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2009
RESUMO
Este artigo trata da instabilidade política na América Latina, especialmente dos países componentes da
Região Andina, do Cone Sul e do Brasil. Investigamos as causas do surgimento de novas lideranças políticas
nesses países e a relação dessas lideranças com situações de estabilidade ou de instabilidade políticas. O
artigo sustenta que o surgimento de novas lideranças na América Latina, que tem emergido numa dinâmica
de estabilidade e instabilidade política, não pode ser compreendido unicamente por hipóteses que ressaltem
os traços populistas ou de falhas da modernização política, dado que a casuística mais profunda de tal
emergência deveria ser procurada em novas clivagens que apontam para uma renovação de elites, mas
também para o surgimento de clivagens de identidade étnica e social assim como de um novo padrão de
relacionamento entre movimentos sociais e novas lideranças. Concluímos que a ascensão de novas lideranças
políticas nos países analisados está geralmente ligada a uma crise de legitimidade do sistema político.
Assumimos também que o “neopopulismo” pode ser uma variável explicativa da emergência de novos
atores nos contextos de instabilidade política, não podendo tal variável, entretanto, ser descontextualizada.
PALAVRAS-CHAVE: elite política; neopopulismo; Região Andina; instabilidade política; legitimidade
política; economicismo.
Recebido em 1 de outubro de 2007. Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 17, n. 32, p. 71-82, fev. 2009
Aprovado em 4 de janeiro de 2008.
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No entanto, a continuidade das novas lideranças Porém, um dado novo é que pode estar
não pode ser reduzida a fórmulas binárias como a surgindo uma relação entre a forma como os
de Castañeda sobre a “esquerda certa” e a setores indígenas percebem a representação
“esquerda errada” ou “ruim”. Essas fórmulas política e as lideranças que elas concebem como
binárias não têm capacidade alguma de seus representantes. O caso da Bolívia é exemplar
generalização e de explicação quando olhamos com para demonstrar o argumento. Desde 1978 os
mais cuidado o que tem acontecido com a história partidos indígenas (chamados de kataristas e
mais recente dos países sul-americanos. Essas indianistas) vinham a participar das disputas
categorias não podem explicar o que significa, para eleitorais, mas sem sucesso. Desde a conquista
um venezuelano de classe média ou baixa, o do direito de voto, na Revolução Nacionalista dos
imenso desprestígio dos partidos tradicionais na anos 50, o eleitor indígena boliviano tendia a votar
Venezuela ou na Bolívia. Também, essas fórmulas freqüentemente no Movimento Nacional
binárias não poderiam explicar o sucesso, Revolucionário (MNR). “Isso foi possível porque
manifesto na continuidade de um homem de direita o apoio eleitoral era aprovado na assembléia da
que também poderia ser chamado de neopopulistas, comunidade indígena. Assim, no interior das
como Álvaro Uribe na Colômbia. comunidades o voto unânime era superior a 80%”
(ARANDA, 2002, p. 85). Porém, nas eleições de
II.2. Política e identidades sociais e étnicas
2002, os setores camponeses e indígenas,
Uma segunda clivagem importante é pensar que representados pelos líderes indígenas de esquerda,
a relação entre instabilidade e estabilidade política como Evo Morales e seu partido Movimiento al
é afetada pela emergência de identidades sociais e Socialismo (MAS), assim como pelo aimará de
étnicas entre algumas das novas lideranças e alguns esquerda Felipe Quispe, do Movimiento Indígena
setores sociais. Um elemento novo é que a Pachakuti, atingem uma representação de 31% no
identidade social e étnica chegou a ser congruente Congresso. E, nas eleições presidenciais de 2004,
com a identidade política. Do ponto de vista da o MAS consegue eleger como Presidente da
identidade social, parece estar emergindo, entre Bolívia o indígena aimará Evo Morales. No caso
os setores socialmente excluídos, a percepção da Venezuela esse componente étnico também não
muito forte de que a “hora dos de baixo tem está ausente. Mesmo no caso do Peru, a
chegado”. Casos como os de Chávez na Venezuela, emergência de uma figura como Ollanta Umala
Lula no Brasil ou de Evo Morales na Bolívia revela uma tendência de identificação entre o
apontam para o fato de que setores sociais, político e o étnico.
geralmente os mais pobres, enxergam as novas
Não seria exagerado afirmar que essa
lideranças por meio do prisma da identidade social,
identificação entre o étnico e o político passa
até minimizando a ausência de políticas públicas
também pelo fato de que as demandas de legalidade
de maior alcance e aceitando aquelas de natureza
de setores étnicos e sociais poderiam estar sendo
assistencialista; a continuidade de administração
mais bem traduzidas e mediadas pelas novas
patrimonial da máquina pública estatal; e as práticas
lideranças. Essa hipótese sustenta-se pelo fato de
de corrupção e comportamentos autoritários em
que, como detectado por pesquisa do Programa
algumas das novas lideranças.
de Desenvolvimento das Nações Unidas para o
No caso da Região Andina (Bolívia, Colômbia, Desenvolvimento, PNUD, sobre a “Democracia
Equador e Peru) manifesta-se também um forte na América Latina”, os indígenas da Região Andina
componente étnico nas relações políticas que se têm uma percepção bastante negativa sobre a
estabelecem entre lideranças e setores sociais igualdade legal. Esse é um percentual superior ao
excluídos. Não é de se estranhar essa relação se do México, um dos países latino-americanos de
levamos em conta que a Região Andina apresenta mais alta composição étnica indígena, em que
em sua composição étnica e demográfica um apenas 7,5% dos indígenas têm boa percepção a
significativo número de indígenas, especialmente respeito da legalidade de seus direitos (PNUD,
na Bolívia e no Equador, em que a percentagem 2004a, p. 108).
desses na população é de 55% e 25%,
Os setores indígenas vêm emergindo nos
respectivamente. No Peru, pode ser considerada
sistemas políticos e nas sociedades andinas,
mestiça 45% da população (VILLA, 2005).
apresentando dois tipos de reivindicações básicas
que acabam tencionando a governabilidade, dado
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que as elites tradicionais não criaram as condições, a clivagem sócio-política quando relacionamos a
nem as instituições de bem-estar e de distribuição dos votos dos dois candidatos que
representação, necessárias para atender ambas as disputaram o segundo turno com o IDH municipal.
demandas: primeiro, “o reconhecimento “Nos 104 municípios do país com menor Índice
constitucional [...] como sujeitos [de direito] no de Desenvolvimento Humano (IDH), o candidato
interior da nação” (ITURRALDE, 2001, p. 55); e à reeleição para a Presidência, Luiz Inácio Lula da
segundo, a exigência de mudanças do marco Silva (Partido dos Trabalhadores (PT)), recebeu
político e legal, de modo a instituírem sua o voto de praticamente três em cada quatro
representação política nos âmbitos local e nacional. eleitores no primeiro turno. Lula teve 71,3%, contra
Essa segunda demanda implica que as reformas 24,35% de Geraldo Alckmin (Partido da Social-
dos Estados andinos com forte presença indígena Democracia Brasileira (PSDB)). O total de eleitores
passam necessariamente pela inclusão das suas nesses municípios é de 785 mil, sendo que 377
demandas por representação política. mil votaram em Lula e 129 mil em Alckmin. O
tucano, por sua vez, obteve mais votos nos 104
II.3. A equação polarização social e política
municípios com maior IDH: 48,26% contra 36,9%
Em decorrência da clivagem social, emerge de Lula. O número de eleitores nesse universo é
também outra, de caráter político e social, em torno bem maior: 26,9 milhões, dos quais 10,2 milhões
de novas lideranças. Essa clivagem decorre da votaram em Alckmin, e 7,8 milhões, em Lula”
polarização político-social oriunda da identificação (ALCKMIN VENCEU NAS ÁREAS, 2006).
do eleitor com o líder político a partir de
No caso do referendo presidencial venezuelano
semelhanças entre suas origens sociais. Chávez,
de agosto de 2004, alguns analistas, como Sierra,
Lula e Morales são exemplos.
verificam que “Los resultados electorales
As várias eleições venezuelanas realizadas desde evidencian como la identidad de clase operó como
1998, as eleições presidenciais brasileiras de 2006 un elemento conformador de la llamada
e as eleições presidenciais peruanas de 2006 tendem “polarización” política que se expresó simbólica y
a reforçar a idéia de que os segmentos sociais mais territorialmente en la ciudad de Caracas en la
pobres desses países tendem a votar em lideranças votación de aquellos” (SIERRA, 2005, p. 31).
de origem mais popular. E os setores de maior renda
A partir de dados oficiais, a autora mostra que
em candidatos de origem social similar.
o referendo tendeu a balizar claramente uma
No caso do Brasil, a distribuição de votos nas clivagem de classe, que se evidenciaria nos dados
eleições presidenciais de 2006 tende a confirmar oficiais do quadro seguinte:
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majoritariamente no “sim” (em uma proporção que econômica e o desborde de violência política no
foi de 79% a 82%). O município de Sucre, que final do governo de Andrés Pastrana, na Colômbia,
socialmente é um misto de setores populares e levaram ao poder Álvaro Uribe, considerado um
bairros de classe média, tendeu a confirmar a político populista de direita. Uribe colocou-se com
clivagem de classe no referendo, já que foi o o objetivo de reunificar um país politicamente
município em que a votação foi a mais equilibrada: fragmentado e tomado pela violência de diferentes
53% pelo “sim” e 47% pelo “não” (ibidem). grupos políticos e não-políticos (guerrilhas,
paramilitares e narcotraficantes). Uribe soube
Porém, se certamente a identidade social pode
capitalizar os resultados de sua política de
explicar a renovação de elites que decorre do
“segurança democrática” recebendo por isso um
surgimento e/ou consolidação de novas lideranças,
amplíssimo apoio da população colombiana, que
não é uma inferência causal suficientemente
enxergava o seu governo como o grande
convincente para explicar o voto de confiança
responsável pela recuperação da legitimidade de
dado às novas lideranças, que se expressam em
um Estado que até o ano de 2002 encontrava-se à
sucessivas vitórias eleitorais para o legislativo e o
beira do colapso. No trade-off de segurança por
executivo, como nos casos mais recentes do Brasil
paz, a atitude da população colombiana, cansada
(reeleição do Lula), Venezuela (eleições
de tantos anos de conflito, mostra sua disposição
parlamentares e para governador) e Colômbia
em ignorar os imensos custos políticos da solução
(reeleição de Uribe). Nesses casos, a clivagem da
de Uribe, que surgem como conseqüência dos
polarização social tem sido acompanhada por
excessos da aplicação de políticas repressivas de
iniciativas de políticas públicas que apresentam
segurança interna que tendem a violar os direitos
uma conjunção de elementos de curto prazo, na
humanos de parte da população civil estabelecida
medida em que a maior parte delas tem se destinado
nas zonas de conflitos entre exército e guerrilha
a cobrir necessidades imediatas dos setores mais
(OSTOS, 2005; VILLA 2005).
vulneráveis da população, com elementos de mais
longo prazo. Embora reconheça-se que falta uma
investigação mais a fundo sobre esse tema,
A Venezuela de Chávez é talvez o caso
podemos tecer uma inferência inicial: as lideranças
exemplar. Embora as “misiones”, como são
que têm surgido no campo de esquerda na América
chamadas o conjunto de políticas públicas
do Sul (seja qual for o qualificativo: modernas,
desenvolvidas desde 2003, tenham um forte
populistas, nacionalistas etc.) seguem um padrão
caráter emergencial, algumas dessas políticas
de atuação que tende a focalizar as políticas
públicas, como as de saúde e educação (que
públicas de combate à desigualdade social como
conseguiram erradicar o analfabetismo no país)
base sua legitimação política. Os casos de Lula,
têm apresentado elementos de mais longo prazo.
Kirchner, Chávez e Morales apontam nessa direção.
Da mesma forma, programas como bolsa escola,
As lideranças mais próximas do campo da direita,
bolsa família e programas de geração de emprego
considerando os casos de Fujimori e Uribe, têm
e renda no Brasil têm conseguido promover uma
enfatizado o combate à violência política.
redistribuição de renda, de tal forma que só no
ano de 2004 a renda entre os mais pobres subiu II.4. O impacto das máquinas políticas
mais de 14% (FGV: REDISTRIBUIÇÃO FEZ tradicionais na percepção da democracia
RENDA, 2006).
Uma quarta clivagem importante, da maior
Certamente, as relações entre estabilidade relevância, tem a ver, para parafrasear a Norberto
política (ou continuidade) e novas lideranças Bobbio (1986), com o fato de que as promessas
também têm origem na forma como algumas delas não cumpridas da democracia promoveram um
têm encarado o problema da violência política. Nos desgaste imenso sobre as antigas máquinas
anos 1990, um populista autoritário como Alberto partidárias que não conseguiram gerar respostas
Fujimori conseguiu alavancar uma enorme eficazes tanto às pressões que advinham dos
popularidade no Peru com base no intenso déficits sociais gerados por décadas como às
combate ao grupo terrorista Sendero Luminoso. demandas geradas pela democratização;
Nos anos 2000, na esteira do sucesso de Fujimori, democratização esta que levou à incorporação de
Álvaro Uribe, na Colômbia, levou adiante sua novos grupos sociais como os indígenas e/ou os
particular cruzada contra os grupos guerrilheiros movimentos organizados em torno de questões
e narcotraficantes. A falta de recuperação de saúde, moradia, terra e constitucionalização de
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novos direitos ao consumo e a um meio ambiente medida que a desaprovação dos partidos do status
de qualidade. O resultado tem sido que os partidos foi canalizada originalmente por forças ‘políticas
políticos tradicionais foram enxergados pelas inovadoras’, a estratégia destas últimas
populações sul-americanas como responsáveis pelo incorporava o sentimento de frustração do
crescente aumento da pobreza e da diminuição do eleitorado que começava a sofrer o desengano da
bem-estar. promessa democrática” (JIMÉNEZ, 2001, p. 68).
Não por acaso, o Relatório sobre a Democracia
Os partidos políticos foram sem dúvida a
na América Latina, do PNUD, aponta os partidos
instituição mais importante das elites políticas que
políticos como um dos atores que menos confiança
governaram os países da região sul-americana nos
suscita nas populações sul-americanas. Confira-
últimos 50 anos. Desde o fim da década de 1990
se o quadro a seguir.
assiste-se a um movimento quase generalizado de
enfraquecimento das organizações políticas
tradicionais e a aposta em novas lideranças: “À
Dada essa situação, por meio de um rápido como o populista Sociedad Patriótica 21 de Enero,
balanço podemos constatar que partidos políticos que levaria Lucio Gutierrez ao poder, ou de um
tradicionais na América do Sul têm sofrido um partido representante dos setores indígenas como
forte desgaste em quase todos os países sul-ame- o Pachakuti – Nuevo País (MUPP-NP). Na Bolí-
ricanos, com as exceções do Brasil e o Chile, sen- via, partidos como o Movimento Nacional Revo-
do que o maior desgaste faz-se sentir na Região lucionário (MNR), fundado nos anos 1950 por
Andina. Na Venezuela, a ascensão de Hugo Chávez Paz Estenssoro, perdeu muita força eleitoral na
ao poder significou o enfraquecimento a níveis virada do século, surgindo novas forças como o
mínimos do espaço político dos dois partidos tra- Movimiento al Socialismo (MAS) de Evo Morales.
dicionais, Acción Democrática e Copei, que num
No Peru, o APRA (Alianza Popular Revolucio-
determinado momento chegaram a somar mais de
naria Americana), fundado nos anos 1920 do sé-
90% dos votos dos eleitores venezuelanos. Na
culo passado por Victor Raul Halla de la Torre,
Colômbia, os dois partidos tradicionais, o Partido
que quase desapareceu nos anos 1990, teve uma
Conservador e o Partido Liberal, consumiram-se
nova oportunidade com a volta de Allan Garcia ao
em crises desde o fim da década de 90, que levou
poder. No Uruguai, uma coalizão de esquerda, a
inclusive o Partido Liberal a dividir-se, dando ori-
Frente Ampla, liderada por Tabaré Vasquez, tem
gem à força política que elegeria Uribe em 2002.
minado aos poucos as bases dos partidos tradici-
No Equador, o descontentamento social com par-
onais, o Colorado e o Branco, que governaram o
tidos como a Democracia Cristã, a Esquerda De-
país por mais de um século. E na Argentina, uma
mocrática e o Partido Social Cristão levou ao
das forças políticas de maior histórico na Améri-
surgimento, em fins da década de 90, de partidos
ca do Sul, o Partido Radical, é hoje em dia uma
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sombra política desde o rotundo fracasso do go- ambivalentes quanto ao apoio à democracia: “Em
verno de Fernando de la Rua em 2001. 2002 os democratas pertenciam à tendência mais
difundida entre os latino-americanos, não chegan-
Mas o caso sul-americano continua a mostrar
do, porém, a formar uma maioria [...]. Somaram
que partidos democráticos são indispensáveis para
43% dos consultados nos dezoito paises da Amé-
a democracia e o funcionamento de suas institui-
rica Latina. Entretanto, o apoio majoritário à de-
ções. A ausência de partidos sólidos e de crenças
mocracia depende dos ambivalentes, que são a
e práticas democráticas no sentido forte tende a
segunda tendência mais difundida (30,5%). Final-
gerar vácuos políticos que, por sua vez, geram
mente, os não democratas pertenciam à tendên-
atores candidatos a cobrir tais vácuos
cia menos difundida: 26,5% por cento dos con-
despreparados para gerar práticas democráticas
sultados” (idem, p. 142). Como questiona
agregadoras de interesses sociais e políticos. As-
Coutinho: “Teoricamente, o populismo prospera
sim, pode-se gerar verdadeiras deformações dos
onde o institucionalismo periférico não consegue
objetivos e das instituições democráticas, e certa-
alcançar, o que não significa dizer que um seja
mente em alguns casos esse processo resulta em
menos democrático que o outro. Na realidade, os
instabilidade política. A situação de turbulência
eleitores podem enxergar em líderes mais
política vivida pela Venezuela entre 2002 e 2004 e
carismáticos uma saída para o desenvolvimento
pelo Equador entre 1997 e 2005 são claros exem-
quando as regras e organizações democráticas tra-
plos de países em que o antigo sistema partidário,
dicionais não realizam bem o seu papel social.
uma vez desestruturado ou minado, não foi subs-
Sendo assim, a desconfiança da população não é
tituído por outro sistema de partidos com objeti-
com a democracia propriamente dita, mas com o
vos democráticos claros. Assim, em ambos os
que ela tem gerado em termos práticos, tendo em
países os candidatos a substituir ao antigo siste-
vista um discurso alienado por parte do
ma de partidos variaram de um leque que inclui
institucionalismo” (COUTINHO, 2006, p. 121).
frentes políticas heterogêneas como a V Republica
de Hugo Chávez na Venezuela, a Sociedad Patrió- Ao certo não se pode inferir que exista uma
tica 21 de Enero de Lucio Gutierrez. O que é mais correlação positiva entre algumas crises
significativo, no caso venezuelano, é que setores institucionais recentes e percepções e atitudes em
da mídia, dos empresários e de algumas organiza- relação à democracia, mas dados do mesmo rela-
ções não-governamentais (ONGs) transformaram- tório do PNUD apontam que a América do Sul é a
se em atores políticos não só usurpando um papel região em que a distância entre democratas e
de representação (e de oposição) que não lhes ambivalentes é mais curta do que entre democra-
correspondia e para o qual não estavam prepara- tas e não-democratas. “Na América Central e no
dos, mas transformando-se também em fatores México, os democratas são quase a metade da
de instabilidade política. Quando isso acontece, população, representam mais do que o dobro dos
as instituições democráticas são instrumentalizadas não-democratas e têm ampla vantagem sobre os
por bandos geralmente polarizados, não sendo a ambivalentes. Nos países do Mercosul e do Chile
democracia um objetivo visto como prioritário. há uma situação polarizada: as tendências mais
difundidas são as opostas: os democratas e os não-
Um resultado concreto do que Bobbio chama
democratas; além disso a diferença de magnitude
de as “promessas não cumpridas da democracia”,
entre ambos é estreita. Finalmente, na Região
que se relaciona com o baixo rendimento
Andina existe um equilíbrio entre as três tendên-
institucional de partidos e outras instituições como
cias: a diferença entre os democratas e os
o parlamento, é que se tem alimentado certo sen-
ambivalentes é pequena, e nenhuma consegue uma
timento ambivalente quanto ao apoio à democra-
vantagem ampla sobre os não-democratas”
cia e seus efeitos, e sua capacidade para promo-
(PNUD, 2004a, p. 142).
ver meios de representação eficazes que promo-
vam políticas sociais de inclusão. É aceitável o Deve somar-se a isso o fato de que alguns
argumento de que as populações latino-america- desdobramentos políticos vêm mostrando também
nas não reagem contra a democracia, mas contra uma incongruência entre escolhas de políticas
a forma como suas instituições têm funcionado econômicas e eficiência institucional democráti-
(COUTINHO, 2006): o Relatório sobre a Demo- ca. Isto é, indicadores macroeconômicos têm bom
cracia na América Latina, do PNUD (2004a), ten- rendimento enquanto que indicadores políticos
de a detectar esse crescimento de sentimentos demonstram um baixo rendimento. Isso leva à
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questão de que possivelmente tem havido uma 2003 também tem como origem a forma negativa
incongruência entre eficiência neoliberal e desen- em que indicadores macroeconômicos como a
volvimento institucional. Um exemplo disso foi a estabilidade monetária e inflacionária viram-se afe-
chegada ao poder, no Peru, de Alejandro Toledo, tados desde fins da década passada.
um liberal convicto. Em 2002, o déficit fiscal foi
É possível levantar a hipótese de que, em par-
de 2,2% em relação ao PIB, e a inflação 1,5%.
te, tal discrepância ocorre pelo fato de que, para
Em 2003, o crescimento do PIB peruano foi de
parte das populações sul-americanas, já não é mais
4%, o maior da região, e a inflação 2,5% (CAN,
vantagem suportar os ônus do bem-estar social
2004a; 2004b). Também, os indicadores da Co-
que decorre das escolhas macroeconômicas libe-
munidade Andina de Nações (CAN) mostram que
rais, que em determinado momento foram bem
o desemprego foi o menor da região em 2003. No
justificadas pelas elites políticas como escolhas
entanto, o índice de aprovação do Presidente
feitas devido à exigência de estabilidade de metas
Toledo caiu de 59%, em agosto de 2001, para
macroeconômicas do momento, principalmente
14% em outubro de 2002 (ICG, 2003, p. 23). De
controle da inflação, estabilidade monetária e rigi-
igual no Semelhante é o caso do Equador, em que
dez fiscal. Não é improvável que esse discurso
o índice de preços ao consumidor, que em 2001
tenha atingido um nível de saturação, posto que
chegou a estar em 90% ao ano, caiu para 2% em
indicadores de bem-estar como o aumento da ren-
2004. No entanto, a instabilidade política da figu-
da per capita e o desemprego pouco tenha dimi-
ra presidencial foi uma das características do país
nuído, enquanto que a pobreza e a indigência
entre 2000 e 2005. Claro está que no caso da Ar-
incrementaram-se, como mostram os quadros 3,
gentina a crise que se instalou nas instituições em
4 e 5 logo a seguir.
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A discrepância entre política e economia é con- pobreza e 12% desempregada. Em outras pala-
firmada pelas informações constadas no relatório vras, se não existe coincidência entre o relativo
do PNUD sobre a democracia na América Latina. sucesso das reformas e o funcionamento das ins-
Dados quantitativos apresentados pelo relatório tituições, talvez possamos adiantar a hipótese de
mostram que os índices de desempenho das re- que existe mais proximidade entre as falhas estru-
formas econômicas sofreram uma freada desde turais socioeconômicas e baixo rendimento das
finais da década de 1990, enquanto que os índi- instituições políticas, o que leva a crer que em
ces de reformas eleitorais melhoraram. Quanto às certas circunstâncias esse baixo rendimento
reformas econômicas, na Região Andina, no perí- institucional expresse-se em crises institucionais,
odo de 1992-1997 o índice foi de 0,76, e subiu algumas delas pressionadas pela força que adqui-
para 0,82 no período 1998-2002. Já as reformas riram os novos movimentos sociais (cf. VILLA,
políticas eleitorais (medidas pelo índice de demo- 2005).
cracia eleitoral) passaram de 0,86 no período de
II.5. Novos atores sociais e políticos entram em
1992-1997 para 0,83 no período 1998-2002
cena
(PNUD, 2004a). No Cone Sul (Argentina, Chile,
Paraguai e Uruguai), no período de 1992-1997, Uma quinta clivagem dá-se pelo fato de que
as reformas econômicas atingiram um índice de novos setores sociais entram em cena em busca
0,82, e as reformas eleitorais de 0,88. No período de representação política. Os mais expressivos
1998-2002, as reformas econômicas atingiram um desses novos setores sociais têm ganhado forma
limite de 0,84 e o índice de democracia eleitoral política em novos movimentos sociais organiza-
de 0,91. O Brasil foi o único país da região sul- dos, chamados de piqueteiros na Argentina, sem
americana que atingiu um crescimento lento das terras ou sem tetos no Brasil, “cocaleiros” na Bo-
reformas econômicas no período de 1992 a 1997 lívia, círculos bolivarianos na Venezuela e movi-
enquanto atingia um índice quase perfeito de 1,0 mento indígena em lugares como Equador, Peru e
quanto às reformas eleitorais (idem). Bolívia (ou se quisermos ir mais longe movimen-
tos de produtores organizados no caso mais re-
Na verdade, as reformas econômicas liberais
cente do México).
aplicadas nos anos 90 na Região Sul-americana
como um todo não puderam resolver os proble- Em princípio, poder-se-ia pensar que as no-
mas estruturais mais sérios da região. Nos dados vas lideranças às quais se classifica como
apresentados no estudo do PNUD, mostra-se cla- neopopulistas, por exemplo, os casos de Evo
ramente que a desigualdade diminuiu pouco ou Morales na Bolívia, Ollanta Umala no Peru e López
nada na região: o Índice de Gini (média de desi- Obrador no México, tem-se aproveitado de “mas-
gualdade ponderada por população) é alarmante sas em disposição” e que tais lideranças têm sido
nesse sentido. No período 1991-1998 o coefici- suficientemente hábeis e sensíveis para incorpo-
ente que era de 0,544, já no período 1998-2002 rar às suas plataformas políticas e aos seus dis-
subiu para 0,5465. Isso significa que a Região cursos as demandas desses setores sociais como
Andina está mais pobre e mais desigual do que há uma forma de fornecer maior legitimidade a seu
15 anos atrás, já que no período 1982-1990 o Ín- discurso político.
dice se localizava em 0,497. O mesmo pode-se
Esse fato poderia até sugerir certa
dizer da Região Cone Sul: enquanto que no perío-
instrumentalidade de esses setores sociais. Mas
do de 1981-1990 o Gini atingia uma média de
seria errôneo pensar que são só “massas em dis-
0,502, no período de 1998 a 2002 atingiu 0,558.
ponibilidade” – como a emergência das massas
No caso do Brasil, ao comparar ambos os perío-
foram chamadas, na política brasileira na transi-
dos, também se observa uma elevação do índice.
ção da sociedade tradicional para a moderna, no
Em outras palavras, a Região Sul-americana in-
importante trabalho de Weffort (1989) – o que
gressava no século XXI mais pobre do que há
encontram essas novas lideranças em seu cami-
uma década.
nho ao poder. Ao contrário dos populismos do
A isso devemos acrescentar que, no período passado, como os de Getúlio Vargas ou Perón, as
1991-1998, 18,2% da população vivia na pobreza massas que os chamados neopopulistas encon-
nos países andinos e 8,3% da população econo- tram dispõem de certo grau de organização e de
micamente ativa estava desempregada. Já no pe- autonomia de objetivos. Como resultante, ainda
ríodo de 1998-2002, 25% da população vivia na que alguns dos movimentos sociais identifiquem-
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se a princípio com as metas das novas lideranças, deranças já ascendem ao poder como um setor
também é certo que o apoio posterior dos primei- social mais orgânico. O deposto Lucio Gutierrez,
ros (dos movimentos sociais) fica condicionado no Equador, por exemplo, chegou ao poder em
ao desenvolvimento de políticas públicas de in- aliança com um setor indígena que vinha organi-
clusão. zando-se fortemente desde a década de 1990. Mas
foi o mesmo setor indígena que contribui para ti-
O efeito mais profundo dessa “barganha” é que
rar Gutierrez do poder. Também Carlos Meza,
a instabilidade política torna-se uma espécie de
sucessor de Gonzalo Sanchez de Lozada, na Bolí-
fantasma que ronda os sistemas políticos sul-ame-
via, deve sua saída do poder ao fato de que suas
ricanos desde a década de 90. É necessário escla-
políticas de recursos energéticos não atendiam aos
recer esse ponto. O surgimento e incorporação
interesses tidos como soberanos por grupos so-
desses setores sociais têm resultado num ganho
ciais no país. Não por acaso na campanha presi-
substantivo muito importante para o desenvolvi-
dencial de 2005, todos os candidatos, desde os
mento e aprofundamento democrático na Améri-
setores mais à esquerda até os setores tidos como
ca do Sul. Novas poliarquias democráticas surgi-
mais conservadores, colocavam como meta
ram pluralizando a esfera pública da decisão e cri-
prioritária a nacionalização do gás e o petróleo na
ando pressões para os tomadores de decisão com
Bolívia. E Fernando de la Rua, em 2001, deve em
relação à democratização dos espaços estatais de
parte sua saída do poder na Argentina ao fato de
decisão. E o que é mais significativo, com o
que movimentos sociais, como “os piqueteiros”,
surgimento desse tipo de movimento orgânico
não estavam mais dispostos a aceitar medidas
geraram-se pressões de inclusão política (repre-
consideradas antipopulares e que eram percebi-
sentação política de alguns grupos sociais como
das por esses setores como impostas verticalmente
negros, mulheres e indígenas), social (luta pela
por organismos internacionais.
diminuição das desigualdades de renda) e legal
(constitucionalização de direitos, como no caso VII. CONCLUSÕES
dos indígenas andinos). Todas essas pressões, hoje
Em termos gerais, América do Sul tem apre-
politicamente organizadas, tem sido um dos acon-
sentado uma mistura de estabilidade e instabilida-
tecimentos mais positivos a que tem assistido a
de política. Mas, certamente, em lugares como a
política sul-americana nos últimos dez anos.
Região Andina, a instabilidade política que a aba-
Não se poderia sugerir, em momento algum, teu na década de 1990 e início da de 2000 pode
que esses novos segmentos organizados sejam de ser explicada como uma crise de legitimidade de
por si um fator de instabilidade política. Porém, o seus sistemas políticos. De acordo com Adrián
fato de contar com um grau de organicidade polí- Bonilla, “Desde meados dos anos 1990 todos os
tica que estava ausente nas velhas experiências Estados da Região Andina têm vivido permanen-
populistas faz que as promessas não cumpridas tes crises políticas definidas por uma legitimidade
das lideranças que estão no poder tenham muita precária, produto de um déficit crônico de repre-
margem para o esquecimento em nossos dias. Ou sentação. Este déficit teria ao menos três caracte-
que decisões enxergadas como antipopulares, rísticas: a) a maior parte das pessoas não partici-
negadoras da soberania nacional ou de manuten- pam nos processos de tomada de decisões estra-
ção do status quo de grupos privilegiados, tenham tégicas nacionais, e tampouco naqueles que se
menos margem para a aceitação passiva. De algu- referem a assuntos particulares de suas comuni-
ma maneira, o desenvolvimento da democracia dades; b) não existem mecanismos eficientes de
contribui para o fortalecimento de uma forma de prestação de contas. Os níveis de impunidade,
accountability vertical1 que tem como protago- tanto na sociedade civil quanto no exercício do
nistas esses novos setores sociais organizados. poder político, são extremamente altos; e c) uma
parte importante da sociedade carece da cidada-
Diferente do passado em que as “massas em
nia” (BONILLA, 2001, p. 173). Porém, a crise de
disponibilidade” eram um fato real, e dessas “mas-
legitimidade expressa-se também na crise de ins-
sas em disponibilidade” de que se valia o populismo
tituições de mediação de interesses societais, es-
clássico do estilo de Vargas e Perón, as novas li-
pecialmente os partidos políticos, responsabiliza-
dos diretamente pelas populações nacionais como
os culpados pela ausência de um Estado de bem-
1 Essa categoria foi desenvolvida por O’Donell (1998). estar social universal aos cidadãos. É nesse vá-
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cuo de legitimidade que tem emergido lideranças zo que já se manifestavam antes da emergência
que vêm sendo chamadas de neopopulistas. da figura tida como populista, que tencionam a
percepção e conceituação de estrangeiros que re-
Também é certo que na região do Mercosul
caem sobre essas figuras (VILLA & URQUIDI,
mais o Chile, a existência de partidos políticos, e
2006). O conceito é acometido por uma falta de
até de transições democráticas pactuadas, como
historicidade. O histórico das personalidades é
no caso de Chile, tem conseguido fazer que as
ignorado ou subestimado, relegando-os a um vá-
pressões dos grupos sociais e políticos sejam agre-
cuo histórico, como se fossem os únicos respon-
gadas e canalizadas institucionalmente, embora em
sáveis pelas características do regime. Em pri-
determinados momentos, como no caso da Ar-
meiro lugar, porque perde-se de vista o contexto
gentina de inícios dos anos 2000, a pressão social
histórico em que a personalidade surge e, em se-
chegou a ser tão forte que os partidos políticos
gundo lugar, a sua própria história política. A emer-
pouco puderam fazer para evitar a instabilidade
gência da figura de Chávez, por exemplo, não pode
política que se materializou na troca de vários pre-
ser desvinculada da crise dos partidos tradicio-
sidentes em poucas semanas.
nais ou dos déficits sociais gerados pela moderni-
Mas faz-se necessário também atentar, por zação incompleta. Um segundo aspecto que o
outro lado, às relações causais que têm sido conceito de neopopulismo não consegue refletir
estabelecidas entre a instabilidade política e as li- de maneira adequada refere-se ao aspecto da legi-
deranças chamadas de neopopulistas. É até pos- timidade. Alguns dos governantes que entram na
sível admitir elementos de causalidade do categoria de neopopulistas têm em comum o fato
neopopulismo em relação à instabilidade política, de terem sido expressão da vontade política de
como no caso da Região Andina, porém o concei- maiorias significativas de suas populações nacio-
to de neopopulismo talvez ressinta de um trata- nais. Cabe então finalizar com uma questão: essas
mento histórico mais rigoroso. Além do uso dificuldades em entender a mudança política não
ideologizado com que às vezes aplica-se o termo estão sugerindo, então, que a mudança política e
a algumas das novas lideranças, o conceito pode social tem sido acompanhada pela mudança
não recolher tendências retroativas de longo pra- conceitual nas ciências sociais sul-americanas?
Rafael Duarte Villa (rafaelvi@usp.br) é Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo
(USP) e professor de Ciência Política na mesma instituição.
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