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O QUE PROPÕE O PROCESSO DE CRIAÇÃO?

UMA BREVE REVISÃO SOBRE


A METODOLOGIA DE PESQUISA EM ARTE

WHAT DOES THE CREATION PROCESS PROPOSES? A BRIEF REVIEW OF


THE RESEARCH METHODOLOGY IN ARTS

Guilherme Lima Bruno E Silveira / UFG / IFPR-Londrina

RESUMO
O presente artigo procura desenvolver uma reflexão sobre as particularidades da
metodologia de pesquisa em artes. A pesquisa sobre poéticas visuais e processos criativos,
realizada por artistas pesquisadores, envolve uma serie de particularidades nas formas de
cruzar os aspectos práticos e teóricos. Tendo como pressuposto a produção artística como
parte intrínseca à pesquisa, a metodologia dessa área não se permite fechar campos
rígidos, uma vez que busca-se o desenvolvimento de linguagens e poéticas pessoais e
reflexões sobre a instauração do processo criativo. Após um levantamento de referencial
que discutisse diferentes aspectos do trabalho de pesquisa em artes, esse trabalho destaca
e questiona alguns caminhos, desafios e potências dessa área de investigação que transita
entre diferentes fronteiras.

PALAVRAS-CHAVE
Metodologia; pesquisa em arte; pesquisa-criação; processo criativo; poéticas visuais

ABSTRACT
This article aims to develop thinking about the particularities of the research methodology in
arts. The research about visual poetics and creative processes carried out by artists
researchers, involves a series of particularities in the ways of crossing the practical and
theoretical aspects. With the premise of the artistical production as an intrinsic part of the
research, the methodology of this area does not allow to close rigid fields, since it seeks the
development of languages and personal poetics about the instauration of the creative
process. After a referential survey that discussed different aspects of the research work in
arts, this work highlights and questions some paths, challenges and capacities of this
research area that moves through different borders

KEYWORDS
Methodology; art research; research-creation; creative process; visual poetics.
Diferenças entre sobre e em.

Em muitos momentos, no processo de pesquisa e docência, já me deparei com


definições híbridas como “artista-pesquisador” ou “professor-pesquisador-artista” –
poderia somar aqui até o sincrético “artista etc” de Ricardo Basbaum (2005) – e
entendo que a presença comum desses termos ajuda a apontar para o caráter
amplo da produção de arte e da sua presença, não obrigatória, mas intensa, no
ensino e na pesquisa. Na arte, aparentemente, a experiência da prática criativa tem
se apresentado como o espaço de diferenciação das atuações a ela relacionadas,
soando como um catalizador das especificidades de uma área mais jovem em sua
formalização (no ensino e na pesquisa) do que outras disciplinas – inclusive
ecoando na sua tendência não-disciplinar.

Não há muitas oposições aparentes, dentro da área, a essa questão. Parece


razoavelmente claro que a sensibilidade, o afeto e a experiência - a subjetividade –
tem espaço privilegiado, não exclusivo, nas artes. Ainda assim, algumas questões
ficam. Ao chegarmos a uma instituição de ensino e pesquisa, ao entrarmos em um
Programa de Pós-graduação da área, temos de mergulhar na prática de pesquisa e
concretizar, construir, nossa postura de artista-pesquisador (que inevitavelmente
diversas vezes ressoa em professor-pesquisador-artista). É nesse momento que
surgem algumas dificuldades e dúvidas na prática dessa modalidade de pesquisa.

Quando me pergunto o que é pesquisa em arte as respostas que se adiantam em


aparecer são as pontuações de diferenças entre a análise de obras e contextos e a
de investigação poética. Sandra Rey (1996 e 2002) e Sylvie Fortin e Pierre Gosselin
(2014) fazem essa distinção, lembrando de que a pesquisa sobre arte seria a que se
debruça para investigar a obra pronta e acabada, enquanto a pesquisa em arte seria
a investigação voltada para o surgimento da obra de arte. Este olha a nascente,
enquanto o outro o rio formado. Fontin e Gosselin (2014) somam a definição de
pesquisa para as artes, que se configura na pesquisa sobre aparatos que podem
modificar de alguma maneira a produção ou a fruição (novas mídias, por exemplo).

SILVEIRA, Guilherme Lima Bruno E. O que propõe o processo de criação? Uma breve revisão sobre
a metodologia de pesquisa em arte, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE
PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia:
Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 2143-2155.
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É possível aceitar que a pesquisa sobre e para possam ser divididas ou não, de
qualquer maneira, representam as pesquisas que vão olhar para a arte e seu
contexto pós-fato, normalmente, um olhar exterior. A pesquisa em arte diz respeito
ao olhar de dentro, às indagações do sujeito produtor, ainda que elas possam se
vincular à história da arte, aos sistemas das linguagens, à recepção ou a uma
técnica e forma de fazer específicas, sempre se voltam à produção da obra. Fortin e
Gosselin afirmam sobre a pesquisa em arte que “esta última categoria é a mais
controversa, pois ela mistura teoria e prática ao longo do processo criativo e no
objeto de arte” (2014, p.1). Por que controverso e quais são as implicações dessa
mistura é a pergunta a ser desdobrada.

Esse tipo de pesquisa se liga sempre ao processo de criação do artista:

(...) pesquisa em arte, ênfase de Poéticas Visuais, delimita o campo


do artista-pesquisador que orienta sua pesquisa a partir do processo
de instauração de seu trabalho plástico assim como a partir das
questões teóricas e poéticas, suscitadas pela sua prática (...)
articulando o seu fazer de atelier com a produção de conhecimento
(REY, 1996, p.82).

A pesquisa na linha de Poéticas Visuais e Processos de Criação é o espaço da


pesquisa em arte, que tem como pressuposto, antes de mais nada, o trabalho de
atelier, o trabalho de produção artística. Ainda assim, como articular a prática
artística com a pesquisa acadêmica? Alguns textos (como o de Zamboni, 2012)
lembram sobre a presença da criatividade em toda a produção científica, e quanto a
isso não há discordâncias, mas é na outra mão que as maiores dúvidas aparecem
ao iniciar as propostas de investigação. No artigo “Pesquisa em arte: apontamentos
e reflexões”, Manoela Afonso (2008) coloca dúvidas bem próximas ao cotidiano do
artista-pesquisador em sua vivência com as burocracias da universidade, seu
espaço nessa, os critérios da pesquisa em relação às outras linhas e o destino das
produções artístico-acadêmicas da pesquisa em arte. Ela pontua: “Penso que o
artista procure na academia não uma oportunidade de dissecar e decodificar o seu
trabalho artístico, mas sim de discuti-lo poeticamente compreendendo os processos
de produção que o envolvem” (AFONSO, 2008, p. 2). A discussão poética parece

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difícil de atingir porque é específica da arte, sem uma formatação fechada de
método, o que gera alguma insegurança ao fazer o paralelo com as cobranças da
universidade, formatos de tese, e demais aspectos que tentam buscar amparo em
outras áreas já mais “adequadas”.

Quando Manoela Afonso discute sobre o formato da tese, não é um detalhe menor,
uma vez que ele será resultado de todo um processo. Qual tipo de tese é esse? Não
há um consenso, mas Fortin e Gosselin pontuam as possibilidades formalmente
estabelecidas na Universidade de Quebec e Montreal (UQAM), que são a “Tese-
pesquisa”, “Tese-intervenção” e “Tese-criação” (2014, p.2). A tese-criação parece
ser a que mais especificamente se enquadra na linha e metodologias que discuto
nesse texto. Como o próprio nome já indica, é uma produção de pesquisa
acadêmica que se forma pela sistematização de uma investigação da criação
artística em processo, gerando, portanto, uma tese que é obra e tese em um só
objeto. Objetivo não muito fácil de se atingir ao imaginarmos a sinergia necessária
entre esses dois âmbitos da pesquisa.

Para Fortin e Gosselin, os próprios alunos tem dificuldade em encarar a abertura da


pesquisa em arte: “eles aspiram a uma respeitabilidade, a qual, estranhamente,
conectam com o modelo dominante de pesquisa, o positivismo” (2014, p.2). Em
outras palavras, ainda que a proposta seja da tese-criação, desvios se tornam fáceis
e constantes porque, na busca de definições claras de métodos e das cobranças
acadêmicas, o respeito, a resposta positiva da parte das instituições parece chegar
mais rápido com modelos dominantes que atendam aos critérios já pré-
estabelecidos, fixados e – infelizmente, muitas vezes – engessados. Estou
generalizando uma afirmação que Fortin e Gosselin fazem sobre o seu espaço
específico (a UQAM), por ver, em discussões com amigos pesquisadores algumas
indagações muito próximas – seja na UFG, no programa ao qual estou ligado, ou
outros no país – assim como posições menos diretas, mas que flertam com esse
problema em vários autores (Zamboni, 2012; Rey, 1996; Buti, 2005; Gatti,2018).

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O que foi colocado acima me traz um incômodo grande: qual a nossa localização, na
pesquisa em artes, dentro de um “grande mapa das metodologias científicas”? É
uma pergunta aberta, uma vez que autores como Buti preferem já afirmar de cara
“arte não é ciência”, mas ainda assim, estando na academia, no âmbito da pesquisa,
parece ser um caminho a sistematização das investigações, ainda que se respeite
suas especificidades. Novamente é Fortin e Gosselin que parecem esclarecer um
pouco essa localização ao definirem em qual paradigma lhes parece melhor que o
artista-pesquisador se enquadre:

Um paradigma é um conjunto de pressupostos, de crenças e de valores que


determina o ponto de vista de uma disciplina ou de uma área do
conhecimento. Paradigmas são molduras que padronizam a condução do
conhecimento (...) Um estudo no paradigma pós-positivista não tentará
predizer um fenômeno ou buscar leis gerais. O paradigma pós-positivista /
qualitativo postula a existência de múltiplas construções da realidade
segundo os pontos de vista dos pesquisadores. Ele difere do paradigma
positivista quanto à crença de que o conhecimento não pode ser separado
do investigador (FORTIN, GOSSELIN, 2014, p.3)

O paradigma de pesquisa pós-positivista, então, é aquele que enquadra a


observação dos fenômenos em sua individualidade, que não busca fechar os
fenômenos em leis fixas. É uma mudança radical, que coloca o mundo, a realidade,
como construção da linguagem, com fenômenos que são afetados de maneira
individual, e de presenças que afetam os fenômenos e sua recepção. Em resumo, a
ideia de neutralidade e de busca de uma definição única de realidade é deixada de
lado em prol de uma prática de pesquisa que observa, analisa e produz um mundo –
assim como é produzida por ele –, com realidades diferentes e que se alteram
enquanto se movimentam e relacionam.

Essa localização no mapa metodológico e apresentação do paradigma pós-


positivista como sendo mais adequável à pesquisa em arte está de acordo com um
entendimento da pesquisa como algo singular, individual e não generalizado como
ação de um grupo. Os autores apresentam três grandes tradições filosóficas pós-
positivistas: a fenomenológica/hermenêutica; a teoria crítica; e a pós-moderna ou
pós-estruturalista. Essas tradições resultam em três tipos de pesquisa etnográfica.

SILVEIRA, Guilherme Lima Bruno E. O que propõe o processo de criação? Uma breve revisão sobre
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“Aqui, o termo etnografia indica uma orientação muito ampla que pode assumir
diversas possibilidades de utilização dos dados” (FORTIN, GOSSELIN, 2014, p.8).
Parece-me que os autores usam aqui o termo etnografia de maneira bastante ampla,
como indicador do um trabalho de investigação que envolva campo e observação –
incluindo o atelier como campo. Essas tradições e suas etnografias podem todas se
vincular à tese-criação, mas cada uma com um enfoque de realização. A
fenomenológica busca analisar e investigar os objetos relacionais, a experiência em
si torna-se a matéria para a obra. A Teoria crítica é carregada de um viés de
intervenção, analisa as relações a serem desveladas e pode propor trabalhos
coletivos, que tensionem as relações sociais. Enquanto a pós-moderna – ou pós-
estruturalista – se volta para a própria linguagem, como estruturante das relações e
realidades, liga-se ao desconstrucionismo, a rupturas constantes com a
naturalização do mundo. Ao meu ver, sem tentativa de restringir, boa parte dos
textos aqui discutidos se vinculam com uma tendência à terceira tradição – em que
se incluem os métodos de autoetnografia e de escrita criativa.

Aporte teórico: a poiética e o fazer da obra

A produção poética se enquadra nesse caminho de um paradigma científico pós-


positivista porque ela é, em si mesma, considerada construção de conhecimento. A
arte não é ilustração de conceitos, ela é por si conhecimento específico e ao mesmo
tempo não-disciplinar, ou multidisciplinar. Na sistematização de pensamento que dê
base para a investigação é necessário ter alguns aportes teóricos que possam
sustentar essa produção.

A pesquisa em arte vai encontrar respaldo teórico na poiética, que


propõe-se como uma ciência e filosofia da criação, levando em conta
as condutas que instauram a obra (...) não é o conjunto de efeitos de
uma obra percebida, nem a obra feita, nem a obra a fazer (como
projeto): é a obra se fazendo. (REY, 1996, p.83)

A poiética - Rey usa a definição de Passeron – é a base filosófica da pesquisa em


arte, uma vez que se volta a essa instauração da obra, a ela se fazendo. Como
colocado por Sandra Rey, não é apenas uma questão de descrição de processo,

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mas sim de compreender (em muito tateando, na tentativa e acerto) o que ali está se
construindo, de modo amplo. “A obra se fazendo”, essa construção que soa quase
autônoma, ao mesmo tempo em que depende do indivíduo criador, essa relação
complexa entre obra que se forma e criador que forma a obra, aparece também nas
discussões de Luigi Pareyson (1993), e é nesse pensador que se ampara Fábio
Gatti (2018) para propor sua contribuição nessa linha de pesquisa. Em seu artigo, “A
formação da obra de arte como pesquisa: formatividade e metodologia em
processos criativos”, Gatti faz uma reflexão sobre a pesquisa em arte tendo como
foco a Teoria da Formatividade de Pareyson. Sua proposta é de deixar que a ideia
de como a obra se forma – nesse processo formativo que carrega potência própria –
guie o processo metodológico de pesquisa.

Sobre a pesquisa que muitas vezes cai em uma utilização intensa de metodologias
de outras áreas ele afirma que “ao escolher uma ferramenta previamente formatada,
aniquila-se a experiência” (GATTI, 2018, p.3), uma vez que esta

não pode ser antecipada, não tem a ver com o tempo linear do
planejamento, da previsão, da predição, da prescrição, esse tempo em que
nada acontece, e sim com o acontecimento do que não pode se ‘pre-ver’,
nem ‘pre-escrever’ (LARROSA, apud GATTI, 2018, p.3).

Para Gatti, a formatividade e a experiência são os modeladores da pesquisa em


arte. Seria, então, a partir da experiência vivida pelo artista durante esse processo
de instauração da obra o grande propulsor dos interesses da pesquisa, propulsor de
sua potência, muito antes do sentido. Ele afirma que se trata “(...) de compreender a
formação da obra de arte como pesquisa e, por isso mesmo, da pesquisa como algo
singular, como pertencente àquela pessoa, e não como um produto coletivo do ‘nós’,
mas sim uma realização do ‘eu’ (GATTI, 2018, p.7). Essa ação, de experienciar e ter
nessa experiência a matéria para a reflexão, não é algo fácil, que se ensina com
modelos fixos. O que percebo é que a pesquisa em arte – não exclusivamente –
necessita de um grande mergulho por parte do artista-pesquisador, para que ele
possa se emaranhar no tecido da obra e suas redes.

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Eric Le Coguiec apresenta em seu artigo “Récit méthodologique pour mener une
autopoïétique”, 2006, uma possibilidade de escrita metodológica que visa auxiliar o
artista-pesquisador a compreender o seu processo criativo. Para o autor o desafio
na pesquisa prática não é construir o método, mas revelá-lo. O início da investigação
é mais um trabalho de arqueólogo do que de construtor (2006, p.113). A experiência
pessoal de Manoela Afonso reforça esse entendimento ao pontuar que aos poucos
percebeu o direcionamento que deveria colocar em suas investigações para melhor
cumprir a proposta de pesquisa em Poéticas Visuais e Processo de Criação:

Enquanto pesquisadora em arte eu deveria me colocar no lugar do artista e


procurar a compreensão do meu objeto de pesquisa a partir do meu fazer
artístico. Com Marco Buti e Fayga Ostrower percebi (...) que a pesquisa
poética já contém no seu âmago toda a complexidade desses conteúdos
(AFONSO, 2008, p.4)

É na obra, no processo de sua criação é que está a complexidade a ser explorada.


Afonso ainda faz questão de reforçar que isso não diminui a necessidade de ler
atentamente outros autores, sejam da mesma área ou de outras, afinal, cada obra,
cada pesquisa apresentará suas relações, suas redes conceituais, mas sem que se
fuja do que foi proposto enquanto pesquisa. Ainda que individual e singular, a
pesquisa em arte não se limita a um autobiografismo, ou a um relato de processos
de produção, algo mecânico. Nesse sentido, mesmo aberta, as leituras parecem
apontar algumas possibilidades e ferramentas para que a investigação poética
possa se manter criteriosa e sistematizada.

Método: a prática da pesquisa

O processo formativo da obra de arte é complexo e não se dá sem essas


complexidades. Na pesquisa em arte o artista-pesquisador tem de enfrentar o caos
de informações e possibilidades para criar o próprio objeto de pesquisa. A poiética é

tudo o que diz respeito a criação, obras as quais a linguagem é ao


mesmo tempo substância e meio. A poïética compreende, por um
lado, o estudo da invenção e da composição, a função do acaso, da
reflexão e da imitação; a influência da cultura e do meio, e por outro
lado o exame e análise de técnicas, procedimentos, instrumentos,

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materiais, meios e suportes de ação (...) o conjunto de estudos que
se dirigem ao ponto de vista da instauração da obra, notadamente da
obra de arte (PASSERON apud REY, 1996, p.84)

Invenção e composição, conceitos operatórios (acaso, imitação, materialidade e


outros), relações culturais, técnicas, todos são aspectos presentes na construção da
obra e, portanto, são parte da pesquisa. Os autores não fecham formas de
selecionar qual o melhor caminho, como se aprofundar mais ou menos, tudo isso se
apresenta como parte sensível da pesquisa, é o artista-pesquisador que, no trabalho
poético, deve perceber as maiores potências para assim guiar a instauração da obra
e os registros de processo. Novamente parece imprescindível o mergulho na
produção. Talvez seja esse um dos grandes desafios, com todas as cobranças e
exigências que as universidades impõem, cria-se um embate de total relevância
para a qualidade do trabalho.

Ainda sobre a metodologia no atelier, Rey diz que

a metodologia de trabalho em atelier leva em conta a obra como


processo. Para o artista, a obra é ao mesmo tempo um processo de
formação e um processo no sentido de processamento, de formação
de significado. A obra interpela seus sentidos enquanto ele está às
voltas com ela. Ela é um elemento ativo na elaboração ou no
deslocamento de significados já estabelecidos. Enquanto artista, a
obra em processo perturba o conhecimento de mundo que me era
familiar antes dela: ela me processa (REY, 1996, p.85)

A autora também busca em Pareyson o aporte teórico para refletir quanto a


importância do atelier nessa área de pesquisa. A obra se dá enquanto se faz, a
importância da bagagem está na resposta que ela gera nesse momento de
formação, e isso pode gerar, como afirmado, deslocamentos de significados já
estabelecidos. Aqui reside tanto a importância da pesquisa, quanto a necessidade
da metodologia aberta, afinal entender e gerar esses deslocamentos é fundamental
para que continuemos a enriquecer a realidade e as visões de mundo, algo mais
difícil de se atingir com métodos de trabalho regulados e pré-estabelecidos. Essa
perturbação do “conhecimento de mundo que me era familiar”, também vai de

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encontro com a visão das teorias pós-modernas de constante revisão da realidade
pela linguagem (assim como a revisão dela mesma enquanto indivíduo e artista).

Se na pesquisa em arte “(...) os métodos usados pelo artista deveriam ser o da


descoberta, o da experiência e o do fazer e pensar” (GATTI, 2018, p.3), o autor
continua:
é necessário antes a experiência e não exatamente o sentido,
justamente porque ao atribuir significado elimina-se a experiência. Ao
generalizar a experiência através do sentido, não há des-velamento,
não ocorre pro-dução; não se encara a poesia dos fenômenos, ao
contrário, adentra-se no império do sentido como lugar exclusivo
para alcançá-la. Isso acontece cotidianamente (GATTI, 2018, p.8).

Gatti acaba apontando para um risco, como se lembrasse de que o artista-


pesquisador não será crítico, historiador, analista de si mesmo. A pesquisa em artes
precisará da sensibilidade com a experiência para que não se torne um fechamento
de possibilidades, assassinando a polissemia da linguagem com uma análise
assertiva sobre o que significa seu trabalho, mas ao contrário, ao apontar para os
conceitos e processos transpassados, ele pode enriquecer a obra e as
possibilidades de fruição.

(...) pensar a comunicação entre esses dois extratos culturais (cultura


do sentido e cultura de presença) de modo equilibrado, onde ora a
presença é mais marcada do que o sentido, e vice-versa, mas, mais
importante, onde a presença pode ser o primeiro acesso ao
conhecimento. Afinal, o conhecimento sensível tem sentido?
Destarte, uma metodologia cujas considerações se deitem sob o
não-hermenêutico pode se revelar muito mais apropriada a pesquisa
sobre o fazer artístico do que aquela apoiada exclusivamente na
elaboração de um sentido (GATTI, 2018, p.9)

Essa cultura da presença é a que se liga à experiência, a que leva o espectador a se


indagar e não dá o sentido como tesouro final. É uma proposta que se opõe ao
nosso cotidiano, que é de sentido veloz, de pragmatismo e velocidade funcional.
Para Gatti, a arte, e em consequência, a pesquisa em arte, se apresenta como
espaço do desvelamento, em que sentidos são encontrados e outros escondidos,
camada a camada, percepção a percepção. Para atingir tal objetivo na academia, o
autor propõe uma metodologia formativa:
SILVEIRA, Guilherme Lima Bruno E. O que propõe o processo de criação? Uma breve revisão sobre
a metodologia de pesquisa em arte, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE
PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia:
Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 2143-2155.
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o processo de construção de uma pesquisa, pensando
metodologicamente, deveria, a meu ver, seguir o mesmo caminho
dessa dialética pareysoniana, pois pesquisar a formação da obra de
arte é o mesmo que fazer arte, que formá-la. Para o autor, o
processo artístico carrega em si mesmo a sua própria direção, pois a
regra é feita no próprio fazer enquanto se faz, um ‘fazer fazendo’, e é
realizado por meio de tentativas, sendo o tentar orientado pelo
presságio da forma desejada (GATTI, 2018, p.11)

O artista-pesquisador, em seu mergulho, deve confiar e buscar a o desvelamento da


pesquisa na prática. Manoela Afonso relata como os desvios são comuns e que
durante a sua pesquisa pôde retomar a atenção para a sua construção poética após
uma conversa com a pesquisadora Cláudia França

Ela chamou a atenção para aspectos poéticos do trabalho que não


estavam sendo discutidos; minha pesquisa estava se transformando
numa análise social, cultural e histórica do meu objeto de pesquisa.
Ela sugeriu que eu falasse mais das questões referentes aos
elementos formais e poéticos, assim como dos processos de
construção do meu próprio trabalho artístico (AFONSO, 2008, p.3)

O pêndulo é difícil de se fazer, a dificuldade entre falar de seu processo, sem cair na
“cultura do sentido”, não escrever apenas explicando o próprio trabalho, e também
buscar as referências externas, históricas, conceituais, sem esquecer a obra, ou
usá-la como ilustração da teoria alheia é um incômodo constante. Parece necessária
uma revisão constante para cruzar por todos esses territórios sem se limitar pelas
fronteiras. É preciso “um processo interativo entre a exploração prática de sua
artform, seu fazer artístico, e compreensão teórica do que está em questão em seu
projeto específico” (FORTIN, GOSSELIN, 2014, p.7). Esses autores percebem a
insegurança de estar em um campo metodológico em que não há um ponto final pré-
determinado a se chegar. Cada caminho é um. Como professores de metodologia,
eles propõem (Fortin e Gosselin) não que resolvamos essas incertezas, mas que as
encaremos. Para eles “os cursos de metodologia tornam-se, muitas vezes, um lugar
de desestabilização” (FORTIN, GOSSELIN, 2014, p.7). É interessante pois ser
“desestabilizado” pode tornar o processo instigante e inquietante, carrega uma
liberdade, mas não é desprovido de responsabilidades. Perguntas como “qual
pergunta move sua pesquisa? ” ou “a que e a quem serve a sua pesquisa?” 1 são
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incômodos que parecem necessários para o caminhar. Sobre a responsabilidade
desses campos de pesquisa, se opondo à possibilidade de que um biografismo ou o
simples relato seja o bastante:

Ramazanoglu e Holanda argumentam que a responsabilidade


política e ética dos pesquisadores pós-modernos é justamente sair
dos enquadramentos de investigação habituais, a fim de criar novas
formas de conhecimento que se tornam visíveis através de novas
formas de escrita (...) Em uma perspectiva de pesquisa pós-
moderna, a linguagem não reflete uma realidade social, ela,
literalmente, cria essa realidade (FORTIN, GOSSELIN, 2014, p.13).

Nesse sentido, ao criar uma realidade, ou ir contra os sentidos que antes eram
familiares – ao próprio artista-pesquisador, mas também a um provável grupo mais
amplo – essa pesquisa tem de se colocar com compromisso ético, buscando
seriedade investigativa. Ainda mais por ser um paradigma, que compreendendo a
construção da realidade pela linguagem, aceita também relatos que jogam com o
ficcional (LE COGUIEC, 2016), que podem interpor o documental e o imaginativo, o
depoimento e a invenção, que aceita, na tese-criação os mais diversos diálogos de
linguagem e realidade, é por esses motivos que “o desafio da etnografia pós-
moderna é, portanto, acolher a ficção e as experiências individuais subjetivas,
mantendo a credibilidade e rigor da pesquisa” (FORTIN, GOSSELIN, 2014, p.14).

A pesquisa em arte, realizada no campo das poéticas visuais e processo de criação,


encara uma metodologia de pesquisa que parece se impor muito mais como
compromisso firmado na busca de trânsitos entre experiência e criação, entre o
trabalho prático-poético e a conceitualização sistematizada, do que em um modelo
pré-determinado e fixo. Se cada obra é única, cada pesquisa é individual, cada
método e ferramentas utilizadas também o serão, pois são colocadas como
resoluções a problemas ou necessidades da própria criação, são dadas e chamadas
no percurso e não a priori. Esse é o grande desafio colocado pela metodologia de
pesquisa em processos criativos, assim como também parece ser a sua grande
potência.

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Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 2143-2155.
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Notas
1 São algumas das várias perguntas desestabilizadoras que foram feitas aos alunos na disciplina de
“Metodologia de pesquisa em Arte e Cultura Visual”, ministrada no Programa de Pós-graduação em Arte e
Cultura Visual” da FAV, UFG, ministrada pelas professoras Dra. Alice Fátima Martins e Dra. Leda Maria de
Barros Guimarães. Serviram de impulso para que nos questionássemos, entendêssemos e dialogássemos
melhor com nossa pesquisa e nosso campo, bem como para as reflexões que geraram o presente artigo.

Referências

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Guilherme Lima Bruno E Silveira
Graduado em Educação Artística, com habilitação em Artes Plásticas (UNESP-Bauru),
mestre em Teoria da Literatura (UNESP-Ibilce) e doutorando em Arte e Cultura Visual (UFG-
Goiânia), na área de Poéticas artísticas e processos de criação, com pesquisa sobre a
criação de histórias em quadrinhos e os precessos de abstração e experimentação.
Quadrinhista, compositor musical e professor de artes, leciona no IFPR-Londrina. Contato:
guilherme.silveira@ifpr.edu.br

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PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia:
Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 2143-2155.
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