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Estudos

clássicos
e filológicos
Adílio Junior de Souza
Organizador

1
Adílio Junior de Souza
Organizador

Araraquara
Letraria
2021
Estudos clássicos
e filológicos
PROJETO EDITORIAL
Letraria

PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO


Letraria

CAPA
Letraria

REVISÃO
Letraria

SOUZA, Adílio Junior de. (org.). Estudos clássicos e


filológicos. Araraquara: Letraria, 2021.

ISBN: 978-65-86562-69-9

1. Estudos clássicos. 2. Estudos filológicos. 3. Filologia.

CDD: 410 – Linguística

Os textos aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus


autores e do organizador.
Esta obra ou parte dela não pode ser reproduzida por qualquer
meio, sem autorização escrita dos autores e do organizador.
Conselho editorial
Francisco Gomes de Freitas (URCA)
Juliana Santana de Almeida (UFT)
Patrícia de Oliveira Batista (UESPI)
Dedicatória
Ao amigo, professor e mentor, Prof. Dr. Alberto Miranda
Poza. Seus ensinamentos abriram-me a mente para
o despertar dos estudos clássicos/filológicos.
Sumário
Prefácio 8

Apresentação 10

I ESTUDOS CLÁSSICOS 12

Hipólito de Eurípides e Fedra de Sêneca: um breve exame da virtude da temperança 13


Vanessa Silva Almeida

A intervenção divina na configuração do herói na Odisseia 25


Cícero Émerson do Nascimento Cardoso

A tradição latina do ensino da Ars Grammatica: a influência de Quintiliano na 45


educação latina medieval
Yuri Sampaio

II ESTUDOS FILOLÓGICOS 60

Arcaísmos no português popular do nordeste brasileiro à luz da filologia 61


portuguesa
Josenir Alcântara de Oliveira, Mayara Arruda Martins e Demartone Oliveira Botelho

O português (não) veio do latim: um problema filológico 84


Adílio Junior de Souza

Sobre o organizador 98

Sobre os autores 100

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Prefácio
Por que estudar os clássicos? Para que filologia?

Este livro não é para quem tem essas dúvidas, pois sua pretensão não é responder a elas.
Este livro é, na verdade, para quem não faz essas perguntas, porque quem se interessa em ler
um livro que se intitula Estudos clássicos e filológicos é costumeiramente do time das Letras
e das Humanidades, isto é, de um grupo a quem não soa estranha aquela canção que diz “A
gente não quer só comida / A gente quer comida, diversão e arte...”, porque compreende que
a vida humana não é feita apenas de coisas que nos são úteis por nos fazerem sobreviver,
mas é feita também de coisas que nos são caras por nos fazerem viver e viver não apenas
num sentido meio hedonista próximo daquele pincelado num famoso epigrama de Marcial –
Balnea, vina, Venus corrumpunt corpora nostra / Sed vitam faciunt balnea, vina, Venus –, mas
um viver sensível mais próximo daquilo que sentimos ao ler, entre tantos outros, este magistral
verso de Ovídio – di facerent, possem nunc meus esse liber! –, isto é, um viver que não é só
corpóreo, mas, sobretudo, sentimental, intelectual e espiritual.

Um animi cibus com que os amantes das Letras e das humanidades podem se deliciar
neste livro tem o tempero de Eurípides e de Sêneca em um estudo que examina a “virtude da
temperança nas peças Hipólito e Fedra, verificando o modo como a noção dessa virtude é
articulada na construção de um discurso favorável ao incentivo do domínio das paixões”, como
diz sua autora, Vanessa Silva Almeida.

Um mentis cibus que também é encontrado neste livro é um estudo sobre a intervenção
divina na configuração de Odisseu na sua jornada registrada naquele livro que vem desde a
antiguidade helênica até nosso presente, influenciando nossa cultura ocidental, como aponta
seu autor, Cícero Émerson do Nascimento Cardoso.

Uma boa pedida nesse livro é também o eruditorum cibus ideal para quem deseja “entender
a transmissão cultural do mundo antigo através da educação latina medieval, a fim de entender
o espírito do mundo ocidental”, como destaca o autor do estudo, Yuri Sampaio.

Um cibus que certamente agradará ao gosto dos philologi é o estudo sobre arcaísmos no
português popular do nordeste brasileiro à luz da filologia portuguesa, que, entre tantas outras
lições, nos ensina “que a região do interior do nordeste brasileiro é uma área frutífera para os
estudos da filologia portuguesa, da história da língua portuguesa e da linguística histórica”,
no dizer dos seus autores, Josenir Alcântara de Oliveira, Mayara Arruda Martins e Demartone
Oliveira Botelho.

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Como arremate, temos um cibus intellectualis na forma de um estudo que problematiza se
a língua portuguesa veio do latim ou do galego, de autoria do organizador deste livro, Adílio
Junior de Souza, sem sombra de dúvidas – dentre aqueles que, mesmo depois de passado
tanto tempo, ainda me chamam de magister –, o que mais se dedica aos estudos do latim e
da filologia românica.

Enfim, parafraseando o lecturis salutem com que os copistas dos códices costumavam
iniciar seus trabalhos, digo cibaturis animos salutem!

Ab imo pectore!

Prof. Dr. Francisco Gomes de Freitas Leite


Universidade Regional do Cariri - URCA
Crato, 22 de junho de 2021.

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Apresentação
A obra que ora apresento é um dos resultados do projeto de pós-doutoramento “Tópicos
avançados de linguística românica: o uso do latim como fonte para a linguística histórica”,
realizado no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco
(PPGL/UFPE-2021-2022), supervisionado pelo prof. Dr. José Alberto Miranda Poza.

Com o intuito de subsidiar disciplinas de Linguística Românica, Linguística Histórica e,


especialmente, Estudos Clássicos, este livro sintetiza uma parte importante das pesquisas
desenvolvidas no âmbito do ensino superior, integrando estudos de pesquisadores oriundos
da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Universidade Regional do Cariri (URCA),
Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Universidade Federal do Ceará (UFC), Secretaria
de Educação (SEDUC-CE) e Instituto Federal do Ceará (IFCE).

A obra se divide em duas partes: na primeira, se concentram pesquisas em estudos clássicos,


mais especificamente sobre a literatura grega, literatura latina e bases epistemológicas da
educação latina medieval. Na segunda parte, encontram-se estudos de natureza filológica,
com destaque para estudos sobre a língua latina e a língua portuguesa.

I ESTUDOS CLÁSSICOS
No primeiro capítulo, cujo título é “Hipólito de Eurípides e Fedra de Sêneca: um breve exame
da virtude da temperança”, Vanessa Silva Almeida investiga a temperança em Hipólito, do poeta
trágico grego, demonstrando a construção de um discurso em defesa do domínio das paixões.
No estudo, a autora também pretende verificar o modo como o escritor romano Sêneca, em
Fedra, examina a tradição, renova a estrutura da tragédia e revela o que em Eurípides é velado:
a crítica à intemperança.

No segundo capítulo, intitulado “A intervenção divina na configuração do herói na Odisseia”,


Cícero Émerson do Nascimento Cardoso desenvolve estudo acerca da construção do herói épico
Odisseus, isto é, ele analisa de que maneira os deuses intervêm nas ações e na construção
do perfil desse herói.

Em “A tradição latina do ensino da Ars Grammatica: a influência de Quintiliano na educação


latina medieval”, Yuri Sampaio descreve como se deu o ensino de gramática no período pós-
queda do Império Romano do Ocidente. O estudo busca esclarecer como era o ensino da língua
e literatura através do curriculum escolar das artes liberais. O autor traça o histórico desse
ensino que remonta até os gregos. Em seguida, mostra como a Idade Média Latina preservou
o mesmo método de ensino e um respeito à língua latina, constituindo-se, até nesse aspecto,
como herdeira da mentalidade romana.

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II ESTUDOS FILOLÓGICOS
Em “Arcaísmos no português popular do nordeste brasileiro à luz da filologia portuguesa”,
Josenir Alcântara de Oliveira, Mayara Arruda Martins e Demartone Oliveira Botelho rastreiam
alguns arcaísmos do português popular do interior nordestino brasileiro. Para tal, os autores
utilizaram métodos filológicos (histórico-comparativo, geografia linguística e linguística espacial),
bem como teorias linguísticas, sociológicas e historiográficas. O estudo evidencia um fio cultural
que permeia desde o latim até o português popular do interior nordestino brasileiro.

E, por último, encerrando esta obra, em “O português (não) veio do latim: um problema
filológico”, Adílio Junior de Souza reflete acerca das noções de línguas vivas e mortas com base
em estudos do séc. XIX: um de 1837, de autoria de Luiz Saraiva e outro de 1843, de Campos,
bem como a partir de estudos recentes. Nesse estudo de cunho filológico-bibliográfico, o autor
problematiza a origem da língua portuguesa sob duas perspectivas, a de que o português veio
do latim vulgar e a que nega sua filiação à língua dos romanos.

Prof. Dr. Adílio Junior de Souza


Universidade Federal de Pernambuco
Recife, 20 de junho de 2021.

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I ESTUDOS CLÁSSICOS
Hipólito de Eurípides
e Fedra de Sêneca:
um breve exame da
virtude da temperança
Vanessa Silva Almeida
Instituto Federal do Ceará – IFCE
Introdução
Temperança (sophrosýne) é, inegavelmente, uma palavra-chave em Hipólito, de Eurípides.
O culto do personagem-título à deusa Ártemis, em contraposição à sua repulsa aos domínios
de Afrodite, coloca este conceito no centro de inúmeras interpretações sobre a peça. Por outro
lado, formando um contraponto com a noção de sophrosýne, há o páthos amoroso/sexual de
Fedra. Tais conceitos, entretanto, não são apenas relacionados aos âmbitos sexuais, mas a
outros vícios e virtudes humanos. Este capítulo pretende investigar esses conceitos nas atitudes
dos principais personagens da peça – Hipólito e Fedra – a fim de demonstrar a construção de
um discurso, ainda que sutil em Eurípides, em defesa do domínio das paixões. Além disso,
pretende-se também verificar o modo como Sêneca, em sua peça Fedra, examina a tradição
fazendo uso da influência de Eurípides, renovando a estrutura da tragédia e revelando o que no
tragediógrafo grego é velado: a crítica ao favorecimento dos vícios em detrimento das virtudes,
que encontra bastante espaço no estoicismo do filósofo romano. Tais análises são feitas a partir
da comparação entre os personagens de ambas as peças, não deixando de lado a linguagem
e o estilo próprios de cada tragediógrafo, o contexto de produção das obras, bem como outras
influências.

Para introduzirmos o assunto, podemos afirmar que o domínio das paixões humanas,
especialmente das paixões sexuais, ocupa certo papel de destaque na discussão sobre a
condição humana desde a Antiguidade. Em Górgias (493a), por exemplo, aludindo ao mito
das Danaides, Platão diz que o corpo (sôma) é como um tonel furado que, ao ser enchido com
água, faz com que ela escorra pelos furos, e logo vem a necessidade de enchê-lo novamente,
num ciclo sem fim. Para o filósofo, o corpo é inferior à alma e por isso mesmo o homem não
deve buscar satisfazê-lo, mas visar ao que ele considera melhor: o aperfeiçoamento da alma.

Tal colocação de Platão nos leva à reflexão sobre a temperança, que, a julgar da obra
do filósofo grego, foi-lhe um tema muito caro. Cabe, assim, examinar como o conceito de
temperança foi visto na Antiguidade e refletido em peças como Hipólito de Eurípides e, alguns
séculos mais tarde, em Fedra, de Sêneca.

O presente capítulo é fruto de anotações e leituras feitas para a elaboração do nosso projeto
de pesquisa de doutorado que, por sua vez, surgiu a partir da leitura da peça latina Fedra.
Esta leitura nos levou, pela inevitável comparação, à releitura da peça euripidiana Hipólito.
Uma primeira interpretação da peça de Sêneca nos fez perceber uma reflexão crítica acerca
das consequências na vida do homem quando este não é capaz de dominar as paixões, fruto,
naturalmente, da concepção estoica do filósofo romano. Porém, apesar de haver uma questão
estoica presente na tragédia de Sêneca, perguntamo-nos, já que se tratava do mesmo mito, se

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tal crítica não poderia já estar presente também na peça de Eurípides, a fim de verificar algo
mais profundo entre as duas obras, que não fosse apenas a utilização do mesmo mito como
tema. Tais questões nos levaram ao exame do conceito da sophrosýne.

A partir do exame mencionado, verificamos as noções de temperança em ambas as peças


no desenvolver das ações dos personagens. Partimos do pressuposto de que essas noções
constituem a essência da peça euripidiana, e estão também essencialmente presentes na peça
de Sêneca, não apenas devido ao estoicismo, escola filosófica a qual Sêneca era ligado, mas
também devido à influência de Eurípides em sua obra trágica.

O estudo será realizado em dois eixos principais, a saber: o primeiro trata de uma investigação
do modo como os conceitos de sophrosýne (temperança) e, relacionado a este, o de páthos
(paixão, afetação) se articulam nas ações dos personagens na peça de Eurípides; o segundo
verifica o modo como tal articulação em Eurípides é reestruturada por Sêneca em sua tragédia
Fedra, levando em consideração a influência de Hipólito na composição da peça do filósofo
romano.

A partir dos dois eixos mencionados, o texto apresenta o cerne do estudo que intentamos:
demonstrar a construção de um discurso crítico em favor do domínio das paixões que, embora
seja subjacente em Eurípides, não deixa de estar presente, e encontra solo fértil para se
concretizar no contexto estoico em que Sêneca produziu a sua peça.

1 Relevância do tema e sua abordagem em


alguns estudos importantes
Como mencionado, o intento deste capítulo é esboçar um breve exame da virtude da
temperança nas peças Hipólito e Fedra, verificando o modo como a noção dessa virtude é
articulada na construção de um discurso favorável ao incentivo do domínio das paixões.

Para este estudo, a abordagem do tema se fez relevante para nós por duas razões: a
primeira é que grande parte da interpretação que tem sido feita até hoje sobre as paixões
humanas, de modo geral, é muito mais filosófica/teológica do que literária, e para isso, inclusive,
o estoicismo de Sêneca contribuiu sobremaneira. Observemos, por exemplo, a recorrência do
tema nas obras de Platão, Aristóteles, do próprio Sêneca, em toda a teologia cristã/católica, com
Santo Agostinho, Santo Tomás de Aquino e vários outros, que não mencionamos aqui para não
irmos além do limite a que nos propomos. Nesse sentido, acreditamos que uma interpretação
literária a partir de um tema tão complexo possa contribuir para a construção de um novo
entendimento tanto da peça de Eurípides quanto mesmo da de Sêneca, uma vez que muitos
estudos sobre ambas as peças, quando abordam o assunto, ou fazem-no muito sutilmente,
sem desmistificar certa confusão entre os termos “temperança”, “castidade” e “contenção

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sexual”, por exemplo, ou, em se tratando de Sêneca, detêm-se quase exclusivamente em uma
interpretação estoica. Ressaltamos, entretanto, que não é nosso intuito dissociar a filosofia de
Sêneca de sua obra dramática, o que seria, a nosso ver, um equívoco. O que pretendemos
é abordar de uma forma literária a temática da temperança, buscando o que possivelmente
chamou a atenção de Sêneca no texto de Eurípides e que se encaixou nos seus propósitos
literários na composição de Fedra, especificamente.

A segunda razão é que diante de certa fuga de alguns estudiosos e de certo preconceito,
no puro sentido da palavra, em tratar do tema da temperança, associando-o muitas vezes
apenas à contenção sexual, o tema acaba por ser minorado do ponto de vista literário. Além
disso, por não ser algo tão debatido na cultura grega como foi na cultura latina, os estudos
acabam por se esquivar do tema em relação às obras gregas.

Como exemplo de trabalhos realizados sobre o tema nas supracitadas peças, mencionamos
os importantes artigos “Amor Erótico e Castidade no Hipólito de Eurípides”, de Flávio Ribeiro
de Oliveira, publicado em 2011, e “Fedra de Sêneca: que pode a razão perante o triunfo das
paixões?”, de Mariana Montalvão Horta e Costa Matias. O primeiro muito contribuiu para o
desenvolvimento das ideias que norteiam este capítulo, mas, seu propósito é apresentar uma
discussão sobre a peça no que tange à questão sexual, sem levar em conta a abrangência
da ideia de temperança dentro da peça euripidiana; o segundo, também muito relevante para
nosso trabalho, aborda muito bem o assunto na peça de Sêneca, mas o faz apenas pelo
viés filosófico do estoicismo, deixando um pouco à parte as características mais inerentes ao
discurso literário. Outro trabalho importante que aborda a temática em questão é a dissertação
de Fernando Crespim Zorrer da Silva, intitulada A Paixão Proibida no Hipólito, de Eurípides e
em Fedra de Sêneca, defendida em 2001, que toca em muitos pontos interessantes para a
nossa pesquisa, mas não tem o propósito de considerar, na peça de Eurípides, a característica
da temperança propriamente dita, conduzindo as discussões para uma ideia mais sentimental
da paixão.

Nossa perspectiva coaduna com a de Dupont (2011), de que as tragédias de Sêneca,


independentemente do teor estoico, carregam características literárias dignas de atenção. A
pesquisa que intentamos empreender segue justamente por essa via, discutindo o modo como
esse tema se desenvolveu na literatura, e como tanto Eurípides quanto Sêneca lidaram com
ele a partir do contexto de produção de suas obras e a partir de noções filosóficas.

2 Pressupostos metodológicos
Este capítulo tem como metodologia a pesquisa bibliográfica, pois os textos, literários e
teóricos, são “fontes dos temas a serem pesquisados” (SEVERINO, 2007, p. 122). Por se

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tratar de um estudo calcado na Literatura Comparada, isto é, um estudo intertextual entre
as tragédias Hipólito e Fedra, partimos dos conceitos de Kristeva (apud CARVALHAL, 2006,
p. 50), que diz que “todo texto é absorção e transformação de outro texto. Em lugar da noção
de intersubjetividade, se instala a de intertextualidade, e a linguagem poética se lê, pelo menos,
como duplo”.

O primeiro passo tomado para a realização da pesquisa foi a releitura completa tanto das
duas tragédias em questão: Hipólito e Fedra em seus idiomas originais, anotando e destacando
os momentos em que as questões a serem discutidas nesta pesquisa se revelam nas falas e
nas ações dos personagens. Além disso, recorremos a uma leitura geral do teatro de Eurípides
e do de Sêneca, bem como de eventuais obras críticas que ampararam o estudo e serão
mencionadas ao longo do trabalho.

Também fizemos um breve levantamento bibliográfico sobre Hipólito, de Eurípides, a fim


de filtrarmos aquelas que abordaram a peça a partir da temática por nós aqui discutida. Em
seguida, para o recorte metodológico, selecionamos aquelas que julgamos dar um melhor
suporte para a nossa abordagem. O mesmo procedimento foi adotado para a análise da peça
de Sêneca.

O estudo das obras foi feito em três partes, a saber: a primeira foi dedicada à análise das
personagens euripidianas seguindo os pressupostos apresentados neste capítulo; a segunda
parte deteve-se na análise da personagem Fedra, na peça de Sêneca, também de acordo
com o tema que se coloca aqui (paixão e temperança); e, por fim, a terceira parte analisou a
influência de Hipólito de Eurípides na composição de Fedra de Sêneca. Essas partes, embora
metodologicamente separadas, estão diluídas na escrita do texto, como poderá ser verificado
nas seções e subseções que se seguem.

3 Pressupostos teóricos
3.1 Algumas considerações sobre a temperança na Antiguidade
A discussão sobre a temperança e o domínio das paixões na Antiguidade é abordada
de forma recorrente na filosofia de Platão. Diálogos como Cármides, Protágoras, Górgias,
República, Banquete e Leis têm a temperança como um objeto de discussão e, de acordo com
Vasconcelos (2017), o tema na obra do filósofo grego reelabora o conceito a partir da tradição,
e põe em jogo as suas várias acepções. No entanto, Platão lutou contra seu tempo, pois, no
contexto em que viveu – o da Guerra do Peloponeso – o mundo grego atravessava um período
crítico de profunda crise moral, que fazia com que a temperança, “[...] uma vez louvada como

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fundamento da vida em comunidade, [fosse], durante esse período atacada como obstáculo
desnecessário que privava os homens da fruição dos prazeres, além de ser, eventualmente,
identificada com a covardia e a frouxidão.” (VASCONCELOS, 2017, p. 18).

O período clássico, em especial, marca uma drástica mudança no comportamento político


de Atenas que antes, diferenciando-se do inimigo persa (hýbristes) pela temperança, agora
cometia atitudes tirânicas: note-se o episódio da violenta punição dos cidadãos de Melos, que, de
acordo com Tucídides (Hist. 5. 84-113), se retiraram da aliança que tinham com Atenas durante
a guerra. Em tal contexto político, natural é que, no caso de Atenas, o teatro conceba peças
como o Hipólito, de Eurípides, e traga à cena a ruína de uma casa pela falta da temperança
nas ações.

No contexto da peça euripidiana, a palavra sophrosýne está fortemente relacionada ao que


concebemos por castidade. Isso pode ser verificado no discurso do próprio personagem-título,
quando diz que no “intacto prado” colha apenas quem é puro (v. 80). Contudo, a sophrosýne de
Hipólito, ou o que o personagem concebe como tal, é, na verdade, uma espécie de desmesura,
algo contrário à temperança, como pretendemos demonstrar, pois o exagero com que o
personagem se devota ao culto de Ártemis faz com que ele confunda o significado da verdadeira
sophrosýne, e acabe caindo em desgraça, morrendo tragicamente. Por outro lado, há o estado
afetado (páthos) de Fedra que, por não ser capaz de dominar o seu desejo sexual – pois lhe
é infundido por Afrodite – encontra no suicídio a “melhor decisão” (v. 402).
Se, por um lado, na peça de Eurípides há uma espécie de exagero na prática da temperança,
por outro, no contexto da peça de Sêneca, Fedra, o que é mais evidente é justamente a falta
dessa virtude nas ações dos personagens, principalmente nas da personagem-título. Em outras
palavras, podemos dizer que enquanto na peça euripidiana há o excesso, na peça de Sêneca,
por seu turno, há a ausência, e tal ausência é justamente a causa das trágicas consequências
para os personagens.

3.2 As possíveis influências de Sêneca para a composição de Fedra


No conjunto da obra de Eurípides, é em Hipólito que podemos observar uma das primeiras
reflexões sobre o poder das paixões humanas. De acordo com Segal (1993), é a primeira peça
remanescente a trazer para o palco as graves consequências da falta, ou da incompreensão
da temperança. E a partir de Hipólito, passando pela tradição filosófica grega, o tema pareceu
ter se desenvolvido de modo a chamar a atenção de Sêneca e levá-lo a compor Fedra. De
acordo com Silva (2015), Sêneca certamente se apropriou de várias obras com o tema do mito
de Hipólito e Fedra, entre as quais o autor destaca as duas versões de Hipólito, de Eurípides
(Hipólito Velado, da qual restaram apenas fragmentos, e Hipólito Porta-Coroa, que é a versão

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que nos chegou), Heroidum Epistulae IV, de Ovídio, além de um texto de Lícofron, que não
chegou até nós. Estas suposições são levantadas por Silva (2015) que, por sua vez, ampara-se
em Grimal (1963) e Raij (1992), que acreditam que a gama de textos com o tema do mito de
Hipólito e Fedra com os quais Sêneca teve contato é bem maior do que o que se pode supor.

3.3 Hipólito de Eurípides


Na peça euripidiana, Hipólito é um modelo de castidade por excelência. De acordo com
Franciscato (2006), ele sintetiza em si todo o léxico da tragédia relacionado à pureza. De
acordo com a autora, é de fato uma escolha de Hipólito viver para honrar Ártemis através de
sua castidade. No verso 87, o jovem deixa claro que quer terminar sua vida dedicada à deusa
assim como começou: “Seja meu fim de vida como o início” (Eur., Hipp., 87).

No entanto, o conflito de Hipólito começa a ser delineado, e em lugar de um jovem apenas


puro, vemos um jovem desmedido em relação à sua repulsa ao sexo, bem como em sua
veneração à deusa, que, nas palavras de Fialho (2012, p. 39), “tem aspectos próximos da
contemplação mística”, o que podemos observar na seguinte fala do personagem dirigida à
deusa Ártemis: “Só eu dentre os mortais tenho esta honra:/ vivo junto de ti, falo contigo/ e ouço
a tua voz, se não te vejo o rosto” (Eur. Hipp. 84-86).
O que se depreende da veneração desmedida de Hipólito é a iminência da tragédia: todos os
personagens da literatura grega que cometeram a desmedida (hýbris) foram cruelmente punidos
pelos deuses, e nesse sentido, a punição de Hipólito decorre de dois polos diametralmente
opostos: o demasiado distanciamento de Afrodite, e a aproximação igualmente demasiada
de Ártemis. Não há como negar, pela leitura da peça, que Ártemis corresponde à afeição de
Hipólito, pois fala com ele, como mencionado nos versos transcritos anteriormente. No entanto,
como observa Vernant (2008, p. 282), “o poeta toma cuidado em sublinhar o que comporta de
estranho e insólito nesse tipo de relações com o divino”. É vedado ao mortal uma aproximação
de intimidade com o plano divino, pois conforme Santos (1988, p. 132), “o ser humano, quando
se aproxima da divindade, sofre uma espécie de sanção. A aproximação é considerada como
um excesso (hýbris)”.

O que percebemos, pois, como resultado de tal aproximação, é que quanto mais Hipólito
avança para ocupar um lugar inapropriado para ele junto à Ártemis, mais ele se distancia de
Afrodite e, em se distanciando desta, mais se aproxima de sua própria ruína. Aí reside sua falta
de temperança: não saber ponderar o equilíbrio entre as duas deusas.

Em relação à Fedra, uma discussão interessante em torno do páthos que ela sofre é a ideia
de nósos (doença). A palavra é mencionada no prólogo feito por Afrodite na primeira vez em
que se refere ao amor de Fedra: “nenhum dos seus conhece o morbo” (Eur. Hipp., 40). E em

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vários outros momentos da peça, pode-se confirmar a interpretação de que a personagem se
encontra doente (v. 131; 136-7; 175). Além disso, sua serva percebe que o que ela diz não faz
sentido, o que a leva a pensar em uma espécie de loucura, demência (manía), que perturba
também a mente de sua ama: “Filha, o que gritas?/ Não profiras diante do povo/falas que
demência transporta!” (Eur. Hipp., 212-214).

Nos versos 293-296, a serva, após dizer que já tentara de tudo para aliviar os sintomas de
sua senhora, diz que é necessário revelar o problema aos médicos:

Se os males de que sofres são nefandos,


há mulheres aqui para calmá-los;
mas, se o caso pode expor aos homens,
fala, para que seja dito a médicos.
(Eur., Hipp., 293-296).

Os versos euripidianos atestam que a tragédia também estava considerando a paixão


amorosa como uma doença. No entanto, como observa Oliveira (2011), Fedra não sofre de
uma paixão amorosa no sentido de ternura ou afeição, mas sim de um violento desejo sexual,
que ela mesma tenta reprimir inicialmente, como podemos observar em sua fala nos versos
403-427, quando ela faz um discurso de elogio às virtudes morais e crítica aos vícios da carne,
enfatizando que é bom para todos na vida ter um caráter justo e bom. O que Eurípides estaria
a insinuar aqui senão um discurso moral?

Como afirma Oliveira (2011), as razões de Fedra são de natureza moral: ela não quer trazer
a vergonha para sua casa, desonrar seu marido (v. 420), nem prejudicar o prestígio dos filhos
(v. 421). Porém, o que inibe Fedra de ir adiante em seu desejo não é mais forte do que sua
nósos, isto é, sua “doença”, fazendo dela uma vítima, um instrumento da vingança de Afrodite.

A consideração de Fedra como uma vítima é discutida por vários autores. Oliveira (2011),
por exemplo, a coloca assim, e isso nos faria vê-la como inocente da desgraça da família,
um mero joguete dos deuses. Lauriola (2015), por sua vez, não isenta Fedra totalmente de
culpa. A autora, embora também a veja como uma vítima da nósos afrodisíaca, afirma que
os versos 398-399 nos quais a personagem diz “depois dispus-me a defrontar a insânia/ e
derrotá-la pela temperança” são dignos de nota. Para a autora, Fedra, plenamente consciente,
desenvolveu inicialmente uma disposição para o exercício da temperança, mas, falhando pela
incontrolável paixão, decide suicidar-se. Para Lauriola (2015), o que Eurípides intenta com isso
é revelar a fraqueza humana, que coloca nos deuses toda a responsabilidade de seus erros.
A interpretação da autora é bastante inovadora ao sugerir que Fedra teria a opção de resistir
à nósos. No entanto, tal leitura ofusca em certa medida a forte presença e as claras falas de
Afrodite sobre sua vingança contra o jovem Hipólito.

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3.4 Fedra, de Sêneca
Assim como Eurípides em sua época, que enfrentou uma crise moral na sociedade
ateniense durante um período de guerra, também Sêneca enfrentou um contexto difícil, tirânico
e sanguinário. Viu a sociedade romana sob o jugo de Nero se submeter às paixões e aos
vícios, completamente submersa numa gravíssima crise de valores morais. De acordo com
Matias (2012), o estoicismo encontra solo fértil nesse cenário para uma atividade de combate
às paixões.

Se por um lado, na peça de Eurípides, as deusas representam uma força motora dentro
da peça, na peça de Sêneca, os homens estão à mercê das próprias decisões. “O mundo
dos deuses fica distante, num segundo plano. Por outro lado, ficam evidenciadas as paixões
humanas” (SANTOS, 1988, p. 137). Na reestruturação que o filósofo romano faz do mito dentro
de sua tragédia, Fedra se torna a protagonista, e há significativas diferenças entre a personagem
da tragédia grega e a personagem da tragédia latina.

De acordo com Santos (1988), Sêneca deu um novo tratamento ao mito, incorporou
elementos, modificou as sequências das ações, mas cuidou para que o efeito de sua peça
continuasse trágico. Silva (2015) corrobora com Santos (1988), e acrescenta que o exame do
filósofo romano à tradição contribuiu sobremaneira para essa reestruturação.

Como mencionado, não há deusas na peça de Sêneca, e a tentativa de resistência da


Fedra euripidiana em nome da temperança cede lugar a uma personagem possuída de um
amor cheio de furor, ensandecida, sem tentativa nenhuma à resistência. No seu teatro – cheio
de estoicismo – vemos um desfile de personagens que, na sua essência tão miseravelmente
humana, sofrem, lutam, duvidam e, inevitavelmente, acabam por tomar decisões. Confundidas
por conflitos interiores que as dilaceram, estas figuras debatem-se entre a paixão e a razão,
o furor e a bona mens (boa razão, bom conselho), e cada personagem assume o papel de
exemplum, sobretudo através da demonstração de comportamentos reprováveis e criminosos,
como é o caso de Fedra na peça de Sêneca. De acordo com Matias (2012), na peça latina ela
é o exemplo a não ser seguido devido à fraqueza moral e espiritual e à intemperança.
Eurípides não chegou a criar personagens-exemplos, embora intente fazer, pela encenação
da peça, com que o público tome uma lição. Sêneca, por sua vez, inspirado nos vários mitos
e, sobretudo, em Eurípides, a quem considerava o tragediógrafo por excelência e “com quem
partilhava o interesse pela psicologia humana, pela especulação filosófica, pelas descrições
pictóricas e pelo patético” (MATIAS, 2012, p. 46), apropriou-se de temas, motivos e tradições
mitológicas, um legado coletivo que soube reformular com originalidade. Criou então um teatro
inédito, claramente motivado, não apenas pelos pressupostos filosóficos, políticos e sociais,
mas sobretudo literários (DUPONT, 2011).

21
Como podemos ver, Eurípides está bastante presente na obra de Sêneca, e esta influência
é fundamental no percurso de desenvolvimento do presente artigo, pois é através dela que
buscamos revelar a construção discursiva subjacente em Hipólito, voltando, em seguida, a
Fedra, e verificando o modo como Sêneca rearticula o mito, as estruturas trágicas, bem como
a abordagem do tema da temperança, que parece lhe ter sido muito caro a julgar pelo contexto
político e social em que viveu e produziu suas obras.

Conclusão
Empreender uma pesquisa sobre um tema complexo como é o da temperança dentro da
brevidade de um texto não é tarefa das mais fáceis. Por outro lado, a necessidade de uma
síntese colabora para que possamos ver ainda melhor a complexidade do tema e as lacunas
que inevitavelmente são deixadas para serem preenchidas em outras oportunidades. Como
este trabalho é fruto de um projeto maior, isto é, de uma pesquisa de doutorado, podemos levar
adiante inúmeras outras questões, discutindo-as com mais detalhes e mais profundidade.

No entanto, a partir desta breve pesquisa, o que depreendemos, ao menos inicialmente,


é que entre Eurípides e Sêneca o tema da temperança traçou um caminho e se estabeleceu
fortemente na tradição filosófico-literária da Antiguidade. O apelo ao tema em determinados
contextos (a guerra, no caso de Eurípides, e a tirania dos governantes, no caso de Sêneca)
foi fruto da reflexão e da observação aguçada de autores sobre os comportamentos humanos,
bem como do chamado deles ao exercício dessa virtude.

Intentamos demonstrar ao longo do trabalho que a mensagem de Sêneca em sua peça


carrega essencialmente uma crítica ao não domínio das paixões, isto é, à intemperança, e que
tal crítica estaria enraizada na tradição filosófico-literária anterior a ele, mas especialmente em
Eurípides, em quem o filósofo romano buscou o tema específico de sua tragédia Fedra e por
quem foi fortemente influenciado.

Demonstramos através de algumas passagens de Hipólito que, ainda que de um modo


velado, Eurípides toca de uma maneira muito profunda no tema da temperança em sua peça,
tanto pelo exame da piedade grega, que exigia do homem o culto a todos os deuses, a violação
dos limites humanos, as tentativas de resistência ao erro, no caso da personagem Fedra, sua
fraqueza, bem como a atuação dos deuses na vida humana.

Em suma, é possível verificar que todos os elementos citados concorrem coerentemente


para o cumprimento da função do teatro antigo, que tinha por finalidade, senão moralizar,
mas ensinar, ou mesmo exortar o homem à prática da virtude para o bom funcionamento da
sociedade, criticando os erros e as más atitudes, principalmente em contextos difíceis, como
aqueles vivenciados tanto por Eurípides em Atenas, como por Sêneca em Roma.

22
Referências
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DUPONT, Florence. Les Montres de Sénèque: Pour une dramaturgie de la tragédie


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LAURIOLA, Rosanna. Hippolytus. In: LAURIOLA, Rosanna; DEMETRIOUS, Kyriakos (ed.).


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MATIAS, Mariana Montalvão Horta e Costa. Fedra de Séneca: que pode a razão perante o
triunfo das paixões? In: JESUS, Carlos A. Martins de; CASTRO FILHO, Cláudio; FERREIRA,
José Ribeiro. Hipólito e Fedra nos caminhos de um mito. Coimbra: Centro de Estudos
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OLIVEIRA, Flávio Ribeiro de. Amor erótico e castidade no Hipólito de Eurípides. Nuntius
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23
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VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os gregos: estudos de psicologia


histórica. Tradução de Haiganuch Sarian. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2008.

24
A intervenção divina
na configuração do
herói na Odisseia
Cícero Émerson do Nascimento Cardoso
Universidade Federal da Paraíba – UFPB
Vede bem como os mortais acusam os deuses! / De nós (dizem) provêm as desgraças,
quando são eles, / pela sua loucura, que sofrem mais do que deviam.
(Odisseia, Canto I, v. 32–34)

Introdução
Aristóteles (Poética, XXIV, 151) afirma que a epopeia apresenta as mesmas características
da tragédia, isto é, pode ser simples, complexa, de caracteres e catastrófica. Na epopeia são
exigidas, também, peripécias, catástrofes e reconhecimentos. Ao remeter-se às epopeias
homéricas, ele diz que a “Ilíada, por exemplo, é episódica e catastrófica; já a Odisseia é
complexa, toda de reconhecimentos e de caracteres”.

Odisseia, segundo Bernardo Knox (2011, p. 07), é um termo comum a várias línguas,
com suas respectivas variações e significa “uma longa jornada cheia de aventuras e eventos
inesperados”. Quanto à data de composição da Odisseia, Knox (2011, p. 29) afirma que ela
foi composta “um pouco mais tarde dentro do mesmo intervalo” no qual a Ilíada foi produzida.
O autor propõe que a data mais provável “para composição da Ilíada são os cinquenta anos
que se situam entre 725 a.C. a 675 a.C.”.

Carlos Alberto Nunes (2001, p. 08), ao comparar a estrutura narrativa da Ilíada à da Odisseia,
afirma que:

O traçado da Odisseia é de mais fácil apreensão, e, digamos, artisticamente de melhor planejamento,


pela disposição concêntrica, em que o próprio herói do poema relata suas aventuras durante
os dez anos de peregrinação, no empenho de retornar para a pátria, depois de conquistada,
saqueada e destruída Troia, e de terem sido massacrados ou vendidos como escravos seus
moradores.

Nunes prende-se, em seu comentário, ao modo como a narrativa se desenvolve em relação


à enredística, no entanto, não aprofunda a discussão restringindo-se a apontar o fascínio que
a obra exerce para o leitor. Desse modo, ele chega a dizer que a Odisseia é “puro romance,
de enredo bem arquitetado”, sem apresentar um detalhamento acerca do que ele considera
ser esse “enredo bem arquitetado”.

Milton Marques Júnior (2008, p. 130), em ensaio no qual discorre sobre a tipologia do herói
épico clássico a partir dos temas honra, glória, destino e piedade, aprofunda essa discussão.
Para o autor, a Odisseia é uma narrativa “que trata da volta do herói, depois de destruída Troia”,
e centra-se na figura de Odisseus em sua luta contra o esquecimento do lar, uma vez que ele
é um “herói em busca da glória doméstica”.

26
Marques Júnior (2008, p. 131-132) propõe, em discussão mais atenta à estruturação da
Odisseia, uma notável divisão dessa obra. Segundo o autor, ela pode ser dividida em seis
momentos:

I. Telemaquia (Cantos I–IV): Viagem iniciativa de Telêmaco em busca do pai, fazendo do poema
uma narrativa cíclica, confirmando a condição de herói e varão de Telêmaco. Cumprindo seu rito
de iniciação, Telêmaco sai da Telemaquia inicial para a Andromaquia final.

II. Nostalgia Material (Cantos V–VIII): É o momento da dor da volta, a nostalgia, mas da volta
material, do regresso. Viagem de Odisseus de Ogígia à Feácia. Perseguido por Posídon, o herói
chega náufrago e só, na Feácia, sendo recebido pelo rei Alcínoo. Aqui se dá o final das provações,
em terra e no mar, fora de casa. Cumpre-se o rito de passagem de Odisseus, que permite ao
herói retomar o domínio de seu reino, tendo adquirido a Têmpera necessária.

III. Nostalgia Psíquica (Cantos IX–XII): Volta interna a partir do flashback de Odisseus, narrando
suas aventuras aos Feácios. Nesse momento, caracterizam-se os reconhecimentos da memória
e da astúcia (Canto IX, episódio dos Ciclopes). Eloquente e envolvente, Odisseus é visto pelo rei
Alcínoo como um aedo. A memória faz-se importante, no momento das narrativas de Odisseus
aos Feácios e, sobretudo, durante o episódio dos Lotófagos, cujo perigo para Odisseus e para
os seus companheiros é o maior dos perigos por que eles passam, por causa da possibilidade
de perder a memória.

IV. Chegada à Ítaca (Canto XIII–XVI): Anagnórisis da prevenção (Canto XVI), momento em que,
chegando à Ítaca, disfarçado de mendigo, Odisseus revela-se apenas ao filho Telêmaco, em casa
do porqueiro Eumeu. Ao mesmo tempo inicia-se a educação de Telêmaco pelo pai: é preciso
continência e temperança para vencer o inimigo.

V. Preparação para a Retomada (Cantos XVII–XX): Odisseus se prepara para retomar o reino
com a ajuda de Telêmaco e dos servos fiéis, Eumeu e Filétios. Há uma nova anagnórisis de
prevenção (Canto XIX), quando a sua criada Euricleia o reconhece pela cicatriz na perna, no
momento em que o banha, na condição de hóspede, a mando de Penélope, que ignora que o
mendigo em seu palácio é, na realidade, seu marido.

VI. Andromaquia (Canto XXI–XXIV): Odisseus retoma seu reino, matando os pretendentes e
restabelecendo a paz. Novas anagnórisis acontecem: a anagnórisis guerreira (Canto XXII), o
que Aristóteles chamaria de reconhecimento com peripécia, a mais complexa e melhor para o
poema, pois muda-se completamente o efeito esperado (Poética, 1452 a, 32-33): o mendigo
ultrajado, agredido e motivo da chacota de todos revela-se como o terrível guerreiro Odisseus;
anagnórisis dupla de prevenção (Canto XXIII), quando Penélope astuciosamente faz Odisseus
contar o segredo da construção da cama do casal, antes de admitir que aquele que está à sua
frente é o seu marido, que voltou depois de vinte anos de ausência; anagnórisis dramática (Canto
XXIV), quando Odisseus se dá, em um momento dos mais tocantes, a conhecer ao velho pai
Laertes, nomeando as fruteiras que ele havia plantado quando o herói era criança.

Neste esquema que Marques Júnior apresenta, encontramos os principais acontecimentos


que ocorrem na enredística da Odisseia. Percebamos nele que apenas o deus Posídon é

27
mencionado (no ponto II. Nostalgia Material), mas a presença dos deuses, e suas intervenções
divinas para o bem e para o mal de Odisseus, é constante.

Já no Canto I da Odisseia, desde o Proêmio, até o momento em que somos informados


de que Odisseus está retido pela deusa Calipso, a presença dos deuses se faz notar. São os
deuses que decidem, em assembleia que consta no Canto I, sobre o retorno de Odisseus para
Ítaca, onde lhe esperam o filho Telêmaco e a esposa Penélope. Enquanto Posídon impede
que o herói faça esse retorno, por ele ter cegado seu filho, o ciclope Polifemo, os deuses,
aproveitando-se da ausência de Posídon, deliberam sobre o retorno de Odisseus ao lar.

Na última parte da Odisseia, no Canto XXIV, após as aventuras e desventuras do herói,


ainda os deuses se fazem notar e determinam sua existência. A obra termina com juramentos
proferidos pela deusa Atena, a deusa “de olhos esverdeados”, que prestou pronto auxílio a
Telêmaco e a Odisseus, como percebemos ao longo da obra, e na ocasião dá ordens ao herói
de Ítaca para que ele cesse com uma batalha que se daria contra familiares dos pretendentes
que ele havia assassinado, ao que ele obedece.

Segundo Knox (2011, p. 63), os deuses têm três modelos de diplomacia olímpica, isto é:
“Os deuses podem proteger um herói ou uma cidade, mas, se essa proteção ameaça gerar
uma ruptura entre os grandes poderes, um deles pode bater em retirada”. Podem, também,
fazer acordos, que pressupõem negociações que beneficiem ou não as partes envolvidas, ou
podem, ainda, trapacear.

Knox (2011, p. 63) afirma que: “Todos esses três modelos de diplomacia olímpica reaparecem
na Odisseia”. Ele exemplifica esses modelos com três passagens: 1) um deus bate em retirada:
quando Odisseus encontra Atena em Ítaca e pergunta-lhe onde ela estava durante seu conflituoso
retorno, a deusa lhe diz que “não quis lutar contra Posêidon” (Canto XIII, v. 341); 2) os deuses
negociam: Posídon reclama a Zeus que, com a ida de Odisseus à Ítaca, auxiliado pelos Feácios,
ele foi desonrado e Zeus permite-lhe punir os Feácios com a transformação da tripulação em
rocha, assim que esta chega ao porto (Canto XIII, v. 146–152); 3) um deus é trapaceado:
Posídon está na terra dos etíopes, ocasião em que recebe uma homenagem, exatamente
quando há a assembleia que delibera sobre o retorno de Odisseus para o lar, o deus se dá
conta de que foi enganado quando o vê chegar à costa da Esquéria em sua jangada (Canto
V, v. 282–290).

Após essa explanação, recorramos à Odisseia de modo a analisarmos como a intervenção


positiva (no caso de Atena) ou negativa (no caso de Posídon) dos deuses pode influenciar na
configuração do herói Odisseus.

28
1 A intervenção divina e a configuração do
herói odisseus
A respeito da Odisseia, Frederico Lourenço (2011, p. 95) diz que esse é, “depois da Bíblia,
o livro que mais influência exerceu ao longo dos tempos no imaginário ocidental”. Ao longo de
12 mil versos, e 24 cantos, segundo Lourenço (2011, p. 96), Odisseus é “o elemento que ao
mesmo tempo articula e secundaria tudo com o que, além dele, nos deparamos no poema”.

Trata-se, em suma, do retorno de Odisseus, que enfrenta diversas dificuldades para chegar
à sua pátria, onde sua esposa Penélope e seu filho Telêmaco o aguardam. Esse retorno se
daria após os dez anos da Guerra de Troia, mas Odisseus não consegue, após a guerra, ir
imediatamente para seu lar. As aventuras que ele vivencia em sua jornada de retorno constituem
o complexo enredo da Odisseia.

Recorremos novamente a Marques Júnior (2008) em seu estudo acerca do perfil dos heróis
da épica clássica. Nele, são apresentados quatro heróis: 1) Zeus, o deus herói, 2) Aquiles, o
herói em busca da glória imperecível, 3) Odisseus, o herói em busca da glória doméstica, e
4) Eneias, o herói piedoso. Em se tratando de Odisseus, o texto o retoma a partir de algumas
analogias em relação a Aquiles, herói da Ilíada.

Odisseus é o herói, como propõe Marques Júnior (2008, p. 130), “na luta contra o esquecimento
do lar, um herói em busca da glória doméstica”. Ele está empenhado com a ideia de retomar
sua vida ao lado da esposa Penélope. Enquanto o espera, ela tenta enganar os homens que,
por pensarem que Odisseus está morto, permanecem em seu encalço com a intenção de
desposá-la.

Os epítetos que o caracterizam possibilitam-nos compreender seu perfil de herói. Desse


modo, temos, conforme Marques Júnior (2008, p. 131) aponta, os seguintes epítetos: 1) “homem
de mil voltas”, 2) “o muito astucioso”, 3) “o que tem alma corajosa, aquele cujo espírito é capaz
de suportar” e 4) “o que muito sofre”.

Knox (2011, p. 38) afirma que Odisseus “deseja, acima de tudo, encontrar o caminho de
casa e nela permanecer”. Ele dispõe de auxílios (KNOX, 2011, p. 46), pois o herói conta “com
a bondade de estranhos, com sua generosidade como hospedeiros” (Éolo e os Feácios, por
exemplo), embora em outros casos ele se torne vítima de seres que ameaçam sua vida (como
é o caso de Polifemo), ou o impedem de prosseguir em sua viagem (como a deusa Calipso).

Nossa discussão, como prenunciamos, está pautada no modo como o herói Odisseus é
configurado em sua relação com os deuses que intervêm, frequentemente, em suas ações.

29
Quanto à presença dos deuses na Odisseia, podemos perceber que há a menção a muitos
deles: Zeus, Aurora, Atena, Hermes, Hipérion, Posídon, Calipso, Circe, Afrodite, Ares, dentre
outros.

A propósito, segundo Knox (2011, p. 70), os deuses “decidem o destino dos mortais e
suas cidades com escassa consideração para com as concepções humanas da justiça divina,
sempre que aquilo que está em risco é o interesse ou o prestígio de um deus importante”. Na
Odisseia, há inúmeros eventos que confirmam essa assertiva.

Na assembleia dos deuses, no Canto I, por exemplo, percebemos o quanto a interferência


divina pode ser determinante para a existência do herói. Antes da assembleia, porém, temos o
Proêmio e nele há invocação à Musa, uma das nove filhas de Zeus com Mnemósine. Façamos
a leitura do Proêmio:

Fala-me, Musa, do homem astuto que tanto vagueou


depois que de Troia destruiu a cidadela sagrada.
Muitos foram os povos cujas cidades observou,
cujos espíritos conheceu; e foram muitos no mar
os sofrimentos por que passou para salvar a vida,
para conseguir o retorno dos companheiros a suas casas.
Mas a eles, embora o quisesse, não logrou salvar.
Não, pereceram devido à sua loucura,
insensatos, que devoraram o gado sagrado de Hipérion,
o Sol — e assim lhes negou o deus o dia do retorno.
Destas coisas fala-nos agora, ó deusa, filha de Zeus.
(Canto I, v. 01–10)

São apresentados, de modo sucinto, os acontecimentos que giram em torno de Odisseus, o


herói que deseja preservar a memória do lar. Temos, ainda, a menção a um dos seus principais
caracteres: ele é apresentado como um “homem astuto”. Nos versos seguintes, ficamos sabendo
que ele “vagueou” após a destruição de Troia, esteve em diversas cidades e conheceu muitos
povos. Também é dito que ele passou por várias aventuras e sofrimentos “para salvar a vida”
e que, embora tivesse tentado, não pôde salvar os companheiros. Eles devoraram “o gado
sagrado de Hipérion, o Sol”, por isso foram punidos e não puderam retornar para seus lares.

O narrador épico conclui o Proêmio com a invocação à Musa, ocasião em que ele lhe
pede inspiração para discorrer, pormenorizadamente, sobre os acontecimentos vinculados ao
herói que “tanto vagueou” com a intenção de reencontrar a paz em seu lar, preservado em sua
memória como espaço no qual poderia restaurar, enfim, sua harmonia perdida em decorrência
da guerra.

30
Em seguida, temos a assembleia e a deliberação sobre a vida de Odisseus. Ele está
impedido de retornar ao lar, retido pela deusa Calipso, em Ogígia. É chegado o momento em
que Odisseus deve retornar à sua pátria, como percebemos no trecho seguinte:

Nesse tempo, já todos quantos fugiram à morte escarpada


se encontravam em casa, salvos da guerra e do mar.
Só àquele, que tanto desejava regressar à mulher,
Calipso, ninfa divina entre as deusas, retinha
em côncavas grutas, ansiosa que se tornasse seu marido.
Mas quando chegou o ano (depois de passados muitos outros)
no qual decretaram os deuses que ele a Ítaca regressasse,
nem aí, mesmo entre o seu povo, afastou as provações.
E todos os deuses se compadeceram dele,
todos menos Posêidon: e até que sua terra alcançasse,
o deus não domou a ira contra o divino Ulisses.
(Canto I, v. 11–21)

Tendo iniciado in medias res, como é típico da epopeia, percebemos que Odisseus está sob
a imposição de Calipso há anos e, com exceção de Posídon, os deuses decretam que o herói
deve regressar à sua terra. Somos antecipados, ainda, por meio de prolepse, que mesmo em
Ítaca ele ainda deveria passar por provações. Os pretendentes de sua esposa, considerando-o
morto, vivem em seu palácio, desrespeitam a Lei da Hospitalidade, desprezam a presença de
seu filho e saqueiam suas riquezas.

Com a ausência de Posídon, os deuses reúnem-se no Olimpo. Zeus é o primeiro a falar,


ainda com a lembrança de que Egisto havia sido assassinado por Orestes. Em seu discurso,
ele afirma (Canto I, v. 32–34): “Vede bem como os mortais acusam os deuses! / De nós (dizem)
provêm as desgraças, quando são eles, / pela sua loucura, que sofrem mais do que deviam!”.

A segunda deusa a falar é Atena, “a deusa de olhos esverdeados”. Ela dirige-se a Zeus e
diz (Canto I, v. 45–47): “Pai de todos nós, mais excelso dos soberanos, / é verdade que esse
homem teve a sorte que merecia: / e que pereça qualquer outro que igual coisa fizer”. Em
seguida, ela apresenta o pesar que sente pela situação de Odisseus (Canto I, v. 48–50): “Mas
arde-me o espírito pelo fogoso Ulisses, / esse desgraçado, que longe dos amigos se atormenta
/ numa ilha frondosa, onde tem sua morada a deusa”.

Atena recorre a um discurso contundente para convencer seu pai a olhar com compaixão
para seu protegido. Referindo-se, inicialmente, à deusa Calipso, ela diz o seguinte:

Sua filha retém aquele homem desgraçado,


e sempre com palavras implorantes e suaves
o encanta, para que Ítaca olvide: mas Ulisses desejoso

31
de no horizonte ver subir o fumo da sua terra
tem vontade de morrer — e o teu coração
não se comove, Olimpo! Não foi Ulisses
quem junto às naus dos Argivos na vasta Troia
sacrifícios te ofereceu? Contra ele te encolerizas, Zeus?
(Canto I, v. 55–62)

Muito do perfil heroico de Odisseus fica em evidência na resposta do deus do Olimpo. Ele
menciona que o herói tem um espírito que “supera o de qualquer outro homem” e que ele nunca
deixou de honrar os deuses com sacrifícios. Zeus faz a seguinte ressalva (Canto I, v. 68–70):
“Mas Posêidon, que cerca a terra, sem tréguas se lhe opõe, / por causa do Ciclope a quem
Ulisses cegou a vista / — ao divino Polifemo, que mais força tem entre todos os Ciclopes”.

Apesar disso, Zeus afirma (Canto I, v. 76–75): “Mas nós aqui presentes acordemos o seu
regresso; / e Posêidon deixará a sua ira: contra todos os imortais, / à sua revelia, só, contra
todos, lutar não conseguiria”. Com a decisão do deus do Olimpo, Atena sugere que Hermes,
o mensageiro, vá à ilha de Ogígia anunciar à Calipso que Odisseus deve regressar ao seu lar
por ordem dos deuses.

Ao mesmo tempo em que Hermes anuncia à Calipso a decisão do Olimpo, acerca do


regresso de Odisseus, Atena decide ir à Ítaca preparar Telêmaco para sua viagem à Esparta.
Percebemos que, assim como Atena e Posídon são determinantes, respectivamente, para o
bem e para o mal de Odisseus, o deus Hermes é o portador da notícia tão almejada por ele e
o auxilia com relação à deusa Circe.

No Canto I estão presentes os deuses cujas intervenções divinas são determinantes para
que Odisseus possa concretizar seu retorno, também os deuses cujas intervenções representam
empecilhos para essa realização. Na sequência de nosso trabalho nos remetemos a três
deuses dentre os muitos que transitam na enredística da Odisseia. Consideramos que esses
deuses intervêm significativamente nas ações de Odisseus: 1) Atena (a deusa da astúcia e da
sabedoria), 2) Hermes (o mensageiro dos deuses) e 3) Posídon (o deus dos mares).

2 A intervenção de Atena
Atena1, “a deusa de olhos esverdeados”, é protetora dos Argivos na Ilíada e torna-se,
na Odisseia, personagem significativa pelas intervenções que realiza no sentido de auxiliar
Odisseus na realização de sua jornada.

1 No endereço eletrônico Mitologia e Arte, Atena é apresentada como uma deusa que concentra em si muitas “artes, ofícios e técnicas (militares,
políticas e domésticas)”, também é domadora e adestradora “de cavalos, interessa-se por navios e carruagens”. Geralmente, Atena é representada
na arte com seus “atributos de deusa guerreira: elmo, lança e escudo (a égide, onde se vê a cabeça de Medusa)”. Deusa da sabedoria e da
astúcia, Atena é associada, simbolicamente, à coruja, à serpente e à oliveira. ATENA – deusa da sabedoria. Mitologia e Arte. 2020. Disponível
em: https://www.mitologiaearte.com/mitologia-grega/deusas-gregas-nomes/atena-deusa-da-sabedoria/. Acesso em: 20 jan. 2020.

32
De acordo com Pierre Grimal (2009), Atena faz parte da “segunda geração” de deuses
Olímpicos, que são deuses oriundos de Zeus. Seu nascimento é uma das imagens mais
intrigantes da mitologia. Assim Grimal (2009, p. 31) o descreve:

Nos primeiros tempos de seu reinado, Zeus desposara a oceânica Métis (cujo nome significa
Prudência, mas também Perfídia) e a engravidara. Geia e Urano revelaram-lhe então que, mesmo
que Métis tivesse uma filha, ela daria em seguida à luz um menino que iria se tornar o senhor do
mundo. Assim desejavam os Destinos. Zeus, sem hesitar, e para garantir seu poderio, engoliu
Métis. Quando chegou a hora do parto, ele ordenou a Hefesto que lhe abrisse a cabeça com uma
machadada. Do seu crânio saltou uma filha inteiramente armada. Era a deusa Atena. O local do
nascimento foi às margens do lago Tritônio, na Líbia.

Quando Zeus engoliu Métis, de acordo com Brandão (1986, p. 162), ele “tornou-se o detentor
da sabedoria e da prudência”. Atena, “que lhe saiu das meninges”, traz em si, também, os
mesmos predicativos do pai. Ela figura como a deusa guerreira, dotada de astúcia, prudência e
estratégias de guerra. Ela, porém, não traz em si somente essas características, ela é também
uma “deusa da paz”, conforme Grimal (2009, p. 33) assinala. Além disso, o autor diz que ela
é “habilidosa; protege os fiadores, os tecelões, as bordadeiras”. Ela representa, para o autor,
“o Espírito e a Razão que concedem a plena eficácia aos esforços de coragem”.

Quanto aos heróis que Atena auxilia, de acordo com Lilian Amadei Sais (2010, p. 122),
ela costuma proteger quem se compraz com a busca pelo que é sábio e prudente. De acordo
com a autora: “Atena protege aqueles que são, essencialmente, iguais a ela. A deusa não
protegeria um herói extremamente impulsivo e arrojado, mas sim um herói que demonstrasse
ponderação e prudência”.

Grimal (2009, p. 33) diz, a esse respeito, que: “Na Odisseia, ela intervém todo o tempo a
favor de Ulisses, inspirando-lhe as decisões mais prudentes e mais sábias”. De fato, Atena
encontra em Odisseus os predicativos que ela exige de um herói a quem ela protegeria. No
recorte que fazemos para este trabalho, apontamos três momentos nos quais ela age no sentido
de auxiliá-lo em seu retorno ao lar.

No primeiro momento, como já apontamos, é Atena quem, no Canto I, propõe a Zeus,


na assembleia dos deuses, a necessidade de libertar Odisseus do domínio de Calipso. Ela
convence seu pai a apiedar-se dele e auxiliá-lo, sugere que Hermes seja enviado à Ogígia, ilha
na qual Calipso vive, para libertá-lo. Dispõe-se a ir para Ítaca, pessoalmente, com a intenção
de auxiliar Telêmaco a fazer viagem para obter informações sobre o pai, mas, em verdade,
ela vai para conduzi-lo a “uma nobre glória” que será obtida com essa viagem — nela, ele se
tornará também um herói.

33
Quanto à relação de Atena com Zeus, Brandão (1986, p. 136) afirma que Atena:

Nascida sem mãe, das meninges do deus, é, já se mostrou, a filha querida, cujos desejos e
rogos, mais cedo ou mais tarde, são sempre atendidos e cujas rebeldias sempre entristecem,
“pois estas lhes são tanto mais penosas quanto mais querida é a filha”. O Canto VIII da Ilíada
está aí para mostrar o quanto Atená (sic), a deusa da inteligência, é a preferida e a mimada pelo
senhor do Olimpo.

No segundo momento, Atena protege Odisseus, nos Cantos V e VI, por ocasião do naufrágio
que o leva à terra dos Feácios. Primeiramente, com sua jangada destroçada, ele poderia ter
sido destruído se não fosse a ajuda da deusa, como podemos depreender dos trechos:

Enquanto pensava estas coisas no coração,


uma grande onda atirou-o contra a costa rochosa.
Teria ficado com a pele esfolada e os ossos partidos,
se isto não lhe tivesse posto na mente Atena de olhos esverdeados:
ao ser violentamente arrastado, agarrou-se com as mãos
a uma rocha e aí ficou, gemendo, enquanto recuou a onda.
(Canto V, v. 424–429)

Embora a jangada construída por ele tenha se destruído e, com ela, ele quase ter morrido,
Odisseus consegue, sempre subsidiado pelos conselhos de Atena, chegar à terra firme, que
depois ele descobre ser a terra dos Feácios. Ele sobrevive ao naufrágio, encontra um lugar
para descansar e consegue, finalmente, dormir, pois Atena (Canto V, v. 491–493) “derramou
/ sobre os seus olhos o sono para depressa o aliviar da fadiga / de tantos esforços, cobrindo-
lhe as pálpebras completamente”.

Atena encarrega-se, ainda, de salvaguardá-lo na terra dos Feácios, como podemos constatar
no início do Canto VI:

Ali ficou a dormir o sofredor e divino Ulisses,


vencido pelo sono e pelo cansaço. Mas Atena
foi à cidade populosa dos Feácios, que antes
tinham habitado na espaçosa Hipereia, perto
dos Ciclopes, homens de terrível insolência,
que continuamente os pilhavam por serem mais fortes.
(Canto VI, v. 01–05)

Estando na cidade, Atena entra no palácio e prepara o regresso de Odisseus através de


conselhos que ela dá a Nausica, filha do rei Alcino, enquanto a moça dorme. Nausica encontra-
se com Odisseus, o ajuda doando-lhe vestimentas dignas e aconselhando-o quanto ao que
deveria fazer quando chegasse ao palácio de seu pai — ele deveria dirigir-se, primeiramente,
à rainha Areta, somente depois ao rei Alcino.

34
Estando no jardim a ela consagrado, Odisseus faz oração à deusa Atena que, mais uma
vez, o ajuda. Ela aparece para ele na forma de uma virgem que segura um cântaro e o conduz
ao palácio do rei Alcino. Ela sugere que o herói permaneça em silêncio durante o trajeto e
derrama sobre ele “um nevoeiro sobrenatural” que o impede de ser visto.

Tudo acontece favoravelmente a Odisseus na terra dos Feácios e o herói consegue, com a
ajuda deles, que são exímios navegantes, retornar para sua ambicionada pátria. Atena esforça-
se para tornar esse retorno possível.

No terceiro momento, quando Odisseus está em Ítaca, mais uma vez Atena atua
incansavelmente para auxiliá-lo. É ela quem transforma Odisseus no mendigo que, astuciosamente,
vai para Ítaca sondar como está o seu palácio, sua esposa e seus servos.

Atena interfere, também, no comportamento dos pretendentes quando ela (Canto XX, v.
284–286) “não permitiu de modo algum que os arrogantes / pretendentes se abstivessem de
comportamentos ultrajantes, / para que a dor penetrasse mais fundo no coração de Ulisses”.
Ela interfere, ainda, no comportamento de Penélope (Canto XXI, v. 01–04): “Ora no espírito da
filha de Icário, a sensata Penélope, / lançou esta ideia Atena, a deusa de olhos esverdeados:
/ pôr diante dos pretendentes o arco e o ferro cinzento / no palácio de Ulisses, como contenda
e origem da chacina”.

Durante a luta contra os pretendentes, no Canto XXII, materializada como Mentor, Atena
põe à prova “a força e a coragem / de Ulisses e de seu filho glorioso” ao mesmo tempo em
que combate, ao lado deles, e protege Odisseus algumas vezes (Canto XXII, v. 255–256), pois
os pretendentes atiraram contra o herói suas lanças e Atena “fez que tudo fosse em vão”. Em
seguida, ela novamente interfere no sentido de proteger Odisseus (Canto XXII, v. 272–273),
já que “atiraram os pretendentes as suas lanças / com afinco; mas Atena fez com que quase
todas fossem em vão”. Odisseus, Telêmaco e seus servos fiéis vencem, com sua ajuda, a
batalha.

Mortos os pretendentes, em cenário dos mais violentos da literatura ocidental, seus familiares
pretendem guerrear contra Odisseus. É Atena, outra vez, quem consegue impedir a batalha que
se daria entre ele e os familiares dos pretendentes assassinados. Ela interpela Zeus acerca
do combate e o deus lhe responde:
Minha filha, por que me perguntas tal coisa?
Não foste tu que tomaste a deliberação de que Ulisses
se vingaria dos pretendentes à sua chegada?
Faz como tu quiseres, mas dir-te-ei o que é devido.
Agora que dos pretendentes se vingou o divino Ulisses,
que todos jurem com solenidade que será sempre ele o rei.

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Da nossa parte, traremos o esquecimento do assassínio
dos filhos e irmãos. Que voltem todos a estimar-se,
como antes; e que a abundância e a paz imperem.
(Canto XXIV, v. 478–486)

Atena volta para Ítaca e impede que a batalha, aparentemente inevitável, aconteça. Ela
ordena que Odisseus cesse “o conflito desta guerra” que se torna, para ela, desnecessária.
Quanto a Odisseus, diante da ordem dada por sua protetora, ele “obedeceu, alegrando-se seu
coração”.

3 A intervenção de Hermes
Outro deus que aparece na Odisseia e intervém significativamente no destino de Odisseus
é Hermes. Embora o deus não seja quase “onipresente” na Odisseia, como Atena, em diversos
momentos sua intervenção é determinante para que Odisseus alcance seu objetivo de retornar
para Ítaca.

Hermes, assim como Atena, integra a “segunda geração” de deuses Olímpicos provenientes
de Zeus. Ele nasce de uma das muitas relações vivenciadas pelo deus do Olimpo, desta feita
com a plêiade Maia. De acordo com Grimal (2009, p. 32):

Hermes, irmão caçula de Atena, é filho de Zeus e de Maia, que é a mais jovem das Plêiades.
Ele nasceu na Arcádia, dentro de uma caverna no monte Cileno. [...] Mensageiro dos deuses,
Hermes é dotado de sandálias aladas que o transportam pelos ares. Sua função mais específica
é acompanhar aos Infernos as almas dos mortos. [...] Hermes é sobretudo célebre por suas
artimanhas. [...] Viajante e habilidoso em se apropriar dos bens dos outros, Hermes não podia
deixar de ser considerado o deus do comércio.

Discorremos sobre o aparecimento de Hermes na Odisseia, igualmente, em três momentos


da narrativa. Comecemos por observar que, no Canto I, na assembleia dos deuses, Atena
sugere a Zeus que Hermes dirija-se à Ogígia. No Canto V, no entanto, Hermes já está em
Ogígia para cumprir sua missão. Ao deparar-se com Calipso, a deusa o interpela sobre sua
presença na ilha em que ela habita, como percebemos no trecho:

Depois de no coração ter se maravilhado com tudo,


entrou em seguida na gruta espaçosa. Ao contemplá-lo,
não pôde Calipso, divina entre as deusas, deixar de reconhecê-lo:
pois não é hábito dos deuses imortais serem desconhecidos
uns dos outros, apesar de apartadas as suas moradas.
Porém Hermes não encontrou na gruta o magnânimo Ulisses:
na praia estava ele sentado, a chorar no lugar de costume,
torturando o coração com lágrimas, tristezas e lamentos.

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E com os olhos cheios de lágrimas fitava o mar nunca cultivado.
A Hermes assim falou Calipso, divina entre as deusas,
depois que o sentara num trono resplandecente:
“Diz-me, ó Hermes da vara dourada, por que razão aqui vieste
como hóspede honrado? Antes não eram frequentes as tuas visitas.
Exprime a tua intenção, pois manda-me o coração cumpri-la
(se for susceptível de cumprimento e cumpri-la eu puder).
Mas chega-te mais à frente, para saciar a fome e a sede”.
(Canto V, v. 76–87)

Após ser alimentado com ambrosia e néctar servidos por Calipso, Hermes não hesita em
dizer o que o conduz à ilha da deusa. Ele menciona o quanto o desagradou ter que realizar
viagem a lugar tão distante, para cumprir uma ordem de Zeus, mas afirma que ela resguarda
Odisseus em sua ilha e o senhor do Olimpo lhe ordena que ele volte para sua terra. Hermes
assim exprime sua mensagem:

Diz ele que tens aqui o mais infeliz de todos os homens


que em torno da cidadela de Príamo combateram
durante nove anos e, no décimo ano, a saquearam,
partindo em seguida para casa. Mas no mar ofenderam
Atena, que lhes mandou maus ventos e ondas ingentes.
Pereceram então todos os outros valentes companheiros;
mas ele foi para aqui trazido pelas ondas e pelo vento.
Zeus quer que rapidamente te despeças desse homem.
Pois não é seu destino aqui perecer longe de quem o ama;
determinam os fados que ele reveja parentes e amigos
e que regresse a seu alto palácio e à sua terra pátria.
(Canto V, v. 105–115)

Está dada a ordem a que Calipso obedece a contragosto. Ela propõe a Odisseus, por
exemplo, que se ele permanecer ao seu lado lhe dará juventude e imortalidade. Ele, porém,
recusa a oferta e termina por construir, sob orientação da própria deusa, uma jangada com a
qual parte da ilha levando oferendas que ela lhe propicia.

A segunda intervenção do deus Hermes na narrativa ocorre no momento em que Odisseus


chega à ilha de Eeia, que é a terra na qual habita a deusa Circe. Com seus feitiços, Circe
transforma os companheiros dele em porcos. Odisseus assim descreve sua chegada (Canto
X, v. 135–137): “Aportamos à ilha Eeia, onde vivia / Circe de belas tranças, terrível deusa de
fala humana, / irmã de Eetes de pernicioso pensamento”.

Antes que Odisseus mantenha contato com Circe, Hermes vai ao encontro dele e lhe revela
o perigo que seus companheiros e ele correm, como observamos no trecho:

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Quando entre os sagrados arvoredos estava prestes a chegar
ao grande palácio de Circe das muitas poções mágicas,
veio ao meu encontro Hermes da vara dourada,
semelhante a um jovem com a primeira barba a despontar,
altura em que a juventude tem mais encanto.
Apertando-me a mão, dirigiu-me a palavra:

‘Aonde, ó infeliz, vais só por estes montes, sem conheceres


o lugar? Os teus companheiros estão encurralados
como porcos em casa de Circe, em pocilgas escondidas.
Será que vieste para soltá-los? Digo-te que não regressarás,
mas ficarás também tu, onde estão os outros.
Mas eu te libertarei das desgraças. Salvar-te-ei.
Leva esta droga potente para o palácio de Circe:
afastará da tua cabeça o dia da desgraça’.
(Canto X, v. 275–288)

Percebemos como é determinante o auxílio de Hermes para que Odisseus sobreviva aos
feitiços de Circe. Hermes orienta o herói a utilizar uma “droga potente” na comida que ela lhe
oferecer e desembainhar a espada, lançando-se contra ela, assim que a deusa tentar conduzi-
lo “com a sua vara comprida”. Assim foi feito e, por um ano, ele conseguiu permanecer ao lado
dela, mas, posteriormente, sob insistência dos companheiros, ele pede a Circe que o permita ir.
A deusa aceita que ele vá, todavia ela impõe (Canto X, v. 490–493): “Mas tendes primeiro que
cumprir outra viagem / e descer à morada de Hades e da temível Perséfone, / para consultardes
a alma do tebano Tirésias, / o cego adivinho, cuja mente se mantém firme”.

Ao deparar-se com Tirésias, Odisseus obtém dele presságios auspiciosos, embora o adivinho
mencione que ele ainda deverá passar por muitos sofrimentos antes de chegar em sua terra.
Dentre outros pontos, Tirésias menciona que na casa do herói os pretendentes de sua esposa
regalam-se em “festins” dissipando suas posses. Cumpre-se o que Tirésias menciona acerca
dos sofrimentos de Odisseus, mas como ele preservou o gado de Hipérion, diferentemente
dos seus companheiros, e contou com o auxílio de Atena, lhe foi possível retornar, finalmente,
à Ítaca.

Estando em seu palácio, Odisseus conta com o auxílio do filho, Telêmaco, e de dois servos,
o porqueiro Eumeu e o boieiro Filécio, para matar os pretendentes e os dez servos infiéis. Após
a chacina, novamente Hermes reaparece na Odisseia. Desta feita, surge com outra função.
Grimal (2009, p. 16) afirma, sobre Hermes, que: “Sua função mais específica é acompanhar
aos Infernos as almas dos mortos”. É exatamente essa função que ele exerce no Canto XXIV,
como notamos no trecho:

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As almas dos pretendentes foram chamadas por Hermes,
deus de Cilene, que segurava nas mãos a bela vara
de ouro, com que enfeitiça os olhos dos homens
a quem quer adormecer; ou então outros acorda do sono.
Com esta vara acordou as almas, que o seguiram, guinchando.
(Canto XXIV, v. 01–05)

Sobre Hermes, Brandão (1986, p. 72–73) afirma: “Possuidor de um bastão mágico, o


caduceu2, com que tangia as almas para a outra vida, tornou-se o deus psicopompo, quer dizer,
condutor de almas”. Uma condição sine qua non para que a alma de uma pessoa chegasse à
eternidade, e tivesse possibilidade de ser feliz, era ser conduzida pelo deus psicopompo até
os domínios do barqueiro Caronte.

Brandão (1986, p. 73) menciona, ainda, ao discorrer sobre Hermes, que ele “transformou-se
no mensageiro dos deuses do Olimpo, em deus psicopompo e em deus das ciências ocultas”.
Com a função de deus psicopompo, Hermes encerra sua intervenção na Odisseia. Ele é um
deus cujas intervenções são significativas para a construção da narrativa, ora como portador
de notícias não agradáveis para Calipso, mas auspiciosas para Odisseus; ora como deus que
trama contra Circe, estando a favor de Odisseus. Por fim, Hermes termina por exercer sua
função de psicopompo, ainda em auxílio a Odisseus, uma vez que carrega, para longe do herói
e de sua terra, a alma de seus inimigos.

4 A intervenção de Posídon
Na Odisseia não existem apenas intervenções divinas que conduzem Odisseus à realização
de seu objetivo. É o caso de Posídon, deus dos mares, que intervém na vida do herói com
empecilhos que dificultam, como temos apontado, seu retorno ao lar. Sobre as origens de
Posídon, Grimal (2009, p. 26) aponta que: “A revolução celeste provocada por Zeus instalou
no poder a geração dos Cronidas, filhos de Crono, e o novo mestre ficou sendo o mais jovem
dentre eles. Os três primeiros da linhagem foram três filhas: Héstia, Deméter e Hera; depois
vieram os três filhos: Hades, Posídon e Zeus”.

Posídon detém, com seu tridente em mãos, o domínio dos mares. No Canto I da Odisseia,
quando ocorre a assembleia dos deuses, Posídon está ausente. Sua ausência é determinante
para o desenvolvimento do enredo, pois sua presença poderia atrapalhar a tentativa de Atena
de convencer Zeus a permitir que seu protegido retornasse ao lar. O deus dos mares intervém
na vida de Odisseus, portanto, por estar ausente da assembleia que delibera sobre o destino
do herói.

2 O caduceu corresponde a uma espécie de bastão que possui duas cobras que se entrelaçam com asas.

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É dito, ainda na assembleia, que os deuses tiveram compaixão de Odisseus, com exceção
de um deles: Posídon. O “Sacudidor da Terra”, que é um de seus epítetos, não hesitou em
atirar contra o herói seu rancor, como percebemos no trecho:

E todos os deuses se compadeceram dele,


todos menos Posêidon: e até que sua terra alcançasse,
o deus não domou a ira contra o divino Ulisses.
Mas para longe se afastara Posêidon, para junto dos Etíopes,
desses Etíopes divididos, mais remotos dentre os homens:
uns encontram-se onde nasce, outros onde se põe o Sol.
Para lá se afastara Posêidon, para deles receber
uma hecatombe de carneiros e de touros;
e aí se deleitou no festim. Quanto aos outros deuses,
no palácio de Zeus Olímpico se encontravam reunidos.
(Canto I, v. 19–27)

Na ausência de Posídon, Atena persuade Zeus a enviar Hermes à Ogígia. Está estabelecido
que Odisseus poderá prosseguir em sua jornada. O motivo pelo qual Posídon persegue o herói é
apresentado já nos primeiros momentos do enredo através do diálogo desenvolvido entre Zeus
e Atena. Ele afirma que (Canto I, v. 68–70) Posídon “sem tréguas se lhe opõe, / por causa do
Ciclope a quem Ulisses cegou a vista — / ao divino Polifemo, que mais força tem entre todos
os Ciclopes”.

Somos informados, em seguida, que Odisseus está a vaguear, o que nos remete a um de
seus epítetos (“o herói de mil voltas”). Ele se encontra nessa condição porque cegou Polifemo,
filho de Posídon com a ninfa Toosa. O rancor do deus “Sacudidor da Terra” tem, portanto, um
motivo presumível.

Odisseus relata sua passagem pela terra dos Ciclopes no Canto IX, quando narra em
primeira pessoa suas aventuras ao rei Alcino. Tendo sido mal recebido por Polifemo, que não
atendia à Lei da Hospitalidade, Odisseus precisou recorrer a seus “mil ardis” para conseguir
libertar-se da gruta em que o ciclope o mantinha preso com seus companheiros. Odisseus
oferece vinho a Polifemo, que o aceita e deleita-se com a oferenda. Ao perguntar o nome do
herói, ele responde (Canto IX, v. 366–367): “Ninguém é como me chamo. Ninguém chamam-
me / a minha mãe, o meu pai, e todos os meus companheiros”.

Como presente de hospitalidade, Polifemo, nada amistoso, afirma que Odisseus será o
último a ser comido. Embriagado com o vinho, o ciclope adormece e o herói prepara no fogo
um “tronco de oliveira”3 com o qual, com ajuda dos companheiros, o cega. Ao ouvir seus gritos

3 Aqui, cabe-nos uma ressalva: a oliveira é a árvore consagrada à deusa Atena. É curioso o fato de que Odisseus, um protegido de Atena,
cega Polifemo exatamente com o tronco da árvore consagrada à deusa.

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lancinantes, os demais ciclopes perguntam (Canto IX, v. 403–405): “Que passa, Polifemo, para
gritares desse modo / na noite imortal, tirando-nos assim o sono? / Será que algum homem
mortal te leva os rebanhos, / ou te mata pelo dolo e pela violência?”. A resposta dele, imediata,
é (Canto IX, v. 407–408): “Ó amigos, Ninguém me mata pelo dolo e pela violência!” Os demais
ciclopes, desse modo, consideram essa resposta suficiente para deixá-lo em sua gruta, sozinho,
e sugerem que ele reze pedindo o auxílio de seu pai Posídon.

Após conseguir fugir da terra dos ciclopes, com alguns dos companheiros, Odisseus instiga
Polifemo a odiá-lo mais intensamente, mesmo quando é advertido pelos companheiros a não
agir dessa maneira. Polifemo termina por saber quem é, de fato, o homem que se passava por
“Ninguém”, porquanto Odisseus, por vaidade, faz questão de dizer-lhe seu nome:

‘Ó Ciclope, se algum homem mortal te perguntar


quem foi que vergonhosamente te cegou o olho,
diz que foi Ulisses, saqueador de cidades,
filho de Laertes, que em Ítaca tem seu palácio’.
(Canto IX, v. 502–505)

De posse da informação sobre o nome de seu algoz, Polifemo recorda-se de um presságio


que o advertira sobre o perigo que um homem cujo nome era Odisseus poderia lhe oferecer.
O ciclope, cego e indignado, levanta as mãos em direção ao céu e invoca Posídon, seu pai,
através de uma prece:

‘Ouve-me, Posêidon de cabelos azuis, Sacudidor da Terra!


Se na verdade sou teu filho, e se declaras ser meu pai,
concede-me que nunca chegue a sua casa Ulisses,
saqueador de cidades, filho de Laertes, que em Ítaca habita.
Mas se for seu destino rever a família e regressar
ao bem construído palácio e à terra pátria, que chegue tarde
e em apuros, tendo perdido todos os companheiros,
na nau de outrem, e que em casa encontre muitas desgraças’.
(Canto V, v. 526–535)

Posídon atende ao pedido do filho prontamente. Embora não pudesse tirar a vida do herói,
porque estava em seu destino o retorno ao lar, Posídon intervém negativamente em relação
ao objetivo do herói e retarda sua volta conferindo-lhe dores e sofrimentos. Odisseus chega
à sua terra tardiamente, em apuros, perde todos os companheiros e, em seu palácio, depara-
se com os arrogantes pretendentes de sua esposa. Tudo ocorre conforme Polifemo pedira a
Posídon.

Odisseus reencontra o lar, mas antes passa por diversas aventuras e perigos. Ao chegar
à terra dos Feácios, no entanto, ele consegue que a Lei da Hospitalidade seja aplicada. Os

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Feácios eram exímios navegantes e o rei Alcino lhe possibilita ir para Ítaca em uma embarcação
segura.

Posídon, entretanto, fica indignado com o fato de que Odisseus regressa para seu lar e
reclama a Zeus que poderá nunca mais ser honrado entre os deuses por não ter se cumprido
sua promessa de que Odisseus iria sofrer, excessivamente, até que conseguisse pisar em
sua terra. Zeus permite que Posídon puna os Feácios, mas diante do desejo de seu irmão de
destruir a nau, e rodear a cidade com uma montanha imensa, sugere o seguinte:

“Caro irmão, o que me parece melhor é isto:


quando na cidade estiverem todos a fitar a nau
no seu percurso, transforma-a em pedra perto da praia,
em pedra semelhante a uma nau veloz, para que todos se espantem:
e rodeia-lhes a cidade com uma montanha enorme e circundante”.
(Canto XIII, v. 154–158)

Posídon cumpriu à risca a sugestão de Zeus: os Feácios sofreram as consequências por


auxiliar o hóspede em seu retorno ao lar, o que parece incoerente se considerarmos que a Lei
da Hospitalidade corresponde a um dos modos de honrar a figura de Zeus. Pela excelência
do tratamento despendido a Odisseus, os Feácios deveriam ser reconhecidos, e não punidos,
pelo cumprimento de uma lei divina.

Knox (2011, p. 63) assinala, como já mencionamos, que a negociação entre os deuses é
um dos “modelos de diplomacia olímpica” na Odisseia. A negociação se dá, desse modo, a
partir do seguinte: Posídon reclama a Zeus que, com a chegada de Odisseus à Ítaca, auxiliado
pelos Feácios, ele foi desonrado. O deus pai, portador da égide, por sua vez, permite-lhe punir
os Feácios com a transformação da tripulação em uma pedra, quando ela chega ao porto. Há
uma nítida negociação entre eles: o “Sacudidor da Terra” fica aparentemente satisfeito com a
punição aplicada aos Feácios e o deus “que comanda as nuvens” permanece em harmonia
com seu irmão e, ao mesmo tempo, garante que os desejos de Atena, sua filha amada, sejam
realizados.

Odisseus, portanto, consegue, não sem dor e sofrimento, reencontrar seu filho Telêmaco,
sua esposa Penélope e seu pai Laertes. Seu final bem-sucedido não seria possível, devemos
enfatizar, sem a intervenção dos deuses.

Considerações finais
Na epopeia de Homero, os deuses são implacáveis em suas decisões. Seja para proteger,
seja para punir, eles decidem o destino dos homens. Com isso, os heróis estão à mercê do

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que lhes reservam as divindades. Na Odisseia, isso é perceptível em vários aspectos, como
apontamos em nossa análise.

Há intervenção de diversos deuses nas ações de Odisseus, mas nos detivemos, de


modo pormenorizado, à apresentação de três divindades cujas decisões imperam sobre ele:
1) Atena, a deusa cuja intervenção se mostra mais frequente no sentido de conduzir Odisseus
à realização de sua meta, 2) Hermes, cuja participação altera em vários pontos a vida do herói,
e 3) Posídon, que interfere na vida de Odisseus negando-lhe a possibilidade de retornar para
casa sem dores e sem perigos.

Sobre esse último ponto, ressaltamos que a vaidade de Odisseus o conduz às problemáticas
enfrentadas em seu retorno. Bastaria, para livrar-se do deus dos mares, não revelar seu nome
a Polifemo (a quem cegou), mas por vaidade ele não hesita em revelar-se. Desse modo, ele
comete uma hybris (descomedimento, imprudência e presunção)4 contra o filho de um deus.
Ele não poderia cometer essa falha sem sofrer alguma punição.

A propósito, no mundo que a epopeia constrói não há espaço para um sujeito capaz de
tomar suas próprias decisões. Os deuses estão de tal modo imbricados nas ações do herói
épico que não podemos considerá-lo, senão, a partir de uma relação profunda com o universo
fechado que constitui, na concepção de György Lukács (2000), a cultura grega. Esse filósofo
desenvolve um profícuo estudo sobre a forma épica em analogia à forma romanesca. Para ele,
a epopeia é um mundo amplamente fechado que tem na figura dos deuses e dos heróis uma
espécie de relação indissociável.

O herói épico representa, para Lukács, um ser integrado com a comunidade a que pertence.
Ele pode sair para realizar aventuras, mas quem lhe determina o destino são os deuses. Nada
foge do controle divino.

Ainda na linha de reflexão de Lukács (2000, p. 26–27), há uma totalidade à qual o herói
pertence, isto é, ele está integrado em um mundo harmônico no qual: “Ser e destino, aventura
e perfeição, vida e essência são então conceitos idênticos”. A cultura fechada é uma espécie
de círculo que aponta para dois aspectos: se, por um lado, o herói está envolto na ampla
intervenção e, por vezes, proteção dos deuses; por outro lado, esse herói também está limitado
às experiências que os deuses lhe permitem.

Por fim, Odisseus, o herói que busca e alcança a glória doméstica depois de mil voltas, não
pode ser pensado, enquanto herói épico, sem que em seu derredor estejam os deuses sempre
deliberando a respeito do que ele pode ou não vivenciar: os deuses gregos são implacáveis,
como dissemos, ao proteger ou punir os homens.

4 A hybris é um descomedimento direcionado a algum deus. É um ato, portanto, que deve ser punido implacavelmente.

43
Referências
ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Baby Abrão. São Paulo: Nova Cultural, 2000.

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega – Volume I. Vozes: Petrópolis, 1986.

GRIMAL, Pierre. Mitologia grega. Tradução de Rejane Janowitzer. Porto Alegre: L&PM, 2009.

HOMERO. Odisseia. Tradução e prefácio de Frederico Lourenço; introdução e notas de


Bernardo Knox. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011.

KNOX, Bernardo. Introdução. In: HOMERO. Odisseia. Tradução e prefácio de Frederico


Lourenço; introdução e notas de Bernardo Knox. São Paulo: Penquin Classics Companhia
das Letras, 2011.

LOURENÇO, Frederico. Prefácio. In: HOMERO. Odisseia. Tradução e prefácio de Frederico


Lourenço; introdução e notas de Bernardo Knox. São Paulo: Penguin Classics Companhia
das Letras, 2011.

LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo. São
Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2000.

MARQUES JÚNIOR, Milton. Honra, glória, destino e piedade: introdução à épica clássica.
In: SCHNEIDER, Liane; REBELO, Lucia Sá. (org.). Construções literárias e discursivas
da modernidade. Porto Alegre: Nova Prova, 2008.

NUNES, Carlos Alberto. Prefácio. In: HOMERO. Odisseia. Tradução de Carlos Alberto
Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.

SAIS, Lilian Amadei. Humano versus Divino: o destino de Reso, por Atena. ARGOS, Buenos
Aires, v. 33, p. 111–121, 2010.

44
A tradição latina do ensino
da Ars Grammatica: a
influência de Quintiliano na
educação latina medieval
Yuri Sampaio
Rede Estadual do Estado do Ceará – SEDUC-CE
“[...] neque concipere aut edere partum mens potest nisi ingenti flumine litterarum inundata.”5
(Petrônio, c.118)

Introdução
A educação é um tema muito complexo, porque não é apenas uma questão de técnica.
Antes de falar de educação, é sempre necessário trazer uma série de questões preliminares que
culminam com os próprios anseios de uma civilização. Educar é questão civilizacional. Quando
se educa, não se está simplesmente aplicando uma forma de melhorar o aprendizado, como
querem ensinar alguns pedagogos mais tecnicistas, ou reparando alguma injustiça social, como
fala Paulo Freire, mas se está formando o indivíduo nos moldes do homem ideal da civilização
da qual ele faz parte. Educar vem de ex ducere (e-ducere), tirar de dentro, fazer desabrochar
no estudante os valores humanos necessários para a excelência.

Toda virtude tem como plano de fundo a sociedade que a cultiva, por isso é tão importante
entender que essa tarefa de formação está ligada diretamente com a mentalidade de um povo.
Menciona Jaeger (2001, p. 1) que os gregos “estavam convencidos de que a educação e a
cultura não constituem uma arte formal ou uma teoria abstrata, distintas da estrutura histórica
objetiva da vida espiritual de uma nação”. O educador deve solidificar no aluno, através da
explicação e do próprio exemplo, os valores latentes na mentalidade de sua sociedade.

O espírito de um povo é formado por um conjunto de valores cuja essência abarca a


cosmovisão, sua concepção de homem e os problemas morais que se impõem. É chamada
também por mentalidade ou, como alude Jaeger, Paideia, e pode ser apreendido, sobretudo
em sua literatura e cultura superior (JAEGER, 2001), pois é nestas manifestações que se torna
concreto, aos contemporâneos e aos que estão ainda por vir, o acervo abstrato dos princípios
pelos quais um povo vive. Tradição, cultura, literatura e educação são, grosso modo, nomes
diferentes para a mesma obra humana. Podemos ver uma aporia na utilização destes nomes
em virtude da sua limitação a algum aspecto específico do todo que compõem, porém, em
alguns momentos, é válido utilizá-los para não ficar apenas no terreno etéreo dos conceitos.

É por este motivo que não é conveniente ficar só na caracterização do ensino da Litteratura
na Idade Média, mas compreender o espírito da mentalidade latina medieval, que a gerou. Não
é tarefa das mais tranquilas, porque o tema no Brasil é pouco conhecido e ainda atrai certos
olhares desconfiados e preconceituosos. Muitos professores, sobretudo no ensino médio,

5 “A mente do homem não pode pensar nem absorver as lições sem estar inundada pelo ingente rio da literatura.”.

46
munidos de materiais didáticos terríveis, insistem em levar seus alunos ao mesmo desprezo
que nutrem pelo período6, incutindo-lhes a ideia de que a Idade Média é um bloco monolítico
de 1000 anos, inalterável desde seu início. Neste período, teriam sido abandonadas as glórias
da antiguidade para dar lugar a uma nova época, então rural e fragmentária. Por outro lado,
o conhecimento teria ficado recluso aos mais nobres e aos membros da Igreja. Pior, na visão
corrente, a Idade Média é um novo regime que não apresenta continuidade com o anterior
e nada tem que ver com ele. Por isso, é uma obrigação de qualquer professor sério eliminar
esses enganos e definir a essência do período da Idade Média Latina.

Ainda encontra muita aceitação o pensamento de que o mundo romano caiu em 476 d.C.
e todos os seus princípios e valores foram solapados em prol de uma mentalidade nova, como
um rio que encontra uma barragem e não consegue mais levar suas águas além daquele ponto,
dali em diante, tudo seca e se torna árido. Isto vai no sentido oposto do que esclarece Pirenne
(2010): nada muda no Império Romano do Ocidente desde sua tomada pelos bárbaros, pelo
menos não nos aspectos essenciais, tudo permanece praticamente o mesmo. Alguns chefes
germânicos queriam até restaurar Roma através da força gótica, é o caso de Ataulfo7:

Desejei inicialmente, com ardor, apagar o nome dos romanos e transformar o Império Romano
em império gótico. A România, como dizem vulgarmente, teria se tornado Gothia. [...]. Ora, sem
leis não existe Estado [respublica]. Portanto, tomei o partido de aspirar à glória de restaurar em
sua integridade e fazer crescer o nome romano graças à força gótica. (OSÓRIO, 1882, p. 560
apud PIRENNE, 2010, p. 25).

A România era o nome dado informalmente à região do Império que assimilou os costumes
latinos e sua língua (CURTIUS, 1957). Nessas localidades, o latim passou por mudanças e
se tornou depois as línguas românicas: o Português, o Espanhol, o Francês, o Italiano e o
Romeno, além do surgimento de outros dialetos em certos locais. Nesta região, a substância
espiritual latina, mesmo após as invasões, permaneceu tanto na organização social e política
como na educação e cultura, vejamos: 1) O mediterrâneo ainda se constitui como sustentáculo
econômico da sociedade8; 2) As relações sociais eram praticamente as mesmas de antes,

6 Sobre este tema, Ricardo da Costa, professor do Departamento de Teoria da Arte e Música (DTAM) da Universidade Federal do Espírito
Santo (UFES), trata em diversas palestras e artigos. Recomendo àquele que estiver interessado em escutar de um professor medievalista o
quanto ainda vigora de preconceito sobre o tema no Brasil a palestra O Mito da Idade Média (COSTA, 2013); e um prefácio: A vida no texto,
o texto na vida, o texto da vida: Régine Pernoud e sua bela Idade média (COSTA, 2016).
7 Ataulfo foi rei dos visigodos e sucedeu a Alarico I (370-410 d.C.), o primeiro invasor de Roma, levando sua tribo até a Hispânia e morrendo
lá em 415 d.C.
8 A costa do Mar Mediterrâneo era o eixo em que se encontravam a cultura latina ocidental e a filosofia grega oriental, além disso, estabelecia-
se como o mantenedor econômico da parte ocidental por causa do intenso comércio que se realiza através dela, por isso não existe civilização
romana sem o mediterrâneo, o mare nostrum. Pirenne (2010, p.17) observa que ele foi o único elo que manteve a unidade das duas partes
do império e fez que elas não dessem lugar a dois impérios distintos.

47
preservando-se as grandes estruturas fundiárias e as villae9; 3) A língua latina vigorava como
a língua oficial, e a filosofia grega era ainda a finalidade da educação dos jovens (PIRENNE,
2010); 4) Por fim, o último legado do império, a Igreja Católica Romana, foi também adotado
pelos bárbaros ao se converterem ao cristianismo e universalizado entre todos os estratos
sociais (PIRENNE, 2010).

Os invasores germânicos, sobretudo os ostrogodos na Itália, os visigodos na Hispânia, os


Francos na Gália e os Vândalos no norte da África, todos eles, ao se defrontarem com a cultura
latina, notam a sua superioridade e querem fazer parte dela. Portanto, é uma deformação a
crença do desaparecimento de Roma da história do Ocidente: “Nada animava os germanos
contra o império, nem motivos religiosos, nem ódio de raça, menos ainda considerações políticas.
Em vez de odiá-lo, eles o admiravam. Tudo o que desejavam era restabelecer-se ali e desfrutar
dele. Seus reis aspiravam às dignidades romanas.” (PIRENNE, 2010, p. 21).

Há aqui o perfeito vislumbre de como a tradição funciona. Os germânicos, sem nada


contrapor à cultura do vencido, se deixam tomar por sua cultura e a transmitem aos séculos
vindouros (CURTIUS, 1957). O que eles fizeram não foi um resgate artificial de uma cultura
morta, mas simplesmente continuar a civilização que receberam, tentando fazê-la pujante
novamente.
Em suma, toda essa confluência de fatores, a saber, a língua latina, a filosofia grega e o
trabalho missionário da Igreja Romana, que não deixava de se acercar dos autores clássicos
para transmitir a fé e converter os povos germânicos, gerou a própria Civilização Ocidental,
que estava em seu desenvolvimento nesse período entre 476 a.C. e o século XIV. A Idade
Média Latina não é só uma época histórica delimitada, mas a formadora da mentalidade do
próprio Ocidente, por isso deve ser investigada até chegar ao espírito de suas manifestações
intelectuais.

Dado o seu caráter de origem de uma civilização, é preciso direcionar luzes sobre ela e
compreender como se dava a transmissão da cultura latino-cristã. Como falado ao início, a
educação tem esse papel primordial. Nesta época, vigorava o sistema de ensino das artes
liberais. Neste sistema, a Literatura se apresenta como a primeira entre todas as disciplinas por
causa do seu caráter de transmissão cultural. Por isso, é necessário observar de que forma, a
partir das bases da Ars Grammatical ou Gramática, fornecidas por Quintiliano (35-95 d.C.), ela
foi recebida por esse período de transição, no século V, por Cassiodoro, autor que foi tomado
como referência na matéria ao longo do período, até mesmo no século XIII, auge intelectual e
político da Cristandade Ocidental. O objetivo final do nosso trabalho é analisar a transmissão
9 A organização social rural permanece a mesma na România, o máximo que acontece é a substituição de um senhor por outro. Isto pode
ser visto nas villae e demais terras, onde a hierarquia social, o escravismo, o sistema de tenures e até mesmo os impostos conservam as
mesmas características, conforme atesta Pirenne (2010, p. 72).

48
cultural do mundo antigo através da educação latina medieval, a fim de entender o espírito do
mundo ocidental.

1 O sistema das artes liberais


Na Grécia, no período após a revolução de Sócrates na filosofia, houve uma querela sobre
o valor da poesia na formação do homem. Platão era severo com esta manifestação, sobretudo
com Homero, por causa do potencial da poesia de influenciar os jovens a não respeitarem as
leis e a se tornarem desordenados (PLATÃO, 2014, p. 101-108). Para ele, a desordem da pólis
vinha da desordem interior das próprias pessoas que a compunham, para as quais a influência
da literatura poderia ser danosa. A cidade exterior era precedida pela cidade interior da alma
humana, e o governo dos reis filósofos deveria se ocupar das duas.

É evidente que, nessa concepção, a poesia não tinha um papel de simples deleite, mas
era como que moldadora da própria alma dos jovens. Homero era educador de toda hélade
(PLATÃO, 2014, p. 101-108). Servia de base à educação de todo jovem grego tanto nos
aspectos religiosos quanto morais, por isso não era de pouca monta a preocupação com as
produções literárias. Um sistema eficiente de ensino que não desprezasse esse duplo caráter
da literatura e voltasse atenção ao espírito humano, a fim de torná-lo livre, tornou-se uma
necessidade. Nesse contexto, Hípias (460-400 a.C.), sofista grego, idealiza uma estrutura
curricular, baseada nas artes liberais, chamada Educação Comum Cotidiana (CURTIUS, 1957,
p. 39). Chamavam-se artes liberais porque tinham como objetivo libertar o espírito humano e
levá-lo à excelência. “Arte” está numa acepção mais primitiva da palavra cujo sentido pode ser
traduzido por “conhecimento necessário para dominar uma técnica”. Este método é composto
por aqueles conhecimentos que devem vir primeiro e servem para dominar a técnica da escrita,
leitura, fala e pensamento. As artes liberales ou studia liberalia são um sistema bem acabado
de ensino voltado à prática das atividades de escrita e discurso, contudo, apesar de já aparecer
pronto para o usufruto dos mestres, é precedido por um século de discussão sobre a validade
da arte literária na formação dos jovens.

Dentro deste método, a Litteratura ou Grammatica10 figura como a primeira das disciplinas e
eleva o jovem, através dos textos primordiais do mundo helênico, à excelência necessária para
se viver na pólis. É uma primeira resposta à preocupação de Platão. A crítica à poesia como
desagregadora do tecido social foi até um pouco mais longe no tempo devido à própria influência
do filósofo, o que fez que se aperfeiçoasse o método, acrescentando a busca de elevação
moral à aquisição de cultura letrada. A resposta a que se chega para o dilema dos poetas não

10 São só dois nomes para o mesmo objeto, a primeira das artes liberais. Grammatica era o nome grego, e Litteratura, sua tradução em
latim. Ambas vêm de “letra” (em grego, “gramma”, em latim, “littera”) e se constitui como “ciência das letras”.

49
é o seu desaparecimento em detrimento da filosofia, mas o estabelecimento da literatura como
alicerce de um edifício cujo cume é a própria filosofia. Chega-se a um consenso de que as
artes liberais são uma propedêutica a ela, havendo aí uma relação de mútua dependência, na
qual nenhuma arte deve ser buscada por si mesma nem se pode aceder à filosofia sem todo
o edifício preparatório das artes. Antes de chegar à sabedoria, é conveniente a preparação do
intelecto para desfrutar da vida do espírito, inerente a todo homem.

Pois bem, saltando um pouco no tempo, vemos que as artes liberais permaneceram ao
longo da história e se aportaram na Idade Média Latina. Por causa da nova espiritualidade
cristã, receberam um olhar diferenciado, afinal, um caminho à santidade pode ser empreendido
através da compreensão do mundo. Explico: o mundo é uma criação de Deus, por isso deve
ser conhecido e amado, pois reflete as próprias perfeições do criador11. Para isto, é necessário
um intelecto livre que saia da materialidade das coisas e alcance a própria ideia com que Deus
as criou. Ora, esta ideia nada mais é do que o Verbo Divino, o próprio Filho de Deus, Cristo.
Através d’Ele, no início, tudo passou a existir, como é descrito no prólogo do evangelho de
João12. Em virtude desta ordenação divina do mundo, as artes liberais não são só uma via de
desenvolvimento intelectual, mas também um meio de ascese e purificação da alma, por isso
foram adotadas tão largamente.

Ao longo do período medieval, o método foi dividido em duas partes: as três artes que
transmitem a linguagem e ordenam a inteligência, o Trivium, a saber, Gramática, Dialética e
Retórica; e o Quadrivium, formado por quatro matérias que se debruçam sobre o mundo natural
e suas leis, a saber, Aritmética, Música, Geometria e Astronomia. São sete as vias – como os
próprios nomes Trivium e Quadrivium sugerem – pelas quais o estudante ascende à sabedoria
invisível de Deus.

Desde sua fundação, este sistema foi incorporado entre os gregos e posteriormente entre os
latinos, a tal ponto que, na época de Sêneca, já se fazia crítica dele por não desenvolver mais
nos alunos as virtudes do bom homem. No final da antiguidade, já se observa sua decadência
ao ponto de o filósofo estoico reforçar os princípios do método pedagógico, os quais, porém, já
não eram respeitados. É frequente ver que o usam para obter riquezas e fama, por isso deve
ser substituído por algo realmente eficaz para a elevação humana, a sabedoria:

Queres saber o que eu penso das ‘artes liberais’: não admiro nem incluo entre os bens autênticos
um estudo que tenha por fim o lucro. [...]. Somente devemos deter-nos na sua prática enquanto
o nosso espírito não for capaz de tarefa mais alta; [...]. Compreendes por que razão se lhes
chama ‘estudos liberais’: porque são dignos de um homem livre. No entanto, o único estudo

11 “Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem,
desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas.” (Rm I, 20).
12 “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas
por intermédio dele, e, sem ele, nada do que foi feito se fez.” (Jo I, 1-3).

50
verdadeiramente liberal é aquele que torna [sic.] um homem livre; e esse é o estudo – elevado,
enérgico, magnânimo – da sabedoria; os outros são brincadeira de criança. (SÉNECA, 2014,
p. 415).

Percebe-se o quão difundido estava, no século I d.C., o método das artes liberais, cuja
finalidade era de conhecimento de todos. Sua banalidade era tal que já se o tinha como critério
de distinção entre os que eram dignos de serem considerados “livres” e os que não o eram, a
despeito do quê Sêneca o desmistifica e pede a seu discípulo Lucílio buscar o bem autêntico
e puro da sabedoria. O que se estuda no método são apenas bens relativos, cuja validade só
se dá em virtude de outro bem superior, a ser alcançado. Em si o conhecimento das letras não
leva a lugar algum se não for ordenado à busca das virtudes:

A gramática ocupa-se do estudo da linguagem; se pretender espraiar-se mais longe ocupar-se-á


da explicação de textos, e se chegar aos seus extremos limites abordará a poética. Em que estes
assuntos aplanam a via para a virtude? [...] – em que isso contribui para nos livrar do medo, nos
libertar do desejo, nos refrear as paixões? (SÉNECA, 2014, p. 416).

Em toda obra humana, é normal que, no início, aplique-se com eficiência e observem-se
bem seus princípios, contudo, à medida que se torna banal seu uso ou se distancie da época
em que foi fundada, a força inicial desaparece e se torna mais mecânica. Com as artes liberais
não podia ser diferente, concebeu-se para sistematizar o próprio ensino das letras em prol da
excelência do indivíduo, no entanto, em algumas localidades ou em virtude de algum professor
relapso13, o sistema foi perdendo sua força e, por fim, caducou.

Mesmo com todo esse cenário de decadência, as artes liberais continuaram sendo a base
do ensino escolar na antiguidade e depois na idade média. Na Idade Média Latina, ganhou
nova vitalidade. Não poucos autores dos dois períodos, tanto da Idade Média quanto do Império
Romano, acreditavam em sua eficiência no ensino das letras. Deixaremos para um momento
posterior a apreciação das outras artes do Trivium. Nosso trabalho aqui se direciona à Ars
Grammatica por causa do seu caráter de predecessora das outras artes e da importância da
literatura na transmissão do espírito clássico.

Nesta arte, dentre todos, o autor mais emblemático é Quintiliano. Sua obra De Institutione
Oratoria (1823) não deixa de ser a base do trabalho dos mestres contemporâneos ou posteriores,
tampouco perde a validade nas definições dos aspectos da língua e dos gêneros poéticos.
Ademais, a preocupação moral do autor acerca dos livros que deviam ser lidos foi recebida de
forma muito animadora pelos autores medievais, entre eles, Cassiodoro e Isidoro de Sevilha.
13 Sêneca cita os maus professores para desmerecer todo o método: “Ou julgas tu que há algo de bom em matérias que vês serem professadas
pelos mais indignos e prejudiciais dos mestres?” (SÉNECA, 2014, p. 415). A preocupação do estoico é muito mais com a virtude que com o
ensino das letras, razão pela qual ele despreza esta em detrimento daquela. Por outro lado, as artes liberais não nasceram para transmitir
um conhecimento meramente intelectual (CURTIUS, 1957).

51
Este caráter de autor gramatical basilar só foi ameaçado séculos mais tarde por estes dois
autores, um deles era um pedagogo, Cassiodoro, o outro, um enciclopedista avant la lettre,
Isidoro de Sevilha.

2 A Ars Grammatica
O mundo clássico é construído sobre livros. Um exemplo claro disso é a própria Grécia, em
cujas bases estão alicerçados os poemas de Homero. Através de suas histórias, que contam
como núcleo a fúria de Aquiles e o retorno de Odisseu, o poeta refunda o mundo grego sobre
as bases do princípio de autoridade. Ao contar a história de uma guerra que se passou há uns
três séculos, conclama as pessoas a seguirem o exemplo daqueles heróis e recriarem aquele
mundo fantástico. Daí se vê a importância das letras na sociedade clássica (JAEGER, 2001).
Em Roma, não deixa de ser diferente: os autores clássicos como Horácio, Virgílio, Ovídio e
Cícero também têm importância na fixação dos princípios sobre os quais se quer construir
a respublica, o Estado Romano, embora sua mentalidade seja bem mais prática e menos
contemplativa que a de seu precursor.

No século V a.C., a criança era ensinada pelo pedagogo, o escravo encarregado deste
trabalho, a ler e entender as letras. Já que a essência do mundo onde ela vivia era transmitida
através dos escritos, que solidificam a mentalidade do povo, os mais nobres deveriam dominar
a literatura antes de ficarem hábeis em outras artes teóricas e práticas. A primeira disciplina
a que eles tinham acesso era a Gramática, cujo nome já nos dá uma ideia da ordem como o
conhecimento era apresentado. Dever-se-ia primeiro aprender as letras do alfabeto e juntá-las
em palavras. Posteriormente, tendo sido bem alfabetizada, era conduzida ao estágio avançado
da disciplina, a compreensão dos autores. Portanto, basicamente a arte da gramática se dividia
em dois níveis: 1) O aprendizado da língua e das regras da boa escrita e o estudo das classes
gramaticais; e 2) A compreensão dos autores e análise das obras primordiais, isto é, filologia,
além da poética e dos aspectos universais do estilo e composição dos versos.

Ao longo do período, esta disciplina se modificou um pouco, aliás, ganhou mais sofisticação,
sobretudo dividindo o segundo estágio num terceiro ao invés de se condensarem em um
só, tendo aquele um caráter mais filológico e este, um direcionamento à filosofia da arte ou
especulação acerca dos gêneros literários. Posteriormente, a disciplina Grammatica ganhou o
nome, em latim, Litteratura ou o grego Philologia, “amor ao texto e à língua” (CURTIUS, 1957,
p. 44).

É interessante perceber que o primeiro nível da arte apresentou, ao longo do tempo, poucos
acréscimos em sua complexidade devido ao fato de que a própria língua possui categorias
fixas, em cuja essência só acontecem mudanças de forma pontual. Por exemplo, a categoria

52
do substantivo, ou do adjetivo ou mesmo do verbo se alteraram pouco em si mesmas desde o
início da existência da língua. Por outro lado, a tendência da filologia é ter, à medida que novos
leitores vão surgindo, novas interpretações. Ademais o interesse de filósofos pela natureza da
criação poética só aumentou ao longo da antiguidade clássica, por isso a filologia se tornou
mais complexa à medida que novas descobertas filosóficas apareceram.

De acordo com essa constatação, percebe-se uma evolução na ciência da literatura desde
suas bases fixadas por Quintiliano até o período em que o Latim deixou de ser uma língua
atuante no Ocidente, por volta do século XVIII. Na idade média, a exigência com um estudante
era a mesma de antes, no período romano: dominar a língua em seu uso oral e escrito e
conhecer os grandes autores. Não houve perda da força da língua latina durante estes séculos.
As bases medievais da disciplina foram lançadas em Quintiliano e continuava em voga através
de outros autores: “O estudante de latim da Idade Média devia ser levado não somente a ler a
língua de Roma, como a dominar seu uso oral e escrito. [...] liam-se, naturalmente, os capítulos
gramaticais da Institutione Oratoria de Quintiliano.” (CURTIUS, 1957, p. 45). Vejamos, com
mais detalhes, a importância do autor.

3 Quintiliano
Quintiliano (1823) foi autor da obra basilar De Institutione Oratoria, que versa sobre como
educar um jovem em vista de tornar-se um orador. Roma do século I d.C. já não era mais a
república do século anterior, de um Cícero, um Catão e um Horácio, cujos discursos eram
dispostos a arrancar do público toda verve necessária à melhora da convivência civil, porém
a importância do discursar em público e da argumentar juridicamente ainda permanecia na
cultura romana. Dentro deste mundo político, a obra deste autor fornece as bases da educação
literária dos jovens que quisessem aspirar à vida pública. O homem bem formado devia ser
homem político e ter virtude para influenciar outros através do discurso. Era uma educação
voltada à retórica ao mesmo tempo que às virtudes, sobretudo cívicas.

Na área da gramática, sua obra deitou influências por todo período medieval, sendo ele
considerado uma espécie de mestre universal da primeira das artes liberais. Foi ele quem
traduziu grammatica, do grego, para literatura em latim e a dividiu em duas partes: recte
loquendi scientia et poetarum enarratio (a ciência do bem falar e a história dos poetas) dando
a ela este duplo caráter que conservou durante os séculos vindouros. Ademais, sua obra não
busca apenas formar intelectuais, mas o homem ideal (CURTIUS, 1957). O orador deveria
ser o mais virtuoso e digno dos homens, porque nada melhor os deuses deram a ele do que

53
o poder da linguagem14. É isto que o eleva acima dos animais e o faz transcender no tempo e
no espaço, tornando presente para a posteridade todas as coisas que se encontram ausentes.

Apesar de ter resumido o ensino da ars grammatica em apenas dois pontos, arte do bem
falar e explicação dos poetas, nestas mesmas divisões, observam-se, por sua vez, subdivisões,
como a arte da boa escrita, que levaria ao domínio da composição literária, e, além da história
dos poetas, que seria hoje chamada história da literatura, há uma explanação sobre a lectio
poetarum, um esforço de leitura e análise dos autores mais importantes. Fixam-se na gramática,
então, a categoria da estilística e o aprendizado escolar da composição literária, mostrando
que, na tradição latina, o escrever com beleza e forma vem da escola nos primeiros anos de
ensino. Ademais, a leitura dos poemas deve ser feita com profundidade, buscando seu conteúdo
moral para formar-se como homem. Quintiliano até tiraria alguns poetas do currículo escolar,
como Horácio, devido ao conteúdo erótico de algumas produções (CURTIUS, 1957). Não se
admira que os medievais, com sua preocupação espiritual, tenham abraçado tanto o autor.

Enquanto ele desabilita alguns autores, reabilita outros, como Virgílio. É a tentativa, dentro
do contexto escolar, da formulação de um cânone de obras importantes, no qual Homero e
Virgílio estão no centro para a formação intelectual e humana do discípulo. As bases materiais
do ensino estão aí, e a finalidade é a mais adequada ao contexto da Idade Média Latina. Os
grandes autores são como mestres de vida e escrita dos homens e devem fazer parte do
convívio cotidiano do orador.

Em sua obra, este acostumar-se com estar em conversação com os grandes autores
leva ao hábito da escrita organizada e criativa, que em si toca a terceira das artes liberais,
a retórica. A habilidade em falar e escrever, per se, sem tangenciar especulações acerca da
poética, é o objeto da retórica. Por isso, para Quintiliano, o Trivium alia retórica à gramática
para dar matéria ao aluno tanto no plano moral quanto na construção de um repertório mental
de grandes autores que devem ser usados constantemente.

No período posterior, vemos que esse tipo de organização da disciplina e sua finalidade em
formar homens virtuosos influenciou muitos autores em suas obras escolares, como Prisciano,
Cassiodoro e Isidoro de Sevilha. Na perspectiva de cada um deles, há diferenças pontuais,
porém a essência da gramática continua a mesma disposta por Quintiliano. É interessante
notar em Cassiodoro a continuidade deste trabalho em conformidade com as novas exigências
espirituais cristãs.

14 “Ipsam igitur orandi maiestatem, qua nihil dii immortales melius homini dederunt et qua remota muta sunt omnia et luce praesenti ac
memoria posteritatis, toto animo petamos. [Peçamos, portanto, de todo coração, o poder mesmo da linguagem, nada melhor que isso deram
os deuses aos homens, sem a qual todas as coisas distantes ficam mudas e carecem de luz presente e memória da posteridade.]” (XII, 11,
30 apud CURTIUS, 1957, p. 459, tradução nossa).

54
4 A tradição latina na obra de Cassiodoro
O espírito de universalidade dos romanos impregnou a Idade Média de tal forma que mesmo
seus autores mais cristãos não puderam deixar de apresentar o pensamento prático dos antigos
habitantes do Lácio, seja no ensino, na literatura ou até mesmo na Regra de São Bento15. Todo
este espraiamento do espírito romano é coerente com a própria crença deste povo de presidir
outros povos. Até mesmo antes de Virgílio, crê-se na “lenda de um futuro imperial” que levaria
a “um porvir extraordinário”16. Neste porvir, a pietas romana, dada por Júpiter17 concedia-lhes o
encargo de governar política e espiritualmente outros povos (BOUCHET, 1984; CURTIUS, 1957).
Este governo político e espiritual só teve pleno estabelecimento com o fortalecimento da Igreja
Romana Medieval, que emprestou a unidade espiritual católica18 à unidade cultural da România.
Por isso, a difusão da cultura latina se deu de um modo tão universal, sobretudo nos territórios
desta região, muito mais que no restante da parte ocidental do Império, mormente o norte da
Europa e a Inglaterra, que são apenas frutos da irradiação cultural das terras românicas19.

Os autores escolares medievais são, assim como a mencionada regra do grande santo, a
perfeita síntese da essência romana com a espiritualidade cristã. São como também difusores
da cultura latina, como os afluentes de um rio caudaloso que levam a cultura a outras regiões.
Eles tanto receberam o espírito romano através principalmente dos poetas latinos, como a
mesma estrutura de ensino gramatical de Quintiliano é observada nas obras magnas da matéria.
Baseiam-se neste autor para dar destaque ao conteúdo moral além das habilidades literárias
dos poetas, de tal modo que autores escolares medievais eram chamados também ethici, isto
é, mestres em ética e moral:

Recordamos que os poetas também foram recomendados como leitura escolar por causa de
seu efeito edificante. Somando-se tudo isso, compreendemos que o ensino da gramática e da
literatura na escola medieval era considerado ao mesmo tempo um curso de moral. Quando
essa concepção chegou a ser expressa, os autores escolares puderam ser denominados ethici.
(CURTIUS, 1957, p. 461).

15 A Regra de São Bento é um exemplo bem acabado de como a mentalidade romana se adequou ao cristianismo de forma perfeita. Aquele
espírito austero e simples e o respeito pelo princípio de autoridade, frutos do mundo romano, aliado à busca de elevação espiritual cristã
encontram na Regra sua perfeita síntese. Carpeaux (2011, p. 141) explica essa mistura entre organização e estética clássica, típica dos
romanos: “Sobrevive o espírito romano na regra da ordem de São Bento, na convivência de duro trabalho manual e estudo das letras clássicas;
[...]”.
16 “Antes que nasciera Virgilio la leyenda de un futuro imperial inspiró a los romanos la convicción de um porvenir fuera de série.” (BOUCHET,
1984, p. 7, tradução nossa).
17 Júpiter é o chefe dos deuses romanos, o equivalente ao Zeus da Grécia. Ele era tão importante politicamente que foi construído em honra
dele o primeiro templo após um período de guerra contra os Sabinos. Encomendado por Tarquínio Prisco para simbolizar a paz conquistada,
este templo representa o governo de Júpiter exercido do alto do monte Capitólio (Lív., Libr. I, 55).
18 Católico é uma palavra de origem grega, que significa universal. Nada mais sugestivo que um nome da Igreja Romana tenha relação com
o próprio espírito de universalidade deste povo.
19 “Da România e de suas irradiações recebeu o Ocidente o ensinamento latino” (CURTIUS, 1957, p. 37).

55
Um dos autores escolares mais lidos à época merovíngia20 é Cassiodoro (~477 – 581
d.C.). Na corte, Cassiodoro teve diversas participações políticas, desde questor até cônsul,
porém foi quando ele se apartou dela e entrou no mosteiro de Vivarium que se estabeleceu
como restaurador da cultura clássica na Igreja franca (PIRENNE, 2010, p. 111). Na sua obra
Expositio in Psalterium, ele demonstra que o saber sagrado das escrituras precede o profano, e
que todos os gêneros literários estavam em germe nas Sagradas Escrituras (CURTIUS, 1957,
p. 473). Eles são divididos por Quintiliano em poéticos, filosóficos e historiográficos (CURTIUS,
1957, p. 460), ficando os poéticos no âmbito da pura literatura, os filosóficos possuem escritos
em verso ou em prosa, e os historiográficos, somente em prosa. Cassiodoro observa que
estes gêneros de escrita não foram os gregos que descobriram, mas os autores sagrados já
os conheciam antes, por isso as letras seculares, como ele chamava, deviam ser estudadas
para entender as letras sagradas (CURTIUS, 1957).

Porém, é em seu livro Instituitiones divinarum et saecularium litterarum que ele expõe essa
tese a partir da caracterologia literária de Quintiliano. Trata-se de uma introdução à literatura
que abarca tanto a salvação da alma quanto o conhecimento profano, tanto os escritores
clássicos quanto os escritores sagrados. Estes escritores são categorizados também, assim
como fez o autor do século I, de acordo com sua época e estilo.

Cassiodoro também se deixa influenciar por Quintiliano quanto a sua definição de gramática,
bene dicendi scientia in civilibus questionibus21, e ainda o cita como referência em gramática e
retórica. Fornece aos seus alunos um verdadeiro cânone de literatura pagã e cristã, escolhendo
os autores pelo ponto de vista moral em perspectiva da Bíblia. Tornou-se depois o compêndio
de literatura da Idade Média Latina e uma influência aos autores de todo o período: “Breve a
obra de Cassiodoro se espalhará além dos limites do estreito círculo daqueles para os quais
foi escrita, tornando-se um livro básico da cultura medieval.” (CURTIUS, 1957, p. 476).

Considerações finais
O primeiro aspecto a se considerar quando se estudam os textos de uma época é a
mentalidade ou espírito de um povo. Ele se torna concreto através das manifestações culturais,
sendo a mais perfeita delas a literatura. De acordo com a tese de Pirenne e Curtius, o espírito
romano não caiu junto de seu poder político, mas continuou através da nova civilização que
surgiu. Ao observarmos o mundo romano, do qual somos herdeiros, observamos aquilo que

20 Dinastia que governou os francos do século V ao VIII d.C. Os francos dominaram a região da antiga Gália, que englobava a atual França,
Bélgica, Suíça e uma parte da Alemanha. Tinham como centro do seu império o Mediterrâneo e estabeleceu o cristianismo como religião
do Estado depois do batismo de seu principal monarca, Clóvis, em 496 d.C. Após a conquista do Mediterrâneo pelos árabes, esta dinastia
perdeu força e foi substituída por uma linhagem de cultura mais germânica, a dos Carolíngios (PIRENNE, 2010).
21 “A ciência do bem falar em assuntos civis.” (CASSIODORO apud CURTIUS, 1957, p. 475).

56
Carpeaux (2011, p. 95) define, de uma maneira bem severa, como “força alheia ao espírito”,
cujo cerne não está no caráter especulativo, como no povo grego, mas nas suas ações como
um povo militar e campesino, que se deixou vencer pela filosofia grega22 e a tornou concreta
em suas leis e literatura.

Além destes aspectos, há outro de profunda relevância ao estudo dos textos latinos: o
espírito de universalidade, o espraiar sua cultura pelos povos de diferentes matizes, mas
unidos pelo princípio de autoridade. Este princípio foi continuado pela Igreja Romana no período
medieval. A Igreja se adequou bem ao império, pois sua própria mensagem, o Evangelho, em
si é universal. O império para ela foi um plano da Providência Divina para a difusão da boa-
nova entre todos os povos (PIRENNE, 2010).

Por isso, é evidente que o mundo latino não se alterou na sua substância por causa da invasão
dos bárbaros e a elevação de uma nova religião. O que houve foi tão somente uma transformação
política de uma unidade imperial para uma forma descentralizada de governo, em que havia
diversos reinos independentes, que, pelo menos em forma de respeito simbólico, respondiam
politicamente a um soberano distante, o imperador de Constantinopla, e espiritualmente ao
pontífice romano. Portanto, o árbitro universal das questões ainda estava nas mãos dos antigos
soberanos políticos, e aos reis germânicos cabia tão somente a administração do quinhão que
lhe cabe do antigo território da “Roma Ocidental”. O antigo sistema dos federados23 permanece
sob uma forma política diferente em seus acidentes, mas semelhante ao regime anterior na
essência:

Pois o imperador não desapareceu de direito. Nada cedeu em soberania. A velha ficção dos
federados continua. E os novos afortunados reconhecem a sua primazia.
[...] Constantinopla permanece a capital desse conjunto. Os reis visigodos, ostrogodos e vândalos
a adotam como árbitro de suas querelas. O imperador subsiste de direito por meio de uma espécie
de presença mística. (PIRENNE, 2010, p. 31-32).

Os invasores estrangeiros, não adaptados à cultura latina, já tinham, mesmo antes, verdadeiro
fascínio por todo aquele universo romano e queriam participar dele a fim de elevar sua própria
dignidade24.

Um dos aspectos desta cultura que permaneceu foi o sistema de ensino baseado nas sete
artes liberais. Nesta época, estas artes liberais adquiriram o nome Trivium e Quadrivium. A
mais importante delas para o período é a Gramática, que englobava não só as lições sobre a

22 “Graecia capta ferum victorem cepit et artis intulit agresti Latio [A Grécia vencida subjugou seu vencedor e introduziu as artes no rude
Lácio]” (Flac., oper., II, 1, 156, tradução nossa).
23 Chefes tribais germânicos que adentravam o império e ganhavam do imperador o privilégio de morar no interior de suas fronteiras, além
de trazer seus comandados para ocupar a região estabelecida, contanto que servissem como generais nas batalhas contra outros bárbaros.
24 Pirenne (2010, p. 21) destaca que tudo o que os chefes germânicos invasores desejavam “estabelecer-se ali e desfrutar (do império).
Seus reis aspiravam às dignidades romanas”.

57
correção da língua, mas também o estudo da literatura, em cujas bases Quintiliano estabeleceu
sua obra De Institutione Oratoria. Posteriormente, no século V, Cassiodoro, calcando seu
projeto no ensino da literatura em conformidade com os valores cristãos, aproveitando as
bases de Quintiliano, tornou-se um dos mais citados sobre educação do período. É importante
percebermos como a tradição latina foi respeitada pelos medievais e como se enriqueceu pelos
acréscimos que recebeu. Esse arranjo formou a Civilização Ocidental, em seu corpo e espírito.

Referências
BÍBLIA. N.T. Epístola de Paulo aos romanos. In: Novo Testamento trilíngue: grego,
português e inglês. Editor Luiz Alberto Teixeira Sayão. São Paulo: Vida Nova, 1998, cap. 1,
vers. 20.

BÍBLIA. N.T. O evangelho segundo João. In: Novo Testamento trilíngue: grego, português
e inglês. Editor Luiz Alberto Teixeira Sayão. São Paulo: Vida Nova, 1998, cap. 1, vers. 1-3.

BOUCHET, Rubén Calderón. Pax Romana: Ensayo para una interpretación del poder
político en Roma. Buenos Aires: Libreria Huemul. 1984.

CARPEAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental. Brasília: Senado Federal,


Conselho Editorial, 2011.

COSTA, Ricardo da. A vida no texto, o texto na vida, o texto da vida: Régine Pernoud e sua
bela Idade Média. Prefácio. In: PERNOUD, Régine. Idade Média: O que não nos contaram.
Tradução de Maurício Bret de Menezes. São Paulo: Linotipo Digital, 2016.

COSTA. Ricardo da. O mito da Idade Média. Vídeo em 3 partes da palestra proferida no
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (Bom Jesus de Itabapoana, RJ), 2013.
Disponível em: https://www.ricardocosta.com/video/o-mito-da-idade-media. Acesso em: 02
out. 2020.

CURTIUS, Ernst. Literatura Europeia e Idade Média Latina. Tradução de Teodoro Cabral.
Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1957.

FLACCUS, Quintus Horatius. Opera Omnia: Satira, Epistulae, Lexicon Horatianum.


Berlim: Calvary. 1886, p. 513. Obra Digitalizada. Disponível em: https://archive.org/details/
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JAEGER, Werner. Paidéia: A formação do homem grego. Tradução Arthur M. Parreira. 4.


ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

58
LÍVIO, Tito. Ab urbe condita. Libr. I, 55. 2016. Disponível em: https://archive.org/details/
bub_gb_uKlBAAAAMAAJ/page/n195/mode/2up. Acesso em: 20 set. 2020.

PIRENNE, Henri. Maomé e Carlos Magno: o impacto do Islã sobre a civilização europeia.
Tradução de Regina Schöpke e Mauro Baladi. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio,
2010.

PLATÃO. A República. Introd., tradução e notas de Maria Helena da Rocha Pereira. 14. ed.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2014.

QUINTILIANO, Marcus Fabius. De Institutione Oratoria. Paris: Bibliotheca


Classica latina. 1823. Obra Digitalizada. Disponível em: https://archive.org/details/
marcusfabiusqui02quingoog/page/n5/mode/2up. Acesso em: 17 jun. 2021.

SÉNECA, Lúcio Aneu. Cartas a Lucílio. Tradução de J. A. Segurado e Campos. 5. ed.


Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2014.

59
II ESTUDOS FILOLÓGICOS
Arcaísmos no português
popular do nordeste
brasileiro à luz da
filologia portuguesa
Josenir Alcântara de Oliveira
Universidade Federal do Ceará – UFC

Mayara Arruda Martins


Universidade Federal do Ceará – UFC

Demartone Oliveira Botelho


Universidade Federal do Ceará – UFC
Introdução
É notório que todas as línguas em uso apresentam mudanças no espaço (diatópica), ao longo
do tempo (diacrônica), no âmbito social (diastrática) e de acordo com a situação (diafásica).
Por isso, para a compreensão e a descrição dessas mudanças, é mister o conhecimento das
circunstâncias das quais elas emergiram, pois tudo o que as civilizações têm criado é fruto da
combinação de fatores políticos, sociais, econômicos, religiosos, ideológicos, educacionais,
dentre outros, os quais compõem, em conjunto, o amplo contexto que explica e justifica o
estado presente dos fenômenos linguísticos.

Nessa perspectiva, os arcaísmos no português popular do interior do nordeste brasileiro,


per se, trazem, de modo implícito, a mudança linguística no espaço e ao longo do tempo,
partindo do latim, passando pelo galego-português, e chegando ao português popular, falado
no interior do nordeste brasileiro.

Subjacente a esse trajeto, está a convicção de seus autores de que, para se conhecer o
que uma coisa é no presente, é necessário se conhecer o que fez com que ela fosse o que é.
Eis, portanto, a justificativa deste estudo.

Como o terminus a quo e o terminus ad quem são, respectivamente, o latim e o português


popular, falado no interior do nordeste brasileiro, a Filologia, que contempla o aspecto diacrônico,
servirá de guia teórico-prático neste estudo, com o auxílio dos métodos histórico-comparativo,
geografia linguística e linguística espacial. Aqui, Filologia é entendida, segundo Bassetto (2001,
p. 37) como “em sentido estrito, a ciência do significado dos textos; e em sentido mais amplo,
[...] a pesquisa científica do desenvolvimento e das características de um povo ou de uma
cultura com base em sua língua ou em sua literatura”.

Por ser cerne deste estudo, é imperativo que se explicite, desde já, o que se entende por
arcaísmo. Em virtude de não haver uma univocidade conceitual em torno do termo “arcaísmo”,
os autores deste estudo teceram um conceito ad hoc a esse termo, que servirá de crivo
para a catalogação dos arcaísmos fonéticos no intervalo temporal e no espaço geográfico já
mencionados: qualquer unidade lexical ainda em uso, a qual já não é mais reconhecida como
pertencente à norma padrão, no âmbito fonético-morfológico e no âmbito léxico-semântico.

Destarte, o objetivo pontual deste estudo é enfocar as conservações linguísticas, arcaísmos,


no âmbito da fonética, advindas do latim à língua portuguesa popular do interior do nordeste
brasileiro.

62
1 Metodologia
Para atingir seu objetivo, supramencionado, esta pesquisa fez uso de revisão bibliográfica
e entrevista de campo com falantes nativos da região sul do Estado do Ceará, em particular, do
Cariri. Selecionaram-se, primeiramente, obras filológicas e linguísticas que fundamentassem
o tema em tela, recorrendo-se, para isso, a Ascoli, Vidos, Teyssier, Ilari, Coutinho, Gonçalves
e Basso, Cavalcante et al., Bakhtin, dentre outros. Somaram-se a esses autores uns outros
que embasassem uma perspectiva sociológica que desse conta do universo cultural do nosso
sertanejo, como são exemplos Farias, Ramos, Durkheim.

No que concerne à catalogação dos arcaísmos, valeu-se de letras de músicas, cordéis


e livros de poetas populares da região nordestina, como ilustram Assaré, Gonzaga, Maria
Tebana e Manuel do Riachão e Orthof, comparando, sempre que possível, cantigas e escritos
do período galaico-português ou do português arcaico, exemplificados por Afonso X, o Sábio,
Maria do Céu e Pero Vaz de Caminha.

Sobre a pesquisa de campo, os entrevistados foram brevemente indagados sobre vocábulos


que supusessem ser de uso restrito à sua região de origem, ou do nordestino interiorano em
geral.

Catalogadas as unidades lexicais, estabeleceram-se os seguintes critérios para a incorporação


dessas unidades a este estudo:

i) Ser uma unidade lexical de uso frequente no interior nordestino, atestado em músicas, cordéis
e livros de poetas populares da região nordestina, endossado pela entrevista de campo
(Mangabeira/CE, região sul, Cariri);

ii) Ser inexistente nos dicionários de uso comum, de língua portuguesa, hodiernos, exceto nomes
próprios, toponímicos e outros que se compuseram em estágios iniciais da língua;

iii) Ser existente nos dicionários de uso comum, de língua portuguesa, hodiernos, com indicação
de arcaísmo ou antigo;

iv) Estar presente exclusivamente como latinismo nos dicionários etimológicos consultados, como
Nascentes (1966), Nunes (1921), Viterbo (1865), dentre outros, o que não impede outras
propostas etimológicas;

A partir desses critérios, foram selecionadas 11 unidades lexicais, cada uma com suas
respectivas abonações – sempre que possível – e correspondências etimológicas entre o latim
clássico (Lc), latim popular (Lp), galego-português (Gp), galego moderno (Gm), português

63
arcaico (Pa), português moderno (Pm) e português popular do interior do nordeste brasileiro
(Pn), identificando-se os metaplasmos envolvidos.

O presente estudo inicia-se com apontamentos dos principais eventos históricos na porção
ocidental da Península Ibérica; passa-se para uma relação dessa história externa com as teorias
que fundamentam este estudo; com isso, relacionam-se os dois pontos anteriores, destacando-
se alguns eventos históricos da evolução da língua portuguesa, desde o latim popular da região
do terminus a quo até o português popular da região do terminus ad quem; realiza-se uma
breve discussão sociológica sobre o sertanejo e seu acesso à educação formal, fazendo uma
interface com a linguagem da cultura em exame; por fim, apresentam-se análises e comentários
das unidades lexicais catalogadas, em seu aspecto etimológico – inclusive, recorrendo-se à
forma hipotética, quando a clareza assim o exigir –, identificando-se os fenômenos fonéticos,
em torno da relação entre o terminus a quo e o terminus ad quem.

2 Breve contextualização histórica


No III a. C., a composição do substrato da Península Ibérica era, predominantemente,
celtas, iberos – mais tarde, fundidos em celtiberos–, fenícios, gregos, cartagineses e vascos.

Em 218 a. C., na segunda guerra púnica, Aníbal sitiou Sagunto, cidade de origem grega,
o que provocou a chegada dos romanos.
Em 106 a. C., os romanos conquistam a Capital peninsular, Cádiz, dando início à empresa
militar, que se transformou em um processo de colonização e assentamento, chamado de
romanização.

Em 19 a. C., os romanos conquistam a Costa cantábrica, região atualmente correspondente


à Galícia, às Astúrias, a Santander e a uma parte do País Basco.

Em 409, ocorreu a queda do Império Romano, quando a Península Ibérica sofreu invasão de
tribos germânicas – suevos, vândalos, alanos e visigodos. Com o domínio visigótico, a unidade
romana rompeu-se totalmente. Os visigodos romanizaram-se fundindo-se com a população
românica, adotando o cristianismo como religião e assimilando o latim vulgar.

Em 711, chegam ao fim os reinos germânicos, na Península Ibérica, quando Rodrigo, o


último rei godo, lutou contra a invasão árabe, sendo a língua da região o latim vulgar na sua
feição hispano-românica.

No século VIII, durante o domínio dos povos árabes – chamados também de mouros -, a
língua árabe foi a língua oficial, mas o latim, já bastante diferenciado, continuou a ser a língua
de uso popular.

64
No início do século XI, a reconquista cristã, organizada no Norte, vai paulatinamente
expulsando os árabes para o Sul.

Em 1139, Portugal constituiu-se politicamente quando Afonso I – Afonso Henriques, filho


do conde Henrique de Borgonha – se tornou independente do seu primo Afonso VII, rei de
Castela e de Leão, na Batalha de Ourique, fixando a Capital em Coimbra.

No início do século XIII, com o avanço para o Sul, o galego-português, que ia sendo adotado
por moçárabes, por todos os elementos alógenos integrantes do repovoamento, por árabes
remanescentes, serve de meio de expressão dos primeiros textos, como: 1. cantigas de amigo
(poemas de amor, por vezes com traços populares, em que a fala é feminina); 2. cantigas de
amor (poemas mais eruditos, de frequente inspiração provençal, nos quais é o homem que
fala); 3. cantigas de escárnio e de mal dizer (poemas satíricos, por vezes grosseiros).

Até 1250, os sucessores de Afonso Henriques continuam a expulsão dos árabes, em direção
ao Sul, quando Alfonso III a completou, finalmente, nos Algarves.

Em meados do século XIV, houve uma maior influência dos falares do sul, notadamente da
região de Lisboa, o que introduziu significativas diferenças entre o galego e o português até a
ruptura da unidade galego-portuguesa.

Entre os séculos XV e XVII, desligado da língua galega, é digno de nota que o português
desse período vivenciou um período de bilinguismo com o espanhol, por parte da elite social
e intelectual. Foi assim que, por exemplo, Gil Vicente (1470-1540) escreveu algumas obras
ora em português, ora em espanhol, ora em ambas as línguas, como, aliás, também fizeram
Sá de Miranda (1481-1558), Luís de Camões (1524-1580), dentre outros. Tal fato parece se
dever, em parte, ao prestígio sociocultural da língua espanhola perante a língua portuguesa,
em parte, à falta de estabelecimento e uniformização desta.

Nos meados do século XVI, a Grammatica da Lingoagem Portuguesa (1536), de Fernão


de Oliveira, e a Grammatica da Língua Portuguesa (1539 -1540), de João de Barros, servem
de marco para o início do português moderno, à luz do humanismo.

Diante dessa sucinta cronologia da língua portuguesa na Península Ibérica, não se pode
deixar de destacar o fato de que, por ocasião da chegada dos portugueses ao Brasil, a língua
portuguesa ainda não estava fixada gramatical e lexicalmente. Além disso, não é de menor
relevância observar-se que as pouquíssimas pessoas, que sabiam ler e escrever naquela época,
pertenciam à elite sociopolítica, como Pero Vaz de Caminha, que, tendo nascido no Porto,
era filho de um Cavaleiro do Duque de Bragança e que foi escrivão e tesoureiro da Casa da
Moeda, além de vereador. Teyssier (2014, p. 41), por sinal, atesta que essa região de Porto,
ainda hoje, conserva traços fonéticos próximos aos do galego moderno, ambos mais próximos
da unidade galaico-portuguesa do que as regiões mais ao sul, como Lisboa.

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Daí, parece plausível pensar-se na hipótese de que a maioria da tripulação, sob o comando
de Pedro Álvares Cabral, por não saber nem ler nem escrever, fazia uso apenas da linguagem
popular.

3 Fundamentação teórica
A época da colonização do nordeste brasileiro foi justamente o período que marcou a
transição fonética do português e seu devido distanciamento do galego. As populações do
nordeste, contudo, não receberam educação formal, quando recebiam algum tipo de educação.
Por consequência disso, a linguagem oral foi o que evidentemente preservou a construção
fonético-lexical desses falares interioranos.

De forma parecida, após a separação do Reino de Portugal, a população da Galícia também


não teve muito acesso à educação. Ademais, com a imposição do Castelhano como idioma
oficial em todo o Reino da Espanha, o galego perdeu sua força como literatura escrita, a partir
do século XVI, passando a se manter, também, somente pela linguagem oral.

O que se percebe é que ambas as manifestações linguísticas modernas, do interior do


nordeste brasileiro e do galego moderno, tiveram um ponto de origem linguístico-cultural
significativamente comum ao longo do tempo. Além disso, a escolaridade, quando ocorria,
propiciava o acesso a variantes que não de seu uso corriqueiro, isto é, o povo galego entrava
em contato com a língua castelhana, enquanto o brasileiro interiorano nordestino entrava em
contato com o português europeu, com o qual já apresentava notórios traços de divergência.

Para se levar a cabo o objeto deste estudo, na perspectiva filológica, é indispensável o


uso de alguns métodos, dentre os quais se conta, inicialmente, com o Histórico-Comparativo,
elaborado por Bopp, para analisar e cotejar os fenômenos linguísticos ocorridos entre um
terminus a quo e o seu terminus ad quem. Dessarte, por ser o objetivo deste estudo o de
recuperar, no plano fonético, algumas formas arcaicas do português popular do interior do
nordeste brasileiro, comparando-as com as formas do português padrão, do galego moderno,
do galaico-português, o método histórico-comparativo é de suma importância (ILARI, 1999,
p. 20-21).

Além do método histórico-comparativo, o método da Geografia Linguística será, também,


basilar para este estudo, sobretudo, a Teoria dos Estratos de Ascoli presente desde o
Proemio de seus Saggi Ladini (ASCOLI, 1873). Pautando-se nessas teorias, compreende-
se o porquê de os dialetos romances que se formaram na Península Ibérica não terem nem
se germanizado nem se arabizado. Como apresentado no contexto histórico, os visigodos
aderiram a diversas características culturais dos romanos, inclusive, à língua latina. Isso fez com

66
que eles desenvolvessem sua própria forma de falar o latim, aproximando-a de seus hábitos
linguísticos nativos. Tal fato imprimiu as primeiras transformações dialetais do latim popular da
região, convertendo-o num “romance ibérico”.

Quando os califados árabes invadiram a Península Ibérica e ainda que os católicos ibéricos
tenham sido permitidos por aqueles viverem sua fé, o preconceito étnico e religioso contra
os árabes muçulmanos impediu a arabização dos nativos peninsulares. Daí, Teyssier (2014,
p. 19) atesta que: “Boa parte das palavras de origem árabe atestadas pelos dicionários já não
pertencem à língua viva de hoje e são sentidas como arcaísmos. [...] A arabização do léxico
do português foi, pois, em outros tempos, maior que hoje”.

Tratando do fenômeno da dialetalização, Coutinho (1972, p. 28) define que “em sua origem,
toda língua é um dialeto, que, por circunstâncias várias, consegue predominar”. Unindo esta
tese àquela de que cada povo (aqui, os que se afixaram no ocidente ibérico) apropriar-se-ia do
latim a partir do próprio vocabulário, da compreensão sonora, da organização das frases e dos
textos, da compreensão de mundo, de seus valores, de sua mitologia e história, enfim, de tudo
que se apresente em diversos níveis da comunicação, é possível inferir que cada comunidade
linguística produziria novas formas dialetais, denominadas romances, que dariam origem às
línguas neolatinas hoje vigentes. Nesse sentido, ainda acrescenta Coutinho (1972, p. 28) que
“Língua e dialeto são, pois, termos relativos. O italiano, o francês, o espanhol, o português,
etc., que, tomados separadamente, constituem verdadeiras línguas, com relação ao latim, não
passam de simples dialetos.”.

Não obstante, dentre todas as variantes neolatinas, este estudo visa somente àquelas da
porção ocidental da península ibérica, em particular do português, que dará origem ao português
falado no nordeste do Brasil. Pretende-se, então, compreender melhor como e por que teriam
as unidades lexicais da região do terminus ad quem se preservado após tanto tempo e em
uma região tão distante do Lácio. Portanto, é visada uma compreensão dialetológica, além de,
única e propriamente, linguístico-histórica.

Bartoli (apud VIDOS, 1996, p. 81) define, em sua Linguística Espacial, que “quando, de
duas fases cronológicas de uma palavra, uma se encontra numa área isolada ou distante das
correntes de tráfico e difícil acesso, esta costuma ser a mais antiga”.

Isso significa que áreas mais isoladas, como a Galícia ou o interior do nordeste brasileiro,
tenderiam a apresentar vocabulários mais arcaicos, justamente pela dificuldade de acesso e
tráfico. Portanto, os vocábulos presentes no interior do nordeste brasileiro tenderiam a preservar
formas mais arcaicas e, muitas vezes, próximas do que já estariam conservadas pelo galego-
português em relação ao latim popular – sobretudo, o tardio.

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O quarto princípio da Linguística Espacial indica que os territórios colonizados mais tarde
costumam conservar uma fase mais antiga do idioma do que o centro colonizador (BARTOLI,
apud VIDOS, 1996, p. 83). Com isso, reforça-se que os vocábulos presentes na região do
terminus ad quem provenham de conservações latinas ou, no mínimo, mais próximas destas.

O quinto princípio da Linguística Espacial, de Bartoli, diz que, de duas fases lexicais, a
desaparecida – ou a menos vital – costuma ser a mais antiga (BARTOLI apud VIDOS, 1996,
p. 83). Assim, formas não mais usadas pelo português europeu ou pelo português brasileiro
(costeiro), em geral, ainda são atestadas pelo português do interior do nordeste. É o caso de
“eu dixe”, que se manifesta desde o período do galego-português, encontrada na cantiga de
escárnio de Afonso X presente neste estudo.

4 Evolução histórico-fonética da língua


portuguesa popular do nordeste brasileiro
Como atestado na contextualização histórica, a língua portuguesa, tal como se conhece
hoje, deriva, em primeiro ponto, do latim popular falado na porção ocidental da península ibérica.
Portanto, para se compreender os processos de formação dessa língua, é necessário que se
apresentem os processos evolutivos dela, diacronicamente. Uma vez feito isso, se especifica
para a região dessa língua objetivada nesta pesquisa.
Assim, Gonçalves e Basso (2010, p. 36-37) entendem o latim popular como forjador dos
primeiros dialetos romances, uma vez que fosse mais dinâmico e simplificado do que o latim
clássico. Em primeiro momento, houve modificações gerais em todos esses dialetos romances,
como: a palatalização das velares [k] e [g] antes de vogais anteriores; a perda do apêndice
labial nas labioalveolares: as consoantes latinas [kw] e [gw]; a africação da labial sonora [b]; o
desenvolvimento de consoante palatal a partir de [j]; a passagem de [w] à consoante bilabial
sonora; o desaparecimento da aspirada [h]; a sonorização das consoantes surdas intervocálicas;
e a queda das consoantes finais.

Gonçalves e Basso (2010, p. 79-81) ainda entendem que, até finais do século XII, o romance
falado na região da Galiza vai tomando traços particulares perante as outras línguas romances,
sobretudo ibéricas. Destacam, então, os principais: os grupos consonantais cl-, pl- e fl- passam
a ch, então pronunciado[tʃ]; o -l- intervocálico cai na maioria dos casos; e o -n- intervocálico
cai na maioria dos casos.

Na formação do Galego-Português, Teyssier (2014, p. 22-26) entende que o sistema


vocálico desse idioma já era bem similar ao português moderno. Havia-se conservado as sete
vogais tônicas do latim popular: [a], [e], [ɛ], [o], [ɔ], [i], [u]. No tocante às consoantes, o sistema

68
apresentava uma série de africanas que se opunham significativamente: [ts], [dz], [tʃ], [dʒ],
[s], [z], [ʃ] e [ʒ]. Além disso, os róticos se definiam somente como vibrantes: branda [r] e forte
[ṟ]. Deve-se pontuar que o sistema gráfico deste período é bastante estável, com um fonema
correspondendo, geralmente, a um só grafema. A exemplo disso, “cen” [tsẽ] se distinguia de
“sen” [sẽ]; “cozer” [codzer] se distinguia de “coser” [coser]; e “fero” [fero] se distinguia de “ferro”
[feṟo]. Ainda Gonçalves e Basso (2010, p. 85) atestam que a nasalização das vogais nesse
período deu origem ao til, considerado como o grafema –n– como um diacrítico sobre a vogal
que originalmente precedia. Em certos casos, por ter se estabelecido um hiato devido à perda
da consoante, foi necessária a epêntese de algum fonema: ora o palatal [ɲ], representado pelo
grafema –nh–; ora a semivogal [j], de grafema –i–.

Já no período do português clássico, compreendido entre os séculos XV e XVI, Gonçalves


e Basso (2010, p. 99-100) demonstram as seguintes modificações: síncope do -d- na segunda
pessoa do plural; eliminação dos hiatos (muitos criados no período do galego-português) por
monotongação, ditongação ou epêntese. Ainda que já se manifestasse, nesse período, indícios
da simplificação das sibilantes para [ts], [dz], [s] e [z], foi somente no século XVII que se reduziu
o sistema para [s] e [z].

Em relação ao período da diáspora colonial portuguesa, sobretudo nas proximidades do


século XVII e dele em diante, Gonçalves e Basso (2010, p. 109-110) compreendem as seguintes
modificações:

1. o ditongo /ow/ sofreu monotongação para /o/, além de alternar-se, às vezes, com /oj/, como
em touro – toro, louro – loiro; essas mudanças também ocorreram por volta do século XVII;

2. ainda no século XVII, a africada [tʃ] simplificou-se em [ʃ]; tal modificação aplica-se a casos
como macho, chave;

3. passando ao século XVIII, encontramos a pronúncia “chiante” de /s/ e /z/ em finais de sílaba
e de palavras, como em dois [ˈdoiʃ], mesmo [ˈmeʒmu], paz [ˈpaʃ].

Essa última modificação, contudo, segundo os autores, ocorre de maneira generalizada


no Brasil, exceto na região do Nordeste.

Em sua primeira fase diferenciadora ao português lusitano, compreendida entre 1700 e 1800,
o português brasileiro já demonstrava os seguintes fenômenos distintivos, segundo Gonçalves
e Basso (2010, p. 137-141): a metafonia da vogal [e] para [i]; a palatalização de [l] em [ʎ], bem
como a mudança deste [j]; a queda de [r] no final de palavras; a monotongação de [ej] para [e];
a queda do [l] final. Mais à frente, entre 1800 a 1950, ainda há: a monotongação de [aj] antes
de [ʃ]; abreviações (aférese) como: “tá” por “está”, “pra” por “para”, “seu” por “senhor”, etc.; a
epêntese de [i] antes de /s/ final.

69
5 Aspectos sócio-históricos em interface com a
linguagem popular nordestina
Observando, também, a realidade social do sertanejo, notáveis e inúmeros são os estudos
sociológicos, antropológicos, estatísticos e de diversas ciências que demonstram o quanto,
histórica e logisticamente, esse povo foi segregado de outras porções da população brasileira,
especialmente a costeira. A precariedade e a subsistência sempre foram marcas arquetípicas
desse grupo mais afastado, considerado, muitas vezes, como inferior entre os constituintes
em outras regiões da nação brasileira.

Sobre esse aspecto sócio-histórico do isolamento do interior nordestino, Farias (1997,


p. 19) explicita que:

No século XVI, ficou o Ceará quase esquecido por Portugal, devido principalmente à falta de
atrativos econômicos. Prova é que o donatário da capitania do “Siará Grande” nunca veio colonizar
suas posses. [...] Apenas no século XVII que Portugal decidiu colonizar o litoral cearense por
razões estratégico-militares: o Ceará serviria de base para a conquista do litoral Norte e para a
defesa da região.

Ainda que Farias se atente mais ao Ceará, por analogia, podem-se aplicar esses mesmos
parâmetros a todo o interior nordestino. O sertão nordestino, por diversas razões geográficas,
bem como de confronto com alguns povos originários da região, pré-invasão portuguesa,
nunca foi uma área muito visada pelos colonizadores portugueses. Isso, inclusive, interferia
na grande empresa colonial: extrair matérias-primas para provimento econômico do, então,
Império Português. Não se justificava, à ótica lusitana da época, investir numa região que,
além de ter diversos empecilhos para povoamento, não poderia compensar com o crescimento
econômico imperial lusitano.

Contudo, talvez seja Graciliano Ramos que, em sua obra Vidas Secas, aponte com maior
precisão não só a realidade do sertanejo, sem muito acesso à “civilização”, desamparado
pelo Estado, mas também a experiência dolorida, subjetivamente, dessa miséria institucional
e estrutural. No capítulo “Festa” do referido livro, lê-se (RAMOS, 1986, p. 83-84):

Tinham percebido que havia muitas pessoas no mundo. Ocupavam-se em descobrir uma enorme
quantidade de objetos. Comunicaram baixinho um ao outro as tantas maravilhas juntas. O menino
mais novo teve uma dúvida e apresentou-a timidamente ao irmão. Seria que aquilo tinha sido
feito por gente? O menino mais velho hesitou, espiou as lojas, as toldas iluminadas, as moças
bem vestidas. Encolheu os ombros. Talvez aquilo tivesse sido feito por gente. Nova dificuldade
chegou-lhe ao espírito, soprou-a no ouvido do irmão. Provavelmente aquelas coisas tinham
nomes. O menino mais novo interrogou-o com os olhos. Sim, com certeza as preciosidades que

70
se exibiam nos altares da igreja e nas prateleiras das lojas tinham nomes. Puseram-se a discutir
a questão intricada. Como podiam os homens guardar tantas palavras? Era impossível, ninguém
conservaria tão grande soma de conhecimentos. Livres dos nomes, as coisas ficavam distantes,
misteriosas. Não tinham sido feitas por gente. E os indivíduos que mexiam nelas cometiam
imprudência. Vistas de longe, eram bonitas. Admirados e medrosos, falavam baixo para não
desencadear as forças estranhas que elas porventura encerrassem.

Como expresso por Graciliano Ramos acima, as realidades vividas pelo sertanejo foram
muito distintas das urbes maiores do Brasil. O caráter isolacionista dessas populações; a
instável e precária educação instituída nas comunidades rurais; as secas recorrentes e a
fome persistente, enfim, tudo isso forjava a disparidade sócio-histórica entre o sertanejo e as
populações costeiras e das capitais. A norma padrão do português, assim, era uma variante
desvinculada da realidade sertaneja e de seus falares. Como já apontado por Teyssier (2014), o
Brasil se tornou conservador em muitos aspectos da língua portuguesa em relação às tendências
inovadoras lusitanas. Igualmente, a linguagem popular e oral do nordestino interiorano constituiu
sua própria conservação, quando comparada com as demais variantes do Brasil.

Muitos desses conservadorismos são próprios da relação desses povos nordestinos com
a educação, ou melhor, com a falta dela. Considerando o modelo de educação presente no
ambiente em questão, que atendia aos moldes reprodutivistas e positivistas, é entendível
que, muitas vezes, o aprendizado se dava por simples incorporações de comportamentos e
manutenção de costumes. É o que atesta Émile Durkheim em sua obra Educação e sociologia
(DURKHEIM, 2011, p. 53-54):

A educação é a ação exercida pelas gerações adultas sobre as gerações que não se encontram
ainda preparadas para a vida social; tem por objeto suscitar e desenvolver na criança certo número
de estados físicos, intelectuais e morais, reclamados pela sociedade política no seu conjunto e
pelo meio especial a que a criança, particularmente, se destine.

Ainda no supracitado romance de Graciliano Ramos, é apresentada uma breve amostra


sobre a educação dos personagens, vinculados ao referido modelo de educação. Lê-se (RAMOS,
1986, p. 73): “Impossível dizer porque sinhá Vitória levava o guarda-chuva com a biqueira para
cima e o castão para baixo. Ela própria não saberia explicar-se, mas sempre vira as outras
matutas procederem assim e adotava o costume”.

Não é de se estranhar que o mesmo fato acontecesse com a língua: sem saber o porquê,
essas populações se guiavam por tradições. Assim, reproduzir a maneira de os antepassados
falarem era a manutenção espontânea dos mores (“costumes”, em latim) que se manifestavam
nas culturas e nas manifestações dialetais diversas do povo nordestino interiorano.

71
Esse conservadorismo dialetal do nordeste interiorano vem sofrendo, ao longo do tempo,
um desprestígio cultural progressivo, o qual se manifesta na indevida noção de “errado”, a qual
não contempla os aspectos sócio-histórico e cultural de um povo. Em outras palavras, ocorre
uma força cultural planificadora, emergente dos centros de prestígio socioeconômico.

Dialogando essa noção sociológica com a interface linguística, Bakhtin (1997, p. 279)
observa que:

Todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam, estão sempre relacionadas
com a utilização da língua. Não é de surpreender que o caráter e os modos dessa utilização
sejam tão variados como as próprias esferas da atividade humana, o que não contradiz a unidade
nacional de uma língua. A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos),
concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana.

De acordo com Cavalcante et al. (2019), esses enunciados orais ou escritos são os textos
que permitem a comunicação e o sentido, considerando a interação e o contexto em que ela
ocorre. Portanto, é compreensível que, ainda que se desviando de uma “norma padrão” do
que seria a língua portuguesa, os falares orais dos povos do interior do nordeste do Brasil não
contradizem, parodiando Bakhtin (1997), a unidade nacional do Brasil nem a comunidade dos
falantes de língua portuguesa, ao contrário, atestam a vivacidade dessa língua, realizada de
forma específica, na região de análise deste estudo, podendo, por isso, ser fonte de várias
temáticas de análises linguísticas, históricas, culturais e políticas.

6 Metaplasmos entre o terminus a quo e o


terminus ad quem
Como visto na introdução, em todas as fases de qualquer língua não planejada há mudanças
diatópicas, diacrônicas, diastráticas e diafásicas. Sobre essa variação linguística, não falta a
consciência de Cícero (106-43 a. C.) (apud MARTINS, 2006, p. 8), que trata, em uma carta
ao seu amigo Paetus (Ad Fam., IX, 21), da diferença entre o latim clássico e o uso da língua
latina, ainda que culta, na sua modalidade oral: “Quid tibi ego in epistulis uideor? Nonne plebeio
sermone agere tecum ... Epistolas uero cotidianis verbis texere solemus. ‘Que pareço eu a ti
nas cartas? Não pareço tratar contigo na língua do povo... de fato, costumamos tecer as cartas
com as palavras do dia a dia’”.

De modo mais patente, no Appendix Probi (IV d. C), leem-se diversas formas de “Não [use
ou fale] X, mas [use ou fale] Y”, “corrigindo” as manifestações lexicais divergentes do latim
clássico, que eram amplamente usadas no latim popular.

72
No plano fonético, cada mudança tem um termo técnico correspondente, chamado
metaplasmo. Assim, passa-se a apresentar os metaplasmos que cruzam com o objetivo deste
estudo:

Metaplasmos de adição:
Prótese: acréscimo de um ou mais fonemas no início do vocábulo, como em: lat. stare
[ˈstare] > port. [ˈestar]; lat. [ˈspiritu] > [ˈespiritu];

Aglutinação: acréscimo do artigo ao início do vocábulo, como em: lat. minacĭa [miˈnakjɐ]
> port. [ɐmiˈasɐ];

Metaplasmos de transformação:
Palatalização: transformação de um ou mais fonemas em uma palatal, como em: lat. palĕa
[ˈpalɛɐ] > [ˈpaljɐ] > port. [ˈpaʎɐ]; port. (SP) pista [ˈpistɐ] > port. (CE) [ˈpiʃtɐ];

Metafonia: transformação do timbre de uma vogal, ocorrendo nas seguintes séries: “[ɛ],
[e], [i]” > [tɛoˈriɐ]/[teoˈriɐ]/[tiuˈriɐ]; “[ɔ], [o], [u]” > [kɔˈlɛʒju]/[koˈlɛʒju]/[kuˈlɛʒju];

Vocalização: transformação de um fonema consonantal em um vocálico: lat. pectum


[ˈpɛktũm] > port. peito [ˈpejtu]; lat. lacte [ˈlakte] > port. [ˈlajti];

Devido à complexidade temática, este estudo não tem a pretensão de invocar todos os
metaplasmos entre o terminus a quo e o terminus ad quem, propostos aqui, mas apenas
catalogar alguns que ilustram os arcaísmos no português popular do nordeste brasileiro.

7 Identificação dos arcaísmos entre o latim e


português popular do nordeste brasileiro
Na perseguição do tema em tela, deparou-se com os seguintes verbetes (Vb.) de conservação
de arcaísmos:

Metaplasmos de adição
Prótese:
Em História da Língua Portuguesa, Silva Neto (1986, p. 650-670) arrola muitos arcaísmos,
que sofreram prótese, como os seguintes: abastar, algũa, alimpar, alumea, avoar.

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Desses exemplos, apenas a forma “algũa” reflete um arcaísmo fonético, muito usado até
por falantes escolarizados, enquanto os demais, um arcaísmo fonético-semântico.

O prefixo a-, nas demais formas, procede ora do lat. a(b), que traduz a ideia de afastamento,
ora do lat. a(d), com a ideia de aproximação e, a partir daí, a de intensidade. Abastar, alimpar e
alumea (correspondente ao port. md. alumia, forma flexionada do alumiar) são verbos prefixados
pelo lat. a(d), devendo, por isso, serem entendidos com um intensificador.

Quando não denota intensidade, a interpretação do arcaísmo avoar depende do contexto


de movimento, pois a-, quando vem do prefixo latino a(b)-, indica afastamento, e quando vem
do prefixo latino a(d)-, perpassa a ideia de aproximação, alcançando o valor semântico de
intensidade. Os exemplos seguintes ilustram essas duas ideias, vazadas pelo prefixo -a:

Vb. 1. “abastar”
A tese de Silva Neto (1986, p. 650-670) também se conjunta com a proposta etimológica
de Corominas (1984, p. 537), que atesta que “abastar” é protético de “bastar”, tendo o sentido
de “ser bastante”, “ser suficiente”. Portanto, coaduna com a noção semântica trazida pelo
português popular nordestino, que entende “abastar” como “ser muito suficiente”, “ter mais que
o necessário”.

Vb. 2. “alimpar”
Viberto (1865, p. 61) explicita que já à sua época, século XIX, o vocábulo “alimpamento”,
significando “limpeza, ato de limpar” era considerado arcaico. Ora, se, como argumenta Silva
Neto (1986, p. 650-670), o prefixo –a– é marca de “intensidade”, entende-se que a unidade
lexical conservada nas comunidades interioranas, “alimpar” é, pois, um arcaísmo. Abaixo, segue
um trecho de um cordel ilustrando o sentido do léxico:

– Tebana, eu vou lhe dizê


O que é “mal-empregado”:
É a moça bonita
Casá c’um rapaz safado;
É um vaqueiro ruim
Num cavalo bom de gado;
Palitó de pano fino
Num corpo mal-amanhado;
É um cabra preguiçoso
Abri um grande roçado:
Abre, planta e não alimpa,
Perde o legume plantado...

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Disso tudo é que se diz,
Ô meu Deus! Mal-empregado!!!
(Maria Tebana e Manuel do Riachão, apud MOTA, 2002, p. 137-139).

Note-se que aqui “alimpar”, de fato, significa “limpar mesmo”, “limpar intensamente”. Em
breve interpretação: o vaqueiro trazido no trecho é dito preguiçoso; assim, como ele não limpa
corretamente, não “alimpa”, “perde o legume plantado”.

Vb. 3. “alumear”, “alumiar”


Confirmando a tese de Silva Neto (1986, p. 650-670), Nascentes (1966, p. 34) informa que
Meyer-Lübke hipotetizou a forma *“allumiare”, no próprio latim. Esta hipótese é, sem dúvidas,
pertinente a este trabalho, uma vez que confirme o verbete em questão.

Verifica-se seu uso ainda no português arcaico do século XVII, na obra Vida e Morte de
Madre Helena da Cruz (1658), de Maria do Céu. Lê-se: “Que esta Praça Diuina assim como
alumea aos peccadores, premeya aos Justos, a huns abrindo os olhos, a outros enchendo
o coraçaõ.”. Aqui, pode-se perceber que “alumea” relaciona-se com o sentido de “purificar”,
“limpar mesmo” ou “limpar intensamente”, os “pecadores”.

Ainda, cita-se um cordel de Athayde (1947, p. 24):

Theodora- Senhor, o sol


não tem noite
Ao contrário sempre dia,
quando sae de uma parte
outra parte alumia
quando ele vem p’ra cá,
a noite lá principia.

Em breve interpretação: quando chega a noite em uma porção do globo, é porque o sol
brilha intensamente, “alumia”, já outra parte.

Vb. 4. “avoar”
Torrinha (s/d) traz as seguintes entradas lexicais para o verbo “volo” (voar) em latim:

1. Voar (fal. das aves). 2. Correr tam de-pressa como a ave voa; voar, correr, vir ràpidamente.
3. Voar (fal. de dardos, flechas, navios, etc.). 4. Tomar voo, voar (fal. da alma). 5. Voar, fugir;
decorrer, passar; escapar. 6. Volantēs, f. pl.: as aves. (s.v)

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Ora, já em latim o verbo para “voar” manifestava a intensidade de, mesmo para o humano,
fazer algo tão intensamente “como o voar de uma ave”. Por o a protético interferir no cerne
semântico de “voar” (veja-se o comentado em 7.1.1), confirmando-lhe o caráter de intensidade,
advindo desde sua forma latina, ilustra-se com um texto por Patativa do Assaré (1998, p. 189) e
por outro de autoria nossa, a fim de se explicitarem diferentes nuances semântico-etimológicas:

[...]
A pessoa quando tá
Bem doente, quase morta,
A morte ta com certeza
Bem no pé da sua porta;
Já ta pegada na tranca,
E no momento que arranca,
O espírito avoa veloz
De dentro desta prisão,
Que Eva e seu marido Adão
Dêxou de herança pra nós.
[...]

Crio um periquito australiano no meu apartamento. De tão manso e apegado a mim, ele vive
solto. Certo dia, eu deixara, por esquecimento, a janela aberta. Voltando do trabalho, vi um gavião
perseguindo o periquito australiano. Não pensei duas vezes: atirei o tênis contra o gavião, que
avoou (< a(b)- “afastamento”) pela janela. Estendi o dedo estalando os lábios em forma de beijo,
para o qual o meu querido periquito australiano avoou (< a(d)- “aproximação”), ainda ofegante,
mas confiantemente sossegado.

É desnecessário comentar que, sobre a forma avoar, não é pertinente falar-se de erro, sem
considerar o contexto sociocultural e a intenção etimológico-semântica do falante.

Aglutinação:
Embora muito pouco produtivo, pode-se entender o nome próprio (Vb.5) Alagoas como
um exemplo de arcaísmo fonético-morfológico. Esse entendimento é avivado pelos seguintes
exemplos extraídos da Carta de Pero Vaz de Caminha:

- anoute segujmte ventou tamto sueste cõ chuuaçeiros [...].

- [...] per sonselho dos pilotos mandou ocapitam levantar amcoras [...].

Esse fenômeno fonético deve-se ao artigo ser um monossílabo átono, apoiando-se, por
isso, na tonicidade do vocábulo que o segue, o que, aliás, ainda acontece com o português
hodierno, no âmbito da oralidade.

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Metaplasmos de Transformação:
Palatalização:
Tomando-se as tabelas dos sistemas consonantais do latim clássico e do latim popular, de
Ilari (1999, p. 77-78), verifica-se que, até então, não havia palatais, exceto a semivogal /j/.

Tal verificação permite que se deduza que a palatalização surge a partir do galego-português,
o que é confirmado por Teyssier (2014, p. 24), que apresenta os seguintes fonemas palatais:
/tʃ/, /ʃ/, /dʒ/, /ʒ/, /ʎ/, /ɲ/, além da manutenção da semivogal /j/.

I. lat. [gɛ] e [gi] > gal.-port. [ʃɛ] e [ʃi] > port. md. [ʒɛ] e [ʒi]

Tabela 1. Vb.6. “xente”, “oxi”

Lc. [gɛ] e [gi] (PLAUTUS, “Mercator”: ato II, cena ii) “Vbinamst is homo gentium?”
Gp. [ʃɛ] e [ʃi] (CERZEO) “da terra e das gentes que i som”
Gm. [ʃɛ] e [ʃi] (Xén. 20: 8) “Abimélec [...] chamou a toda a súa xente [...]”.
Pm. [ʒɛ] e [ʒi] (Gên. 20: 8) “Abimélec [...] mandou reunir toda a gente [...]”
Pn. [ʃɛ] e [ʃi] (ORTHOF) “Ai, xente! Um luar se balançava [...] Ó xente... que perco o siso!”

Fonte: Dados da pesquisa (2021).

Tabela 2. Vb.7. “virge”, “vixe”

Lc. [gɛ] e [gi] (PLAUTUS, “Cistellaria”: cena I, ato iii) “isque hic compressit virginem, adulescentulus”
Gp. [ʃɛ] e [ʃi] (AFONSO X) “virgem, e por en sobiste”
Gm. [ʃɛ] e [ʃi] (Mat. 1: 23) “Mirade: a virxe concibirá e dará a luz un fillo, e poñeranlle de nome
Emmanuel”
Pm. [ʒɛ] e [ʒi] (Mat. 1: 23) “Eis que a Virgem conceberá e dará à luz um filho, que se chamará
Emanuel”
Pn. [ʒɛ] e [ʒi] / [ʃɛ] e [ʃi] (ASSARÉ, p.95) “Da Virge Nossa Senhora”

Fonte: Dados da pesquisa (2021).

II. lat. x [ks] > gal.-port. [ʃ] > port. md. [s]

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Tabela 3. Vb.8. “dixe”

Lc. [ks] (PLAUTUS, “Mercator”: cena I, ato i) “sed amori accedunt etiam haec, quae dixi minus:”
Gp. [ʃ] (AFONSO X) “e dix’eu por ela cousa guisada”
Gm. [ʃ] (Gên. 1: 26) “Despois dixo Deus:”
Pm. [s] (Gên. 1: 26) “Então Deus disse:”
Pn. [ʃ] (PATATIVA, p.31) “E me dixe: seu Sutinga”

Fonte: Dados da pesquisa (2021).

Tabela 4. Vb.9. “avexado”, “avexar”

Lc. [ks] (PLAUTUS, “Mercator”: ato I, cena i) “quid verbis opus est? emi, atque advexi heri.”
Gm. [ʃ] “Someter [alguén] a continuos abusos ou malos tratos.”
Pn. [ʃ] (GONZAGA apud RAMALHO, 1998, p. 33) “Ramo s’imbora qu’eu to avexado!”

Fonte: Dados da pesquisa (2021).

Segundo o dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (1986), “vexar” significa “causar tormento
a; atormentar, molestar, maltratar”. Ainda que este dicionário reconheça a forma “avexar” como
variante regional do nordeste brasileiro, é necessário observar a sua origem no verbo latino
“vexo”. Nesse sentido, De Vaan (2008, s.v.) apresenta as raízes de “vexo” (agitar) e “veho”
(carregar) como cognatos emergentes da raiz i-eur. “*weig-”, da qual também emana o lat.
“via” (caminho).

Ora, nas comunidades sertanejas, estar “avexado” é estar “apressado”, o que, necessariamente,
envolve a agitação (lat. vexo “agitar”) do espírito, quando alguém vai apressadamente por um
caminho (lat. via “caminho”) a um lugar. Essa agitação do espírito impele (lat. veho “impelir”)
o sujeito para chegar logo ao seu destino. Inclusive, some-se a essa unidade lexical (“vexo”)
a prótese do prefixo a-, atestada em Prótese, o que dá a essa unidade o valor semântico de
“apressar”.

Metafonia:
A metafonia é um fenômeno flutuante entre as diversas fases de uma língua. Isto é, ela
é um metaplasmo também decorrente da evolução histórica do idioma, e é especialmente
relacionada com seu entorno fonético, à medida que esses outros fonemas se modificam.

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Tabela 5. Vb.10. “home”, “homi”

Lc. [e] (PLAUTUS, “Mercator”: ato I, cena ii) “Hominem ego iracundiorem quam te novi neminem.”
Gp. [e~i] (AFONSO X) “Direi-vos eu d’um ric’home”
Gm. [e] (XÉN. 1: 26) “Fagámo-lo home á nosa imaxe e á nosa semellanza”
Pm. [ẽ] (GÊN. 1: 26) “Fazamos o homem à nossa imagem e semelhança”
Pn. [i] (ASSARÉ, p. 187) “É pruque ele era um home”

Fonte: Dados da pesquisa (2021).

No que concerne ao grafema “h”, é digno o posicionamento de Souza (2002, p. 100), para
quem “Com exceção, a palavra ‘homem’ foi registrada por Caminha com o ‘h’ inicial, tal como
ficou na tradição escrita do português: home (homem)”. Ora, é sabido que já desde o galego-
português, o grafema “h” já era mudo, tendo sua presença justificada por motivos etimológicos.
Os registros escritos sugerem a pronúncia [ˈõme]. Assim, é de se supor, mais uma vez, que
o isolamento dos povos do interior do nordeste brasileiro fez com que a pronúncia, herdada
desde Pero Vaz de Caminha e demais emigrantes portugueses que vieram na empresa colonial
portuguesa, continuasse, apenas com a metafonia da última vogal, [e] > [i].

Vocalização:
É sabido que a vocalização foi um metaplasmo significativo nos idiomas neolatinos,
especialmente na língua portuguesa. Vocábulos como “oito” (< “octo”), “muito” (< “multu”),
“conceito” (< “conceptu”) ou “reino” (< “regno”) são só alguns exemplos de consoantes que se
vocalizaram em [j] ou [w]. Contudo, em alguns casos, sobretudo na língua portuguesa do Brasil,
o ditongo sofreu monotongação, som a síncope da semivogal. É o caso de “louro” [ˈlowru] > “loro”
[ˈloru]; “couro” [ˈkowru] > “coro” [ˈkoru]; “touro” [ˈtowru] > “toro” [ˈtoro]. Contudo, na contramão
desse movimento vivido no litoral brasileiro, o interior do nordeste, em seu isolamento, conservou
alguns dos antigos ditongos, como ilustram os arcaísmos das seguintes unidades lexicais.

Tabela 6. Vb.11. “fruito”

lat. [k] (PLAUTUS, “Mercartor”: ato V, cena i) “omnis fructus iam illis decidit”
gal.-port. [i] (CSM, 80: 20) “o fruito de ti, a la fé;”
gal. md. [ʃ] (Xén. 1: 20) “árbores que desen froitos”
port. md. [s] (Gên. 1: 20) “árvores que deem fruto”
port. pop. nord. [ʃ] (ASSARÉ, p.187) “logo que comêro o fruito”

Fonte: Dados da pesquisa (2021).

79
Os exemplos elencados supra, por hipótese alguma, abarcam todos os metaplasmos
pertinentes ao tratamento dos arcaísmos do português popular falado no nordeste brasileiro
interiorano.

Considerações finais
Na esteira de todo o exame lexical dos arcaísmos conservados no português popular, falado
no interior do nordeste brasileiro, é inequívoca a herança do legado romano, apresentado neste
estudo. Essa herança inicia com a colonização da Lusitânia e Galícia; passa pela regência
sueva e visigótica; continua no domínio dos califados mouros; alcança a formação efetiva
do Reino de Portugal; espalha-se com a diáspora ultramarina; e chega até a colonização do
Brasil. Foi desse caudaloso trajeto histórico-cultural que emergiu o espírito nordestino. Desse
espírito cultural, ainda há muito o que se compreender; ainda há muito o que se pesquisar,
pois a riqueza linguístico-cultural da região nordestina vai muito além dos breves exemplos
aqui apresentados.

Essa riqueza temática é perceptível no seu espraiamento epistemológico, que é marcado pela
interdisciplinaridade entre filologia, linguística, antropologia cultural, sociologia, historiografia,
literatura, para não se falar das várias subáreas dessas ciências.
Para o êxito deste breve estudo, que nunca teve a pretensão de esgotar um tema tão rico e
complexo como este, o suporte teórico invocado foi decisivo para se vislumbrar a conservação
dos arcaísmos elencados. Assim, não se teria compreendido a importância dos substratos,
do superstrato e dos adstratos e a condição de isolamento social para a formação linguístico-
cultural da região em tela.

Diante de tudo que se enfocou no presente trabalho, depreende-se que a região do interior
do nordeste brasileiro é uma área frutífera para os estudos da filologia portuguesa, da história
da língua portuguesa e da linguística histórica. Não obstante, esta pesquisa não se encerra aqui,
antes, é somente um breve e promissor início de futuros trabalhos em torno desta temática,
que tem um grande leque a ser explorado.

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83
O português (não) veio
do latim: um problema
filológico
Adílio Junior de Souza
Universidade Federal de Pernambuco – UFPE
Introdução 25

Qual é a real origem da língua portuguesa? Eis uma pergunta da qual se disse muito,
porém ainda causa certa estranheza no meio acadêmico. Há duas tradições: uma que prega
que o português teve sua origem no latim vulgar. Outra que diz que não. O português teria se
originado de línguas antigas faladas na península ibérica antes da invasão dos romanos (tais
como a língua galega), ou em palavras mais fortes, o português veio da língua grega.

Seja de um modo ou de outro, será necessário mobilizar uma série de leituras que possam
corroborar com esta ou aquela tradição. Na esteira da primeira perspectiva, mais amplamente
aceita, situam-se romanistas tais como: Friedrich Diez (1794-1876), August Schleicher (1821-
1868), Wilhelm Meyer-Lübke (1861-1936) e Franz Bopp (1791-1867), num retorno ao passado,
e Bruno Bassetto (1935-) e Rodolfo Ilari (1943-), mais recentemente. Estes e aqueles autores
partilham da aceitação de que as línguas românicas podem ser comparadas através do método
histórico-comparativo ao latim vulgar, de acordo com os pressupostos da Linguística Histórico-
Comparativa, aliado aos estudos da Filologia Românica.

Entre os autores tidos como clássicos, citam-se as obras, por exemplo, de Diez (1863),
Vasconcellos (1911), Said Ali (1921), Sousa da Silveira (1960), Coutinho (1981), Silva Neto
(2004), Teyssier (2014), Ilari (2018) e Bassetto (2005), que advogam que o português é uma
das línguas neolatinas, juntamente com o espanhol, o italiano, o francês, etc. Nesse sentido, a
língua portuguesa é formada a partir da evolução linguística do latim vulgar, que se desenvolveu
na península ibérica. Esta posição é defendida na obra A lingua portugueza é filha da latina,
ou refutação da memoria em que o senhor patriarcha eleito D. Francisco de S. Luiz nega
esta filiação, escrita por Francisco António de Campos (conhecido por Barão de Villa Nova de
Foscôa), em 1843.

Campos (1843) entrou numa querela com D. Francisco de São Luiz Saraiva (chamado
de Cardeal Saraiva), pois este último havia escrito a Memoria em que se pretende mostrar,
que a Lingua Portugueza não he filha da Latina, nem esta foi em tempo algum a lingua vulgar
dos Lusitanos, em 1837, em que negou a filiação do português ao latim – sem se referir à
variedade vulgar. A perspectiva de Saraiva segue a mesma linha de pensamento do gramático
Duarte Nunes de Leão (1530-1608), que pregoava uma distinta origem do idioma lusitano,
argumentando ser uma língua tão perfeita quanto a latina, porém não dela originada.

25 Este estudo é resultado da palestra de encerramento do XIII Simpósio Nacional de Estudos Filológicos e Linguísticos (XIII SINEFIL),
evento realizado de forma remota pelo Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos (CiFEFiL) e Universidade do Estado da Bahia
(UNEB), entre os dias 7 e 8 de abril de 2021. Uma primeira versão foi publicada nos anais do referido simpósio, via revista Philologus.

85
Mais modernamente, citam-se Marcos Bagno (1961-) e Xoán Lagares (1971-), que defendem
que o idioma lusitano veio do galego e não do latim vulgar. Em argumentos recentes, Bagno
(2011) e Lagares (2008) buscam rastrear a origem do idioma dos portugueses, realizando
uma incursão historiográfica em escritos antigos, valendo-se de uma crítica ao termo híbrido
galego-português, tido como uma incoerência histórico-linguística, isto é, um anacronismo.
Certamente que tal posição encontrará neste e noutros estudos um posicionamento contrário.

Neste estudo, busca-se, entre outras metas: compreender os conceitos de língua morta
e língua viva de acordo com o postulado teórico de Coutinho (1981); revisitar o tema a partir
das obras de Saraiva (1837) e Campos (1843), assim como em estudos recentes; por fim,
problematizar acerca da origem da língua portuguesa, numa comparação entre duas perspectivas
teóricas. Trata-se, portanto, de um estudo bibliográfico e descritivo, em que são revisitadas
duas lições do séc. XIX a partir de edições fac-símiles disponibilizadas na Biblioteca Nacional
Digital de Portugal. Além disso, faz-se uma breve revisão da literatura com outras fontes.

1 Línguas vivas, mortas e extintas


Em Pontos de gramática histórica, Coutinho (1981, p. 27) assim esclarece sobre a tipologia
das línguas quanto ao uso:

VIVAS, as que estão servindo de instrumento diário de comunicação entre os indivíduos de uma
nação, como o português, o francês, etc.
MORTAS, as que já não são faladas, mas deixaram documentos escritos, como o latim e o grego
literários.
EXTINTAS, as que desapareceram, sem deixar memória documental, como o indo-europeu.

Por essa categorização, que é amplamente aceita no meio acadêmico, o latim é uma língua
morta. Não obstante, isso não é um tema apascentado, basta citar, entre outros trabalhos, a
discussão feita por Mendes, Medeiros e Oliveira (2017) e Souza (2017). Para os autores, assim
como para Cristófaro-Silva (2002), o latim é, sem dúvida, uma língua morta, que foi utilizada
por um determinado povo, mas que hoje não serve mais como veículo de comunicação diária
ou quaisquer outras atividades comunicativas, a despeito de seu uso nos ritos religiosos ou
uso particularizado na ciência. Para Souza (2017), o latim utilizado no Vaticano, por exemplo,
é um idioma profundamente artificializado, tendo em vista a criação de neologismos que visam
preencher lacunas no sistema. O latim que aparece nas magias da franquia do Harry Potter
não pode ser considerado uma língua viva, mas apenas um conjunto de formas ou criações
lexicais, isto é, neologismos (SOUZA, 2017).

86
Sobre a difusão do latim pelo vasto império romano, cabe salientar que, sendo o sermo
urbanus (isto é, o latim clássico ou literário), nos termos de Coutinho (1981), Williams (2001),
Elia (2004) e Bassetto (2005), não foi a variedade da língua que deu origem aos idiomas
românicos, haja vista ser um idioma inalterado, estilisticamente já estabelecido, não mutável.

Por outro lado, o sermo vulgaris (quer dizer, o latim vulgar ou corrente), por ser a modalidade
empregada pelas camadas populares, falada por aqueles que estavam despreocupados com
uso gramatical, era suscetível às mudanças linguísticas. Além disso, foi esta variedade do latim
que se dialetou na România (COUTINHO, 1981; ELIA, 2004; BASSETTO, 2005).

Com o advento dos estudos da Filologia Românica (ou Linguística Românica), temas tais
como o processo de fragmentação da România, o surgimento dos romances, a dialetação do
latim, as línguas românicas e sua consequente transformação em línguas neolatinas, foram
melhor compreendidos (ILARI, 2018). Graças a esta área, aceita-se que o latim que deu origem
aos idiomas românicos não poderia ser outro senão a variedade vulgar, e não a clássica. De
acordo com Ilari (2018), a comparação entre línguas vivas foi o que permitiu a verificação da
origem de um léxico comum: o latim vulgar. Vejam-se os seguintes exemplos:

Tabela 1. Amostras do Appendix Probi

Latim clássico Latim vulgar português


1. angulus anglus ângulo
2. auris oricla orelha
3. oculus oclus olho
4. autor autor autor
5. socrus socra sogra
6. rivus rius rio
7. viridis virdis verde
8. formica furmica formiga
9. articulus articlus artigo
10. speculum speclum espelho
11. senatus sinatus senado

Fonte: Appendix Probi (apud SILVA NETO, 2004, p. 221-225).

Como se pode notar nessas amostras, a maior parte das formas do português tem origem
no latim vulgar – ressaltando-se que passaram por processos de alterações fonéticas, as
quais se entende por metaplasmos –, enquanto outras formas clássicas, tais como, formica e
sentatus, em menor número, chegaram ao idioma luso, deixando vestígios de sua origem.

87
Exemplos como bucca (lat. vulg.). e os (lat. clás.) – boca (port.) ou bella (lat. vulg.). e pulchra
(lat. clás.) – bela (port.) – são casos em que se nota o abismo que havia entre as formas
populares e a língua literária. Silva Neto (2004) e Coutinho (1981) são taxativos: as formas
vulgares tiveram maior aceitação pelas camadas populares que faziam uso de um latim menos
rígido, que admitia reduções morfológicas e alterações fonéticas e sintáticas de toda ordem.

Sobre esse assunto, Nascentes (1954) esclarece que, através da Filologia Românica, é
possível estudar tanto uma forma latina até se chegar às formas nas línguas românicas, ou
o inverso, quer dizer, das formas românicas se chegar à forma latina original. Além disso,
como assevera Faraco (2006), por meio do método histórico-comparativo também se pode
verificar as variações e mudanças linguísticas que o latim vulgar passou. Aliado a isso, há
ainda a possibilidade do estudo das consequências das invasões bárbaras, da força do contato
linguístico (substratos, superstratos e adstratos) sobre o latim e como isso afetou o léxico dos
idiomas neolatinos.

2 A origem do português: uma revisão filológica


Nesta seção, resumidamente, duas perspectivas serão destacadas: de um lado a que se
admite a filiação do português ao latim vulgar e outra que pressupõe outra origem.
Em sua Memória, Saraiva (1837) faz várias ponderações, alegando que outras nações
foram invadidas pelo império romano (e outros impérios), mas que isso não foi determinante
para a imposição de uma nova língua no território conquistado, entre os quais cita: “O Egypto,
por exemplo, foi successivamente sobjugado pelos Persas, Gregos, Romanos, e Arabes”
(SARAIVA, 1837, p. 05). Em seguida acrescenta que o mesmo se pode dizer: “ácerca dos
Hebreos. Elles forão igualmente conquistados pelos Gregos, e ficárão sujeitos ao seu imperio
pelo mesmo espaço de tempo” (SARAIVA, 1837, p. 07) e, mesmo assim, não adotaram a língua
grega, conservando seu próprio idioma através dos séculos.

Para o autor, essas são explicações que asseguram sua posição: a de que a língua portuguesa
não seria filha da latina porque não haveria, segundo ele, explicações razoáveis para que isso
fosse aceito. Para o autor, os portugueses jamais adotaram o latim como língua vulgar, antes
permaneceram com sua língua de origem. Do mesmo modo como os árabes que invadiram
a península ibérica e, mesmo com o contato com povos de línguas diferentes, não adotam
nenhuma delas, nem mesmo a latina. Por fim, afirma: “[...] hum povo, huma nação inteira, não
póde mudar de huma para outra linguagem, maiormente se ellas tiverem differente genio,
indole, e caracter, sem que primeiro se faça hum total e substancial transtorno e transformação
em suas idéas e sentimentos.” (SARAIVA, 1837, p. 18).

88
Nas palavras do autor, o povo português não admitiu tal mudança, rechaçando a cultura
romana, permanecendo com a sua própria língua. Sem sombra de dúvidas, que essas reflexões
causam estranhamento, ainda mais quando se observa a história da formação do reino português,
bem como a herança linguística que se tem provas nos inúmeros documentos em que a língua
portuguesa revela uma relação de parentesco linguístico com o latim (TEYSSIER, 2014). A
história da língua portuguesa mostra o quão foi importante o latim para a constituição do léxico
português, bem como para a sintaxe, morfologia e semântica (BASSETTO, 2005). Remover o
latim dessa história é desconstruí-la e apagá-la completamente.

Saraiva (1837) aponta que são poucas as palavras propriamente latinas que se podem
perceber no português, e que sua presença foi motivada pela infiltração no léxico através da
ação dos “escriptores”. De acordo com seus argumentos:

Todos sabem quanto os nossos primeiros escriptores, maiormente os do sec. XV. e XVI., trabalhárão
em formar, enriquecer, e polir o idioma patrio, á custa (digamos assim) da lingua Latina, tomando
della tudo quanto lhes foi possivel, e talvez mais do que permittia o differente processo e caracter
dos dous idiomas. Se fosse necessario dar provas de huma cousa tão manifesta, bastaria lançar
os olhos ás obras, que se escrevêrão em Portuguez, ou se traduzirão do Latim, principalmente
des de o reinado de elRei D. João I. em diante. (SARAIVA, 1837, p. 31).

Desse modo, para o autor, bastaria retirar as palavras dos escritores para que se retirassem
as marcas do latim no idioma luso. Em outras palavras, a herança latina seria puramente lexical.
E afirma também:

Vê-se pois por tudo o que temos substanciado nos precedentes paragrafos, que não são tantos,
como vulgarmente se presume, os vocabulos Portuguezes, que em rigor se possão ter como
derivados do Latim. Mas nós dissemos, alêm disso, e agora repetimos, que muitos desses
mesmos, que em realidade nos vierão d’aquelle idioma, não servem para provar a supposta
filiação, e disto daremos brevemente o principal fundamento. (SARAIVA, 1837, p. 31).

É inegável que houve uma relatinização do português por parte dos prosadores na literatura
no séc. XV, pela falta de certos vocábulos ou pelo desejo de refinamento da sintaxe, porém
isso não significa dizer que as palavras já não pertencessem ao latim em sua origem. O que
se buscou, de acordo com Cardeira (2009), foi a reincorporação de formas latinizadas, muitas
vezes, mais próximas às formas clássicas do que as vulgares já presentes na língua. Tudo
isso ocorreu em virtude de o latim ser o modelo de língua ideal. No processo de gramatização
das línguas, foi o sermo urbanus o protótipo (AUROUX, 2009).

Saraiva (1837) informa, ainda, que a maior parte das palavras portuguesas vieram de
línguas primitivas anteriores à conquista romana da península ibérica, porém ele não chega a
citar quais foram elas com maior precisão, exceto quando destaca a origem grega de grande

89
parte do vocabulário luso. Segundo o autor, como se pode constatar, o fato de haver certas
palavras latinas não implicaria uma filiação direta, pois de mesmo modo, para ele, apesar da
presença de palavras árabes, por exemplo, não se pode dizer que o português veio desse
outro idioma.

Noutra posição mais recente, como já foi apontado aqui antes, Bagno (2011, p. 35) declara:

O que aprendemos e ensinamos no Brasil e em Portugal até hoje nas aulas de história da língua
portuguesa é uma falácia histórico-geográfica: ‘o português vem do latim’. Nada disso: o português
vem do galego. O galego é que é, sim, uma língua derivada da variedade de latim vulgar que se
criou no noroeste da Península Ibérica.

De acordo com o linguista, o termo galego-português deveria ser abolido, porque não faz
jus à história da língua dos lusitanos. O que se compreende por esse termo, na verdade, seria
uma falha cronológica, pois a Galiza e o dialeto que lá se formou vem antes do reino português
e, nesse sentido, a separação posterior entre galego e português, com a constituição do reino
lusitano, teve motivações políticas: “A questão política vai ser determinante para designar as
línguas” (BAGNO, 2011, p. 35). O autor conclui assim: “O português, portanto, não ‘veio do
latim’. A língua que tem esse nome, português, é na verdade a continuação histórica, com outro
nome, da língua românica que se desenvolveu na região desde sempre chamada Galécia-
Galícia-Galiza, ou seja, do galego.” (BAGNO, 2011, p. 37).

A mesma posição é partilhada por Lagares (2008), que apoiando-se nos argumentos do
gramático Duarte Nunes de Leão (séc. XVII), já admitia que o português havia se apropriado
integramente do galego, sendo dele constituído. E a razão para a Galiza não ter o mesmo “peso”
de Portugal é que nesta última nação havia reis e naquela não. Lagares (2008) acrescenta
que a história da formação do português mostra a filiação dela com o galego, mas que isso foi
apagado, talvez inconscientemente, por aqueles que almejavam trazer para o idioma lusitano
o status que o latim detinha. Nos termos do autor: “A diferença fundamental com o galego-
português – de extraordinárias consequências políticas e lingüísticas – residiria no fato de que
no nosso caso o ‘dialeto’ a partir do qual se constitui a ‘língua’ ficou fora das fronteiras nacionais,
como variedade não oficial de um outro Estado.” (LAGARES, 2008, p. 69).

A separação geográfica entre Portugal e a Galiza, bem como a separação linguística que
se estabeleceu entre os séculos seguintes à formação do reino português a partir do séc.
XIII, fez com que se abrisse um abismo linguístico entre as línguas, no início ligadas por uma
mesma origem. Como aponta Areán-Garcia (2011), a origem comum entre os idiomas não
é contestada na literatura. A diferença entre as variedades surge de uma motivação político,
cultural, geográfica e histórica. Informa a autora: “A partir do século XIV, a separação política e

90
cultural do rio Minho se intensificou e ficou marcada por duas variedades distintas: o português
e o galego”, inicialmente, unos (AREÁN-GARCIA, 2011, p. 12). E assim conclui:

Enquanto o português veio a ser a expressão de um povo em expansão política, territorial,


econômica e cultural, o galego, em contrapartida, se transformou em expressão coloquial de
um povo reprimido diante do domínio castelhano, sofrendo influências deste e de outras línguas
trazidas pela peregrinação a Santiago de Compostela, tais como, o catalão, provençal e francês,
dentre outras no seu desenvolvimento. (AREÁN, GARCIA, 2011, p. 13).

As posições de Lagares e Bagno são próximas à linha do que apontou Saraiva e vão contra
o que se postula até então: para eles, o português não procede do latim. Seja como for, esses
autores buscaram mostrar, por meio de uma perspectiva historiográfica, uma hipótese que nega
o que se produziu até então. Em uma crítica sobre a posição retórica defendida por Bagno
em sua Gramática Pedagógica do Português Brasileiro, Anjos e Oliveira (2018) apontam, em
uma análise historiográfica, uma mudança de posicionamento do linguista ao longo de suas
produções acadêmicas. Segundo os autores, antes, Bagno seguia a tradução, ou seja, uma
posição de continuidade com a tradição, mas agora, sua posição é descontinuidade. E isso se
reflete na dita gramática e no artigo que serviu de mote para o presente estudo.

Ainda sobre a origem do português, Vidos (1996, p. 236) esclarece:

[...] o português, nascido do galego-português (na Lusitânia Setentrional), com a independência


política se converteu numa língua românica, enquanto o galego (falado na antiga Província de
Galiza e no extremo noroeste da Espanha), sem independência política, permaneceu como
dialeto espanhol, apesar de ter formado em sua fase mais antiga uma unidade com o português
e de quase não se distinguir a língua dos trovadores galegos [...].

Em consonância ao que propôs Vidos, Botelho (2010, p. 2472) reafirma que, na península
ibérica, logo após um momento de

[...] caos linguístico, estabelece-se uma língua românica de natureza lusitana – uma protolíngua
galaico-portuguesa – por volta do Séc. IX, que, em consequência da fundação de Portugal no
início do Séc. XII, é tomada como língua portuguesa (português arcaico – galego-português);
depois, toma a forma de português moderno por volta do Séc. XVI, que se estende até os dias
atuais.

Nesse sentido, o galego não originou o português, mas sim junto dele se formou. A filiação
com o latim vulgar é, portanto, mantida, com a indicação de uma relação entre uma língua, de
um lado, e um dialeto, do outro. Os argumentos de Vidos e Botelho sintetizam muito bem o
problema que é fazer a separação linguística entre os dois. É importante frisar que entre o latim
vulgar e o português há um espaço de séculos, o que inclui um processo longo de alterações
de toda sorte.

91
Em uma posição diferente, Campos (1843) retoma a mesma compreensão de vários
romanistas antes mencionados, que se apoiam nos estudos filológicos-linguísticos, que admitem
a filiação latina. Dada a robustez dos documentos em latim clássico e aos corpora do latim
vulgar (mesmo em menor quantidade), é possível depreender as formas latinas que originaram
as formas vernáculas. Em uma ligeira comparação como que se fez na seção anterior, se pode
perceber as similaridades entre o latim vulgar e o português. Além disso, não se pode negar o
processo de romanização da península ibérica, bem como a força que esse processo exerceu
sobre a cultura, religião e formação social (BASSETTO, 2005).

Campos (1843) problematiza, entre outros pontos da Memória, a falta de argumentos sólidos
para sustentarem a negação da filiação. Para ele, o fato de as sucessivas invasões de regiões
tais como o Egito por outros povos de línguas diferentes, como o grego, por exemplo, não ter
sido suficiente para impor um julgo linguístico sobre o egípcio, não seria igualmente válido para
o que ocorreu na península ibérica, onde o império romano se sobrepôs sobre outros povos
e, com isso, sua língua.

Em uma de suas primeiras críticas, informa o autor: “[...] quaesquer que sejam os esforços
dos escriptores, para darem á lingua toda a perfeição de que é susceptivel, seus trabalhos não
poderáõ ser coroados de feliz sucesso se for desconhecida a sua origem, de que dependem
em grande parte seu genio e sua estrutura.” (CAMPOS, 1843, p. 03).
O tom da linguagem do texto é cortês, mas o autor não esconde sua posição contrária
aos argumentos levantados por Saraiva. Daí em diante, há uma lista extensa de comentários
desfavoráveis ao que postulou este último. Inicialmente, alega que na península ibérica duas
línguas passaram a conviver, a céltica e a latina. O latim suplantou a céltica e dela restou
somente influências lexicais.

Outro ponto de sua crítica diz respeito ao léxico do português, que, para ele, é de base
latina, acima de quaisquer outros vestígios, “porque o latim ficou prevalecendo sobre todos
os dialectos peninsulares, como teremos ocasião de ver.” (CAMPOS, 1843, p. 04). Há, por
ventura, resquícios da língua celta, como força de estrato linguístico.

Além disso, Campos critica a posição de Saraiva, quando este argumenta que o latim nunca
foi a língua vulgar da região da península ibérica. Para o autor, não só o latim era a variedade
vulgar como também a própria cultura e religião eram romanas. Afirma, ainda, que as demais
línguas vizinhas, o catalão e valenciano são igualmente filhas do latim. Nos termos de Ilari
(2018) e Coutinho (1981), os povos das regiões conquistadas pelo império romanizaram-se e,
assim, abraçaram o cristianismo e a língua dos romanos.

92
A respeito do que se disse sobre outros casos de invasões que outras nações sofreram ser o
mesmo caso da conquista romana da península ibérica, assim argumenta o autor, negativamente:

O exemplo dos hebreos, que dominados por gregos e romanos, conservaram sempre a sua
lingua, não é mais concludente. Os hebreos eram um povo não só opprimido, mas despresado;
a sua unica consolação, no vexame de seus oppressores, era a religião de seus pais; o odio
que professavam a seus tyrannos lhes vedava adoptarem a sua lingua, abandonando a de seus
livros sagrados. (CAMPOS, 1843, p. 10).

Ora, a não aceitação do julgo grego ou romano por parte dos hebreus tem mais a ver
com uma posição religioso-cultural do que com um processo puramente linguístico. Muitas
nações adotaram o latim (e tudo quanto fosse romano) por interesses de variadas naturezas,
inclusive o religioso (tendo o império romano adotado o cristianismo, as regiões conquistadas
foram forçadas, pela força do momento que viviam, a seguir os mesmos princípios e ritos) e,
especialmente, linguístico (uma vez que a comunicação entre as pessoas com outras de várias
partes do império tinha de ser em sermo vulgaris (BASSETTO, 2005).

Sobre as línguas românicas, é preciso ressaltar que são aquelas que preservam vestígios
do latim, na morfologia, no léxico, na sintaxe ou na semântica (COUTINHO; 1981; VIDOS,
1996). E, de acordo com Silva Neto (2004), o latim vulgar deve ser entendido como o substrato
principal da constituição dessas línguas. Em suas palavras: “Do substrato das línguas românicas
deve dizer-se, simplesmente, que foi o latim, o verdadeiro latim, isto é, língua viva e corrente”
(SILVA NETO, 2004, p. 34), enfim, as línguas românicas vieram do latim vulgar.

Seguindo pressuposto levantado, com segurança, se pode afirmar que: “o latim vulgar
esteve submetido incessantemente a alterações. Foi desse latim vulgar, evoluído gradualmente,
de onde começaram a formar-se as línguas que hoje denominamos românicas ou neolatinas
(MIRANDA POZA, 2019, p. 29). Em outras palavras, desse latim “procedem os diversos idiomas
chamados românicos, romances ou neolatinos” (SAID ALI, 1921, p. 01).

É preciso levar em consideração o que diz o célebre filólogo: “As línguas neolatinas não se
derivam diretamente do latim, mas entre aquelas e este houve os vários romances, - assim se
chamavam as modificações regionais do latim -, dos quais saíram então as línguas românicas.”
(COUTINHO, 1981, p. 43).

Não há, como se sabe, uma data exata entre o fim do latim vulgar e começo da formação
dos romances. Contudo, é certo que houve um processo de continuidade de um falar comum
nas regiões conquistadas por Roma. Desde a queda do império romano no séc. V d. C. e
as sucessivas invasões por povos bárbaros, os romances que daí resultaram, através dos
inúmeros contatos linguísticos, favoreceram a formação de dialetos, que depois se constituíram
em línguas nacionais (ILARI, 2018; BOTELHO, 2010).

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Além dos já citados idiomas formados num período que vai do séc. IV ou V até IX ou XI d.
C. (português, italiano, espanhol e francês), há outros: sardo, romeno, dalmático, reto-romano,
provençal e catalão, segundo Coutinho (1981) e Botelho (2010) e, mais outros dois, ladino e
franco-provençal, de acordo com Vasconcellos (1911). Diez (1863), por sua vez, inclui também
o valáquio entre os idiomas formados do latim vulgar. Note-se que somente Sousa da Silveira
(1960) menciona o galego como língua neolatina. Para os demais, porém, ele é tido como
um dialeto restrito à Galiza que pouco influiu na constituição do espanhol, apesar do contato
linguístico mantido com ele. “Tôdas estas línguas e dialetos originaram-se do latim; não do
latim literário, que em muitos pontos era linguagem artificial, e sim do latim vulgar, isto é, da
linguagem viva, do latim falado.” (SAID ALI, 1921, p. 17).

Encerra-se essa seção com um questionamento nas palavras de Campos (1843, p. 79):
“[...] penso que ninguem duvidará que a lingua portugueza é filha da latina; e como poderia
deixar de o ser, se, em grande parte, a nossa legislação, nossos costumes, nossas ceremonias
religiosas e até nossos prejuizos nos vem dos latinos?”.

Em suma, a filiação latina não pode ser negada ou distorcida e para a comprovação disso,
basta observar a história da língua a partir dos autores clássicos e modernos, mas, mais
especificamente, o que está posto na literatura sobre o tema. Contra os fatos, não há contradito.

Considerações finais
Este capítulo não teve a pretensão de esgotar o tema, muito menos fazer uma crítica aos
autores e seus postulados teóricos, mas sim a de fazer uma reflexão sobre duas hipóteses,
de certa maneira, conflitantes. Entre as duas propostas discutidas, a de que o latim vulgar deu
origem aos idiomas românicos é a que mais fielmente se apoia nas descobertas da Filologia
Românica, bem como é que mais argumentos sólidos podem ser considerados, pela abundância
dos estudos.

Há ciência de que o português não poderia ter se formado diretamente do sermo urbanus
de Cícero e Virgílio, porque nesse caso, haveria um lapso temporal de muitos séculos. Além
disso, a língua de Virgílio é da literatura, a de Cícero, a da retórica e da literatura. É uma língua
morta, que vivia apenas na estilização e floreios dos discursos.

Por outro lado, o sermo vulgaris, a língua em movimento, que através de seus usos fluía
como um rio, sujeito às pressões e forças desses usos, mudava e ia se alterando com o passar
do tempo. Foi do latim vulgar que vieram os romances e estes geraram as línguas românicas,
suas marcas são fartas, em todos os níveis da estrutura linguística. Enfim, negar isso tudo é
querer contar outra história da língua portuguesa.

94
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97
Sobre o organizador
Adílio Junior de Souza
Doutor e mestre em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística (Proling/UFPB);
é especialista em Língua Portuguesa e Literatura Brasileira e Africana de Língua Portuguesa
e graduado em Letras pela Universidade Regional do Cariri (URCA). Atualmente, ingressou
no estágio pós-doutoral no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal
de Pernambuco (UFPE), com o projeto “Tópicos avançados de Linguística Românica: o uso
do latim como fonte para a Linguística Histórica”, supervisionado pelo professor Dr. Alberto
Miranda Poza. É professor temporário de Língua Latina e História da Língua Portuguesa no
curso de Letras da Unidade Descentralizada de Missão Velha – CE (UDMV/URCA). Foi bolsista
Capes durante o mestrado em Linguística no Proling/UFPB (2014/2015). Participa do Grupo
de Pesquisa Teorias Linguísticas de Base – TLB (UFPB/CNPq/2021-vigente), do Núcleo de
Pesquisa em Língua Espanhola e Literaturas de Língua Espanhola (UFPE/CNPq/2019-vigente)
e do Núcleo de Pesquisas em Ensino de Línguas e Formação Docente (UVA/CNPq/2020-
vigente). Coordenou o Projeto Estudos Clássicos (Urca/2016-2018). Desenvolve pesquisas
em Linguística, Filologia e Língua Latina. É autor/coautor de artigos e capítulos em periódicos
e em livros na área da Linguística, Literatura e Filologia.

ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5545-6441
E-mail: adilio.souza@urca.br

99
Sobre os autores
Cícero Émerson do Nascimento Cardoso
Doutorando em Letras – Tradição e Modernidade, com concentração em Literatura, Teoria e
Crítica, pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB); Mestre em Letras – Literatura e Cultura,
com concentração em Literatura Comparada, pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB);
Especialista em Língua Portuguesa e Literatura Brasileira e Africana de Língua Portuguesa, pela
Universidade Regional do Cariri (URCA); Graduado em Letras, pela Universidade Regional do
Cariri (URCA); Membro do Núcleo de Pesquisa em Estudos Linguísticos e Literários (NETLLI);
Professor da Rede Pública de Ensino do Estado do Ceará e da Universidade Regional do Cariri
(Campus Missão Velha). Além de ter textos em prosa e poesia em diversas antologias e revistas,
publicou as obras literárias: Breve estudo sobre corações endurecidos (2011), Romanceiro do
norte juazeiro (2014), A revolta de Antonina (2015), O casarão sem janelas (2018) e O baile
das assimetrias (2021). É um dos organizadores dos livros: Antologia Poética – Escritores do
Cariri (2019), Poemates Rosarvm (2019), Linguística & Literatura: Inter-relações – Vol. I e Vol.
II (2019), Linguística, Literatura e Educação: teorias, práticas e ensino – Vol. I e Vol. II (2020)
e Linguística e Literatura em Foco: Produções Acadêmicas (2020).

ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6590-6442
E-mail: emersoncardoso.cardoso@hotmail.com

Demartone Oliveira Botelho


Graduando em Letras Português pela Universidade Federal do Ceará (UFC). É bolsista do
Programa de Iniciação à Docência (PID) pela mesma universidade, na disciplina de Filologia
Românica I.

ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9093-0874
E-mail: demartoneob@gmail.com

Josenir Alcântara de Oliveira


Leciona Língua Latina e Filologia Românica, na UFC; Graduação: Letras (Português/Inglês)
e Especialização: Literatura Brasileira, ambas na UECE; e Mestrado: em Filologia Românica
e Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa, ambos pela USP. Algumas publicações: “A
homonímia e a polissemia” no Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa de J. P. Machado.
Ensaios Reunidos, Teresina, v. 1, p. 77-94, 2005; “O homem e a mulher à luz da etimologia”,
Revista Expressão, Teresina, v. 1, n. 1, p. 22-25, 1994; “A múltipla etimologização implícita
nas metamorphoses de Ovídio”, Pombalina.uc.pt. Digitalis.uc.pt., Imprensa da Universidade
de Coimbra, p. 137-143, 2015.

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0229-276X
E-mail: docjao@bol.com.br

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Yuri Kalel de Sena Sampaio
Pós-graduado em Língua Latina e Filologia Românica pelo Instituto Prominas (2020) com o
projeto de tradução do Livro I das Etymologiae de Isidoro de Sevilha. Pesquisa a literatura latina
medieval, sua importância para a tradição histórica romana e formação da sociedade ocidental.
Tem como objetivo traduzir fontes históricas do período, abrir o debate público à apreciação
da mentalidade cristã-latina e eliminar algumas distorções criadas sobre ela. Graduou-se em
Letras Português-Literatura pela UFC em 2010, concluindo também, no mesmo ano, todas as
disciplinas de Latim e Grego. É professor efetivo de Língua Portuguesa, Literatura e Redação
da rede pública do Estado do Ceará, atuando no Ensino Médio. Tem experiência no ensino de
Língua Portuguesa, Latim e suas literaturas.

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2844-301X
E-mail: sampaio.yuri@gmail.com

Mayara Arruda Martins


Doutoranda e mestra em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística da
Universidade Federal do Ceará (UFC). Graduada em Letras – Português pela mesma instituição.
Pesquisadora do grupo de pesquisa Protexto, atua na área de Linguística Textual, desenvolvendo
pesquisas com foco na referenciação, na metadiscursividade e na argumentação, e suas
interfaces com a etnometodologia e com a antropologia. Atualmente, é discente de doutorado
(PPGLin – UFC) e bolsista do CNPq, investigando a relação entre aspectos interacionais,
sociais, culturais e discursivos e o fenômeno da referenciação, especialmente a dêixis.

ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5673-0780
E-mail: mayaramartins@alu.ufc.br

Vanessa Silva Almeida


Professora de Literatura do Instituto Federal do Ceará – IFCE. Atualmente, é doutoranda em
Literatura pela Universidade Federal do Ceará – UFC, desenvolvendo sua pesquisa acerca da
tragédia grega, especificamente sobre o teatro de Eurípides. É mestre em Estudos da Tradução
e graduada em Letras Português – Inglês pela mesma universidade.

ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7789-6704
E-mail: vanessa.almeida@ifce.edu.br

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