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Introdução crítica ao

direito internacional
dos refugiados
Imigração, refúgio e
direitos humanos

João Roriz (UFG)


7 de julho de 2021
Escola de Inverno,
Cátedra de Direitos
Humanos da
AUGM
Fotografia de Michael Wesely,
Museu de Arte Moderna, Nova
York, 2001-03
apresentação

1. Contrapontos: migrações forçadas em


meados do século XX
2. A Convenção de 1951
3. A chegada do terceiro mundo
Convenção de 1951 e Protocolo de 1967
• [verde escuro] Países signatários de ambos Estados parte:
• [verde claro] Países signatários da Convenção de 1951, apenas • Convenção de 1951: 146
• [amarelo] Países signatários do Protocolo de 1967, apenas • Protocolo de 1967: 147
• [cinza] Não signatários
Índia/Paquistão, 1947-48

• Independências da
Índia e Paquistão
• Migração de
mulçumanos para
Paquistão e de
hindus para Índia
• Estimativas de 14
milhões de
deslocados (Vernant,
1953)

Getty Images, 1948


Palestina/Israel, 1948

• Guerra Israel-
Palestina, 1947-48
• Guerra de
independência
(Israel) ou Nakba
(Palestina)
• Estimativas de 700
mil palestinos
deslocados (quase
metade da
população) para
Gaza, Cisjordânia,
Fotografia de Fred Csasznik, Egito, Jordânia e
1948
outros
Coreias, 1950-53

• Coreia do Norte
versus Coreia do Sul
• Envolvimento dos
EUA e URSS/ China
• Estimativas de 7
milhões de
deslocados do norte
para o sul (Vernant,
1953)

Getty Images, 1950


• ...todavia, esses contextos não estavam em
pauta durante a redação da Convenção de
1951

• Por que estes deslocamentos forçados


foram ignorados pela Convenção de 1951?
Como isso foi possível?
2. A Convenção de
1951

Patrick Chappatte
migração e refúgio na ONU

• Migração forçada é tema da resolução 8 da AGNU, em 12 de fevereiro de 1946


• Apesar de considerar a questão “internacional”, a referência é aos alemães
deslocados
• Tema na ONU remete à experiência europeia anterior à Segunda Guerra
• Pós-Primeira Guerra e Liga das Nações
• Convenções de 1933, 1936 e 1938: direcionadas a migrantes específicos, poucas
ratificações, definição de refugiado e non-refoulement
• Agências e escritórios com mandatos humanitários curtos e específicos

• Estabelecimento da Organização Internacional dos Refugiados (1946-50) e Alto


Comissariado para Refugiados (1950-)
• Limitação ao contexto europeu

• Demandas por um tratado sobre o assunto


Fotografia da
assinatura da
Convenção de 1951.
Fonte:
https://www.unhcr.
org/1951-refugee-
convention.html
os trabalhos preparatórios na ONU

• Trâmite onusiano
• Discussões no Ecosoc, comitê ad hoc e terceiro comitê da AGNU (1948-50)
• Principal questão: definição de refúgio restrita à Europa ou definição ampliada
• Documento final retira menção expressa à Europa, mas deixa “eventos antes de
1951”
• Delegação da Índia: “[A ONU] deve tentar ajudar não apenas partes especiais da
população mundial, mas todas as pessoas afetadas em todos os lugares. O
sofrimento não conhece fronteiras raciais ou políticas; é o mesmo para todos. [...] Todo o
problema dos refugiados nunca poderá ser resolvido [...] até se tornar evidente que os
sentimentos humanitários expressos pelos representantes são um reflexo preciso das
intenções de seus governos, e que as Nações Unidas têm a mesma preocupação em
relação a todos os povos, independentemente de raças” (UN Doc. A/C.3/SR.332, 1
December, 1950, para. 26‒29)
os trabalhos preparatórios em Genebra

• Apenas 26 Estados participaram das negociações em Genebra (a ONU tinha 60 membros à


época, e 6 dos que participaram não eram membros da organização)
• 13 ainda tinham ou tiveram colônias
• 10 tinham sido colônias no passado

• Delegação da França: “[Embora tenha simpatia] para com os refugiados árabes na Palestina [e
daria apoio] qualquer convenção direcionada a eles diretamente, (...) os problemas no caso
deles eram completamente diferentes daqueles dos refugiados na Europa, e não vejo como os
Estados Contratantes poderiam se vincular a um texto em cujos termos suas obrigações seriam
estendidas para incluir um novo e grande grupo de refugiados. (...) [Seria] irreal [cobrir todos os
refugiados em um texto], uma vez que as condições variavam em diferentes países. (...) [Se]
uma região do mundo estava pronta para o tratamento do problema dos refugiados em escala
internacional, [esta] região era a Europa” (UN Doc. A/CONF.2/SR.19.)
• Definição de refúgio
“Art. 1. Para os fins da presente Convenção, o termo "refugiado" se aplicará a qualquer pessoa:
1) Que foi considerada refugiada nos termos dos Ajustes de 12 de maio de 1926 e de 30 de junho de 1928,
ou das Convenções de 28 de outubro de 1933 e de 10 de fevereiro de 1938 e do Protocolo de 14 de setembro
de 1939, ou ainda da Constituição da Organização Internacional dos Refugiados; (...)
2) Que, em consequência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 e temendo ser
perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se
encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se
da proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua
residência habitual em consequência de tais acontecimentos, não pode ou, devido ao referido temor, não
quer voltar a ele (...)
B. 1) Para os fins da presente Convenção, as palavras "acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de
1951", do art. 1º, seção A, poderão ser compreendidas no sentido de ou
a) "acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 na Europa"; ou b) "acontecimentos ocorridos
antes de 1º de janeiro de 1951 na Europa ou alhures";
e cada Estado Contratante fará, no momento da assinatura, da ratificação ou da adesão, uma declaração
precisando o alcance que pretende dar essa expressão do ponto de vista das obrigações assumidas por ele
e virtude da presente Convenção” (Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados, 1951)
um instituto europeu

• Como esse resultado foi possível?


• Hipóteses: problemas de credenciamento (Paquistão) e falta de vontade de
participar (por enviesamentos prévios)
• Colônias não foram convidadas (exceção de Laos e Camboja),
• Boicote da URSS
• Divisão dos latino-americanos
• Colômbia e Venezuela apoiam a definição restrita
• Brasil se mostra neutro
• Não há dissenso que o contexto do estabelecimento do refúgio era eurocêntrico – a
questão é saber como lidar com o que dele resta
o sistema de proteção

• Definição centrada em: perseguições políticas (e não migração econômica) e em


processos individuais (e não grandes fluxos)
• Âmago da proteção está no art. 33, na proibição de rechaço ou non-refoulement (e
não há um direito ao refúgio mais desenvolvido)
• Foco na consequência (e não na causa) da migração
• Foco nos procedimentos de determinação (e não nas estratégias políticas de Estados)
• Discurso humanitário e neutro (e não parcial)
• Estudos compartimentalizados sobre refúgio (ao invés de vínculos com outras
questões, como desenvolvimento, pobreza, política)
• Questão localizada e temporária (e não universal)
Quais dessas características persistem para além do contexto da Convenção de 1951?
3. A chegada do
terceiro mundo

Patrick
Chappatte
a chegada do terceiro mundo

• Décadas de 50 a 70: descolonização da África e Ásia


• Cerca de 15 milhões de refugiados e deslocados

• Pressão política por um novo documento


• Protocolo Adicional de 1967: retira limitação temporal e geográfica da Convenção
de 1951
• Art. 1(2) “O termo refugiado aplica-se também a qualquer pessoa que, devido a uma
agressão, ocupação externa, dominação estrangeira ou a acontecimentos que
perturbem gravemente a ordem pública numa parte ou na totalidade do seu país de
origem ou do país de que tem nacionalidade, seja obrigada a deixar o lugar da
residência habitual para procurar refúgio noutro lugar fora do seu país de origem ou de
nacionalidade” (Convenção Africana para os Refugiados, 1969)
• Declaração de Cartagena (1984) e incorporação em legislações domésticas (Brasil,
Lei 9.474 de 1997)
“Terceira - Reiterar que, face à experiência adquirida pela afluência em
massa de refugiados na América Central, se toma necessário encarar a
extensão do conceito de refugiado tendo em conta, no que é pertinente,
e de acordo com as características da situação existente na região, o
previsto na Convenção da OUA (artigo 1., parágrafo 2) e a doutrina
utilizada nos relatórios da Comissão Interamericana dos Direitos
Humanos. Deste modo, a definição ou o conceito de refugiado
recomendável para sua utilização na região é o que, além de conter os
elementos da Convenção de 1951 e do Protocolo de 1967, considere
também como refugiados as pessoas que tenham fugido dos seus
países porque a sua vida, segurança ou liberdade tenham sido
ameaçadas pela violência generalizada, a agressão estrangeira, os
conflitos internos, a violação maciça dos direitos humanos ou outras
circunstâncias que tenham perturbado gravemente a ordem pública”
(Declaração de Cartagena, 1984)
o “mito da diferença”

• Frente aos fluxos migratórios a partir dos anos 1980, estudiosos tradicionais apontam
para “novidade” (Chimni, 1998)
• “Mito da diferença”: ‘a natureza e as características dos fluxos de refugiados do
terceiro mundo são diferentes dos fluxos de refugiados na Europa ao final das
guerras mundiais’
• Argumentos: números maiores, novos migrantes não satisfazem critério individual,
revolução no transporte e comunicação, migrantes econômicos, fruto de problemas
internos
• “Refugiado normal”: homem, branco, anticomunista versus “novo solicitante”, sem
boas razões, abusa da hospitalidade e advindo de fluxo alto
• Consequências: institucionalização de práticas de non-entrée, discussões sobre causas
domésticas e responsabilidade dos Estados de origem, “Estados falido”, foco na
repatriação voluntária, esforços de “prevenção” e intervenção humanitária
Fonte: Foto de David Bacon
algumas ideias de como “descolonizar”
o refúgio

• Revisitar o contexto colonial e como este


influenciou seus instrumentos, normas e práticas
• Reconhecer como e por quê certas vidas, histórias,
e ideias foram mortas, preteridas, esquecidas ou
invisibilizadas
• Repensar quais traços de dominação e exclusão
perduram não apenas nas instituições e normas,
mas na própria construção do conhecimento
• Reconhecer formas de resistência do passado e
propor ação no presente
Abdias do Nascimento, Okê Oxóssi,1970
Muito obrigado!

Contato: João Roriz, joaororiz@ufg.br

Cátedra Sérgio Vieira de Mello na UFG,


https://csvm.ufg.br/

Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos,


https://posdireitoshumanos.prpg.ufg.br/
referências

• Aguiar, Carolina Moulin. 2019. “Entre a crise e a crítica: migrações e refúgio em


perspectiva global”. Monções: Revista de Relações Internacionais da UFGD 8 (16): 21–41.
• Chimni, Bhupinder S. 1998. “The geopolitics of refugee studies: A view from the South”.
Journal of Refugee Studies 11 (4): 350–74.
• Davies, Sara Ellen. 2007. Legitimising Rejection: International Refugee Law in Southeast
Asia. Leiden: Brill Nijhoff.
• Mayblin, Lucy. 2017. Asylum after empire: Colonial legacies in the politics of asylum seeking.
London: Rowman & Littlefield.
• Reis, Rossana Rocha, e Julia Bertino Moreira. 2010. “Regime internacional para
refugiados: mudanças e desafios”. Revista de Sociologia e Política 18 (37): 17–30.
• Vernant, Jacques. 1953. The Refugee in the Post-War World. New Haven: Yale University
Press.

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