Você está na página 1de 1

AUTOPSICOGRAFIA

O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor Ela canta, pobre ceifeira,
A dor que deveras sente. Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
E os que leem o que escreve, De alegre e anónima viuvez,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve, Ondula como um canto de ave
Mas só a que eles não têm. No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
E assim nas calhas de roda Do som que ela tem a cantar.
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda Ouvi-la alegra e entristece,
Que se chama coração. Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
ISTO Mais razões para cantar que a vida.

Dizem que finjo ou minto Ah, canta, canta sem razão!


Tudo que escrevo. Não. O que em mim sente está pensando.
Eu simplesmente sinto Derrama no meu coração
Com a imaginação. A tua incerta voz ondeando!
Não uso o coração.
Ah, poder ser tu, sendo eu!
Tudo o que sonho ou passo, Ter a tua alegre inconsciência,
O que me falha ou finda, E a consciência disso! Ó céu!
É como que um terraço Ó campo! Ó canção! A ciência
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda. Pesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro! Tornai
Por isso escrevo em meio Minha alma a vossa sombra leve!
Do que não está ao pé, Depois, levando-me, passai!
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!

Gato que brincas na rua


Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.

Bom servo das leis fatais


Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.

És feliz porque és assim,


Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.

Você também pode gostar