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Caros amigos do COF, nesse texto faço apontamentos que surgiram da reflexão sobre um

problema que é para mim o único problema de real importância para todos nós que vamos
trilhar durante anos um percurso que ainda nos é, e em certa medida sempre será, nebuloso.
Creio que essa reflexão sempre foi comum para mim, pois mesmo antes de conhecer o Olavo
de Carvalho, o problema já me incomodava a alma. Isso surgiu na época da faculdade. E vou
explicá-lo brevemente para que a reflexão seja integralmente inteligível.

Qual é realmente o problema?

Todos sabemos que passamos muitos anos na escola. O propósito de passar tanto tempo
numa instituição tal de ensino não nos é muito claro no momento mesmo em que estamos lá.
Tudo a que se resume a justificativa de tal empreitada não passa de símbolos auto-
justificadores1, que nossos pais, nossos professores e nossos amigos repetem insistentemente.
Pela própria natureza da coisa, percebemos a posteriori que ninguém ali sabe muito bem para
que fazemos aquilo. Eis que, terminado o período de inserção na escola, me vi diante do
vestibular. Então, diante desse problemão, além de ter de escolher uma profissão a seguir,
deparei-me com um outro problema: encarando a maçaroca de informações que deveria saber
para fazer uma prova de vestibular, pensei: deveria ter aprendido tudo isso antes, não estudei
a sério.

Aconteceu o mesmo na universidade. Entrei na faculdade e passei por ali como quem passeia
por um bosque florido, sem dar muita atenção a nada. Mas quando nos deparamos com uma
situação problemática, por exemplo, com um emprego, pensamos novamente: deveria ter
aprendido melhor antes, não levei a sério. E foi a partir desse problema real recorrente que eu
me perguntei por que é que nós estávamos sempre um passo atrasados em relação à
realidade. Como naquela época o ferramental intelectual de que dispunha me era escasso, não
tinha satisfatoriamente obtido nenhuma resposta. Mas por temperamento nunca esqueci a
questão. É com esse texto, que a reflexão sobre o problema, depois de uns dez anos, toma
alguma forma.

Percebo problema semelhante com outros alunos do COF e percebo que elaborando-o da
maneira como posso, talvez ajude tantos outros amigos do curso a tomar consciência dele.
Não proponho aqui nenhuma solução, apenas coloco o problema como o percebo existindo na
realidade, o que por si só bastaria para um vislumbre de solução. Finda essa breve explanação,
entremos realmente no problema.

As pessoas não possuem o problema.

Se passamos o período escolar inteiro estudando, como que às cegas, para enfim
enfrentarmos o vestibular, num problema real, e sentimos então que todo o montante de
experiências e informações que obtivemos ao longo dos anos nos parece descoordenado, é
porque durante todo o tempo não tínhamos uma unidade de sentido para aquilo. Essa unidade
surge repentinamente no ano do vestibular. Não adianta o professor, os pais, o diretor, ou seja
lá quem for, dizer aos alunos que o propósito da escola é te preparar para o vestibular. O aluno
só toma consciência do problema na hora mesma em que o problema se torna presente. Assim
como acontece em relação ao vestibular, acontece também em relação ao trabalho e à
formação universitária.

1
Conferir a primeira aula do Curso de Teoria do Estado.
Colocando de maneira mais universal: estamos sempre um passo atrás da situação concreta da
realidade. E isso acontece da falta de consciência do problema durante o percurso e por isso é
que na maior parte do tempo andamos às cegas.2

O problema só se torna um problema real quando dele tomamos plena consciência. Mas isso
só ocorre quando já estamos dentro do problema – e se tivermos a sorte de percebê-lo. É por
uma generalização que posso arriscar a dizer: que tomamos consciência de um problema
através dos sentimentos de medo, apreensão, angústia, terror etc. Diante de uma situação que
nos desafia e nos transcende, tomamos consciência de que algo está errado e que temos de
resolver um problema. No caso do vestibular é relativamente fácil. No caso do emprego a coisa
se torna um tanto mais complicada, mas nada se compara realmente ao problema do filósofo.
Se o vestibular é uma prova; o emprego, um teste prático; o problema do filósofo é existencial.

Muitos ficaram apreensivos, ou preocupados, quando na primeira aula do Curso Online de


Filosofia ouviram o primeiro exercício proposto pelo Olavo:

"Cada um de vocês vai supor que morreu, e que você é um amigo seu, uma pessoa
que o conheceu e que irá escrever o seu necrológio. Um necrológio é uma breve
narrativa de toda a sua vida. Você vai supor que durante a sua vida você realizou o
melhor de si, e que todas as suas aspirações mais altas foram realizadas de alguma
maneira. Não digo suas aspirações mais altas em termos sociais, mas em termos
humanos: você vai supor que você chegou a ser quem você sonha ser. Esse seu
amigo vai então contar brevemente a sua vida como se estivesse escrevendo uma
carta a um terceiro amigo: 'ontem morreu fulano de tal, e durante a vida ele fez
isso, e aquilo, e etc.' Ou seja, você vai contar sua vida ideal. Isso tem de ser feito
com extrema sinceridade e seriedade: você vai mostrar para você mesmo quem
você quer ser. É claro que essa imagem muda ao longo do tempo; o seu projeto de
vida vai sofrer muitas alterações, aprofundamentos, correções e, sobretudo,
amputações. Mas isso não interessa. O que interessa é que ele vai ser a imagem
que vai te orientar durante toda a sua vida."3

Esse exercício nos foi proposto com um intuito que agora eu acho que entendo. Ele nos foi
proposto para que conseguíssemos um problemão. Ele é feito justamente para que assim
como o vestibular, ou o emprego, tomemos consciência de um problema real e existente, mas
com antevisão e antecipação. Acontece nesse caso que o problema do necrológio só existe em
você, para você e com você mesmo – é a maturação de individualidade.

Você passa a ser o seu próprio problema, sua origem, seu meio, seu fim. O exercício é feito
para que tomemos posse do problema, tomemos controle dele. Muitos tentaram achar
alguma solução através do necrológio. Escreveram-no como uma tábua de salvação, quando
na verdade ele é por excelência o combustível inflamável que te acompanhará a vida inteira. É
uma tensão permanente que nos deixa perplexos e apreensivos, pois o problema do
necrológio só se resolverá em um momento, em nossa morte.

Não por acaso, Platão vai nos dizer que a alma do filósofo tem de estar morta, filosofar é
morrer a cada dia. Creio que Platão indicou com isso que a cada dia temos de estar cônscios de

2
Isso não impede que pequenos bolsões de sentido apareçam para nós ao longo do percurso.
Condensações problemáticas podem aparecer para qualquer um idiossincraticamente, mas não estou
lidando aqui com particularidades. Esses bolsões podem fazer as vezes do sentido geral da vida, mas
logo percebe-se que acabam no meio do caminho deixando a pessoa desaparada.
3
Aula 001 do Curso Online de Filosofia, transcrição.
nosso "necrológio" como força atuante na consciência. E aí, o bicho pega. Malgrado as
incompreensões, creio que nosso primeiro ano no COF serve exatamente para que possamos
conscientemente tomarmos posse desse problema e para que possamos expressá-lo em
palavras. Pois aqui existe um outro problema fundamental.

A intensificação retroativa

Se estamos inseridos na existência como uma parte da própria existência, ao definirmos nosso
necrológio criamos para nós mesmos um problema existencial, que vai retroagir na realidade
da existência intensificando o problema. O novo nível de consciência vai cair novamente em
perspectiva no necrológio... assim criando um conjunto cada vez mais amplo de tensões,
problemas, níveis de consciência e formas de expressões. É exatamente esse processo de
feedback que é descrito por Eric Voegelin ao explicar o que é o spoudaios de Aristóteles:

"O spoudaios é o homem que atualizou maximamente as potencialidades da


natureza humana, quem formou o seu caráter em uma habitual atualização das
virtudes éticas e dianoéticas, o homem que em no máximo de seu desenvolvimento
é capaz do bios theoretikos. (...) O teórico talvez nem precise ser um paradigma de
virtude ele próprio, mas ele precisa, pelo menos, de ser capaz de imaginativamente
re-encenar as experiências das quais a teoria é uma explicação..."4

Como todos sabemos, e as centenas de aulas dadas por nosso querido professor podem
esclarecer esse ponto, todo processo de tomada de consciência passa pelo fluxo da
imaginação. Basta, para isso, o vídeo Imaginação e a Unidade do Real. Esse fluxo constante do
pensamento através da imaginação, seja em forma de lembrança ou memória, seja em forma
de fantasia criada, é o fluxo pelo qual todas as experiências se atualizam no ser consciente do
processo. Creio ser próprio ao filósofo tomar posse desse processo, pois é só através de nosso
corpo que podemos perceber a realidade.5 E a importância do fluxo imaginativo pode ser, em
parte, compreendido com a explicação de Voegelin do fluxo de consciência:

"O fenômeno do 'fluxo' é extremamente importante, mas não como uma chave
para a compreensão da consciência do tempo; ao contrário, é importante como
experiência em que o corpo pode ser sentido como um funil através do qual o
mundo é forçado de tal modo que ele possa entrar na ordem da consciência."6

Se o "corpo pode ser sentido como um funil através do qual o mundo é forçado de tal modo
que ele possa entrar na ordem da consciência", essa entrada na ordem da consciência só
acontece quando estamos conscientes desse fluxo, que só pode ser sentido se tivermos antes
o problema tensional estabelecido. Ao focar a consciência num problema qualquer nosso funil
se reduz inexoravelmente àquele problema.7 Não é muito difícil ver que na hora do vestibular
todo o peso da existência torna-se relativo, pois a prova ganha uma desmesurada importância
no quadro de referências geral. A mesma coisa com o emprego. Indo assim, como galinhas de
grão em grão, nossa consciência nunca poderá abranger o todo juntando os pedaços.

4
Collected Works vol. 5, Eric Voegelin
5
Digo aqui isso de modo amplo e bem solto. Haveria de justificar melhor isso, mas não agora. Tomaria
um rumo divergente da idéia principal.
6
Anamnesis, Eric Voegelin
7
Isso para não falar das limitações impostas pela forma do caráter, como descrita no curso de
astrocaracterologia.
Só quando nossa consciência se torna o funil catalisador do todo em nós é que tomamos posse
do problema existencial da unidade do Ser.

Sem que foquemos nossa consciência no universal, ela só se preocupará com parcialidades,
podem ser as mais nobres, mas nunca serão uma unidade na consciência, nem tampouco
unidade de consciência. Assim se tornou mais claro para mim como é que a filosofia pode ser a
"unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice versa".

É esse posicionamento ontológico da presença na realidade que ao meu ver é o objetivo


primário do COF. Mas, entretanto, nada poderíamos obter desse posicionamento se não
pudéssemos expressá-lo a nós mesmos. O que não possui nome não pode ser expresso. Daí o
domínio da linguagem culta; a absorção da alta cultura não é uma coisa linda por si só, ela só
serve a nós para que possamos expressar as mais altas tensões da consciência; e as mais altas
tensões da consciência advêm de problemas existenciais unitários, ou seja, aqueles que põem
em risco a consciência da unidade do Ser em nós.

No site pessoal do Olavo, na apostila A verdade do problema e o problema da verdade8 há um


esclarecimento sobre esse posicionamento na realidade. A verdade é uma questão de
posicionamento (afunilamento) em um domínio onde não podemos confundir veridicidade
com a verdade:

Assim, o fundamento da veridicidade de um juízo não está somente na veridicidade


dos juízos que lhe servem de premissas, mas também — no caso dos juízos
concernentes a objetos de experiência — na verdade dos dados de onde extraí essas
premissas e na verdade do que deles sei por experiência.

Essa adequação da consciência à unidade através de um problema fundamental e fundante é,


no filósofo, o único processo pelo qual qualquer teorização sobre qualquer coisa pode ser
frutífera, garantindo que a origem de nossas premissas é uma experiência real e verdadeira na
realidade. É exatamente em relação à esse posicionamento, de ter a verdade como fonte
inexaurível de onde extraímos a tecitura de nossa consciência e a forma de expressá-la, que
Luigi Pareyson explica muito bem:

"O pensamento que parte desta solidariedade originária entre pessoa e verdade é,
ao mesmo tempo, ontológico e pessoal, e, por isso, revelativo e também
expressivo, isto é, exprime a pessoa no ato de revelar a verdade e revela a verdade
na medida em que exprime a pessoa, sem que nenhum dos dois aspectos prevaleça
sobre o outro. Podemos sobrepor-nos nós mesmos à verdade, mas então a
verdade, mais do que revelada, é obscurecida, o tempo se transforma num
obstáculo opaco e impenetrável, e tornamo-nos incompreensíveis a nós mesmos.
Podemos acreditar descobrir a verdade prescindindo de nós próprios e da nossa
situação, mas então a verdade se dissipa, porque não soubemos adotar o único
órgão de que dispúnhamos para colhê-la, ou seja, a nossa própria pessoa.

(...)

8
https://olavodecarvalho.org/o-problema-da-verdade-e-a-verdade-do-problema/
"A verdade (...) é única e intemporal, no interior das múltiplas e históricas
formulações que dela se dão; mas uma tal unicidade, que não se deixa
comprometer pela multiplicação das perspectivas, só pode ser uma infinidade que
estimula e alimenta a todas, sem deixar-se exaurir por nenhuma delas e sem
privilegiar nenhuma. Isso significa que, no pensamento revelativo, a verdade reside
mais como fonte e origem do que como objeto de descoberta."9

Tudo isso que expus: o spoudaios, o "fluxo" da consciência, o problema da verdade, o


posicionamento consciente na realidade, nada teria sentido se não fossem expressões
revelativas de filósofos que cada um a seu tempo esteve imerso num problema existencial, um
problema unificador da consciência e uma consciência unificada e unificadora dos problemas.
Para termos noção de como o problema pode ser determinante na vida do pensador, recorro a
Susanne Langer:

"Cada era na história da filosofia tem as suas próprias preocupações. Seus


problemas lhe são peculiares, não por razões óbvias de natureza prática - política
ou social - mas por razões mais profundas de desenvolvimento intelectual. Se nosso
olhar remontar por sôbre a lenta formação e acumulação de doutrinas que marcam
a história, poderemos distinguir em seu transcurso certos grupamentos de idéias,
não segundo o assunto, mas segundo um fator comum mais sutil que cabe
denominar sua 'técnica'. É mais o modo de tratar os problemas, do que aquilo
sôbre o qual versam, que os refere a determinada época. Seus assuntos podem ser
fortuitos, e dependem de conquistas, descobertas, pragas ou governos; seu
tratamento deriva de uma fonte mais constante.

"A 'técnica', ou tratamento, de um problema começa com sua primeira expressão


como pergunta. O modo pelo qual uma pergunta é proposta limita e assenta os
meios pelos quais qualquer resposta a ela - certa ou errada - possa ser dada."10

Se o "modo pelo qual a pergunta é proposta limita e assenta os meios pelos quais qualquer
resposta a ela possa ser dada", é somente no modo de propor uma questão radical, o
problema da unidade do ser (no necrológio), é que a amplitude, o assentamento e a verdade
da posição ontológica do filósofo se mostram. Creio que se existe um problema do necrológio
é justamente o da incompreensão de que o necrológio antes de ser uma solução é um
problema, o problema maior e necessário, pelo qual todo o resto pode ser absorvido como
formação do caráter do filósofo, ou da personalidade intelectual.

É só estabelecendo esse problema, que o nosso funil pode abarcar a unidade do Ser, que só
pode aparece em nós enquanto spoudaious. É por isso que a verdade expressa a pessoa na
medida em que a pessoa expressa a verdade. Rebaixar-se à picuinhas, probleminhas,
discussõezinhas do dia a dia é colocar-se no patamar da desintegração do Ser, logicamente se
fechando para a unidade maior que possa existir em nós. Através desse caminho que pude
compreender a consideração do Olavo sobre o voto de castidade em matéria de opinião – um
escudo contra a involuntária queda na desintegração.

9
Verdade e Interpretação, Luigi Pareyson
10
Filosofia em Nova Chave, Susanne Langer
Enquanto estivermos imersos na problemática medíocre e dispersante, ou seja, enquanto
diariamente passar pela nossa mente questões relativas à assuntos baixos e mundanos, nunca
poderemos nos alçar ao problema da unidade do Ser, da unidade da personalidade, do
posicionamento na realidade do verdadeiro filósofo. Se quisermos ser o spoudaios é
justamente pela devida meditação e reflexão no nosso necrológio, diariamente, como força
motriz inesgotável. A abertura que essa meditação nos traz, nos animando e motivando a
capacidade de re-encenar todas as possíveis experiências das quais teremos de retirar nosso
material para uma filosofia séria e profunda, uma filosofia pessoal e unitária, é a grande
responsabilidade de si para consigo mesmo perante a morte, diária e presente.

Creio que minha meditação poderá trazer algum benefício aos amigos do COF. Não arrogo
nesse texto nenhum tom de verdade inquestionável, mas me parece ser assim que a coisa é
exposta e proposta; é assim que eu sinto com todo o meu ser e é assim que eu ajo diariamente
em relação ao COF. Isso é de um peso atroz, embora prazeroso, mas atroz. E só quem puder
carregar sua própria cruz sabendo-se carregador de uma é que poderá ao fim do caminho ter a
certeza que fez o que tinha que fazer e morrer, quando for a hora, sabendo-se são e
preparado.

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