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Grandezas e Medidas nas séries iniciais do Ensino Fundamental - Versão preliminar 1

Paulo Figueiredo Lima


Paula Moreira Baltar Bellemain
Maurício Figueiredo Lima

Introdução: questões gerais do ensino-aprendizagem da matemática

O presente texto é fruto de vários estudos e reflexões do grupo Pró-grandeza: ensino-aprendizagem das
grandezas e medidas1. Nosso foco aqui é discutir algumas questões que, nas pesquisas que desenvolvemos e
nas experiências de formação inicial e continuada de professores das quais participamos têm-se revelado
problemáticas. Pretendemos com esse trabalho subsidiar o planejamento de situações de aprendizagem mais
desafiadoras e mais consistentes para os conteúdos desse campo.

Nas orientações curriculares nacionais vigentes atualmente (Brasil, 1997; Brasil, 1998), as grandezas e
medidas são consideradas um dos blocos de conteúdos matemáticos a serem trabalhados na educação infantil
(no sub-nível da pré-escola) e no ensino fundamental.

Nos objetivos de aprendizagem e conteúdos conceituais e procedimentais indicados nessas orientações


curriculares, são introduzidas progressivamente várias grandezas, em particular, as físicas e as geométricas.

As grandezas comprimento, massa, capacidade, tempo e valor monetário devem ser trabalhadas desde a
educação infantil. A partir do primeiro ciclo, além dessas, é acrescentada a temperatura. No segundo ciclo, o
estudo das grandezas supracitadas é aprofundado e são introduzidos a grandeza área e o conceito de
perímetro, que é um tipo particular de comprimento.

Antes de abordar as questões específicas da didática das grandezas e medidas, vamos explicitar alguns
pressupostos mais gerais acerca do ensino e aprendizagem da matemática, que têm norteado nosso trabalho e
que justificam nossas escolhas.

Sempre que possível, deve-se tomar a experiência da criança como ponto de partida, problematizando a
necessidade ou interesse das questões teóricas e empíricas que são introduzidas. Portanto, achamos
importante explorar múltiplas vivências das crianças (ligadas à natureza e às práticas sociais) nas quais
intervêm grandezas e medidas. Tomemos alguns exemplos para ilustrar nosso argumento. O corpo da criança
das séries iniciais é uma referência básica. A tomada de consciência pela criança do seu corpo e da relação
com o espaço vivencial em torno dela é um aspecto importante a ser trabalhado na escola. A consciência do

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Agradecemos a todos os colegas do grupo Pró-grandeza pelas contribuições na discussão desse tema.
De certa forma, o grupo, como coletivo, é o autor das idéias que sistematizamos aqui com o intuito de
socializá-las e com isso, buscar influenciar as práticas de ensino dos conteúdos do campo das
grandezas e medidas.
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esquema corporal envolve vários aspectos a serem considerados. Usando partes do corpo, a criança dispõe
de elementos utilizáveis na medição; o corpo fornece facilmente várias unidades não padronizadas de medida
de comprimento. Outra idéia interessante a ser explorada nas séries iniciais são os múltiplos sentidos que a
expressão ‘espaço ocupado’ pode assumir nas experiências cotidianas; por exemplo, em alguns casos ela se
refere à área de superfícies, noutras ao volume de objetos. Alguns argumentos reforçam essa opção: outros
instrumentos de medida não são sempre disponíveis; pode-se partir do corpo e progressivamente integrar
outros elementos do entorno da criança para paulatinamente chegar às unidades e instrumentos
convencionais; esse trabalho é útil para internalizar a ordem de grandeza das unidades, o que por sua vez, é
importante para desenvolver a habilidade de estimativa.

Nosso ponto de vista é que vivenciar experiências cotidianas significativas contribui para a construção
conceitual pela criança, mas que a função da escola não se esgota nesse aspecto. Também cabe à escola
favorecer o acesso democrático ao conhecimento sistematizado. Para cumprir essa função e procurar
otimizar o uso do pouco tempo de que dispõe, parece-nos importante pontuar que deve haver um forte
caráter intencional no trabalho escolar. Isso nos conduz a procurar explorar de forma cuidadosa a articulação
entre teoria e prática, o que se aplica tanto à discussão sobre as práticas de ensino do professor quanto às
experiências propiciadas pela escola para os seus alunos.

Com respeito a essa questão, percebe-se por vezes, dois comportamentos extremos, com os quais não
concordamos. De um lado, a posição que consiste em desvalorizar o componente empírico, privando o
sujeito do suporte vivencial que favorece a atribuição de significados pela criança aos conteúdos abordados.
No outro extremo, há uma tendência a supervalorizar a experiência e a prática, o que conduz, por vezes, a
não reconhecer o papel das sistematizações em diferentes níveis de abstração (das mais locais até o
encaminhamento de um tratamento científico), na construção de conhecimentos pela criança.

Consideramos que, pelo fato de o professor das séries iniciais ser polivalente, é importante procurar explorar
situações ricas em significado, nas quais a matemática aparece articulada com outros campos do
conhecimento. Quando isso não é possível, achamos que não se deve “forçar a barra”, ou seja, em alguns
momentos é mais pertinente trabalhar no contexto intramatemático do que estabelecer uma conexão sem
sentido com outros campos ou com experiências da vida cotidiana. Consideramos que articulações muito
artificiais não contribuem nem para a construção de significados dos conceitos em jogo nem para o
argumento em defesa da interdisciplinaridade.

Mais um aspecto nos parece importante destacar: a necessidade de o professor estar atentos à produção de
seus alunos buscando compreender a lógica que a rege. Isso se aplica tanto para os procedimentos corretos
como para os erros. Algumas vezes, na sala de aula, os alunos produzem respostas corretas, por um caminho
diferente daquele esperado e “ensinado” pelo professor. Isso mostra que o aluno está refletindo e buscando
genuinamente solucionar o problema posto e não apenas atendendo à expectativa do professor e repetindo
modelos pré-estabelecidos. Nem sempre aceitamos ou valorizamos esse tipo de comportamento e
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terminamos cedendo à “lei do menor esforço”, segundo a qual o aluno observa o que o professor espera dele,
repete as formas canônicas e se envolve muito pouco na atividade de busca de solução, tirando pouco
proveito da situação no sentido da construção de significado dos conteúdos abordados. Quanto aos erros dos
nossos alunos, parece-nos que eles são muito menos motivados por falta de atenção do que parecem.
Freqüentemente há um sentido nos seus erros, embora esse sentido não corresponda àquele que é dado aos
conceitos no saber matemático formal. Compreender como o aluno está pensando é uma importante chave
para fazer intervenções pertinentes contribuindo para que o aluno tome consciência de seus erros e possa
superá-los2.
Um outro aspecto a comentar são os livros didáticos, que são importantes aliados do professor e que devem
ser utilizado em todo seu potencial. Apesar disso, por mais completos e bem construídos que sejam, haverá
sempre pontos que precisam ser complementados. Cabe ao professor ir além do livro e aprofundar aqueles
aspectos que necessitam um estudo mais detalhado ou cuidadoso. Para auxiliá-lo nessa tarefa, apresentamos
um repertório de aspectos a serem trabalhados sobre as grandezas e medidas nas séries iniciais do ensino
fundamental. Sugerimos que o professor reflita sobre sua experiência, identifique nas atividades que já
experimentou com seus alunos e na coleção de livros didáticos adotada em sua escola os aspectos
contemplados e aqueles que merecem um tratamento mais minucioso que o dado pelo livro ou já vivenciado
na sua prática de ensino.

Levando em conta as considerações feitas, parece-nos central que qualquer material de apoio ao trabalho
docente seja tomado como elemento motivador de uma reflexão crítica e autocrítica sobre as práticas
vivenciadas pelos professores em sala de aula. As reflexões trazidas neste texto poderiam ser tomadas como
motor de reflexão e de motivação para estudos e experiências de professores das etapas iniciais do Ensino
Fundamental.

Questões preliminares sobre o ensino-aprendizagem das grandezas e medidas

Durante um longo período, o trabalho com grandezas e medidas nos livros didáticos focalizava, quase
exclusivamente, as conversões de unidades e as fórmulas de perímetro, área e volume. Além disso,
freqüentemente os capítulos destinados ao estudo desse campo situavam-se no final do livro. Embora haja
avanços em muitas coleções de livros didáticos, alguns desses problemas persistem, como destaca a
avaliação de livros didáticos de 1ª a 4ª série do Programa Nacional do Livro didático de 2004 (Brasil, 2003):

“No trabalho com grandezas e medidas, ainda se privilegia a memorização da


nomenclatura das relações entre múltiplos e submúltiplos das unidades padronizadas,
sem se preocupar em desenvolver o conceito de grandeza e da operação complexa de
medir” (p. 33)

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Um rico estudo sobre o papel do erro na aprendizagem da matemática foi realizado por Pinto (2000)
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Um trabalho com grandezas e medidas excessivamente centrado nos aspectos acima, possivelmente, não
permite levar à superação das dificuldades de aprendizagem encontradas pelos alunos das séries iniciais.
Cabe, então, questionar o que é satisfatório na maneira como esse campo é trabalhado na coleção adotada, na
sua escola e na sua experiência, assim como o que necessita complementações; discutir como os conteúdos
do campo das grandezas e medidas são abordados nos livros didáticos. Indagar, por exemplo: (a) os capítulos
que abordam conteúdos desse campo são sistematicamente situados no final do livro?; (b) concentram-se em
um dos volumes ou permeiam toda a coleção?; (c) que conteúdos são previstos em cada momento, ou seja,
quais as grandezas abordadas, em cada livro da coleção?.

Esperamos convencer o leitor da relevância do campo das grandezas e medidas para a formação do aluno da
educação infantil e das séries iniciais do ensino fundamental e alertá-lo para alguns cuidados no
planejamento e vivência de situações de aprendizagem dos conteúdos desse campo.

Para tanto, na seção seguinte, discutimos as razões, de naturezas diversas, que nos parecem centrais para
justificar a inclusão das grandezas e medidas no currículo de matemática da escola básica, e mais
especificamente, do Ensino Fundamental. Segue-se uma proposta de organização conceitual do campo das
grandezas e medidas. Depois, discute-se o problema da medida de grandezas. Na última seção são
apresentadas considerações finais e abrem-se novas indagações a serem aprofundadas em momento
posterior.

No decorrer do texto, são formuladas, com base na discussão teórica apresentada, algumas questões acerca
da abordagem dos conteúdos do campo das grandezas e medidas nos livros didáticos ou em outros elementos
de referência que o professor utiliza no seu planejamento. A busca de respostas a essas questões deve
contribuir para o planejamento de intervenções didáticas mais pertinentes.

Por que devemos abordar o campo das grandezas e medidas na educação infantil e no ensino
fundamental ?

De início, cabe dizer que consideramos as várias razões, a seguir referidas, igualmente relevantes e a ordem
de apresentação de nossos argumentos não corresponde a uma proposta de hierarquia de importância.

A primeira das razões decorre da forte presença das grandezas e medidas nas mais diversas práticas sociais.
A manipulação de grandezas e medidas no nosso cotidiano é tão freqüente que passa desapercebida. Na
culinária, ao ler uma receita e preparar um prato, precisamos utilizar noções de massa e de volume na
determinação das quantidades de produto a serem utilizadas, precisamos medir o tempo de cozimento ou de
preparo. Nas situações de compra e venda, manipulamos o valor monetário e, dependendo do produto a ser
comercializado, precisamos de comprimento (a costureira quando compra fita, elástico ou zíper, por
exemplo), massa (na compra da maioria das frutas, verduras e tubérculos), área (na compra de cerâmica,
carpete ou azulejos para revestimento de uma superfície) e assim por diante. Esses exemplos ilustram a
relevância social das grandezas e medidas. Há muitos contextos de experiência da criança ou de suas
famílias, nos quais as grandezas e medidas têm uma importância incontestável: a culinária, a agricultura, nas
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atividades dos marceneiros, pedreiros, costureiras, feirantes, e tantas outras. Outro campo da vida cotidiana
em que as grandezas medidas fazem-se muito presentes são as atividades lúdicas das pessoas, em especial
das crianças. O professor pode encontrar nas grandezas e medidas um campo fértil de aplicações da
matemática às práticas sociais e isso o ajuda a responder à inquietação legítima de nossos alunos quando
querem saber onde vão usar os conhecimentos matemáticos ensinados na escola. Parece-nos, entretanto, que
essa leitura pragmática, embora fundamental, não deve ser o único fator a ser levado em conta na seleção dos
conteúdos a serem ensinados na escola.

Um segundo argumento a favor da inclusão das grandezas e medidas entre os conteúdos matemáticos a
serem estudados pelos alunos de ensino fundamental é sua posição na construção histórica do conhecimento
matemático. Parece-nos que há pelo, menos, duas questões importantes a serem consideradas na relação
entre história da matemática e educação matemática, no campo das grandezas e medidas. Por um lado, é
importante observar que a prática de medir grandezas está presente nas diferentes civilizações de todos os
tempos. Sistemas de medida diversos foram criados e utilizados pelos povos para resolver seus problemas
ligados à agricultura, à construção civil, ao comércio, aos transportes, etc. Olhar para a história da
matemática permite resgatar os aspectos comuns às práticas de medição de grandezas e às convenções que
regem os sistemas de medidas. Esse tema pode ser explorado sob a ótica transversalidade temática e da
pluralidade cultural e favorecer uma rica articulação com história. Por outro lado, um breve sobrevôo na
história da matemática mostra rapidamente que problemas de medida de grandezas estão na origem das
idéias de número racional, número irracional, problemas clássicos da geometria, como a quadratura do
círculo, por exemplo. Assim, o trabalho com números racionais nas suas formas de representação fracionária
ou decimal está impregnado da presença das grandezas e medidas. Ter consciência dessa forte articulação
ajuda o professor a construir seu ensino de maneira que o conhecimento do aluno seja significativo. Há ainda
várias conexões possíveis com outros campos do conhecimento, como é o caso das ciências da natureza
(saúde, vegetais, animais, etc.), nas quais as grandezas e medidas têm um papel importante. Como possível
articulação entre campos do conhecimento matemático, um exemplo interessante é tomar como base a
experiência dos alunos das séries iniciais trabalhar as noções de altura e “peso” (massa), em articulação com
o campo do tratamento da informação e como o tema da saúde. Assim, o estudo das grandezas e medidas no
ensino fundamental constitui-se em uma boa oportunidade para resgatar o caráter histórico e culturalmente
situado do conhecimento matemático e para fortalecer as conexões entre os vários campos do conhecimento
matemático, assim como entre matemática e as outras disciplinas escolares.

O terceiro aspecto que nos parece central para justificar a presença das grandezas e medidas no currículo da
escola básica é a possibilidade de articular os aspectos exploratório e dedutivo, como elementos da
construção do significado do conhecimento matemático.

Realizar medições práticas de modo adequado é uma habilidade necessária nas práticas sociais (por exemplo,
medir comprimentos utilizando régua ou fita métrica) e, por outro lado, envolve questões teórico-conceituais
importantes que devem ser dominadas pelos alunos. A exploração, em sala de aula de tarefas de medição
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prática contribui para a compreensão de muitos princípios básicos da medida de grandezas e dá base para as
sistematizações características do conhecimento matemático organizado.

Parece-nos que as razões discutidas acima justificam plenamente o interesse de abordar grandezas e medidas
nas aulas de matemática. Apesar disso, observa-se freqüentemente que esse campo é pouco trabalhado ou seu
tratamento é superficial.

Por isso, sugerimos que algumas indagações poderiam ser feitas ao se analisar a questão do ensino-
aprendizagem das grandezas e medidas em várias situações – currículos, planos de ensino, prática de sala de
aula, livro didáticos, etc. Tais indagações seriam:

- O campo das grandezas e medidas é realmente valorizado ou sua exploração parece se constituir em
pretexto para o trabalho com números e operações?

- Há consciência das evidências da presença das grandezas e medidas na vida cotidiana?

- Realiza-se o resgate das experiências pessoais dos alunos e proposta de atividades exploratórias,
intuitivas e informais com comparação e com medição de grandezas?

- Abordam-se conexões com outras disciplinas: história, ciências, etc.?

- Exploram-se articulações com outros conteúdos matemáticos, tais como:


o relação entre a gênese dos números racionais e o problema da medida
o área e multiplicação de números naturais
o contexto para operações com números naturais ou racionais (na forma fracionária ou
decimal)
o relações entre sistemas decimais de medida, sistema monetário e Sistema de Numeração
Decimal
o estudo de figuras: composição e decomposição (tangram), malha quadriculada e triangular,
mosaicos

Organização conceitual do campo das grandezas e medidas

Para uma compreensão maior das questões relativas ao ensino-aprendizagem das grandezas e medidas,
julgamos que é indispensável uma análise teórica preliminar, em que se tome o ponto de vista da
epistemologia e da didática dos conceitos em jogo.
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As hipóteses didáticas básicas que norteiam nosso trabalho são herdadas das pesquisas desenvolvidas por
Douady & Perrin-Glorian (1989). Essas pesquisadoras propõem uma abordagem do conceito de área de
figuras planas como uma grandeza, o que corresponde a distinguir três quadros3i:

Douady e Perrin-Glorian (Op. cit.) afirmam que:

(1) O desenvolvimento, no ensino, do conceito de área enquanto grandeza permite aos alunos
estabelecer as relações necessárias entre os quadros geométrico e numérico.

(2) Uma identificação precoce entre grandezas e números favorece a confusão entre diferentes
grandezas (no caso estudado pelas pesquisadoras citadas, comprimento e área).

Outras pesquisas desenvolvidas sobre esse tema (Baltar, 1996, Lima, 1999; Bellemain & Lima, 2001,
Barbosa, 2002, Barros, 2002, Duarte, 2002, Oliveira, 2002, Brito, 2003, Facco, 2003, Silva, 2004; Santos,
2005) têm nos conduzido a confirmar a pertinência dessa abordagem para a construção do conceito de área e
a estender a organização conceitual acima para as grandezas geométricas comprimento e volume. Tomamos,
portanto como hipóteses de trabalho que:

− No ensino das grandezas geométricas é necessário distinguir e articular os três quadros mencionados.

− A ênfase na identificação do quadro das grandezas com o quadro numérico não favorece a
aprendizagem significativa das grandezas geométricas.

As hipóteses acima permitem destacar a importância das inter-relações entre os aspectos geométricos,
aqueles propriamente das grandezas e os numéricos, no estudo das grandezas geométricas e suas medidas.
Podemos ainda pensar na extensão dessa organização conceitual para discutir o ensino aprendizagem de
outras grandezas, o que conduz a ao seguinte esquema:

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O termo ‘quadro’ tem um significado técnico proposto pelas pesquisadoras citadas acima. Neste texto o
termo é tomado, de forma não-técnica, como um domínio (um universo) de objetos que possuem certas
propriedades que o especificam e os distingue dos objetos dos outros dois quadros apontados. Os
exemplos deste texto podem ajudar na compreensão no significado nele proposto para o termo ‘quadro’.
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Há três componentes básicos a considerar, portanto: os objetos, as grandezas associadas a eles e as medidas
das grandezas, que são números. Assim, por exemplo, a um balde podemos associar várias grandezas:
comprimentos (a altura, o diâmetro da base, etc.), capacidade e massa, por exemplo. Logo, é importante
distinguir o objeto e as grandezas que podem ser associadas a ele. Da mesma forma, se pensamos em uma
grandeza, devemos dissociar as várias medidas que podem ser obtidas usando unidades diferentes. A altura
do balde pode ser medida em palmos, em centímetros, em metros ou qualquer outra unidade de
comprimento. Obtemos resultados diferentes (2 palmos e meio; 50 centímetros, meio metro), uma vez que os
números 2,5; 50 e 0,5 são números diferentes, mas o comprimento considerado é o mesmo, expresso usando
três unidades diferentes. Logo, é pertinente distinguir as grandezas e os números, que são suas medidas.

É freqüente utilizar-se o termo medida para designar unidades. Do nosso ponto de vista, no esquema
conceitual acima, as unidades são grandezas (uma unidade de comprimento é um comprimento, uma unidade
de massa é uma massa, uma unidade de capacidade é uma capacidade e assim por diante). Diversas linhas
podem ter o mesmo comprimento, um comprimento pode ser medido usando várias unidades.

A partir dessas hipóteses didáticas e das reflexões apresentadas até aqui, explicitamos alguns elementos que
nos parecem centrais na abordagem das grandezas e medidas nas séries iniciais do ensino fundamental.

A gênese das grandezas e medidas é relacionada inicialmente com problemas práticos, fortemente
conectados com outros ramos da matemática e com outras áreas de conhecimento. Os conteúdos deste campo
têm uma importância social incontestável na sociedade contemporânea. Tal constatação confere ao campo
das grandezas e medidas um espaço privilegiado para despertar a motivação e o interesse dos alunos, pela
riqueza de contextos que podem ser explorados.

Ao mesmo tempo, há uma complexidade conceitual, que não pode ser menosprezada. Para que as grandezas
e medidas possam cumprir um papel relevante no currículo é preciso que não se coloque “a poeira por baixo
do tapete”, ou seja, não sejam evitados os aspectos conceituais complexos fazendo um tratamento superficial
do campo. Um dos elementos centrais nesse processo é a necessidade de distinção entre um objeto e as
grandezas que lhe podem ser atribuídas e entre uma grandeza e suas medidas.
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Outro elemento importante é o estudo minucioso do processo de medição de grandezas e as unidades de


medida, o qual não pode ser limitado à memorização de unidades padronizadas e à conversão mecanizada
entre elas.
Considerando os aspectos discutidos acima, pode-se questionar se a abordagem das grandezas e medidas na
escola tem contribuído para construir o conceito de grandeza como uma propriedade, explorando:
o idéia de mesma grandeza
o reconhecimento da grandeza como critério para ordenar objetos
o distinção entre objeto e grandeza e entre grandeza e suas medidas
o diferentes grandezas associadas a um objeto
o exploração de atividades não numéricas envolvendo comparação de grandezas (distinção
entre comparação e medida)

Medida de grandezas

Vamos detalhar um exemplo de medição prática de um comprimento. Podemos, de início, pensar em dois
caminhos: a escolha de um instrumento de medida e a escolha de uma unidade de medida.

Se usamos uma régua, a unidade implicitamente escolhida será provavelmente o centímetro: a escolha da
unidade está implícita na escolha do instrumento. A questão que vai se colocar mais fortemente aí é o uso
adequado do instrumento: por exemplo, há muitos alunos que para medir um comprimento usando a régua
posicionam uma extremidade em qualquer lugar da régua e “lêem” a medida de comprimento marcada na
outra extremidade. Se esse procedimento fosse correto, tendo sido escolhida uma unidade haveria múltiplas
medidas possíveis para um mesmo comprimento, o que não corresponde à unicidade da medida, a partir da
escolha da unidade. O uso inadequado do instrumento é relacionado com uma construção conceitual também
inadequada.

Suponha que, para resolver a tarefa de medição prática de um comprimento, não se dispõe de nenhum
instrumento convencional de medida de comprimento. Um caminho que pode ser adotado é o uso de partes
do corpo para estabelecer padrões não convencionais de medida de comprimento. O ensino usual das
grandezas e medidas freqüentemente focaliza as unidades convencionais e quando aborda outras unidades o
faz com o intuito de problematizar a necessidade de padronizar. Essa abordagem encobre dois fatos:
conceitualmente a escolha da unidade de medida é totalmente arbitrária e em muitas situações, o uso de
unidades não convencionais é suficiente.

Uma questão importante aqui é que se medem comprimentos com unidades de comprimento, áreas com
unidades de área, volumes com unidades de volume e massas com unidades de massa, mesmo quando essas
correspondências são implícitas. Esse conhecimento fundamental nem sempre é claro, estável e disponível
para os alunos. É comum, por exemplo, alunos expressarem a medida de área em metros, que são unidades
de comprimento. Vejamos isso, por meio de um exemplo. Quando usamos o palmo como unidade de
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comprimento, na verdade usamos a distância entre o dedo mindinho e o polegar quando a mão está aberta, ou
seja, o comprimento de um segmento que vai de uma ponta a outra e não o espaço ocupado pelo desenho da
mão aberta sobre a folha de papel nem tampouco o volume de água deslocada quando mergulhamos a mão
na água. É claro que o uso do termo “palmo” como unidade de comprimento traz implicitamente essa
correspondência e o gesto de abrir e fechar a mão contando os palmos concretiza, no mundo sensível, a
existência de uma unidade de medida de comprimento. Intervém aqui um princípio conceitual básico da
medida de grandezas: a unidade é de mesma natureza que o atributo a ser medido. Por outro lado, respeitado
esse princípio, a escolha da unidade é conceitualmente arbitrária. Ou seja, qualquer comprimento pode ser
usado como unidade para medir comprimentos.

Embora a escolha da unidade seja conceitualmente arbitrária, na prática ela é norteada por um princípio de
adequação (Caraça, 1959). Se quisermos medir a distância entre João Pessoa e Brasília, seria muito pouco
prático tomar o milímetro como unidade. Da mesma forma, se quisermos medir o comprimento do quadro na
sala de aula, o palmo é mais adequado do que o quilômetro.

Devemos ressaltar, aqui, que qualquer criança pode usar o seu palmo para medir o comprimento do quadro e
expressar o resultado dessa medição (10 e meio palmos de Maria, 11 palmos de Joana, 9 e um pouquinho
palmos de Pedro, e assim por diante). Nesse caso, “palmos de Maria”, “palmos de Joana“ e “palmos de
Pedro” são unidades não convencionais de comprimento. As medidas obtidas na medição de cada criança são
diferentes porque o comprimento de seus palmos é diferente. Em muitas situações, esse tipo de procedimento
e de resultado de medição é suficiente. Há, entretanto, situações em que é preciso comunicar o resultado da
medição, usando padrões comuns: entra então em cena o processo de padronização das unidades, que pode
ser problematizado pela via das atividades de medição prática. Observe-se que a tarefa de medição prática de
comprimentos faz aparecer que os números naturais são insuficientes para dar conta do problema da medida,
abrindo o espaço para explorar a articulação com o campo de números e operações de que falamos
anteriormente, o que fortalece o significado dos conceitos de comprimento e de número racional.

Outra questão a observar é que o resultado da medição caracterizada acima é necessariamente aproximado,
mesmo se a medida obtida for inteira. Ou seja, 10 e meio “palmos de Maria”, 9 e um pouquinho “palmos de
Pedro” não são nem mais, nem menos exatas do que os 11 “palmos de Joana”. Todas elas foram obtidas por
um mesmo procedimento sujeito a falhas, que é o processo de medição prática. Usando esse tipo de
procedimento jamais poderemos obter uma medida de comprimento 2, qualquer que seja a unidade
utilizada. Embora essa questão seja concernente às séries finais do ensino fundamental, por se tratar de um
tema fundamental, vamos discuti-lo brevemente.

Vamos pensar em um quadrado e tomar o comprimento de seu lado como unidade. Traçando uma diagonal
desse quadrado, observe que juntamente com dois lados do quadrado eles formam um triângulo retângulo. A
diagonal é a hipotenusa desse triângulo e os lados do quadrado são catetos. O Teorema de Pitágoras afirma
que “o quadrado da hipotenusa é a soma dos quadrados dos catetos”. Vamos chamar o comprimento da
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hipotenusa de a e os comprimentos dos catetos de b e c. Gera-se assim a expressão: a2 = b2 + c2 Como o


comprimento do lado do quadrado é tomado como unidade de comprimento, temos, que numericamente: a2 =
1 + 1 = 2. Ou seja, a medida de comprimento da diagonal do quadrado, tomando o comprimento de seu lado
como unidade é o número cujo quadrado é 2, ou seja, essa medida é 2.

Se você desenhar um quadrado de lado 1 cm e usar uma régua para medir o comprimento de sua diagonal,
por mais preciso que seja seu desenho, por mais cuidadoso que seja o procedimento de medida que usar ao
manipular a régua, jamais poderá obter como medida 2. O número 2 é um ente abstrato e não existe no
mundo sensível. Ilustra-se aqui a importância de um problema de medida na gênese do número irracional.
Grandes impasses se colocaram na história da Matemática até que a idéia de número tivesse as características
que tem hoje. Para muitos alunos, ainda é difícil hoje admitir que número não é uma idéia restrita a número
natural. Na origem desse impasse está a relação extremamente sutil e delicada entre os aspectos empíricos e
abstratos na Matemática. A nosso ver, esse é um enorme desafio para os professores do ensino fundamental e
o campo das grandezas e medidas fornece inúmeras ocasiões de abordar tal relação em sala de aula.
Os argumentos apresentados acima conduzem a levantar alguns questionamentos sobre a abordagem da
medida de grandezas, no ensino fundamental:

- Evidencia-se que o processo de medição de grandezas não depende do atributo, apresentando alguns
elementos invariantes:
o a escolha da unidade de medida
o comparação da unidade com o atributo a ser medido
o expressão numérica da medida

- Aborda-se o uso adequado de instrumentos de medida?

- Sobre a escolha da unidade de medida, é explicitado que a unidade tem que ser necessariamente de
mesma espécie que o atributo, que sua escolha é conceitualmente arbitrária e que funciona um
importante critério de adequação da escolha em função do “tamanho” do atributo e da precisão que se
pretende alcançar ?

- Exploram-se unidades convencionais e não-convencionais?

- O uso de unidades não-convencionais permite construir a idéia de que conceitualmente a escolha da


unidade é arbitrária ?

- Discute-se a adequação da escolha da unidade (quanto à natureza – mesma espécie do atributo – e quanto
ao “tamanho”)?

- A abordagem de unidades não convencionais permite conduzir à necessidade social de padronização?

- Enfatizam-se exageradamente as relações entre múltiplos e submúltiplos das unidades padronizadas, ou


há um trabalho equilibrado desse aspecto?
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- Evidencia-se que, na medição de uma mesma grandeza, quanto maior a unidade, menor a medida? E
quanto menor a unidade maior é medida?

- Exploram-se procedimentos de estimativa: estimativa visual, ordem de grandeza, construção de


representações mentais

Conclusão

Neste trabalho procuramos fazer uma discussão introdutória da questão, ao nosso ver, bastante complexa
do ensino-aprendizagem das grandezas e medidas nas etapas iniciais. Um vasto e complexo feixe de
outras questões podem ser discutidas, em particular, estendendo o campo de preocupações para outros
níveis do ensino básico. A seguir, exemplificamos algumas dessas questões, como motivação para
outros estudos:

- Quanto à grandeza tempo: exploram-se apenas calendários e relógios ou há outros alvos de estudo (tais
como rotina, agenda, gestão do tempo pela criança)?

- O dinheiro é enfocado como um estudo próprio ou apenas como contexto para a realização de operações
numéricas?

- Há uma formalização precoce dos conteúdos trabalhados ou há atividades exploratórias suficientes para
que o aluno possa atribuir um significado aos conteúdos trabalhados?

- O conceito de perímetro é tratado de forma pertinente, ou seja, como comprimento do contorno de


figuras planas ou se utiliza uma definição restrita como “soma das medidas dos lados” ?

- Há atividades que permitem construir a distinção entre grandezas fortemente associadas


o Distinção entre área e perímetro;
o Distinção entre massa e capacidade;
o Massa e peso

- As idéias de capacidade e litro são associadas a líquido? De que maneira?

- Trabalha-se fração da área da figura ou fração da figura?

- No estudo do enfoque da fração como parte-todo: fala-se de dividir em partes iguais ou em partes de
mesma área?
Referências bibliográficas
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relations entre les longueurs et les aires au collège. Grenoble, 1996. Tese (Doutorado em Didática da
Matemática). Université Joseph Fourier, Grenoble, 1996.
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