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A Resposta Fundacionalista
4. O papel do cogito
Descartes mostra que o argumento do Génio Maligno não é tão inabalável quanto à primeira
vista possa parecer. Pelo contrário, em vez de conduzir à conclusão de que nada se sabe, a
Hipótese do Génio Maligno conduz à conclusão de que existe algo que podemos,
garantidamente saber.
O problema está na segunda premissa do argumento, pois, ainda que eu não possa saber se
estou, ou não, a ser enganado por um Génio Maligno, existe algo que posso saber com toda a
certeza: que existo. Mesmo que o Génio Maligno exista e se esforce tanto quanto pode para
me enganar, nunca me poderá convencer de que não existo, pois, para que me possa
convencer seja do que for, eu tenho necessariamente de existir.
Esta constatação conduziu a uma das mais célebres passagens da história da filosofia:
“Mas, logo a seguir, notei que, enquanto assim queria pensar que tudo era falso, era de todo
necessário que eu, que o pensava, fosse alguma coisa. E notando que esta verdade: penso,
logo existo, era tão firme e tão certa que todas as extravagantes suposições dos céticos não
eram capazes de a abalar, julguei que podia aceitar, sem escrúpulos, para primeiro princípio
da filosofia que procurava”.
René Descartes (1637), Discurso do Método, Edições 70, 2013, pp. 50-51
Deste modo, Descartes encontrou uma crença que resiste ao mais radical processo de dúvida
que se possa imaginar: Penso, logo existo. Esta crença é geralmente abreviada pela expressão
cogito, pois muitos dos leitores da obra de Descartes contactaram com a sua formulação em
latim: Cogito, ergo sum. A sua verdade não pode consistentemente ser posta em causa, pois
para se poder duvidar do que quer que seja é preciso existir. Quem quer que se questione
acerca da veracidade do cogito tem automaticamente justificação para acreditar nele, é
autoevidente em si mesma, é uma crença básica que se justifica a si mesma, que não precisa
de ser justificada com base noutras crenças e, por conseguinte, pode estabelecer-se como
primeira evidência, fornecendo os alicerces seguros que Descartes procurava para edificar o
conhecimento. Deste modo, podemos considerar que o cogito representa o tão desejado
triunfo sobre o ceticismo. Por mais extremas que as nossas dúvidas possam ser, existirá
sempre pelo menos uma coisa que podemos saber com toda a certeza: que existimos.
Mas, será esta crença suficiente para fundar todo o nosso conhecimento do mundo? Será que
saber que existimos é suficiente para saber que temos um corpo e restaurar a nossa
confiança nas nossas experiências sensíveis?
Não, na verdade o cogito não é, por si só, capaz de estabelecer a verdade de nenhuma dessas
coisas, pois enquanto não afastarmos definitivamente o fantasma do Génio Maligno não
temos a certeza de que não estamos a ser enganados por ele, acreditando erradamente que
temos um corpo, mãos, olhos, nariz, etc.
Só há uma coisa de que podemos estar certos, ainda que o Génio Maligno nos engane: temos
de existir de algum modo para que este nos possa enganar. Mas isso não implica que
tenhamos necessariamente um corpo. A única coisa que sabemos, com toda a certeza, é que
existimos enquanto coisa que pensa, ou res cogitans (coisa/substância pensante, em latim),
mas nada sabemos acerca do mundo físico, do mundo da matéria, do mundo das coisas
extensas (que ocupam um espaço), ou seja, nada sabemos acerca da res extensa
(Coisa/substância extensa, em latim).
Isto significa que o cogito estabelece apenas a existência de uma substância pensante, mas
não oferece qualquer garantia da existência da realidade sensível. Como tal, o cogito não é
suficiente para nos assegurar que temos um corpo, nem que as nossas experiências
percetivas são fiáveis.
Ao tomar consciência de que pode imaginar que não tem um corpo, sem que isso implique que
não existe, mas não pode duvidar da sua existência enquanto pensamento, Descartes conclui
que é essencialmente uma substância pensante, isto é, uma mente ou alma imaterial que
existe independentemente do corpo e que é de natureza inteiramente distinta do mesmo.
“Depois, examinando atentamente o que era e vendo que podia supor que não tinha corpo
algum e que não havia nenhum mundo, nem qualquer lugar onde eu existisse; mas que não
podia fingir, para isso, que eu não existia; e que, pelo contrário, justamente porque pensava,
ao duvidar da verdade das outras coisas, seguia-se muito evidentemente e muito certamente
que eu existia (…), compreendi que era uma substância, cuja essência ou natureza é
unicamente pensar e que, para existir, não precisa de nenhum lugar nem depende de coisa
alguma material. De maneira que esse eu, isto é, a alma pela qual sou o que sou, é
inteiramente distinta do corpo, e até mais fácil de conhecer do que este, e ainda que este não
existisse, ela não deixaria de ser tudo o que é.”
René Descartes (1637), Discurso do Método, Edições 70, 2013, pp. 51-52
Uma vez que estabelece a distinção entre duas esferas da realidade de natureza inteiramente
diferente – o corpo e a mente -, esta posição ficou conhecida por Dualismo Cartesiano ou
Dualismo mente/corpo.
Depois de estabelecer esta distinção, este dualismo, Descartes apercebe-se que a sua essência,
ou natureza, se identifica com a mente e não com o corpo. A segunda parte do argumento
serve precisamente para justificar essa identificação.
(Parte II)
(5) Uma determinada propriedade faz parte da essência de x se, e só se, não é possível
conceber x sem essa propriedade.
(6) Logo, ter uma mente/alma (e não um corpo) faz parte da minha essência. (de, 1,2 e 5)
Mas se a única coisa que Descartes conseguiu demonstrar, até ao momento, foi a sua
existência enquanto coisa pensante, poderá ele alguma vez estar certo de que sabe alguma
coisa para além disso? Descartes acreditava que sim.
Vê porquê.
- Um critério de verdade
Descartes considerava que, uma vez que o que torna o cogito uma crença tão evidente não é
mais do que o seu elevado grau de clareza e distinção, estas características deveriam ser
adotadas como critério de verdade, ou seja, como procedimento que nos permite distinguir o
que é absolutamente verdadeiro do que é meramente duvidoso ou falso. Assim, o cogito não
só fornece um fundamento seguro para o conhecimento mas também um modelo daquilo que
devemos perseguir na procura de um saber seguro e indubitável.
O argumento subjacente a este critério de verdade é algo que podemos expressar nos
seguintes moldes:
(1) Se não puder estar certo daquilo que concebo clara e distintamente, então não posso
estar certo do cogito.
(2) Posso estar certo do cogito.
(3) Logo, posso estar certo daquilo que concebo clara e distintamente.
Deste modo, para saber se uma determinada proposição é verdadeira, bastará que Descartes a
conceba clara e distintamente.
Mas será que, para além do cogito, existe alguma proposição com estas características?