANOS APÓS A ABOLIÇÃO
oportunidades para esse grupo social. A cota tem o objetivo de abrir o teto social
que hoje impede uma maior progressão social do jovem negro, visando alçá-lo
a uma condição de ascensão social. Essa política tem impactos na composição
de um novo perfil da elite brasileira, que passará a ser marcada por uma maior
diversidade e pluralidade. Nesse sentido, ela ajuda a promover maior eqüidade
racial, desnaturalizando o preconceito e valorizando a presença negra nos diver-
sos espaços e posições sociais.
Em resumo, pobreza se enfrenta com um conjunto amplo de políticas de
cunho universalista, tendo como pano de fundo o crescimento econômico e a
distribuição mais equânime da riqueza. Racismo, preconceito e discriminação
devem ser enfrentados com outro conjunto de políticas e ações. Conjunto esse
que, infelizmente, ainda está por se consolidar.