Você está na página 1de 13

553

DEBATE DEBATE
Informação e informática em saúde:
caleidoscópio contemporâneo da saúde

Information and information technology in health:


contemporary health kaleidoscope

Ilara Hämmerli Sozzi de Moraes 1


Maria Nélida González de Gómez 2

Abstract This essay is based on the assumption Resumo Este ensaio assume como pressuposto que
that current practices and knowledge of Informa- as atuais práticas e saberes de Informação e Infor-
tion and Information Technology in Health are mática em Saúde não dão conta da complexidade
unable to deal with the complexity of the health/ dos processos de saúde/doença/cuidado e dos pro-
disease/care processes and contemporary problems blemas contemporâneos a serem superados, cons-
that must be overcome, curbing the expansion of tituindo-se em um dos limitantes para a amplia-
the response capacity of the Brazilian State. It aims ção da capacidade de resposta do Estado brasileiro.
to further explore the understanding of the roots Tem por objetivos aprofundar a compreensão da
and determining factors behind these constraints, gênese e dos determinantes desses limites e analisar
analyzing alternatives for confronting them that alternativas para sua superação que dependem
depend less on location-specific initiatives in the menos de iniciativas pontuais internas ao campo
field of information and more - among others - on da informação e mais, dentre outras, da adoção de
the adoption of new benchmarks, starting with novos referenciais, a começar pelo significado e
the meaning and concept of Health. It identifies conceito de Saúde. Identifica a existência de um
the existence of an ‘information and information ‘intercampo de informação e informática em saú-
technology interfield’ that arises from an de’ que se consubstancia tanto a partir de uma
epistemology based on a transdisciplinary ap- epistemologia que tenha por referencial a aborda-
proach, as well as the consolidation of a political gem transdisciplinar, quanto da consolidação de
and historical process of institutional construc- um processo político-histórico de construção ins-
tion, an area endowed with power and relevance: titucional, espaço portador de potência e relevân-
a political-epistemological interfield. The analysis cia: intercampo político-epistemológico. Desenvol-
goes on through an exploratory study of the social, ve essa análise através de estudo exploratório dos
1 Departamento de Ciências
political and epistemological processes found in the processos sociopolíticos e epistemológicos presen-
Sociais, Escola Nacional de historical construction health information tes na construção histórica das redes de informa-
Saúde Pública, FIOCRUZ. networks established by Science and Technology ção em saúde constituídas pela C&T em saúde,
Rua Leopoldo Bulhões
1480/ 9o andar, Mangui-
in health, as well as by healthcare systems and pelos sistemas e serviços de saúde e pelas informa-
nhos. 21041-210 Rio de services, in addition to social, political and ções sociais, políticas e econômicas.
Janeiro RJ. economic information. Palavras-chave Informação em saúde, Informá-
ilara@ensp.fiocruz.br
2 Instituto Brasileiro de
Key words Information in health, Information tica em saúde, Política de saúde, Processo decisó-
Informação Científica e technology in health, Health policy, Decision- rio, Epistemologia
Tecnológica, MCT taking process, Epistemology.
554
Moraes, I. H. S. & Gómez, M. N. G.

“O deus que espero é inesperado; se ele vier, Apesar dos contínuos avanços tecnológicos
vou reconhecê-lo? De Esculápio curandeiro relacionados às informações, Vasconcellos et al5
não espero mais que um nome ou uma enfatizam o descompasso de sua apropriação e
imagem, designações e descrições, uso em benefício da ampliação da potência de
já o conheço demais, ele não vai me curar”. intervenção da esfera pública sobre a saúde de
Michel Serres 1 indivíduos e de populações e do próprio desen-
volvimento de um espaço cada vez mais estratégi-
Introdução co para a Ciência e a Tecnologia do país, em um
mundo globalizado. Há uma aparente aproxima-
A Saúde no Brasil está longe da perfeição! O mo- ção de discursos ao se referir à ‘informação e in-
delo político e econômico dominante, historica- formática em saúde’; no entanto, suas práticas
mente instituído, expande as desigualdades entre são díspares e desconexas, com pouca clareza so-
padrões de qualidade de vida. As desigualdades bre “do que se está falando”. Essa opacidade con-
sanitárias prevalentes entre as regiões, estados, tribui para sua não-organização, não-coordena-
cidades e mesmo intra-urbanas impedem come- ção e fragilidade institucional, tornando-se cada
morações efusivas. vez mais vulnerável às pressões do mercado, o
Por outro lado, o Sistema Único de Saúde que deixa fluido o papel do Estado na condução
(SUS) alcançou avanços significativos em seus da Política de Informação e Informática em Saú-
quinze anos de implementação. Sua construção de (PIIS)5, 6,7.
é um marco na história do país por pressupor a Esse processo situa-se em plena vigência de
participação da sociedade nesse processo, atra- profundos questionamentos em torno da pro-
vés das Conferências e Conselhos de Saúde e por dução do conhecimento na contemporaneidade,
preconizar a busca do consenso entre as esferas onde se pontua a existência de uma crise de para-
de governo, configurando, nesse sentido, uma digmas. A ‘Informação e Informática em Saúde’
das mais avançadas política pública brasileira, está imersa e faz parte dessa crise. Esse ensaio pro-
calcada na democracia participativa e emancipa- cura demonstrar algumas de suas dimensões ao
tória 2. Nesse período, o SUS constituiu-se como apresentar fragilidades e limitações existentes na
um sólido sistema que ampliou o acesso da po- atual práxis informacional em saúde. Nesse senti-
pulação aos recursos de saúde, mas não o sufici- do, tem por objetivo aprofundar a compreensão
ente para superar a histórica e desigual dívida da gênese e dos determinantes desses limites, ana-
sanitária 3. No cotidiano dos cidadãos, o direito lisando alternativas para sua superação, através
universal à Saúde, com eqüidade e qualidade, ain- de estudo exploratório de seus processos socio-
da está distante 4. políticos e epistemológicos presentes na constru-
Essa constatação suscita um leque de desafi- ção histórica das redes de informação em saúde
os para a Sociedade e o Estado brasileiro no sen- constituídas pela informação científica e tecnoló-
tido do texto constitucional alcançar sua plena gica em saúde, pela informação e informática em
materialidade, expressa na melhoria das condi- sistemas e serviços de saúde e pelas informações
ções de vida da população. Um desses desafios é sociais, políticas e econômicas.
dotar o sistema de saúde de maior e melhor ca-
pacidade de intervenção sobre a realidade sani-
tária. Para tal, faz-se necessário aprofundar a Gênese da atual
compreensão sobre seus atuais limites e pontos práxis informacional em saúde
de estrangulamento.
O presente ensaio dedica-se a um de seus prin- Ao procurar desvendar a gênese da atual lógica
cipais limites, ao assumir como pressuposto o organizativa das informações de interesse para a
esgotamento das atuais práticas e saberes de In- Saúde, produzidas e geridas pelo aparato esta-
formação e Informática em Saúde (IIS) em face tal, observa-se que a informação em saúde sur-
da complexidade dos processos concretos de saú- ge de um certo “pré-juízo” de sinais, sintomas,
de/doença/cuidado que ocorrem em populações signos e práticas relacionados ao processo de
e dos conseqüentes problemas contemporâneos saúde/doença/cuidado que, em um determina-
a serem superados. A atual práxis informacional do contexto histórico, adquirem relevância polí-
em saúde se constitui em uma limitante aos avan- tica e social: tornam-se eventos que justificam
ços necessários para ampliar a capacidade de res- seu monitoramento, sua visibilidade, sua vigi-
posta do Estado brasileiro, na busca pela melho- lância através de dispositivos de Estado no exer-
ria da situação de saúde. cício de um biopoder.
555

Ciência & Saúde Coletiva, 12(3):553-565, 2007


As mudanças na forma de lidar com a saúde/ mação e informática em saúde’ evidencia a miría-
doença/cuidado vinculam-se às transformações de de interesses em disputas ao longo desse pro-
político-sociais e econômicas, inseridas na cons- cesso. Observam-se as diferentes concepções de
tituição do Estado Moderno, em um crescente Saúde e de Política de Saúde em busca de hegemo-
processo de urbanização e de organização da so- nia em cada conjuntura específica, o que inclui as
ciedade capitalista. Como parte constitutiva des- opções em torno das tecnologias de informação
se momento histórico (final do século XVIII e iní- adotadas, resultantes da pressão do mercado da
cio do século XIX), o Estado Moderno estabelece computação e das telecomunicações.
dispositivos de atuação voltados para a gestão da Quando o Ministério da Saúde adota, por
vida, que permitem o exercício de um poder disci- exemplo, uma plataforma tecnológica em detri-
plinar que se expressa capilarmente em todo o mento de outra direciona todo o mercado consu-
campo social, de um biopoder 8, que nasce imer- midor das instituições constitutivas do SUS.
so na constituição de uma sociedade panóptica. Quando opta por contratar o desenvolvimento
Os marcos genealógicos da informação em de ‘uma solução de informática’, terceirizando esse
saúde estão imersos nesse movimento e podem processo, contribui, mesmo que indiretamente,
ser encontrados na ruptura da medicina clássica para a abertura de potenciais consumidores em
para a medicina moderna (com o pensamento todo o SUS. As Secretarias de Estado e Munici-
anátomo-clínico e patológico), quando surge um pais de Saúde, em várias situações, estabelecem
novo significado para a Doença que passa a estar contratos com essas determinadas empresas de
corporificada no indivíduo. As informações em software, principalmente em face do sucateamen-
saúde, nos moldes como se expressam até os dias to e fragmentação dos espaços de gestão pública
atuais, consolidaram-se como um dos instru- da informação e informática em saúde, acarre-
mentos estratégicos desse processo, ao amplifi- tando um processo conhecido como lock in (de-
car, paulatinamente, o “olhar do médico” sobre o pendência / aprisionamento a empresas, plata-
corpo do paciente para o “olhar dos aparelhos de formas e/ou sistemas).
Estado” sobre os “corpos das populações”, cons- Essas disputas entre visões de mundo/de saú-
tituindo-se em espaço de disputas de relações de de e interesses ficam submersas nos diferentes dis-
poder e produção de saber 7. cursos, onde a ‘informação em saúde’ é trabalha-
Neste esforço, firma-se, enquanto analítica da como recurso/instrumento (matéria-prima)
central, o poder. Não qualquer poder, mas o po- que agrega valor a produtos e processos. As for-
der vigilante que institucionaliza as informações mulações apresentadas negam sua vinculação a
em saúde como parte integrante dos dispositivos um determinado contexto histórico, político-so-
políticos de atuação do Estado Moderno de con- cial-econômico. A ‘informação em saúde’ é, poli-
trole / monitoramento da população7. A lógica ticamente, reduzida a um campo do império da
contemporânea de organização das informações tecnicidade: é apresentada como ‘despolitizada’,
em saúde emerge da forma como o paradigma como ‘neutra’.
da clínica atua sobre o processo saúde/doença/ Outra dimensão imersa nesse processo de
cuidado, que define a ‘visão de mundo’ orienta- despolitização refere-se ao significado e ao papel
dora da modelagem dessas informações. do sujeito na informação e informática em saúde.
Almeida Filho9 defende que as ciências deno- Por exemplo, ao se analisar os Sistemas de Infor-
minadas ‘da saúde’ são de fato ciências ‘da doença’, mações em Saúde (SIS), observa-se que o ‘sujeito’
e concentra esforços relevantes na delimitação do – enquanto criação da modernidade – está frag-
que pode ser considerada como ‘Ciência da Saú- mentado dentre as diversas bases de dados em
de’ e de novos marcos referenciais da Saúde Cole- saúde existentes. Seus fragmentos - característi-
tiva. Seguindo o caminho desbravado por ele, cas parciais e estáticas de sua vida - povoam SIS
pode-se afirmar o mesmo em relação às infor- desconexos. O indivíduo perde sua identidade in-
mações em saúde, uma vez que sua gênese está tegral como sujeito pleno: perde sua historicida-
imersa no referencial das ‘Ciências da Doença’. O de. A visão biologicista da saúde/doença/cuidado
processo de (re)pensar a ‘informação e informá- é de tal modo hegemônica nos SIS que, mesmo
tica em saúde’ pode ser um importante aliado es- quando variáveis socioeconômicas estão presen-
tratégico na construção de uma Ciência da Saúde tes na coleta dos dados (como ocupação e escola-
e no avanço da Saúde Coletiva, em seu esforço ridade), são as que apresentam maiores proble-
por contemplar a complexidade dos processos mas em sua qualidade.
concretos de saúde/doença/cuidado. Por outro lado, o conceito de ‘coletivo/popu-
A análise da construção histórica da ‘infor- lação’ é tratado como o somatório de indivíduos
556
Moraes, I. H. S. & Gómez, M. N. G.

(desintegrados) ou de determinados agravos re- informação e informática, que permanecem dis-


feridos a tempo e lugar, de forma estática e restri- persas e redundantes, reforçando sua fragmenta-
ta. O tempo, na grande maioria dos SIS, é conge- ção e gestão pulverizada. Essa inserção instituci-
lado em uma seqüência de fotografias, descontí- onal, tanto no âmbito dos sistemas e serviços de
nuas, que perdem a dinâmica temporal e espacial saúde quanto nas instituições de C&T em Saúde,
como dimensão essencial no caminhar da vida, reflete sua ‘fragilidade’ em termos de prestígio,
como ensina Milton Santos10, por conseguinte, relevância e correlação de forças no cotidiano das
nos processos de saúde/doença/cuidado. O con- esferas de decisão política na saúde.
ceito de lugar sofre as mesmas limitações: é des- Uma visão das práticas de informação em
contextualizado, simplificado e fragmentado. saúde reducionista e tecnicista, de simples “área
A superação das limitações da informação em meio”, que encobre sua atuação como espaço es-
saúde depende menos de iniciativas pontuais in- tratégico de disputa de interesses, tanto no âmbi-
ternas ao campo específico da informação e mais, to dos sistemas e serviços de saúde quanto nas
dentre outras, da adoção de novos referenciais, a instituições de pesquisa e ensino. “Não possui
começar pelo significado e conceito de Saúde, onde relevância política” e/ou é tratada “como ‘acade-
estejam presentes outras dimensões do ‘caminhar micismo’, teoria desvinculada do ‘mundo real”:
na vida’, em seu dinamismo cotidiano, em que o Essa é a justificativa apresentada por alguns ges-
indivíduo e a população estão inseridos. tores quando resistem à inclusão de tema relacio-
Referenciais explicativos para algumas das li- nado à informação na pauta de fóruns decisórios
mitações das informações e ações de informação políticos, como a Comissão Intergestores Tripar-
também podem ser encontrados na forma como tite, no âmbito do SUS. A tematização da ‘infor-
ocorre o processo decisório em saúde. A gestão mação e informática em saúde’ torna-se uma “cai-
da Saúde se insere no modo como o Estado bra- xa preta”, sob o domínio de experts que impri-
sileiro implementa suas políticas sociais: de for- mem uma racionalidade tecnocrática a questões
ma essencialmente tópica, atomizadora, fragmen- de política pública: Política de Saúde e, como par-
tadora em suas respostas às demandas sociais e te dessa, a Política de Informação e Informática
reativa a situações com visibilidade na mídia que em Saúde.
se tornam “crises” a merecerem suas ações. Offe11 Nesse contexto, ocorre, cada vez mais, forte
ensina que o aparelho de tomada de decisões se pressão das empresas privadas de informática
compõe de um complexo de burocracias que ope- em disputa pelo setor público da saúde, enquan-
ram de modo relativamente autônomo e que têm to fatia substantiva de mercado. Em paralelo,
suas competências, clientelas e percepções pró- há um processo de sucateamento das instâncias
prias dos problemas. Daí resulta um modo de públicas de gestão da informação e informática
tomada de decisão política que fragmenta e retra- em saúde, fortalecendo a tendência pela opção
duz a interdependência dos problemas sociais. à terceirização.
As informações em saúde constituem um dos Como parte do processo histórico de esvazia-
dispositivos desse Estado fragmentado, postas a mento da capacidade de respostas de instâncias
serviço de específicas Políticas de Saúde e estrutu- públicas de gestão da informação e informática
radas para subsidiar a atuação dos seus apare- em saúde, observa-se uma quase ausência de pro-
lhos em face de determinados interesses e práticas cessos intensivos de educação permanente de suas
institucionais. Essa análise reforça a hipótese que equipes técnicas, voltados para a atualização tec-
a fragmentação existente nas informações em saú- nológica essencial a um campo de saberes extre-
de é expressão da fragmentação e da forma do mamente dinâmico. A análise das grades curri-
Estado brasileiro atuar. A lógica fragmentadora, culares de centros de ensino – principalmente nos
que decompõe a realidade observada e ‘departa- ‘núcleos’ de saúde coletiva/saúde pública – evi-
mentaliza’ as demandas da sociedade, é hegemô- dencia que os conteúdos priorizados se restrin-
nica tanto na organização das informações em gem a métodos de tratamento de dados (em sua
saúde quanto na sua estruturação e gestão no maioria construção de indicadores) e manuseio
âmbito das instituições de saúde, acarretando: de pacotes estatísticos, onde a informação é tra-
Uma fraca identidade da ‘área’ de informa- tada apenas como um instrumento a ser maneja-
ção e informática em saúde nas instituições de do! Questões históricas, epistemológicas, políti-
saúde, o que contribui, dentre outras conseqüên- cas, econômicas e de gestão são sistematicamente
cias, para sua vinculação a setores diversos, de omitidas nos poucos cursos que abordam a ques-
forma competitiva, com ausência de um proces- tão de Informação e Informática em Saúde. Essa
so coordenado em torno das práticas e saberes de realidade contribui para a não formação de mas-
557

Ciência & Saúde Coletiva, 12(3):553-565, 2007


sa crítica no pensamento brasileiro em saúde, sar de seu veloz crescimento no que se refere ao
perdendo-se oportunidades valiosas de avanços seu desenvolvimento tecnológico; terceiro, agra-
no próprio entendimento sobre os processos con- vamento de um processo interno à Saúde de des-
cretos de saúde/doença/cuidado. valorização epistemológica dessa temática, prin-
A ‘Informação’ possui uma potência relaci- cipalmente diante de outras áreas de conhecimen-
onal que dificilmente se realiza na Saúde. Sua to; e quarto, quase inexistência de espaços for-
potencialidade integradora se dilui quando sua malizados, com visibilidade e prestígio nas rela-
organização reproduz e fortalece a racionalida- ções de poder, nas estruturas organizacionais das
de hegemônica da fragmentação em seu pro- instituições de saúde e de ciência e tecnologia em
cesso de biovigilância. É parte integrante dos saúde.
dispositivos do Estado brasileiro de monitora-
mento de conflitos sociais e políticos que ga-
nham sua expressão material nos processos de Para uma epistemologia política
saúde/doença/cuidado da população. A quem da informação em saúde
interessa a manutenção desse status quo infor-
macional fragmentado? Os enigmas citados sinalizam o desafio a ser cole-
Interessa às forças políticas predominantes no tivamente enfrentado, podendo-se apontar algu-
aparato estatal, ao induzir um certo confinamen- mas questões de cunho epistêmico-social que li-
to dos debates e reivindicações da população e mitam e dificultam a definição ampliada e con-
impedir uma ação global, permanente e transpa- textualizada dos estudos da Informação em Saú-
rente. Com certeza interessa à lógica do merca- de. Em primeiro lugar, não há uma seqüência
do, das empresas, pois amplia as possibilidades tranqüila que leve das trilhas plurais da produção
de “venda das soluções de informática”, onde um de sentido, na esfera das vivências e práticas em
produto similar pode ser comprado por vários saúde, para os processos de estruturação genéri-
consumidores (órgãos, departamentos, setores), ca de padrões e códigos que fixam os significados
com pouco investimento das empresas no pro- e as categorias em sistemas e bases de dados, pas-
cesso de customização. Por outro lado, cada in- sando pela modelização universalizada dos pron-
teresse particular presente nas diferentes frações e tuários e a unificação digital das plurais lingua-
segmentos dos aparelhos de Estado torna-se in- gens da saúde.
definidamente objeto potencial de desenvolvimen- Um dos pontos de partida significativos para
to de novas “soluções de informática”. pensar a saúde e a informação em saúde é a re-
A fragmentação atende também às disputas construção daquele momento ideal em que acon-
dos ‘feudos técnicos’ que se cristalizam no interi- tece a diferenciação entre a saúde entendida como
or do aparato estatal. Sempre a ‘razão técnica’ dimensão fundamental da vida humana e a saú-
sabe justificar a necessidade de constituição de de como setor especializado e institucionalizado
um novo sistema de informação, para atender a de conhecimentos, práticas, procedimentos, ins-
cada um dos infindáveis setores de competência tituições, recursos e políticas. “Saúde”, como di-
administrativa, onde “ter” um sistema de infor- mensão da vida, é a expressão de um bem maior
mação confere maior visibilidade e prestígio na individual e coletivo, simbólico e materialmente
correlação de forças e disputas de micro-poderes construído e preservado por todos e cada um dos
institucionais. grupos humanos, os quais, nos contextos assi-
Pode-se afirmar que para a superação das métricos da história humana, entram em disputa
atuais limitações das informações em saúde é pre- por sua definição diferencial e sua distribuição
ciso (re)pensar as bases políticas que mantêm e inclusiva. Como setor diferenciado 12, de crescen-
fortalecem essa forma específica de olhar/repre- te fragmentação e especialização, abrange o de-
sentar os processos de saúde/doença/cuidado no senvolvimento de profissões, serviços, indústrias
contexto fragmentado das decisões concretas e e recursos, desdobra-se nos domínios do público
cotidianas relacionadas à saúde. Esse desafio pre- e do privado, da economia e das políticas e cons-
cisa se defrontar com o que Almeida Filho9 des- titui o complexo dispositivo de poder e saber que
creve como “enigmas da história da Epidemiolo- compõe as Ciências da Saúde.
gia”. Observam-se, em relação à informação em De fato, a dissociação de informações e dis-
saúde, alguns enigmas similares aos descritos por cursos especializados não só intervém na consti-
ele: primeiro, lenta constituição como campo ins- tuição como na legitimação dos subsistemas fun-
titucional de um saber autônomo; segundo, au- cionais da sociedade moderna. Nessa direção, o
sência quase que absoluta de debate teórico, ape- documento, o registro administrativo, a infor-
558
Moraes, I. H. S. & Gómez, M. N. G.

mação, formalizando as práticas de fixar, regis- autoridades epistêmicas que estabelecem frontei-
trar e formatar a produção de sentido, são cons- ras, relações legítimas e modelos preferenciais nas
titutivos do entretecido simbólico e intersubjetivo Ciências e Tecnologias em Saúde. A reformulação
que, intermediando a integração regulada de sa- das matrizes gnosiológicas nos leva a uma dupla
beres, técnicas e práticas, permitem a emergência questão da “governança”: governança da pesqui-
de um princípio diferencial de identificação do setor sa e da ciência e tecnologia em saúde e governança
saúde – do esquadrinhamento do corpo pela clí- como questão do regime político. O regime de
nica à vigilância epidemiológica das populações 7. informação que estabelece os modos preferenci-
“Informação em saúde” designa, assim, o en- ais de definição, preservação, transmissão e uso
quadramento dos significados da saúde recons- das informações em saúde tem, como resultante,
truídos e alargados na nova ordem da medicali- uma dupla orientação epistemológica e política.
zação e das instituições - primeiro de atendimen- A tematização das ações e meios de informa-
to e depois de ciência e tecnologia em saúde. ção, porém, tem seguido de modo preferencial as
O mesmo princípio, porém, que regulamenta abordagens funcionalistas e instrumentais, tendo
a divisão entre os saberes cotidianos e as “especi- como meta explícita, nem sempre alcançada, a
alizações” do conhecimento e da linguagem, re- otimização do desempenho dos setores instituci-
produz inúmeras relações concorrenciais entre as onalizados das atividades sociais regulares e prio-
“especializações” dos conhecimentos, das institui- ritárias. Incluídas e valorizadas como produtos
ções, das agências governamentais, onde em cada de serviços auxiliares, enquanto restritas a função
um dos domínios de atividade desenvolve-se um de meios, ficam invisíveis à problematização e às
princípio de identificação e sustenta-se uma de- reflexões epistemológicas que regularmente exa-
manda de autoridade epistêmica sobre o campo minam e reformulam o escopo, a abrangência e
de intervenção, de caráter excludente e parcial. as relações das ciências, práticas e políticas em
Desse modo, as relações de força que regimentam saúde. A crescente inclusão de temáticas tecnoló-
os fluxos de informação e desinformação que gicas em espaços disciplinares, acadêmicos e de P
perpassam o estado, o mercado, a sociedade civil & D não modifica, de fato, as questões aqui le-
e as comunidades locais, em torno da saúde, são vantadas (cabe lembrar, como exemplo, as revi-
reutilizadas e interiorizadas nas sub-redes locais e sões da literatura, com ênfase no papel das tecno-
setoriais onde se instalam os atores e campos es- logias de informação na área da saúde de Mac
pecializados do conhecimento, como participan- Dougall e Brittain13, Peter Bath14 e Britain15).
tes engajados nas lutas pela definição de concei- Sob o regime da dissociação e do obscureci-
tos, ações e recursos da saúde. mento da gênese, dois movimentos simultâneos
O que se manifesta, assim, como “política epis- tornam opaca a função constitutiva que as in-
temológica”, em enunciações oficiais e acadêmi- formações, as técnicas e as tecnologias de infor-
cas, pode ser considerado, numa inversão meto- mação tiveram na constituição do setor Saúde,
dológica, como uma luta pela centralidade episte- assim como dificultam sua objetivação reflexiva.
mológica, acirrada quando a construção com- Por um lado, os modos de produção das infor-
plexa dos objetos de conhecimento requer que mações e os recortes preferenciais dos regimes de
seja aceita uma autoridade epistêmica distribuída informação dominantes adquirem certa natura-
entre diferentes ofertas disciplinares, diferentes lidade e invisibilidade sob a forma opaca das co-
orientações metodológicas, mais de uma jurisdi- dificações organizacionais e as infra-estruturas
ção e nível geopolítico do Estado, enfim, mais de materiais e tecnológicas16. Por outro, o paradig-
um ator político-gnoseológico. ma da neutralidade justifica e propicia a ausência
A inversão dos processos de opacificação da do ponto de vista dos “participantes” - sujeitos
gênese da fragmentação funcional-especializada de bem-estar ou de adoecimento - cuja ausência
das informações em saúde pressupõe trabalhar, será compensada pela quantificação dos casos, a
ao mesmo tempo, na interseção de “malhas den- categorização dos sintomas e a construção dos
sas” informacionais que se justapõem, agregam “centros de cálculo”17, onde são acumuladas e
ou se confrontam nas fronteiras entre a vida cole- ordenadas as representações anônimas das po-
tiva e os subsistemas do Estado, entre as esferas pulações. Convertidos em objetos de práticas e
públicas e privadas, entre as plurais matrizes cul- tecnologias que visam à otimização de sua gera-
turais e as descrições reguladoras da ciência e da ção, uso e transmissão, documentos e informa-
tecnologia. Não é possível, assim, separar de ções deixam de ser problematizados em suas gê-
modo definido as instâncias decisórias econômi- neses. Seus modos de geração, porém, começam
cas e políticas do estabelecimento do regime de antes da inscrição/registro de significados e ge-
559

Ciência & Saúde Coletiva, 12(3):553-565, 2007


ram efeitos muito depois de sua indexação ou mação e desinformação. Precisa-se, assim, com-
inclusão em grandes bases de dados. Os proces- promissar os discursos técnico-eficientistas com
sos de produção de sentido e de comunicação a releitura dialética dos confrontos, dos movi-
são olhados, porém, como questões ex post, para mentos estratégicos dos discursos legitimadores,
serem tratadas e resolvidas após existirem as in- das ausências excludentes das alteridades.
formações e os registros, na fase de sua dissemi- A proposta possível de reformulação da ma-
nação ou divulgação. triz cognitiva da informação em saúde tem que se
Mantém-se, nesse quadro, a questão já for- dar a partir do reconhecimento dos modos de
mulada: por que os estudos da informação em construção, diferenciação e interação entre as in-
saúde e as tecnologias, práticas e conhecimentos formações científico-tecnológicas em saúde (con-
que a objetivam não são incluídos nas ciências da siderando a comunicação e a literatura científica,
saúde, nem nas grades disciplinares tradicionais, os arquivos e as memórias científicas), os regis-
nem nas novas configurações inter e transdisci- tros contínuos administrativos e as bases de da-
plinares? Por que são mantidos em uma posição dos estatísticas que os traduzem, agregam e reins-
secundária, minimizados como dimensões sub- crevem; as informações públicas e estatais; as nar-
sidiárias, auxiliares e não constitutivas do campo rações dos grupos sociais e as formas incipientes
transdisciplinar da Saúde? de seu reconhecimento em novas formas de in-
Ora, a ausência de uma instância diferenciada terlocução inclusiva.
e reconhecida de pesquisa, experimentação e vali- Considerando sua máxima extensão antro-
dação em torno das informações em saúde, ca- pológica, o conceito de saúde vai ao encontro das
paz de tecer vínculos entre suas plurais manifes- demandas éticas que são renovadas por questões
tações e abordagens, tanto restringe sua inclusão que, como as descobertas genéticas e a biotecno-
nas ciências da saúde como as deixa sem uma de logia, parecem diluir as fronteiras entre a saúde
suas mais importantes referências à mediação como “fato social total” 18,19 e como “setor” espe-
política das ações em saúde, enquanto nelas se cializado - científico, tecnológico, econômico e
sustentam muitos dos critérios de aferimento de político. A dupla extensão da matriz gnosológica
qualidade e desempenho que permitem dimensi- da informação em saúde tem como ponto de par-
onar e ponderar as demandas, as potencialida- tida tanto o olhar hermenêutico-antropológico
des, os empecilhos e as realizações do campo da quanto o dialético-crítico.
saúde. As informações em saúde, desenvolvidas Ao procurar especificar o que aqui se entende
à luz da preocupação com a integração e articula- por informação em saúde e intercampo teórico-
ção de plurais e diversos saberes, meios, ações e prático de informação e informática em saúde,
linguagens da saúde, elas mesmas não estão sen- cabe lembrar outras reflexões acerca da autono-
do olhadas como domínio problemático de di- mia e da inter-relação das práticas e saberes da
versidade, divergências e articulação. saúde em sua configuração social e epistemológi-
Hoje, fala-se de uma Sociedade do Conheci- ca. Um dos conceitos utilizados nesta direção tem
mento ou Sociedade da Informação como hori- sido o de “campo social”, aplicado por extensão
zonte de desenvolvimento civilizatório, ficando aos “campos científicos”. Conforme Bordieu20,
mais em evidência esse aparente paradoxo em “campo” designa uma configuração de atores,
que a informação é ao mesmo tempo requerida práticas e saberes, onde se articulam possibilida-
nos domínios econômicos e tecnológicos por sua des e limites epistemológicos e sociais em torno
potência relacionante e preterida nos campos ci- de uma definição de valor daquilo que mobiliza
entíficos ora por sua precária consistência onto- os interesses que estão em jogo.
lógica, ora pela fragilidade de sua condição epis- Paim e Almeida Filho12 consideram que a Saúde
temológica. Coletiva resulta da articulação de um campo dis-
Para a reconstrução do espaço teórico e social ciplinar – de produção do conhecimento científi-
da informação no setor da saúde é preciso acon- co, a Epidemiologia - um campo de aplicação tec-
tecer a decapagem das diferentes camadas com nológica – atividades de aplicação de tecnologias,
que as mesmas foram sendo construídas e por o planejamento e gestão da saúde - e um campo
vezes silenciadas e opacificadas, como quando se social, onde se desenvolvem as práticas comuni-
restauram as paredes de um prédio histórico, tárias do cotidiano assim como as práticas pro-
onde se acumularam várias camadas de tinta, em fissionais, domínio da promoção da saúde. Cam-
busca do afresco originário, do diagrama organi- pos sociais articulados entre si interagem ainda
zador de múltiplas justaposições de significações, com outros “campos” ou “domínios” do setor da
códigos e meios que produzem efeitos de infor- saúde (como o campo da clínica) ou ainda de
560
Moraes, I. H. S. & Gómez, M. N. G.

outros domínios (como o das políticas sociais). micos - que substituem a participação dos sujei-
Os autores consideram que um modo produtivo tos implicados nas atividades sociais pela integra-
de olhar o “setor-intersetorial” da saúde é desde e ção por nexos infra-estruturais e por meios - tem
em direção à transdisciplinaridade. A síntese levado Habermas22 a propor um novo modelo
transdisciplinar, ao ir além das sínteses discipli- de análise, considerando os jogos de comunica-
nares, é também um bom ponto de partida para ção e informação em duas dimensões. A primei-
superar as crises paradigmáticas. ra, o mundo de vida (ou “formas de vida”), onde
No contexto de proposição da transdiscipli- os jogos de ação e integração social se constituem
naridade como desejo e como projeto, propõe-se e legitimam no agir comunicativo dos participan-
falar de modo atual num ‘intercampo de infor- tes. A segunda, os sistemas onde os poderes polí-
mação e informática em saúde’, a fim de colocar ticos, administrativos e econômicos monopoli-
de manifesto que se tratam de atores, práticas, zam as definições dos modos de integração e di-
procedimentos e saberes que tanto atravessam e reção das atividades sociais, através de seus con-
penetram em outros “campos”, que já têm consti- troles de meios e infra-estruturas.
tuído seus critérios diferenciados de identidade e Esta abordagem permite reconstruir com
de valor dentro de sua referência comum à saúde, maior acuidade o diagrama político das relações
quanto constituem e interpelam as zonas de in- entre atores, saberes e práticas de informação,
terseção que estariam a existir nos interstícios dos como parte do intenso esforço por (re)pensar
diferentes campos que hoje parecem descrever as novos desenhos epistemológicos de investigação
complexas e segmentadas facetas das ciências e no campo da Saúde Coletiva e de sua relação com
ações em saúde. as Ciências Sociais e Humanas, a Ciência da In-
No intercampo, visa-se à constituição dos flu- formação, a Comunicação, as Telecomunicações
xos e estruturações que viabilizam o intercâmbio, e a Ciência da Computação, respeitados em suas
a cooperação, as interações, tanto intra como in- especificidades.
tercampos; ao mesmo tempo, nele ficam expos- A proposta de intercampo de informação e
tas às segmentações, os conflitos e os “buracos informática em saúde se consubstancia tanto a
estruturais” que esgarçam em pontos cruciais o partir de uma epistemologia que tenha por refe-
tecido social da saúde. O intercampo, conforme rencial a abordagem transdisciplinar, quanto da
proposto aqui, tem dois princípios de identifica- consolidação de um processo político-histórico
ção e definição de valor: um, que compartilha com de construção institucional, espaço portador de
os domínios que perpassa e interliga, identifica- potência e relevância: intercampo político-epis-
ção que nele se realiza com um certo grau de abs- temológico.
tração e generalização, por vezes como represen-
tação (neste caso, a saúde); outro, que lhe perten-
ce com caráter primário (neste caso, informação), Intercampo de informação e informática
mas à custa de ser formal, relacional e operatório, em saúde: domínio de saberes e ação
de tal forma que lhe seja possível perpassar, de política
modo permanente ainda que provisório e incom-
pleto, todas as fronteiras de interseção que lhe Para o Intercampo de Informação e Informática
coloque aquele outro princípio de identificação. em Saúde participar, em toda sua potencialidade
Para acompanhar aproximadamente o mo- e no mesmo patamar epistêmico e político, do
delo de Paim e Almeida Filho12 para a Saúde Co- enfrentamento da crise paradigmática da(s)
letiva, a indagação epistemológica, social e políti- Ciência(s) da Saúde pari passu com a ampliação
ca acerca da informação em saúde tem que refor- de seu uso no processo decisório pressupõe que
mular, num escopo e abrangência reticular e trans- as respostas a esses desafios se inscrevam na luta
disciplinar, as delimitações e interstícios das con- dos agentes coletivos, em uma ação política que
figurações segmentares e por vezes dissociadas com conquiste novas correlações de forças, resultan-
que se apresentam hoje as práticas, saberes e in- tes de novas relações de poder e produção de no-
formações em saúde. Entende-se que, sob a refe- vos saberes. Ação política que se materialize tan-
rência delimitadora do campo, se esboçam as fi- to no âmbito epistemológico, quanto na política
guras relacionais melhor compreendidas sob o de saúde (e como parte dessa na Política de C&T
conceito de redes21. em Saúde e Política de Informação e Informática
A valorização do ponto de vista dos partici- em Saúde), na gestão do SUS, conferindo à práxis
pantes, frente sua crescente substituição pelos de informação em saúde visibilidade e potência
empreendimentos dos poderes políticos e econô- de intervenção.
561

Ciência & Saúde Coletiva, 12(3):553-565, 2007


Apenas a título de ilustração, como exemplo, tuação reforça a dispersão, facilita a multiplica-
destacam-se as estruturas de gestão do SUS das ção de contratos e fragiliza sua identidade institu-
três esferas de governo: Ministério da Saúde, Se- cional, epistêmica e sua potência de ação política.
cretarias de Estado e Municipais de Saúde. Salvo Entretanto, a partir dos diferentes e muitas
mudanças na denominação, em quase todas se vezes estanques setores, pode-se vislumbrar a
observa o quadro fragmentado das informações potencialidade de constituição de uma linha tê-
e informática em saúde, esquematicamente apre- nue de ação política e epistemológica que perpas-
sentado na Figura 1. Observa-se que cada setor/ se por todos, em uma abordagem transdiscipli-
órgão/agência in per si esforça-se por constituir nar, e estabeleça canais de interlocução contínuos
“seu” próprio sistema de informação, “seu” nú- em direção a um processo coordenado, contri-
cleo de informática ou tecnologia de informação buindo para a (re)construção do intercampo de
e, paradoxalmente, “sua” padronização. Essa si- informação e informática em saúde. (Figura 2)

Figura 1. Fragmentação das informações e informática em saúde.

ASSISTÊNCIA SIS
ADMINISTRAÇÃO EM SAÚDE SIS
REGULAÇÃO SIS

VIGILÂNCIA EPIDEMIOLÓGICA SIS

RECURSOS HUMANOS SIS

CONTROLE/AVALIAÇÃO SIS PLANEJAMENTO SIS

SAÚDE SUPLEMENTAR SIS

VIGILÂNCIA SANITÁRIA SIS

ORÇAMENTO e FINANÇAS SIS

Figura 2. Intercampo de Informação e Informática em Saúde.

ASSISTÊNCIA INTERCAMPO DA
IIS INFORMAÇÃO E
ADMINISTRAÇÃO EM SAÚDE INFORMÁTICA
IIS EM SAÚDE
REGULAÇÃO
IIS
VIGILÂNCIA EPIDEMIOLÓGICA
IIS IIS
RECURSOS HUMANOS
IIS
CONTROLE/AVALIAÇÃO IIS
PLANEJAMENTO
IIS IIS
VIGILÂNCIA SANITÁRIA
SAÚDE SUPLEMENTAR
IIS
ORÇAMENTO e FINANÇAS
562
Moraes, I. H. S. & Gómez, M. N. G.

Uma estratégia como essa requer esforços con- a) Os espaços de pesquisa, de desenvolvimen-
tínuos e agentes vocacionados para tal, legitima- to tecnológico e de ensino no âmbito da Ciência e
dos institucionalmente. É nesse contexto que surge Tecnologia em Saúde e em Informação;
a necessidade de constituição de instância forma- b) Os espaços governamentais e de adminis-
lizada dedicada à informação e informática em tração pública no âmbito da saúde e no âmbito
saúde (IIS), conformando novas arenas e atores da informação e informática; e os espaços de
em uma ação política em forma de rede. Nesse empreendimentos econômicos e de administra-
processo, existem diferentes forças intervenien- ção privada da Saúde e da Informação, incluindo
tes, que se somam ou se conflitam, em uma in- suas tecnologias associadas – considerando tam-
tensa dinâmica de negociação a cada passo, a de- bém a computação e as telecomunicações); e
pender do momento histórico e/ou da agenda de c) Os espaços de conquista e exercício de cida-
atuação. É óbvio que as negociações já existem. dania: modos de vida & saúde, enquanto conjun-
Esse ensaio propugna a entrada nessa cena de to articulado das práticas da vida cotidiana9.
novos atores em novas arenas, revestindo de Com a preocupação de participar desse em-
maior visibilidade todo o processo que passa a preendimento coletivo, agregam-se ao exposto
pressupor maior mobilização social e política, anteriormente algumas iniciativas estratégicas
forjando uma rede complexa de poderes e sabe- para conferir maior visibilidade e mobilização
res que amplia a potência de intervenção no jogo social e política ao processo como um todo:
político. Identificação de centros de formação, pes-
De fato, a ação política voltada para a quisa e desenvolvimento tecnológico para o de-
(re)constituição do intercampo de informação e senvolvimento de uma Rede Nacional de Cen-
informática em saúde, para ser efetiva, precisa tros de Ensino e Pesquisa em Informação e In-
envolver (Figura 3): formática em Saúde voltada para um intensivo

Figura 3. Intercampo de Informação e Informática em Saúde: espaços envolvidos.

MODOS DE VIDA & SAÚDE GOVERNO E


ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Instâncias integradoras de
INTERCAMPO DA informação em saúde na
Instâncias da sociedade INFORMAÇÃO E estrutura organizacional
civil organizada: INFORMÁTICA
Conselhos de Saúde; EM SAÚDE
EMPREENDIMENTOS
Rádios Comunitárias;
ECONÔMICOS
Associações de Moradores etc.
E ADMINISTRAÇÃO PRIVADA

Entidades representativas de TIC

Instâncias epistemológicas, de pesquisa e ensino em


Informação e Informática em Saúde

C&T EM SAÚDE
E
C&T EM INFORMAÇÃO
563

Ciência & Saúde Coletiva, 12(3):553-565, 2007


processo de interlocuções e troca de experiências da na sociedade contemporânea, em sua expres-
para potencializar o uso de investimentos de fo- são concreta no Brasil?
mento em P&D. A mudança emergirá a partir de nova práxis
Intenso programa de capacitação na for- construída por agentes históricos que lutam de
mação de quadros com qualificação científica e acordo com suas posições nas relações de poder e
tecnológica para a constituição de massa crítica e produção de saberes, em defesa de seus interesses
criativa, produtora de conhecimento (teórico, e visões de mundo. A capacidade da Informação
conceitual, metodológico, tecnológico e técnico- em Saúde se transformar, superando suas histó-
operacional), nas esferas públicas de C&T em ricas limitações, depende de como fiquem posici-
Saúde e dos Serviços de Saúde. onados nos espaços decisórios os agentes coleti-
Organização, no âmbito de instituições tais vos que melhor expressem as demandas e condi-
como Ministério da Saúde, Secretarias de Estado ções de um uso social da informação que rompa
e Municipal de Saúde, Centros, Núcleos e Labo- com a abordagem biologicista e fragmentadora
ratórios de Ensino e Pesquisa de espaços (instân- da Saúde.
cias) dedicados ao (re)pensar da informação e Para tal, a construção da Política Nacional de
informática em saúde e ao seu desenvolvimento Informação e Informática em Saúde, como parte
epistemológico e político, por agentes históricos da Política Nacional de Saúde (o que inclui a Po-
em sua prática institucional, afinal, [...] No nível lítica de C&T em Saúde), precisa ocorrer nos mar-
da práxis, tais efeitos [concretos e simbólicos da cos da democracia participativa, onde se impõe a
produção do conhecimento] somente se realizam seguinte questão: quem participa das decisões re-
dentro de instituições de produção socialmente or- lacionadas à informação e informática em saú-
ganizadas como qualquer outra prática social-his- de? Observa-se que as disputas de interesses se
tórica.9 Esses espaços organizacionais têm a res- dão através da ação de ‘atores especialistas’. As
ponsabilidade de re-ligarem o disperso, o separa- decisões em torno da informação e informática
do, o desconexo. Nesse sentido, exercem a fun- em saúde permanecem exclusivamente “nas
ção de coordenação, interlocução, referência e mãos” dos que “entendem”, dos que “sabem”, dos
identidade do intercampo de práticas informa- “técnicos”7.
cionais em saúde. Política de Informação e Informática em Saú-
Manutenção de interlocução epistemológi- de (PIIS) que, nesse caso, pressupõe ser forjada
ca e política com o debate que se dá no âmbito da com ele (sujeito informacional) e não para ele, nos
maturação teórica da Saúde Coletiva, da Epide- marcos da democracia participativa. PIIS que
miologia e dos esforços em torno da construção pressupõe decisões políticas e econômicas eiva-
de uma Ciência da Saúde, sempre de forma coo- das de relações de poder e produção de saber.
perativa e solidária, em um mesmo patamar, sem Não se trata apenas de discutir e (re)pensar siste-
subordinações, valorizando a riqueza e fecundi- mas de informação em saúde e/ou tecnicalidades
dade da diversidade e pluralidade de pensamen- computacionais, confinando o debate a aspectos
tos e abordagens. De fato, trata-se de se incorpo- específicos, com baixa capacidade de mudanças,
rar ao movimento de intensa convergência tecno- esvaziando o processo de formulação, implemen-
lógica no campo da informação, alargando-o para tação e avaliação da PIIS.
um processo de convergência da produção do Trata-se de uma política vinculada a um pro-
conhecimento de diferentes campos de saberes, jeto de país, onde sociedade organizada, gover-
sob a ótica da transdisciplinaridade. no e C&T em Saúde, em um amplo pacto, irão
Priorização dos estudos voltados para a responder a seguinte questão: Como as infor-
superação da ausência sistemática nas informa- mações em saúde podem, ao mesmo tempo,
ções em saúde do sujeito – indivíduo integral por- contribuir para: 1) um processo democrático
tador de historicidade, direitos e deveres, cidada- emancipador do Homem brasileiro; 2) o exer-
nia e subjetividade, vis-à-vis a presença de frag- cício do controle social; e 3) a gestão qualificada
mentos do indivíduo na realidade virtual do cibe- do SUS comprometido com a melhoria da saú-
respaço. Ao mesmo tempo, refletir sobre o para- de da população?
doxo de tornar mais efetivos os dispositivos de Política pública vinculada a um projeto eman-
biovigilância – como os SIS – em uma sociedade, cipador que pressupõe a inscrição do tema da
como a brasileira, com um frágil arcabouço jurí- informação e informática em saúde tanto na
dico-ético-institucional de defesa da esfera priva- agenda coletiva de luta daqueles que sofrem com
da da vida. Quais são os limites entre a esfera a fragilidade de um processo democrático mas-
pública (governamental/estatal) e a esfera priva- sificador, quanto na agenda da saúde dos Con-
564
Moraes, I. H. S. & Gómez, M. N. G.

selhos de Saúde, das Comissões Intergestores e uma ‘epistemologia da informação e informática


nos espaços de pesquisa e desenvolvimento tec- em saúde’, por ultrapassagens de elaborações su-
nológico. cessivas, em uma dinâmica de maior aprofunda-
mento e maturidade epistemológica-política, em
um diálogo permanente entre os diversos cam-
Considerações finais pos científicos, as instituições científicas e de ser-
viços de saúde nas três esferas de governo e entre
O conhecimento científico se dá em contextos his- seus agentes: os cientistas, os profissionais, os ges-
tóricos onde se desenvolvem seus planos teóricos tores e os conselheiros de saúde.
e de práticas, lógicos e empíricos, a partir de pro- Como indicativo promissor desse caminhar,
dução de saberes e relações de poder exercidas cabe destacar a iniciativa do Conselho Nacional
por agentes – pessoas – em suas inserções institu- de Saúde com a criação da Comissão Intersetori-
cionais, sociais, políticas, econômicas e culturais. al de Comunicação e Informação em Saúde (CI-
Com esse entendimento, o presente ensaio rom- CIS), em 2005. A CICIS iniciou um amplo debate
pe com a ‘aura da neutralidade’, pois se insere no nacional entre os Conselhos de Saúde (estratégia
compromisso de levantar questões que podem consistente de preparação para a realização da I
delinear as imbricadas dimensões do problema Conferência Nacional de Comunicação, Informa-
de partida: a necessidade de superar as limitações ção e Informática em Saúde em 2007) em torno
da ‘informação e informática em saúde’ como um da proposta de estabelecimento de um ‘Pacto pela
dos pré-requisitos fundamentais para o avanço democratização e qualidade da informação e in-
do SUS e do aumento da capacidade de resposta formática em saúde’ no país.
do Estado e Sociedade em prol da Saúde da po- O desafio é inscrevê-lo na práxis informacio-
pulação brasileira. nal como conquista da sociedade em uma com-
Assim, a ética da responsabilidade na prática plexa unidade entre uma razão teórica capaz de
de cientistas comprometidas com seu tempo ori- conhecer o mundo e uma razão prática, capaz de
enta essa ação: procurar desvendar a situação atual criar uma civilização humana – um Brasil – mais
da Informação e Informática em Saúde em sua saudável, justa e fraterna, onde seja respeitada,
relação com a sociedade que a produz, em sua por todos, a Humanidade presente no outro e em
historicidade, como uma estratégia na luta pela cada um. Esse desafio coletivo se insere no com-
melhoria das condições de saúde da população. promisso do estabelecimento de um pacto ético
A expectativa é que esse ensaio represente uma da solidariedade na práxis da atenção à saúde em
contribuição, em sua provisoriedade, para que um amplo movimento voltado para manter o
mais adiante outros avancem na construção de encantamento e a esperança no SUS.
565

Ciência & Saúde Coletiva, 12(3):553-565, 2007


Colaboradores

IHS de Moraes e MNG de Gómez participaram


igualmente em todas as etapas de elaboração do
artigo.

Referências
1. Serres M. Os cinco sentidos – Filosofia dos corpos 12. Paim, J; Almeida Filho N. Saúde Coletiva: uma
misturados 1. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2001. “nova saúde pública” ou campo aberto a novos
2. Santos BS. Pela mão de Alice. O social e o político na paradigmas? Revista de Administração Pública 1998;
pós-modernidade. São Paulo: Cortez; 1996. 32(4):299-316.
3. Araújo HE. Desigualdades, cambios demográficos 13. Mac Dougall, J.; Brittain, J.M. Health Informatics.
recientes y perfil epidemiológico como variables Annual Review of Information Science and Technolo-
políticas de salud – un análisis regional. In: Negri gy (ARIST) 1994; 29:183-217.
B, Di Giovanni G, organizadores. Brasil – Radio- 14. Bath, P. Data Mining in Health and Medical Infor-
grafía de la Salud. Campinas: UNICAMP; 2003. mation. Annual Review of Information Science and
4. Hasenbalg C, Silva NV, organizadores. Origens e Technology 2003; 38.
destinos: desigualdades sociais ao longo da vida. Rio 15. Russell MR, Brittain M. Health informatics. Annu-
de Janeiro: Topboooks; 2003. al Review of Information Science and Technology 2002;
5. Vasconcellos MM, Moraes IHS, Leal MT. Política de 36.
saúde e potencialidades de uso das tecnologias de 16. Bowker GC, Star SL. Sorting Things Out. Classifica-
informação. Revista Saúde em Debate 2002; 61:219- tion and its Consequences. Cambridge: MIT Press;
235. 2000.
6. Moraes IHS. Informação em saúde: da prática frag- 17. Latour B. Ciência em ação. Como seguir cientistas e
mentada ao exercício da cidadania. São Paulo: Huci- engenheiros sociedade afora. São Paulo: UNESP; 2000.
tec; 1994. 18. Minayo MCS. Health as a scientific object and a
7. Moraes IHS. Política, tecnologia e informação em theme for life.. Cad Saúde Pública 2001; 17(4): 777.
saúde - a utopia da emancipação. Salvador: ISC/UFBa 19. Mauss M. Sociologia e Antropologia. v. I. São Paulo:
e Casa da Qualidade; 2002. EPU/EDUSP; 1974.
8. Foucault M. O nascimento da clínica. Rio de Janei- 20. Bourdieu P. O campo científico. In: Ortiz R, orga-
ro: Forense Universitária; 1980. nizador. Sociologia. São Paulo: Ática; 1983.
9. Almeida Filho N. A ciência da saúde. São Paulo: 21. Wellman B. Structural Analysis: From Method and
Hucitec; 2000. Metaphor to Theory and Substance In: Wellman B,
10. Santos M. Técnica – Espaço – Tempo: globalização e Berkowitz SD, editors. Social Structures a Network
meio técnico-científico informacional. São Paulo: Approach, Cambridge: Cambridge University Press;
Hucitec; 1997. 1988. [acessado 2001 Set 18]. Disponível em:
11. Offe C. Problemas estruturais do estado capitalista. www.chass.utoronto.ca/~wellman/publications
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; 1984. 22. Habermas J. The Theory of Communicative Acti-
on.. V.lI: Lifeworld and System: a Critique of Functi-
onalist Reason and the Rationalization of Society. Bos-
ton: Beacon Press; 1987.

Você também pode gostar