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no Enfrentamento
à Violência
CONTRA MULHER

1
Violência de
Gênero e Modelos
de Masculinidade
Leila Paiva
Lélia Rejane Paiva de Souza
2 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA
UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE

Copyright © 2021 Fundação Demócrito Rocha

FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA (FDR)


Luciana Dummar Presidente
André Avelino de Azevedo Diretor Administrativo-Financeiro
Marcos Tardin Gerente Geral
Raymundo Netto Gerente Editorial e de Projetos
Chico Marinho Gerente do Canal FDR
Andrea Araujo Gerente Marketing & Design
Aurelino Freitas, Emanuela Fernandes e Fabrícia Góis Analistas de Projetos
Isabel Vale Editora de Mídias

UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE (Uane)


Viviane Pereira Gerente Pedagógica
Marisa Ferreira Coordenadora de Cursos
Joel Bruno Designer Educacional
Isabela Marques Desenvolvedora Front-End

CURSO O PAPEL DO HOMEM NO ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA CONTRA MULHER


Valéria Xavier Concepção e Coordenadora Geral
Leila Paiva Coordenadora de Conteúdo
Raymundo Netto Coordenador Editorial
Andrea Araujo Editora de Design e Projeto Gráfico
Miqueias Mesquita Designer
Kamilla Damasceno Estagiária de Design
Daniela Nogueira Revisora
Carlus Campos Ilustrador
Beth Lopes Analista de Projetos
Fábio Braga Analista de Marketing

Este fascículo é parte integrante do curso O Papel do Homem no Enfrentamento à


Violência contra Mulher, em decorrência do Termo de Fomento celebrado entre a
Fundação Demócrito Rocha e Assembleia Legislativa sob o nº 011/2021.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação


Fundação Demócrito Rocha
Bibliotecário Me. Francisco Edvander Pires Santos (CRB-3/1212)

P232
O papel do homem no enfrentamento à violência contra a mulher / Concepção e
coordenação geral: Valéria Xavier; coordenação de conteúdo: Leila Paiva; ilustrações: Carlus
Campos. – Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 2021.
4 fascículos : il. color.
ISBN 978-85-7529-964-7 (Coleção)
ISBN 978-85-7529-965-4 (Fascículo 1)
1. Direitos humanos. 2. Violência contra a mulher. 3. Feminicídio. 4. Machismo. 5. Gênero
e educação. I. Título. Todos os direitos desta edição reservados à:
Fundação Demócrito Rocha
CDD 341.27
Av. Aguanambi, 282/A - Joaquim Távora
CEP: 60.055-402 - Fortaleza-Ceará
Tel.: (85) 3255.6037 - 3255.6148
fdr.org.br | fundacao@fdr.org.br
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no Enfrentamento à Violência CONTRA MULHER

SUMÁRIO
Introdução 4
1. Direitos Humanos e
Violência Contra a Mulher 6
2. Construção Histórica
das Masculinidades 10
3. Masculinidades e
Violência de Gênero: Cenário 13
Internacional e Nacional
Referências 15
4 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA
UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE

INTRODUÇÃO
A
proposta do curso O Papel do Nos quatro fascículos deste curso,
Homem no Enfrentamento da será possível ter um panorama do fenô-
Violência contra a Mulher é meno e das relações e tecidos sociais que
contribuir para o conhecimento interferem para a continuidade de práti-
das diversas faces desse tipo de violência, cas tão violentas mesmo em sociedades
dos alicerces que foram construídos ao que, como a brasileira, vivem sob a égide
longo da história que ainda justificam tais de uma legislação considerada avançada
práticas e de como o universo masculino para o tema no mundo.
dialoga com o tema nos dias atuais. O debate é iniciado aqui, a partir do
universo de garantia dos direitos huma-
nos, os aspectos históricos que fizeram
com que esse fenômeno tivesse uma di-
mensão tão relevante e os impactos pro-
duzidos nas relações de gênero e pelas
mudanças e normas.
A violência contra a mulher não é um
tema dos nossos tempos; é resultado de
uma construção histórica, o que nos pos-
sibilita a luta pela desconstrução do mo-
delo de relações sociais que a legitimou. O
modelo que construiu o cenário histórico
da violência contra a mulher guarda total
relação com temas como: gênero, classe,
raça/etnia e relações de poder.
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no Enfrentamento à Violência CONTRA MULHER

Mesmo não sendo um debate novo, a


cada momento da história diferentes desa-
fios foram apresentados ao universo femi-
nino, mas é necessário afirmar que a situa-
ção da mulher no mundo recente mudou
muito. Se for considerado o período antes
e após duas grandes guerras mundiais, é
possível verificar grandes alterações. O sé-
culo XIX e o início do XX se caracterizam por
um mundo que direciona o feminino para
o cuidado no ambiente doméstico. Mulhe-
res são formadas para o cuidado com o lar
e para atividades consideradas como apro-
priadas para elas pelos homens, cobradas
por comportamentos sociais voltados para
a cooperação com o outro sexo, o que pres-
supunha obediência, subordinação, al-
truísmo e passividade.
As duas grandes guerras trouxeram
mudanças no processo de formação das O diálogo que se propõe neste texto
mulheres e no modelo de feminilidade. Fo- pretende contribuir para o entendimento
ram introduzidos novos papéis ao universo do que são esses direitos, quais os princi-
feminino, principalmente impulsionados pais direitos violados nesse debate e por
pela alteração do conceito de família. que esses têm sido negados às mulheres
Contudo, tais alterações guardam uma por diferentes arranjos societários para
dualidade. Ao mesmo tempo em que se chegar à análise de quais são os desafios
acompanha a velocidade de participação que o século XXI aponta no mundo e no
da mulher nos ambientes externos deter- Brasil para homens e mulheres na busca
minadas pela necessidade do mercado, de uma sociedade com igualdade de gêne-
constata-se que essa participação social se ro. A partir de tais premissas, ainda, tentar
dá de forma bastante desigual, impondo entender como o modelo de masculinida-
diferenças que vão desde acesso aos direi- de edificado pelos sistemas alicerçados na
tos até a imposição da convivência com um desigualdade em diversas esferas sociais
modelo de masculinidade violento e opres- também impacta no crescente fenômeno
sor também nesse ambiente externo. da violência contra a mulher.
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1
DIREITOS HUMANOS
E VIOLÊNCIA CONTRA
A MULHER

A
Organização das Nações Unidas
(ONU) começa a mobilizar os
Estados para construir políticas
contra essa forma de violência
em 1946, com a instituição da Comissão
sobre Status da Mulher, criada pelo Con-
selho Econômico e Social da ONU após a
Conferência de Beijing, com as funções de:
preparar relatórios e recomendações ao
ECO SOC sobre a promoção dos direitos
das mulheres nas áreas política, econômi-
ca, civil, social e educacional.
Mas qual é a importância dessa ação
inicial realizada pela ONU? Bem, a Co-
missão sobre o Status da Mulher (CSW)
formulou, entre os anos de 1949 e 1962,
Carta das uma série de tratados baseados em pro-
Nações Unidas visões da Carta das Nações Unidas e na
Documento Declaração Universal dos Direitos Huma-
que afirma
nos, que declara que todos os direitos e
expressamente
os direitos iguais liberdades humanos devem ser aplicados
entre homens e igualmente a homens e mulheres, sem
mulheres. distinção de qualquer natureza.
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no Enfrentamento à Violência CONTRA MULHER

Além dos Tratados, a CSW formula social de questões vistas como exclusiva-
recomendações ao ECO SOC sobre pro- mente privadas (domésticas ou familiares)
blemas de caráter urgente que requerem por muito tempo. A ONU, por meio de seus
atenção imediata aos direitos das mulhe- documentos provoca grandes debates e
res e acompanha a implementação do Pla- avanços nas normas e nas relações de desi- of Discrimination Against Women) foi pro-
no de Ação de Beijing. gualdade entre homens e mulheres. mulgada em 1979 pelas Nações Unidas,
A CSW foi determinante para o avanço do Ao falarmos de direitos humanos para e no Brasil foi promulgada pelo Decreto
debate sobre os Direitos Humanos das Mu- todas as pessoas, salienta-se que as mu- nº 4.377, de 13 de setembro de 2002. Cha-
lheres, sobretudo porque influenciou para lheres são sujeitas de direitos dos 30 direi- mada de Convenção das Mulheres, é o
inclusão do tema na elaboração da Decla- tos afirmados pela Declaração Universal primeiro tratado internacional que trata
ração Universal dos Direitos Humanos, em do Direitos Humanos, conforme traduz a dos direitos humanos de mulheres, e de-
1948. Foi a CSW que imprimiu o olhar sobre organização Youth for Human Rights: fine em seu artigo 1º:
as questões de gênero deixando estabele- Todos nascemos livres e iguais. 2. Não Artigo 1º - Para os fins da presente
cido naquele documento a perspectiva da ser discriminado. 3. O direito à vida. 4. Convenção, a expressão “discrimi-
igualdade entre homens e mulheres. Nenhuma escravatura. 5. Nenhuma nação contra a mulher” significará
Considerando que a história do femini- tortura. 6. Você tem direitos onde toda a distinção, exclusão ou restri-
no foi marcada por profunda invisibilidade quer que vá. 7. Somos todos iguais ção baseada no sexo e que tenha por
perante a Lei. 8. Os direitos humanos objeto ou resultado prejudicar ou
determinada pelo imaginário de que o lu- são protegidos por lei. 9. Nenhuma anular o reconhecimento, gozo ou
gar do feminino estava na esfera privada detenção injusta. 10. O direito a julga- exercício pela mulher, independente-
(doméstica), e do masculino, pública, isso mento. 11. Estamos sempre inocentes mente de seu estado civil, com base
impossibilitou a politização e o debate até prova em contrário. 12. O direito na igualdade do homem e da mulher,
à privacidade. 13. Liberdade para lo- dos direitos humanos e liberdades
comover. 14. O direito de procurar um fundamentais nos campos político,
lugar seguro para viver. 15. Direito a econômico, social, cultural e civil ou
uma nacionalidade. 16. Casamento e em qualquer outro campo.
família. 17. O direito às suas próprias
coisas. 18. Liberdade de pensamen- Outro documento relevante para situar
to. 19. Liberdade de expressão. 20. O a violência contra a mulher no âmbito dos
direito de se reunir publicamente. 21. direitos humanos é a Convenção Intera-
O direito à democracia. 22. Segurança
mericana para Prevenir, Punir e Erradi-
VOCÊ SABIA?
social. 23. Direitos do trabalhador. 24.
O direito à diversão. 25. Comida e car a Violência Contra a Mulher, a qual
abrigo para todos. 26. O direito à edu- ocorreu no ano de 1994 em Belém (PA) e
Durante a IV Conferência Mundial sobre a cação. 27. Direitos de autor. 28. Um definiu o fenômeno como “uma ofensa à
mundo justo e livre. 29. Responsabi- dignidade humana e manifestação das
Mulher, em setembro de 1995, na capital
lidade. 30. Ninguém pode tirar-lhe os
da China, foi aprovada a Declaração de relações de poder historicamente desi-
seus direitos humanos.”
Beijing, em que os governos participantes guais entre mulheres e homens”.
(Declaração Universal dos Direitos do No plano do Direito Internacional
se comprometeram a cumprir, até o fim
Homem das Nações Unidas - versão
do século XX, as estratégias acordadas dos Direitos Humanos, não existe uma
simplificada)
em Nairóbi, no Quênia, em 1985. definição precisa do que é violência de
Fonte: Agência Câmara de Notícias
A Convenção sobre Eliminação de To- gênero. Por isso, a ONU adota uma con-
das as Formas de Discriminação Contra cepção ampliada da definição de violên-
as Mulheres (Cedaw, em língua inglesa, cia contra mulher em alguns tratados in-
Convention on the Elimination of All Forms ternacionais que versam sobre o tema.
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TÁ NA LEI
A seguir, alguns documentos internacionais relevantes para o
debate da violência doméstica e familiar contra a mulher:
• Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra as Mulheres (Cedaw) (1979).
• Convenção Interamericana Sobre a Concessão dos
Direitos Civis à Mulher (1948).
• Convenção da OIT nº 100 (1951).
• Convenção sobre os Direitos Políticos da Mulher (1953).
• Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Racial (Cerd) (1966).
• Protocolo Facultativo à Convenção Sobre Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (1999).
• Convenção da OIT nº 156 (1981). Dispõe sobre a
igualdade de oportunidades e de tratamento para
homens e mulheres trabalhadores.
• A Declaração e a Plataforma de Ação de Pequim (1995).
• A Resolução 1325 do Conselho de Segurança da ONU
sobre Mulheres, Paz e Segurança (2000) e as quatro
resoluções adicionais sobre mulheres, paz e segurança:
1820 (2008), 1888 (2009), 1889 (2009) e 1960 (2010).
• Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e
Erradicar a Violência contra a Mulher - Convenção do
Belém do Pará de 1994.
• A Declaração do Milênio e os Objetivos de
Desenvolvimento do Milênio.
• Estratégia de Montevidéu para a Implementação
da Agenda Regional de Gênero no Âmbito do
Desenvolvimento Sustentável.
• A partir da mobilização da ONU, várias ações têm sido
conduzidas, a âmbito mundial, para a promoção dos
direitos da mulher. No que compete ao Brasil, uma série
de medidas protetivas vem sendo empregada visando
à redução dos alarmantes dados de violência. Há dois
grandes marcos normativos: (1) a Lei Maria da Penha e
(2) a Lei do Feminicídio.
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no Enfrentamento à Violência CONTRA MULHER

VOCÊ SABIA?
Em 2006, foi promulgada a lei nº Outra norma determinante no enfren-
11.340/2006, de 7 de agosto de 2006, tamento da violência contra a mulher
designada Lei Maria da Penha (Brasil 2006), foi a Lei do Feminicídio, que também
e, em 2015, entrava em vigor a Lei do cumpriu um papel de possibilitar a visi-
Feminicídio (Lei nº 13.104/15). bilidade dos homicídios cometidos con-
tra mulheres que são consequências de
sua condição de mulher. Essa alteração
descortina uma série de homicídios que
ocorriam todos os dias no Brasil contra
A partir da mobilização da ONU, vá- mulheres, mas não viravam uma estatís-
rias ações têm sido conduzidas, a âmbito tica de violência contra a mulher, o que
mundial, para a promoção dos direitos impossibilitava a visibilidade necessária
da mulher. No que compete ao Brasil, para a formulação das políticas públicas
uma série de medidas protetivas vem de prevenção e proteção.
sendo empregada visando à redução dos Para entender a relação de violência
alarmantes dados de violência. Há dois que marcou a história do universo mas-
grandes marcos normativos: (1) a Lei Ma- culino e feminino, é preciso avançar no
ria da Penha e (2) a Lei do Feminicídio. conceito específico e trazer para o debate
A Lei Maria da Penha e a Lei do Femi- outros fatores, como aspectos culturais,
nicídio serão detalhadas no decorrer do dados e normas, que ajudam a entender
curso, mais especificamente no módulo a prática mundial da violência doméstica.
3. Neste momento, é importante chamar A ONU conceitua violência de gênero
atenção para as características desses como “qualquer tipo de agressão física,
dois marcos normativos nacionais. A Lei psicológica, sexual ou simbólica  contra
Maria da Penha, que completa, em 2021, alguém em situação de vulnerabilidade
15 anos, foi um divisor de águas no tema. devido à sua identidade de gênero ou
Foi a Lei Maria da Penha que demonstrou orientação sexual”. Apesar dos vários
a existência desse tipo de delito no inte- esforços das organizações internacionais,
rior das “famílias” brasileiras, tipificando esse é um fenômeno mundial, o que de-
o crime da violência doméstica. No ima- monstra a urgência de ampliação do de-
ginário nacional, reinava a ideia de que o bate para além das instituições de direitos
lar guardava as relações sagradas e, por ou de atendimento às mulheres vítimas e
conseguinte, harmônicas. A Lei Maria da ainda – não envolver apenas o universo fe-
Penha prestou esse indispensável servi- minino. É preciso debater entender e reco-
ço e descortinou a triste realidade dos al- locar o papel dos modelos de masculinida-
tos índices de violência contra a mulher. de no crescimento desse tipo de violência.
10 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA
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2
CONSTRUÇÃO
HISTÓRICA DAS
MASCULINIDADES

P
ara enfrentar a violência contra Esta foi, sem dúvida, mais uma das di-
mulher, é necessário entender versas consequências nefastas da pande-
que ela não acontece isolada- mia causada pela covid-19: o aumento da
mente. A violência de gênero violência doméstica que atinge, na maio-
faz parte de um sistema que estrutura o ria, mulheres. (ONU BRASIL, 2020)
Patriarcado poder e a divisão sexual do trabalho. O pa- Além de deixar as mulheres mais ex-
Sistema triarcado impôs a mulher ao lugar de cui- postas, por ficarem isoladas junto ao seu
sociopolítico que dados com o lar, dentro de relações com a agressor, a pandemia acirra a desigualda-
coloca os homens família. Mas é claro que essa estrutura não de social e de gênero.
em situação
de poder.
seria possível se não fosse atribuída à mu- No contexto de denúncias de condutas
lher a condição de menor capacidade para sexualmente abusivas e violentas de ho-
atividades intelectuais e frágeis, criando o mens, surge o debate mais público sobre
estereótipo ideal para a condição de sub- os atributos do que se entende tradicio-
jugada. Esse modelo de masculinidade, nalmente por “ser homem” e os modelos
construído de forma conjunta com o mo- de masculinidade que foram aceitos sem
delo da incapacidade feminina, até hoje questionamentos e que impactavam nos
vê a mulher como objeto do homem. comportamentos masculinos caracteri-
O modelo construído de homem, que zados por homens que não falam de seus
tem mais força e maior racionalidade ao sentimentos, não cuidam da própria saú-
ponto de não chorar, determina compor- de, não demonstram fragilidade e resol-
tamentos mais violentos, incapazes de vem seus conflitos de forma violenta.
dialogar de forma mais equilibrada e inca- Alterar o contexto social que cons-
pazes de práticas conciliatórias. trói ambiência para uma masculinidade
Assim, essa masculinidade “tóxica”, tóxica pressupõe o necessário cuidado
apontada como um dos fatores por trás de para que sejam promovidas reais trans-
problemas vividos pela sociedade atual, formações nas relações. O modelo de
que afetam vários países, com o número masculinidade que foi elaborado com
crescente de violência doméstica sobretudo características tão violentas não será
durante a pandemia, e que levou as mulhe- vencido apenas com imposição legal.
res a ficarem no mesmo ambiente violento Certamente, isso evitará que os homens
com estresse pandêmico e violência, preci- pratiquem crimes previstos na legislação,
sa ser confrontada por homens e mulheres. mas isso não é suficiente.
11
no Enfrentamento à Violência CONTRA MULHER

É preciso romper com os modelos cul-


turais dos estereótipos do feminino e do
masculino. Recente episódio de violên-
cia física contra a mulher envolvendo um
músico famoso no Brasil chamou atenção
pela disparidade de comportamento com

SAIBA MAIS
a música e com a família e o comporta-
mento com a mulher.
Nesse sentido, é urgente ampliar o de-
O movimento “#MeToo” ganhou força em bate com o universo masculino. Assumir
2017, quando a atriz Alyssa Milano publicou que, da mesma forma que as realidades
no seu perfil no Twitter um pedido para que sociais são múltiplas e dinâmicas, assim
todas as pessoas que já sofreram assédio se comportam as masculinidades. É preci-
sexual usassem a hashtag #MeToo. so contar com partes das masculinidades
O termo viralizou não só em Hollywood, que também se sentem oprimidas pelo
mas no mundo todo. Homens e mulheres modelo que lhes foi imposto.
compartilharam inúmeras histórias de No Brasil e no mundo, várias iniciati-
abusos e assédios sexuais. vas surgem no sentido de dialogar com
Leia sobre o assunto em: https://veja.abril. esses homens. O primeiro programa de
com.br/videos/veja-explica/voce-sabe-o- intervenção com homens autores de vio-
que-e-o-movimento-metoo-veja-explica/ lência (Emerge) foi criado em Boston, nos
Estados Unidos, em 1977, a partir dos
movimentos de mulheres contra a violên-
cia de gênero e dos primeiros serviços de
apoio para mulheres.
Nos anos 1990, algumas iniciativas
de atendimento aos homens envolvidos
com violência contra a mulher foram
iniciadas, porém essa entrada se dava a
partir do sistema de justiça, ou seja, a vio-
lência já tinha ocorrido.
Outras ações encontradas foram a do
Núcleo de Atendimento à Família e aos
Autores de Violência Doméstica, criado
em 2003, no Distrito Federal, e alguns que
sugiram em outros estados, como Santa
Catarina e Minas Gerais.
Em 2008, na esfera das ações do Pac-
to Nacional de Enfrentamento à Violência
contra as Mulheres, a Secretaria de Políti-
cas para Mulheres da Presidência da Re-
pública (SPM) desenvolveu as Diretrizes
Gerais dos Serviços de Responsabilização
e Educação do Agressor, documento que
integra as orientações sobre a Rede de En-
frentamento à Violência (BRASIL, 2011).
12 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA
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No contexto pós-Lei Maria da Penha,


o primeiro serviço criado de acordo com
seus artigos 35 e 45 foi o Serviço de Educa-
ção e Responsabilização para Homens au-
tores de violência contra mulher (SERH),
PapodeHomem no âmbito do Ministério da Justiça.
É tempo de homens Uma contribuição importante foi o
possíveis. É um espaço Relatório mapeamento de serviços de
criado, no qual todos
são bem-vindos,
atenção grupal a homens autores de vio-
independentemente lência contra mulheres no contexto bra-
de sexo, gênero, sileiro, publicado em 2014 pelo Instituto
orientação sexual, Noos. Foram encontrados, na época, 25
credo ou raça. programas em diferentes estados brasi-
Implementa diálogos
leiros, obtendo informações mais deta-
permanentes sobre o
tema dos modelos de lhadas sobre 19 deles.
masculinidades que Atualmente várias iniciativas tanto no
precisam ser alterados âmbito da justiça quanto em perspectiva
para pensarmos em preventiva ocorrem no Brasil. É o caso do
uma sociedade mais programa PapodeHomem, que aborda
justa e igualitária.
Conheça:
esse modelo possível de masculinidade
papodehomem.com.br mais sensível às questões privadas e sociais.
13
no Enfrentamento à Violência CONTRA MULHER

3 direito: o direito à vida. Considerando


que as mulheres têm sido assassinadas
por sua condição de mulher, mas que a
maioria dos casos aponta o seu parceiro
íntimo como autor, é claro que o papel do

MASCULINIDADES homem nesse contexto é determinante. É


preciso incluir os homens no processo de
desconstrução desse modelo tão violen-

E VIOLÊNCIA DE to de relações sociais.


Outro contexto que assusta são os am-

GÊNERO: CENÁRIO
bientes de trabalho. São ambientes ex-
tremamente machistas, com homens ocu-
pando mais os postos de poder, e acabam

INTERNACIONAL sendo bastante violentos com mulheres,


porém são ambientes propícios para os
debates necessários sobre masculinidade.

E NACIONAL Apesar de ser um grande instrumento


de empoderamento feminino, o mercado
de trabalho ainda violenta muito as mu-

O
lheres. Nesse caso, em comum com os
s dados demonstram que é De acordo com o Fórum de Segurança outros, ocorrem diversas formas de vio-
necessário aumentar as polí- Pública, o número de vítimas de feminicí- lência, que alertam para a necessidade
ticas públicas destinadas ao dio foi recorde em 2020. Houve 1.350 víti- de inclusão do universo masculino nas
enfrentamento da violência mas, um aumento de quase 1% em relação políticas de prevenção.
contra a mulher. É preciso um esforço ao ano anterior. Ainda segundo o estudo, Um dos comportamentos mais graves e o
conjunto e mundial. quase 15% dos homicídios de mulheres mais conhecido é o assédio sexual, conduta
Em números absolutos, nosso país é cometidos em 2020, em que os autores do que se manifesta por meio de contato físico,
um dos que mais matam mulheres no crime eram parceiros ou ex-parceiros das palavras, gestos ou outros meios, propostas
mundo. Um levantamento do Fórum Bra- vítimas, não foram registrados como femi- ou impostas, que causam constrangimento
sileiro de Segurança Pública, publicado no nicídio. Esse dado demonstra que ainda ou violam a liberdade sexual da mulher. É
início de julho/2021, traçou um mapa da é preciso investir muito na formação do importante ressaltar que, sob o aspecto tra-
violência contra a mulher nos meses da sistema de segurança para que se tenha a balhista, nesse caso não é necessária supe-
pandemia de covid-19. Os dados foram le- real dimensão do fenômeno no Brasil. rioridade hierárquica para sua ocorrência.
vantados pelo Instituto Datafolha, que fez Os dados indicam que 9 em cada 10 O assédio moral é caracterizado pela
2.079 entrevistas em 130 cidades em maio mulheres vítimas de feminicídio morre- abordagem abusiva, reiterada e sistemáti-
de 2021. O levantamento mostra que um ram pela ação do companheiro, do ex- ca, realizada por meio de gestos, palavras,
quarto das mulheres entrevistadas rela- -companheiro ou de algum parente. agressões ou comportamentos, que atin-
tou ter sofrido violência física, sexual ou Essa é a forma mais impactante de vio- gem a vítima causando-lhe humilhação e
verbal nos 12 meses anteriores. lência contra a mulher e atinge o maior constrangimento.
14 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA
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O preconceito de gênero, que gera no seu enfrentamento o quanto ele foi mo-
distinção, exclusão ou preferência injusti- vido pela pandemia da covid-19.
ficada em relação à mulher, a coloca em No ano passado, os canais Disque 100
situações desafiadoras para se manter e Ligue 180 receberam uma denúncia de
no emprego. Segundo pesquisa realizada violência contra a mulher a cada cinco
pelo Instituto Patrícia Galvão e Instituto minutos. Segundo o Ministério da Mulher,
Locomotiva em 2020, 40% das mulheres Família e dos Direitos Humanos, 72% des-
afirmam ter sofrido supervisão excessiva sas denúncias eram relacionadas a casos
do trabalho. A cada 10 mulheres, 7 têm de violência doméstica e familiar. As ca-
mais medo de relatar gravidez ao superior racterísticas do fenômeno, multifaceta-
do que a um homem que será pai. do, demandam soluções amplas e que
Além disso, é importante ressaltar atendam a sua diversidade.
que os comentários relacionados às ca- Assim, além de métodos diferenciados
racterísticas físicas da mulher se natu- e estudos para melhor conhecer e acom-
VOCÊ ralizaram. A pesquisa apontou que 57% panhar como se manifesta essa violência, é

SABIA?
das entrevistadas concordaram que a preciso abrir os espaços de debate, chamar
aparência física de uma pessoa conta na todos e todas para somar na busca de solu-
contratação. Esse comportamento não ções conjuntas e ganhar novos braços para
Como Denunciar
só aprisiona as mulheres em padrões es- obter mais força de reação a fim de enten-
• Disque 180: O Disque 180 é o
tabelecidos pelos homens como também der e vencer esse grave problema que tem
telefone exclusivo do Governo
gera clima de competitividade e insegu- crescido no Brasil. Não é possível enfrentar
Federal para atendimento à mulher.
rança entre as mulheres. a violência sem contar com o público mas-
O número presta apoio e escuta
Em contrapartida, pouco se fala sobre culino. Enfrentar a violência é enfrentar o
mulheres em situação de qualquer tipo
a punição aos agressores. O estudo des- modelo de masculinidade que a perpetua.
de violação ou violência de gênero.
tacou que, em apenas 28% dos casos, as O tema demanda alteração de estratégias
Por meio do canal, os casos são
vítimas souberam que o agressor sofreu para avançar no sentido de reduzir esse tipo
encaminhados a órgãos competentes.
algum tipo de penalidade pelo fato. de violência. É muito ruim que se perceba
• Delegacias de Defesa da Mulher nos As diversas faces da violência contra a que até agora as políticas estejam voltadas
Estados e Distrito Federal. mulher demandam formação continuada apenas a evitar conflitos ou punir agressores.
• Casa da Mulher Brasileira nos Estados. e atualização frente as alterações da legis- É necessário promover uma alteração
lação como forma de melhor preparar os significativa nas relações de gênero e esta-
diversos profissionais que atuam com o belecer políticas que efetivem o caminho
tema. Nesse sentido, é preciso considerar para a igualdade de gênero.
15
no Enfrentamento à Violência CONTRA MULHER

REFERÊNCIAS
Brasil. Constituição da República Federativa do
Brasil. Brasília: Casa Civil, 1988. Disponível em: <<
http://www4.planalto.gov.br/legislacao >>. Acesso em:
16 de setembro de 2020.
_________ Cartilha - Ligue 180 –
http://www.brasileirosnomundo.itamaraty.gov.br/
cartilhas/protecao%20a%20mulher/BOOKLET%20
180%20EM%20ORDEM.pdf/view Acesso em 27 de
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Cadernos Pagu - Print version ISSN 0104-8333On-line
version ISSN 1809-4449. Cad. Pagu no.31 Campinas
July/Dec. 2008. https://doi.org/10.1590/S0104-
83332008000200024. RESENHAS - Feminismo: velhos e
novos dilemas uma contribuição de Joan Scott*
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Versão Simplificada dos 30 Artigos da Declaração
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br.youthforhumanrights.org/what-are-human-rights/
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html Acesso em 28 de julho de 2021.
INSTITUTO PATRÍCIA GALVÃO:
https://agenciapatriciagalvao.org.br/violencia/
pesquisa-revela-76-das-mulheres-ja-sofreram-
violencia-e-assedio-no-trabalho/
https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/
noticia/2020-12/estudo-mostra-que-76-das-
mulheres-sofreram-violencia-no-trabalho
https://movimentomulher360.com.br/wp-content/
uploads/2019/01/cartilha_violenciagenero-11.pdf
TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO https://
www.trt13.jus.br/informe-se/noticias/2020/08/
tribunal-lanca-cartilha-violencias-contra-a-mulher-
no-trabalho/cartilha-violencia-contra-a-mulher-no-
trabalho-versao-final.pdf
16 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA
UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE
AUTORAS
Leila Paiva é advogada e mestra em Direito pela Universidade
Católica de Brasília (UCB). É especialista em Direito Público e Processo
Penal pela Universidade de Fortaleza (Unifor) e presidente da Comissão
de Direitos Humanos da OAB-CE. É professora de Direitos Humanos
e Direito Tributário e consultora na área de Direitos Humanos, Direitos
da Criança, Gênero, Tributação e Direitos Humanos e Advocacy.
Atuou como coordenadora do Programa Nacional de Enfrentamento
da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes da SDH/Presidência
da República e do Serviço Disque 100. É assessora parlamentar.

Lélia Rejane Paiva de Souza é advogada com MBA em Gestão


Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e mestranda em
Administração pela Universidade de Fortaleza (Unifor), com estudos
na área de governança e compliance. É funcionária do Banco do
Nordeste desde 2004, onde atualmente gerencia a Assessoria a
Comitês e Colegiados Estatutários da empresa.

ILUSTRADOR
Carlus Campos é artista gráfico, pintor e gravador, começou
a carreira em 1987 como ilustrador no jornal O POVO. Na
construção do seu trabalho, aborda várias técnicas como:
xilogravura, pintura, infogravura, aquarelas e desenho. Ilustrou
revistas nacionais importantes como a Caros Amigos e a Bravo.
Dentro da produção gráfica ganhou prêmios em salões de
Recife, São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.

Apoio Patrocínio Realização

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