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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

CENTRO DE HUMANIDADES

CURSO DE HISTÓRIA

MESTRADO ACADÊMICO EM HISTÓRIA

LUÃ RODRIGUES LOPES

VIDA MATERIAL: ANALISANDO O PROCESSO CIVILIZADOR A PARTIR


DOS OBJETOS DOMÉSTICOS PERTENCENTES ÀS ELITES DE
FORTALEZA (1871-1893)

FORTALEZA – CEARÁ

2017
LUÃ RODRIGUES LOPES

VIDA MATERIAL: ANALISANDO O PROCESSO CIVILIZADOR A PARTIR DOS


OBJETOS DOMÉSTICOS PERTENCENTES ÀS ELITES DE FORTALEZA (1871-
1893)

Dissertação apresentada ao Curso de


Mestrado Acadêmico em História do
Centro de Humanidades da Universidade
Estadual do Ceará, como requisito
parcial para obtenção do Título de
Mestre em História Área de
Concentração: História e Culturas.

Orientador: Prof. Dr. Antônio Pádua


Santiago de Freitas

FORTALEZA – CEARÁ

2017
AGRADECIMENTOS

“Arrependimentos, eu tive alguns, mas


aí, novamente, pouquíssimos para
mencionar Eu fiz o que eu devia ter feito
E passei por tudo consciente, sem
exceção Eu planejei cada caminho do
mapa Cada passo, cuidadosamente, no
correr do atalho E mais, muito mais que
isso Eu o fiz do meu jeito”
(Frank Sinatra)

É de suma importância sabermos retribuir aquilo que nos é oferecido, é preciso


reconhecer e dar o devido valor a quem está ao nosso lado. A realização dessa pesquisa
não seria possível se as pessoas com as quais convivemos não nos apoiassem e, em
alguns momentos, não ficassem solidárias com nossas angustias e receios. Assim
gostaria de fazer alguns verdadeiros agradecimentos.

Inicialmente agradeço ao Prof. Dr. Antônio de Pádua Santiago de Freitas, por me


orientar nas minhas dúvidas e compreender minhas dificuldades e principalmente por
ter acreditado em mim desde o inicio do curso de graduação. Passando pela força dada
durante o processo de seleção do MAHIS e chegando a conclusão desse mestrado.
Também por sua atenção e humildade, características tão esquecidas em um meio
acadêmico bastante hierarquizado que só afasta cada vez mais o professor do aluno.

Um agradecimento ao Grupo de Pesquisa Práticas Urbanas que, devido aos encontros e


discussões, consegui um grande leque de materiais bibliográficos, uma vasta
experiência e um suporte acadêmico para a realização da monografia e agora para a
conclusão da dissertação. .

Não podia deixar de agradecer aos meus amigos. Companheiros da turma de 2015 que
entramos repletos de vontades e sonhos. Amigos mais próximos que sempre ajudaram
em momentos difíceis e certamente torceram e acreditaram no meu potencial. E os
amigos de bar (André Brayan, Bruno Costa, Caio Lucas, Germano Magão, João
Nogueira, Marcelo Ramos, Pádua Junior e Pedro Ivo) que, mesmo nos momentos mais
lúdicos possíveis de uma universidade (graduação e mestrado), conseguiram me passar
algo importante e que principalmente me fizeram estar em equilíbrio e aproveitar tudo
aquilo que uma universidade possa oferecer.

Aos meus pais, meu irmão e todos meus familiares, que sempre me conscientizaram da
importância do estudo e sempre ao meu lado trouxeram conforto espiritual e
compartilharam problemas e fraquezas, ajudando a construir cada etapa da minha vida.

Em especial, a minha companheira Nathálie Brenda que durante esses dois anos de
mestrado sempre me deu força para continuar lutando pelo que acredito. Muitas vezes
quando pensei em desistir (devido a todos os problemas egocêntricos que notamos e
sentimos na vida acadêmica) teve a paciência de me apoiar para que seguisse firme e
forte.

À todos que contribuíram direta e indiretamente e que torceram por mim ao longo desta
caminhada,

OBRIGADO!
RESUMO

A presente pesquisa, intitulada: “Vida material: analisando o processo civilizador a


partir dos objetos domésticos pertencentes às elites de Fortaleza (1871-1893)”, tem
como objetivo analisar a inserção da capital cearense no processo civilizador capitalista,
a partir das arquiteturas das residências e do consumo e uso dos objetos domésticos. A
opção por analisar a sociedade através dos utensílios que estavam presentes nas
residências nos faz compreender como determinadas mercadorias modificaram os
hábitos e costumes. A variedade de tais produtos, seja no estilo ou na composição
material, nos permitem estudar Fortaleza do ponto de vista do consumo. Assim, foi
analisado a origem, transporte, comércio, consumo e utilização dos objetos. Os produtos
pesquisados eram importados dos Estados Unidos e da Europa (em sua maioria), esses
chegavam até Fortaleza através de navios a vapor. As firmas comerciais estrangeiras
eram responsáveis pelos pedidos das mercadorias, pelas entregas, divulgação e
distribuição para as outras regiões do Ceará. O nosso recorte tem início em 1871, com a
instalação da casa comercial Boris Frères em Fortaleza e fim em 1893, pois nesse ano a
firma Boris Frères iniciou uma decadência na importação de objetos. As últimas
décadas do século XIX foi um período de grandes modificações no aspecto social,
econômico, urbanístico e cultural, influenciando o comportamento da sociedade
fortalezense e a dinâmica da cidade com a urbanização de ruas e praças, além do
aumento de lojas especializadas na venda de produtos importados, como fazendas,
utensílios domésticos, mobílias, bebidas, charutos, entre outros. As fontes analisadas
foram: inventários post-mortem, jornais e obras literárias, os objetos museológicos
presentes na Casa de Juvenal Galeno, relatórios dos presidentes da província do Ceará,
relatórios de viajantes e os códigos de posturas.

Palavras-chave: Cultura Material. Civilização. Capitalismo.


ABSTRACT

The present research, entitled "Material life: analyzing the civilizing process from the
domestic objects belonging to the elites of Fortaleza (1871-1893)", aims to analyze the
insertion of the capital of Ceará in the capitalist civilization process, from the
architectures of the Residences and consumption and use of household objects. The
option of analyzing society through the utensils that were present in the homes makes us
understand how certain goods changed the habits and customs. The variety of such
products, whether in the style or the material composition, allow us to study Fortaleza
from the point of view of consumption. Thus, the origin, transportation, trade,
consumption and use of the objects were analyzed. The products surveyed were
imported from the United States and Europe (for the most part), these arrived in
Fortaleza by steamships. Foreign commercial firms were responsible for orders for
goods, deliveries, distribution and distribution to other regions of Ceará. Our cut began
in 1871, with the installation of the Boris Frères commercial house in Fortaleza and
ended in 1893, because that year Boris Frères started a decadence in the import of
objects. The last decades of the nineteenth century was a period of great changes in the
social, economic, urban and cultural aspects, influencing the behavior of the stronghold
society and the dynamics of the city with the urbanization of streets and squares, as well
as the increase of stores specialized in the sale of Imported products such as farms,
household goods, furniture, beverages, cigars, among others. The analyzed sources
were: post-mortem inventories, newspapers and literary works, the museum objects
present in the House of Juvenal Galeno, reports of the presidents of the province of
Ceará, travelers' reports and the codes of positions.

Keywords: Material Culture. Civilization. Capitalism.


LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 - “Planta da Cidade de Fortaleza e subúrbios”, 1875 – Adolpho Herbster...........26


Figura 2 - Imagem do Sobrado Dr. José Lourenço..............................................................40

Figura 3 - Imagem do solar do Barão de Camocim.............................................................41

Figura 4 – Imagem da casa de Juvenal Galeno....................................................................41

Figura 5 - Rotas de companhias francesas no litoral ocidental brasileiro e algumas regiões


da América do Sul...............................................................................................................63

Figura 6 - Rotas de companhias internacionais na província do Ceará e no litoral


setentrional brasileiro...........................................................................................................65

Figura 7 - Anúncio do Jornal Pedro II................................................................................66

Figura 8 - Anúncio do Jornal Pedro II................................................................................67

Figura 9 - Anúncio do Jornal Pedro II................................................................................68

Figura 10 - Anúncio do Jornal Pedro II..............................................................................68

Figura 11 - Anúncio do Jornal Pedro II..............................................................................68

Figura 12 - Anúncio do Jornal Pedro II..............................................................................68

Figura 13 - Anúncio do Jornal Pedro II..............................................................................69

Figura 14 - Anúncio do Jornal Pedro II..............................................................................69

Figura 15 - Anúncio do Jornal Pedro II..............................................................................70

Figura 16 - Anúncio do Jornal Pedro II..............................................................................71

Figura 17 - Anúncio do Jornal Pedro II...............................................................................77

Figura 18 - Anúncio do Jornal Pedro II...............................................................................77

Figura 19 - Anúncio do Jornal Pedro II...............................................................................78

Figura 20 - Anúncio do Jornal Pedro II...............................................................................78

Figura 21 - Anúncio do Jornal Pedro II...............................................................................79

Figura 22 - Anúncio do Jornal Pedro II...............................................................................79

Figura 23 - Imagem da Casa de Juvenal Galeno..................................................................91

Figura 24 - Imagem do sobrado do Dr. José Lourenço........................................................94

Figura 25 - Imagem do sobrado do Dr. José Lourenço........................................................95


Figura 26 - Piano RUD-IBACH-SOHN……………………………………………………………..99

Figura 27 - Estantes de madeira com seis divisórias internas e duas portas com
vidros..................................................................................................................................102

Figura 28 - Escrivaninha em carvalho, cadeira em carvalho, com assento em palhinha e


encosto de madeira............................................................................................................102

Figura 29 - Estátua grega da Deusa da Inspiração. Representando a música....................103

Figura 30 – Medalhão do perfil de Victor Hugo................................................................103

Figura 31 – Busto de mármore de Johann Wolf Gang Van Goethe..................................104

Figura 32 - Cadeira de madeira com assento e encosto de palhinha jacarandá.................106

Figura 33 - Oratório de madeira com porta e laterais de vidro..........................................112

Figura 34 - Baú de madeira com tranca e puxadores de ferro............................................113

Figura 35 - Rede de algodão..............................................................................................113

Figura 36 - Faqueiro de prata com o dístico “M.C.T.S”....................................................117

Figura 37 - Conjunto de louças de porcelana. Louças com dístico “M.C.T.S”.................118

Figura 38 - Mesa aparadora de madeira com tampa de mármore......................................121

Figura 39 - Jarro de porcelana inglesa de 1887..................................................................122

Figura 40 - Aparador de madeira com tampo de mármore. Espelho e portas com vidro.
Divisórios em madeira e vidro...........................................................................................122

Figura 41 - Jarra, bacia e saboneteira de louça alemã. Conjunto Franzant Mehlem-


Germany.............................................................................................................................129
SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 13
2. A INSERÇÃO DE FORTALEZA NO PROCESSO CIVILIZADOR
CAPITALISTA: MODIFICAÇÕES NO AMIENTE PÚBLICO E PRIVADO ......27
2.1 A FORTALEZA DO FINAL DO SÉCULO XIX: ELEMENTOS DA
CIVILIZAÇÃO ......................................................................................................................... 27
2.1.1 “O progresso e o desenvolvimento d´ esta província depende dE vias férreas”: a
construção da estrada de ferro de Baturité (EFB) ................................................................ 31
2.1.2 O capitalismo chega ao Ceará: instalações de casas comerciais em Fortaleza ......34
2.1.3 A civilização em cada centímetro: a planta topográfica da cidade de Fortaleza e
subúrbios (1875) ...................................................................................................................... 36
2.1.4 O capitalismo para com a seca? Reflexões sobre as estiagens de 1877, 1878 e
1879 .................................................................................................................................40
2.1.5 O lazer como ferramenta da civilização: A reforma do Passeio Público ...............43
2.2 DOMICÍLIO FORTALEZENSE: TRANSFORMAÇÕES NA ESTRUTURA
MATERIAL E DOS OBJETOS DOMÉSTICOS DURANTE O SÉCULO XIX ...........46
2.2.1. A arquitetura rústica: os lares da capital no início dos oitocentos ........................47
2.2.2. As suntuosas habitações: as residências fortalezenses no final do século XIX ... 51
2.2.3. A moradia civilizada: as normas habitacionais dos códigos de posturas ............... 55

3. A EXPANSÃO CAPITALISTA CHEGA AO CEARÁ: A INSERÇÃO DA


CAPITAL FORTALEZENSE A PARTIR DO CONSUMO MATERIAL (1871-
1893) ...............................................................................................................................63
3.1. EXPANSÃO DO PROCESSO CIVILIZADOR CAPITALISTA MUNDIAL: DA
EUROPA A FORTALEZA .............................................................................................64

3.2. A CONSOLIDAÇÃO DA CAPITAL CEARENSE NA ECONOMIA MUNDO: AS


LINHAS DE VAPORES INTERNACIONAIS, CASAS COMERCIAIS E O
CONSUMO DE OBJETOS .............................................................................................69

4. “NOTÁVEIS” MORADORES: A CASA DE JUVENAL GALENO E O


SOBRADO DO DR. JOSÉ LOURENÇO ...................................................................94

4.1. VIDAS E “OBRAS”: BREVES BIOGRAFIAS DO ESCRITOR JUVENAL


GALENO E DO DR. JOSÉ LOURENÇO DE CASTRO E SILVA ...............................95
4.2. A PRESTIGIOSA FORMA DO MORAR CITADINO: A CASA DO JUVENAL
GALENO E O SOBRADO DO DR. JOSÉ LOURENÇO ................................................ 103

5. CONCLUSÃO .........................................................................................................149

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 152


13

1. INTRODUÇÃO

Esse trabalho versa sobre a inserção da elite1 fortalezense no processo civilizador


capitalista2 a partir dos objetos domésticos e da arquitetura das moradias, perpassando
as etapas do comércio, consumo, e como essa camada social traduziu os hábitos3 e
costumes4 europeus que foram introduzidos junto com os artefatos. É estudando a vida
material5 desse estrato da sociedade que pretendemos perceber as alterações sociais,
econômicas e culturais que acompanharam a inserção de Fortaleza no Processo
Civilizador Capitalista, entre 1871-1893.

A trajetória dessa pesquisa teve início durante o curso de Graduação em


História na Universidade Estadual do Ceará (UECE). As principais temáticas levantadas
vêm sendo refletidas há muito tempo e estão sendo amadurecidas na pós-graduação. A
partir do ano de 2010, participando do Grupo de Pesquisa Práticas Urbanas6, comecei o
interesse em estudar as práticas citadinas, em especial da cidade de Fortaleza. Durante
minha caminhada acadêmica sempre busquei refletir sobre pesquisas que discutiam
sobre a urbe. Entender sobre governamentaliadade, controle social, hábitos, costumes,
práticas letradas e cultura material sempre foi do meu interesse. Em especial o meu
desejo era (e ainda é) conhecer o cotidiano da Fortaleza do século XIX.
O tema aqui trabalhado surgiu e amadureceu a partir das orientações com o Prof.
Dr. Antônio de Pádua Santiago de Freitas7 e dos inúmeros encontros realizados pelo

1
As famílias analisadas são entendidas por suas ações no que tange o consumo dos objetos da casa e as
características dos imóveis que possuíam. Entendemos como elite, pois esses sujeitos compreende um
grupo de indivíduos que compartilham valores culturais que podem ser observados em seus artefatos
domésticos. Portanto, esses sujeitos possuíam um estilo de vida semelhante, à medida que consumiam
móveis que representavam o seu pertencimento a um grupo social, estavam presentes nos centros urbanos
e relacionavam-se com as diversas maneiras de se inserir no processo civilizador de Fortaleza.
2
Por processo civilizador capitalista, entendemos que a expansão do capitalismo durante o século XIX
ocorreu, também, a partir da venda de produtos para as zonas periféricas desse sistema econômico. E
esses bens exigiam novos comportamentos que eram tidos como civilizados.
3
Quando falamos em hábitos estamos utilizando o conceito trabalhado por Pierre Bourdieu (2008).
4
Os costumes estão imbricados com a realidade material ou social de uma sociedade, que podem ser
mudados em um longo período (THOMPSON, 2011)
5
Segundo Fernand Braudel, a vida material está ligada de forma intrínseca com o cotidiano repetitivo, na
rotina, nos pequenos fatos, no entanto a relação entre cultura e materialidade constitui a sociedade em
todos os seus ambitos, caracterizando maneiras de ser, de agir, de comer, de vestir, de morar etc. Assim,
imagens do cotidiano solidificam-se no âmbito das casas, seus objetos e moradores (BRAUDEL, 1997).
6
Desde 2010 participo do Eixo de Pesquisa “Cultura material, estrangeiros, produção e consumo de
mercadorias” que integra o Projeto "Capitalismo e civilização nas cidades do Estado do Ceará (1860-
1930)" - GPPUR/MAHIS/UECE.
7
Possui graduação em História pela Universidade Federal do Ceará (1990), graduação em
HISTORIA CONTEMPORANEA pela UNIVERSIDADE DE PARIS-SOBORNNE PARIS IV (1993),
mestrado em HISTÓRIA MODERNA E CONTEMPORANEA pela UNIVERSIDADE DE PARIS-
14

Grupo de Pesquisa Práticas Urbanas. Além de simpósios e minicursos realizados por


esse grupo, também fizemos estudos de campo em cinco cidades cearenses (Sobral,
Quixadá, Aracati, Fortaleza e Crato). Fora do estado, através de uma bolsa sanduiche na
graduação, conhecemos os debates e discussões sobre cidade e cultura material
realizados na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Durante
toda essa trajetória, leitura e análise de fontes, simultaneamente as atividades
desenvolvidas pelo grupo, essa relação teve grande importância no desenvolvimento
deste trabalho e no melhor entendimento da metodologia e conceitos aplicados aqui.
O Grupo de Pesquisa Práticas Urbanas tem como preocupação entender como o
processo civilizador capitalista transformou as relações de produção e consumo, as
questões governamentais, os hábitos e costumes cotidianos e traduziu e produziu ideias
que reconfiguram as urbanidades das cidades de Fortaleza, Aracati, Crato Quixadá e
Sobral. O nosso trabalho inclui-se no grupo na medida em que tentamos perceber a
inserção de Fortaleza no processo civilizador capitalista a partir da cultura material.
Entender a cidade a partir de sua cultura material seja no âmbito público ou
privado, não é colocar a casa e os objetos apenas como meras ilustrações ou centralizar
as análises apenas nos atributos físicos deles com suas características técnicas ou
plásticas. O nosso objetivo é, também, refletir sobre os sentidos simbólicos do consumo
e da utilização dos produtos. Entendemos que os bens de consumo possuem relação
com as formas de construção da personalidade e da identidade social (APPADURAI,
2008). Abrangemos a discussão da cultura material para além da produção e da
circulação e começamos a dar maior ênfase ao consumo, reforçando a dimensão
semiológica dos objetos.
Acreditamos que a vida material estar intimamente ligada com a esfera
econômica e que a cultura material é indissociável para o estudo do capitalismo8. A

SORBONNE PARIS IV (1995) e doutorado em História Moderna e Contemporânea - Universite de Paris


IV (Paris-Sorbonne) (1999). Atualmente é professor adjunto da Universidade Estadual do Ceará. É líder
do Grupo de Pesquisa Práticas Urbanas e coordena a pesquisa "Capitalismo e civilização nas Cidades do
Estado do Ceará (1860-1930)", aprovado na "Chamada Pública MCT/CNPq/MEC/CAPES - Transversal
n 06/2011 - Casadinho/Procad?, processo: 552714/2011-9?. Tem experiência na área de História, com
ênfase em História Moderna e Contemporânea, atuando principalmente nos seguintes temas: Cultura
Capitalista, Cultura dos pobres, modernidade, Práticas Urbanas, Habitação Precária.

8
Por capitalismo estamos utilizando, principalmente, o conceito de capitalismo histórico de Wallerstein
(1983). No qual ele mostra o surgimento desse sistema econômico mostrando todas suas características,
mas dando relevância ao âmbito ideológico-cultural. Este que mostra a necessidade de criar produtos,
necessidades e comportamentos para expandir o capitalismo.
15

primeira encontra-se subordinada a esse sistema econômico e os objetos refletem esse


modo de produção. Ao estudar o processo histórico de uma cidade em um determinado
tempo através dos objetos do cotidiano, passamos a reintroduzir o homem na história.
Ao invés de nos limitarmos apenas ao estudo de superestruturas econômicas e questões
administrativas, também desejamos perceber as transformações a partir da vivência
material.
Abordamos o capitalismo em seu todo integrado, problematizando suas
manifestações concretas no âmbito econômico, político e ideológico-cultural. Não
temos intenção de nos limitarmos em reflexões abstratas sobre o mesmo. Acreditamos
que para compreendemos melhor o sistema capitalista, em Fortaleza no final do século
XIX, seja necessário observar a sua realidade concreta. Quando falamos em capitalismo
material estamos falando dos bens de consumo produzido pelas empresas acumuladoras
de capitais. Esse modo de produção produz mercadorias, que por sua vez exigem novos
comportamentos.
As duas principais correntes teóricas que procuram explicar o capitalismo são as
representadas por Max Weber9 e por Karl Marx10. Apesar de a primeira ter um víeis
culturalista e à segunda, histórica, podemos elencar alguns pontos em comum que
define o sistema capitalista:

Este se constitui em um sistema de organização da economia que pressupõe a


existência de proprietários individuais dos meios de produção e, também, a
existência de trabalhadores emancipados de obstáculos feudais, tradicionais,
como servidão, a escravidão etc. (CATANI, 2011. p. 38).

Essa definição colocada por Catani ainda levanta outras características que
compõem o sistema capitalista como: venda da força de trabalho, capital concentrado e
com vocação monopolística, surgimento de uma classe operária, propriedade privada,
divisão social do trabalho e acumulação de capital em cima da mais-valia. Esse último
ponto para alguns teóricos é a característica primordial do capitalismo. Assim nos
afirma Immanuel Wallerstein:

9
A visão de Weber sobre o capitalismo é chamada de culturalista. Para ele o surgimento desse sistema
econômico estar ligado com o nascimento das igrejas calvinista e luterana. “O capitalismo seria a
cristalização objetiva destas premissas teológicas e éticas” (CATANI, 2011. p. 15). Notamos que os
fatores culturais como “mentalidade” e “espírito capitalista” tem grande importância.
10
A visão de Karl Marx sobre o capitalismo é chamada de histórica. Para ele, esse sistema econômico
seria um modo de produção que teve sua consolidação durante a Idade Moderna. E que tem como
principal característica os meios de produção nas mãos dos capitalistas, que seria a classe dominante. Esse
sistema também determina que a força de trabalho seja uma mercadoria.
16

O que distingue o sistema social histórico a que chamamos capitalismo é o


fato de, neste sistema, o capital passar a ser usado (investido) de forma muito
especial. Passou a ser utilizado com o objetivo primário de auto-expansão.
Neste sistema, as acumulações anteriores apenas são “capital” na medida em
que são usadas com vista à obtenção de acumulações ainda maiores
(Wallerstein, 1983. p. 3).

Notamos que o autor coloca como principal característica do sistema


econômico capitalista a acumulação de capitais e o investimento desse dinheiro para
obtenção de mais capital. Para Wallerstein, o simples gesto de acumular sempre existiu
na humanidade, mas quando essa concentração é utilizada para possuir cada vez mais
dinheiro, temos o surgimento do capitalismo. É só a partir dos tempos modernos que
uma única pessoa tem o controle de todo o processo produtivo, medida essa que
começou a facilitar a priorização da produção para a expansão do capital.
Depois desse sistema econômico ter se consolidado durante a Revolução
Industrial, é no século XIX que ocorre a sua expansão, com o imperialismo. Este ocorre
quando todo o processo de produção é mercantilizado. Isso levou aos capitalistas a
quererem reduzir os custos da fabricação ao máximo possível para lucrarem bastante.
Só que a redução dos gastos interferia na cadeia econômica levando a ter uma
diminuição do mercado consumidor. A solução encontrada para esse problema foi a
expansão do universo de compradores (WALLERSTEIN, 1983).

Durante o século XIX, à medida que a tecnologia ia se desenvolvendo o


capitalismo se expandia incorporando novas regiões. Com o aperfeiçoamento das
navegações, surgimento do navio a vapor, construções de ferrovias e invenção do
telegrafo tornou-se prioridade inserir nações mais e mais afastadas das zonas centrais.
Segundo Wallerstein, a expansão do capitalismo não ocorreu exclusivamente devido a
procura de um mercado consumidor:

Por vezes, têm sido afirmado que a explicação está na busca constante de
novos mercados, capazes de garantir os lucros da produção capitalista.
Porém, esta explicação, contradiz pura e simplesmente os fatos históricos.
Geralmente, as áreas exteriores ao capitalismo histórico eram compradoras
relutantes dos seus produtos, em parte porque não “precisavam” deles –nos
termos do seu próprio sistema econômico–, e, em parte, porque,
frequentemente, não dispunham de meios de troca suficientes para os
adquirir. É claro que houve exceções, mas, de um modo geral, foi o mundo
capitalista quem procurou os produtos das áreas exteriores, e não o contrário.
Quando determinados locais eram conquistados militarmente, os empresários
capitalistas queixavam-se regularmente da ausência de verdadeiros mercados
nesses locais, e operavam através dos governos coloniais, no sentido de
“criarem gostos” (WALLERSTEIN, 1983. p. 16)
17

Wallerstein deixa claro que o grande objetivo das grandes nações capitalistas
era garantir mão de obra a curto preço nas zonas periféricas do capitalismo. No início os
produtos vendidos pelos países da zona central não despertavam interesse nas outras
regiões distantes, pois estas não viam necessidades nas mercadorias. Posteriormente, os
agentes capitalistas11 que passaram a morar nas zonas periféricas sentiram falta dos
produtos europeus e fizeram com que os governos locais “criassem gosto” por tais
produtos. Assim, percebemos que foi necessária a vertente econômica e ideológico-
cultural do capitalismo para a sua expansão. Além de produzir mercadorias e realizar
comércio, também foi necessária a criação de várias necessidades.

Ao falarmos em criação de necessidades ou gostos estamos falando em um


modelo de civilização colocado pelos agentes capitalistas em correlação com os
governos regionais. O padrão de civilidade europeu imposto nas zonas periféricas
perpassava pelas reformas sociais, urbanas e pelo consumo de mercadorias. A
urbanização e a higienização dessas cidades ocorreram com intuito de inserir estas no
processo civilizador capitalista. Quando falamos em civilização, estamos nos
embasando no conceito colocado por Elias (1994), em sua obra “O processo civilizador:
uma história dos costumes”, ele afirma que civilização é:

[...]uma grande variedade de fatos: ao nível da tecnologia, ao tipo de


maneiras, ao desenvolvimento dos conhecimentos científicos, às idéias
religiosas e aos costumes. Pode se referir ao tipo de habitações ou à maneira
como homens e mulheres vivem juntos, à forma de punição determinada pelo
poder judiciário ou ao modo como são preparados os alimentos.
Rigorosamente falando, nada há que não possa ser feito de forma “civilizada”
ou “incivilizada” (ELIAS, 1994.p. 23).

Compreendemos que qualquer aspecto cultural do homem ocidental pode ser


classificado como civilizado ou incivilizado. Notamos que na Fortaleza da segunda
metade do século XIX as leis, a política, a higiene, as habitações e outros aspectos eram
transformados com objetivo de seguir os padrões ocidentais determinados como
civilizados.
No caso da capital cearense, as reformas dos logradouros, o alargamento das
ruas, os vários planos urbanísticos, a construção de estradas de ferro, as diversas
maneiras de controlar epidemias, as reformas arquitetônicas das habitações e a
11
Quando falamos em agentes capitalistas estamos nos referindo aos agentes consulares das nações
europeias que eram responsáveis em analisar o comércio cearense. E também dos donos das casas
comerciais que se instalaram na região cearense (TAKEYA, 1995).
18

instalação de firmas comerciais estrangeiras, todas estas foram transformações que


visavam colocar a urbe cearense em consonância com o processo civilizador.

Se “nada há que não possa ser feito de forma civilizada” (ELIAS, 1994. p. 23) e
sabendo que os agentes capitalistas criam a necessidade para o uso de produtos, logo
optamos em analisar a sociedade fortalezense a partir do consumo e do uso dos objetos
domésticos. Acreditamos que a população adota o modelo civilizador capitalista a partir
da inserção de mercadorias europeias, colocamos em foco aqui a de uso doméstico.
Procuramos entender como se deu essa inserção e como esses produtos modificaram o
cotidiano.
Para interpretar essa inserção, utilizamos o conceito de Tradução Cultural
segundo Burke (2008), que a compreende como um tipo de alinhamento entre diferentes
grupos, buscando se assemelhar a uma sociedade hegemônica. Para o autor, a tradução
cultural pode ser entendida como “a grande vantagem em enfatizar o trabalho feito por
indivíduos ou grupos para domesticar o que é estrangeiro, em outras palavras, as
estratégias e táticas empregadas” (BURKE,2008. p: 77). Essa forma de alinhar-se
também é colocada em outra obra organizada pelo autor, intitulada de “Tradução
Cultural”, nesse caso, utilizada no “sentido de adaptá-la à cultura local”, ou seja,
adquirindo objetos que não faziam parte de suas práticas habituais, reproduzindo em
todos os detalhes e inserindo-a em seu cotidiano, no caso dos utensílios domésticos, seja
para usá-los ou guardá-los.
Assim, compreendemos que a sociedade cearense começou a se inserir no
processo civilizador capitalista, como zona periférica, a partir da segunda metade do
século XIX, pois nesse período a economia cearense desenvolveu-se bastante devido ao
aumento da sua produção e venda algodoeira, já que o seu concorrente, os Estados
Unidos da América, estava envolvido na Guerra de Secessão. A partir de 1860, notamos
Fortaleza se tornar centro econômico da província cearense (PONTE, 2011). Com isso
vem um grande desenvolvimento capitalista para a mesma. Desenvolvimento no sentido
urbanístico, embelezamento da cidade, no sentido econômico, construções de varias
linhas férreas para ligar a economia da capital com outros “polos industriais do estado”
e a chegada de várias casas comerciais estrangeiras na província que deram uma
modificação econômica e cultural. Muitos são as referências bibliográficas que nos
mostram a chegada cronologicamente de inúmeras casas comercias na província:
19

Dentre esses últimos, sobressaíram-se primeiramente os ingleses,


representados pela firma Singlehurst & Cia., com sede em Liverpool, porém
com uma sucursal na capital cearense, gerenciada por John Mackee, desde o
ano de 1835. Da mesma procedência, eram os titulares de Corlett & Cia.,
cujo estabelecimento não teve o mesmo êxito e duração daquele.
Salientaram-se, depois, os franceses, radicando-se, em 1842, em Fortaleza,
Henri Cals, cujo nome está perpetuado na descendência que deixou, hoje
completamente integrada na família cearense. Eram seus companheiros Henri
François Golignac e Pierre Hipolitte Girard, este um dos pioneiros da
hotelaria na capital cearense. Mas, os irmãos Boris, fundando, em 1869, o seu
estabelecimento, tornaram-se nos fins do século, os comerciantes estrangeiros
de maior ascendência na vida econômica e, até mesmo, política, do Ceará.
(NOBRE, 1991, p.27).

Essas casas comerciais eram principalmente de origem francesa, inglesa, suíça


e alemã. Contabilizavam em 353 estabelecimentos comerciais na cidade de Fortaleza
durante esse período estudado, desse número 84 eram estrangeiras, nos mostrando uma
grande quantidade de “firmas” de outros países, percebendo que fazia pouco tempo da
abertura dos portos, que vendiam diversos tipos de produtos internacionais na capital
cearense. Acreditamos que esses objetos importados foram responsáveis no sentido de
influenciar culturalmente a sociedade fortalezense. Com o objetivo de se inserirem
nesse processo civilizador as famílias realizavam o consumo desses artefatos
domésticos.
Devido a esse avanço comercial no final do século XIX trabalhamos com a
década de 1870 como recorte temporal inicial. Nessa década foi fundada em Fortaleza a
Casa Comercial Francesa Boris Frères, filial, na Rua da Palma (onde atualmente se situa
a Rua Major Facundo). Essa casa comercial já havia se instalado em Fortaleza no ano de
1869 com o nome de Theodore Boris & Irmão, mas devido à guerra Franco-Prussiana
os irmãos Boris tiveram que voltar ao seu país de origem. Assim nos conta o historiador
Francisco Assis Sousa Mota (1982, p. 12) “Em 1869 os dois irmãos, oriundos da
província francesa da Lorena, fundam em Fortaleza a casa de comércio Theodore Boris
& Irmão”.

Devido à guerra franco-prussiana de 1870-71, Alphonse e Theodore


retornam à França, e, juntamente com o irmão mais jovem, Isaie Boris,
fundam em Paris a casa de comercio Boris Frères. Logo depois, Theodore e
seus irmãos caçulas Achille e Adrien, retornam ao Ceará, instalando a Boris
Frères, filial, à Rua da Palma (atual Major Facundo), no centro comercial de
Fortaleza. (MOTA, 1982, p.12)

O nosso recorte temporal tem início em 1871 devido a instalação da casa


comercial Boris Fréres em Fortaleza. Salientamos aqui a importância dessa casa
20

comercial para o desenvolvimento do comércio cearense, pois ela era responsável por
transações comerciais da capital cearense com países europeus e norte-americanos, ela
importava artigos de luxo franceses como também exportava matéria-prima do do
Ceará. Além desse comércio com outros países, essa casa comercial realizava
transações com atacadistas do interior cearense (TAKEYA, 1995).
Utilizamos o ano de 1893 como recorte final, pois nesse período a firma
Boris Frères iniciou uma decadência na importação de objetos. O fator primordial que
nos mostra os motivos dessa crise comercial em Fortaleza foram as secas de 1888,
1891, 1898 e 1900. A própria história da casa comercial Boris, contada pelo o
historiador Francisco Assis Sousa Mota, nos afirma que o principal período de
desenvolvimento da casa comercial foi durante os anos de 1878 a 1893 e que no ano de
1910 houve um declínio devido à suspensão da sua principal fonte de renda, ou seja, as
importações: “A primeira fase de rápido crescimento dos negócios da casa Boris Frères,
tomou impulso desenvolvimentista ainda maior, quando estabeleceu residência na
capital cearense por quinze anos (1878-1893)”. (MOTA, 1982. p.14) “... com a
suspensão das importações (1910), que representavam uma das maiores fontes de renda
da empresa, e das exportações (1920), advindas de crises regionais como as secas de
1888, 1891, 1898, 1900 e internacionais como a grande depressão de 1929...” (MOTA,
1982. p.10).
Entendemos que os lares fortalezenses do período foram modificados a partir
da chegada das casas comercias. As residências da elite foram se modificando e se
adaptando as influências culturais europeias. Essa camada social passou a orientar-se,
cada vez mais, pelas práticas e comportamentos da burguesia europeia, industrializada,
comerciante e tecnologicamente desenvolvida, vinculando-se culturalmente à França, à
Inglaterra e à Alemanha.
As habitações burguesas sofreram um processo de compartimentação do
espaço doméstico, ou seja, é notório verificarmos que durante esse período estudado
(processo que em Fortaleza só foi consolidado na década de 1930) surgiram nas
habitações quartos separados para pais e filhos, demarcações entre os locais onde se
cozinhava e o local onde se comiam. Essas transformações modificaram a casa tanto no
âmbito arquitetônico como também na utilização dos artefatos domésticos. É esse gosto
burguês europeu de morar que atravessou o Atlântico, através dos meios de
comunicação da época, dos viajantes estrangeiros que habitavam no Brasil e também
21

pelas casas comercias que faziam residências no nosso território, e entrou nas
habitações das famílias brasileiras.
O nosso objetivo é perceber como o uso de determinados artefatos faziam
parte do arranjo paisagístico do processo civilizador capitalista a nível local levado a
efeito pelas as elites locais. Através dos objetos domésticos percebemos como esse
processo interfere até mesmo em pequenos comportamentos do cotidiano. Um bom
exemplo são os bens relacionados com a higiene da sociedade. Estes eram bastante
necessários numa sociedade que ainda não possuía sistema de encanamento. Notamos
que um dos motivos que levaram a sociedade a modificar seus comportamentos foi a
questão higiênica. Analisando as louças (jarra, bacia e saboneteira) de fabricação
alemã12 notamos que sua utilização significava muito mais do que uma função
higiênica. Acreditamos que esses objetos possuíam função de distinção13que
representava status e pertencimento a um circulo social restrito. Assim como Norbert
Elias, também pensamos que as modificações comportamentais não foram motivadas
apenas por motivos salutares, mas também por questões sociais de distinções (ELIAS,
1994).

A historiografia cearense no que se refere à cultura material é muito escassa,


principalmente em relação a esse recorte temporal utilizado em nossa pesquisa. Mas
mesmo assim alguns trabalhos são de suma importância para entendermos a
urbanização da cidade de Fortaleza, o crescimento econômico, os locais onde eram
realizados o comércio e os usos sociais desses produtos domésticos.
A urbanização do final do século XIX e início do século XX, as alterações
comportamentais, materiais e civilizacionais, se fizeram presente nas pesquisas locais
através do trabalho de Ponte (2011). As práticas de controle higiênico, instalações de
ferrovias, a criação da academia francesa, a iluminação a gás, as construções de
logradouros, o plano urbanístico de Adolfo Herbster, os cafés (Java, Elegante, Comércio
e Iracema), os bondes puxados a burros e os casarões das elites davam ares de
modernidade, o que acabou estabelecendo possibilidades de pesquisas quando o assunto
é civilidade, modernização ou urbanização. Porém esse trabalho, que nos serve de
pontapé inicial, possui algumas lacunas, pois só analisa essas transformações

12
Conjunto Franzant Mehlem-Germany. Quantidade: 4 . Pertencia a Juvenal Galeno. Estilo: século XIX.
13
Utilizamos o conceito de distinção proposto por Pierre Bourdieu (2008). Este acredita que o gosto e o
consumo são símbolos de poder e refletem códigos socialmente produzidos capaz de identificar e
diferenciar grupos.
22

civilizadoras no âmbito publico, com isso, acaba por não realizar um estudo do interior
das residências com seus respectivos objetos, estes que também demonstravam a
inserção desses citadinos nesse projeto civilizador.
No âmbito do crescimento econômico e das firmas comerciais
responsáveis pela a importação de produtos domésticos temos os trabalhos de Takeya
(1995) e de Nobre (1991). Os dois trabalhos contribuem na medida em que mostram a
“gênese” do comércio cearense com a criação da Associação Comercial do Ceará e com
o estabelecimento de diversas casas comerciais no território cearense. Os agentes
consulares, as 84 firmas estrangeiras, os produtos importados por essas firmas, a
maneira que as famílias compravam esses objetos, todas essas informações são
pertinentes para notarmos a trajetória dos produtos domésticos desde a sua produção até
o seu consumo. No entanto, esses dois trabalhos nos mostram apenas a produção e o
consumo dos objetos. E o nosso objetivo se concentra em analisar o uso social dos
objetos e as modificações que estes provocaram entre seus usuários ao estabelecerem
ligações entre vida material e os comportamentos da rotina.
O trabalho de Thiago Schead de Souza (SOUZA, 2008) é indispensável a
esta pesquisa por ter realizado uma análise da vida material dos fortalezenses.
Utilizando a década de 1940 como recorte, o autor tenta mostrar o processo de
americanização da capital cearense através da chegada de diversos produtos importados.
Também mostra a heterogeneidade do conceito de modernidade estabelecido nesse
período e como os novos produtos potencializaram as modificações dos hábitos e
costumes da sociedade fortalezense. Apesar desse trabalho possuir um recorte temporal
diferente da nossa pesquisa, ele nos serve de maneira metodológica, pois também
realiza uma analise das experiências ambíguas da modernidade, das formas de uso dos
produtos e das práticas de consumo.
Então, colocamos aqui a singularidade da nossa pesquisa, pois entendemos a
casa com seus objetos como símbolos culturais que expressam a rotina da sociedade em
foco. A moradia não representa apenas um espaço geográfico, mas sim uma esfera
social, cultural e econômica de uma família, ou até mesmo de uma sociedade. Os
objetos inseridos numa habitação nos permitem um estudo capaz de nos mostrar
relações sociais, estilos de vidas, distinções e o tipo de cultura que está inserida nas
casas fortalezenses daquela época. Seguindo esse pensamento nos levantamos algumas
indagações que nortearam o nosso trabalho: em que medida os lares de alguns membros
da elite refletiam a incorporação da cidade de Fortaleza no processo civilizador
23

capitalista? E quais eram esses objetos que mostravam aspectos de civilidades perante a
sociedade?
Sobre as fontes utilizadas para o desenvolvimento da pesquisa, destacamos os
inventários post-mortem14, jornais15 e obras literárias16, os objetos museológicos
presentes na Casa de Juvenal Galeno17, relatórios dos presidentes da província do
Ceará18, relatórios de viajantes19, os códigos de posturas20 e iconografia que
representam as imagens das habitações ou objetos do período.
A utilização dos inventários post-mortem nos ajuda a conhecer a cultura
material do espaço doméstico, a vida privada dos inventariados e o poder econômico
desse grupo específico. É possível notar quais objetos estavam presentes nos lares das
famílias fortalezenses. E através do levantamento dos valores econômicos dos bens
descritos e das profissões estabelecidas pelos inventariados, conseguimos identificar de
uma melhor forma os membros da elite fortalezense.
Com as obras literárias, periódicos e relatos de viajantes conseguimos
entender melhor o período em questão. A literatura faz com que compreendamos a
semiótica em torno dos objetos domésticos e das habitações da época. Com elas não
sabemos apenas que artefatos estavam nas casas, mas também como estes eram
utilizados. Os periódicos mostram como era o comércio desses objetos. E os relatos dos
viajantes descrevem os hábitos e costumes da região.
Tendo como o objetivo entender o discurso civilizador pautado pelos
governantes cearenses, utilizamos os relatórios dos presidentes de província. Com estes

14
Os inventários examinados estão todos catalogados no Arquivo Público do Ceará. Esses documentos
encontram-se no setor do Cartório dos Órfãos (Todos datados entre os anos de 1871 a 1893).
15
O Cearense, Jornal do Ceará, Tribuna Comercial, O Diário e o Jornal do Commercio.
16
As obras, com as suas respectivas datas dos enredos, são: A Normalista (CAMINHA, 1895), 1886, A
Fome (TEÓFILO, 1979), 1880, A Afilhada (PAIVA, 1952), 1882, O Sismas (PÁPI JUNIOR, 1898),
1880, A Divorciada (COTILDE, 1996), 1880, e Mississipi (BARROSO, 1961), 1880.
17
Os objetos que foram utilizados por Juvenal Galeno eram: jarra, bacia e saboneteira de louça alemã
(século XIX), faqueiro de prata com o dístico “m.c.t.s.” (século XIX), conjunto de louças de porcelana
com o dístico “m.c.t.s” (século XIX), cadeira de madeira com assento e encosto de palhinha.jacarandá
(1887) e jarro de porcelana inglesa (1887).
18
Realizamos uma análise nas partes referentes as reformas urbanas e habitacionais referente ao período
de 1871 a 1893.
19
Os relatórios são narrativas das impressões do viajante. Destacamos os viajantes Freyre Alemão (2006)
e Henry Koster (2003).
20
Analisamos os Códigos de Posturas de 1865, 1870 e 1879, presentes nos atos legislativos da Província
do Ceará.
24

identificamos os desejos, as representações, os planos e as questões administrativas


colocadas pelos estadistas. E assim, conseguimos observar e questionar a Fortaleza
pintada pelos políticos.
Os Códigos de Posturas são uma das melhores fontes para entender a captar a
cidade, pois abordam sobre diferentes temas, dentre eles arquitetura das casas, as
atividades comerciais, as normas dos logradouros, as estruturas das calçadas e ruas, a
segurança pública, dentre outros aspectos. Os artigos eram elaborados pela Câmara
Municipal e enviados para a análise na Assembleia Legislativa, para posteriormente
serem sancionados em lei pelo presidente da província.
Em relação aos conceitos utilizados, destacamos capitalismo, civilização,
tradução cultural, vida material, consumo, distinção e elite. Os quatros primeiros são
expostos como referenciais teóricos centrais, pois norteiam e estão presentes em todo o
trabalho. Os demais são colocados como auxiliares, pois nos ajudam a entender
problemáticas que surgem nos capítulos.
É importante salientar que todos os conceitos utilizados em nossa pesquisa
não são fórmulas prontas, que se enquadram de maneira perfeita a nossa problemática
central, pois surgiram em épocas e espaços diferentes. Então é necessário, antes de tudo,
frisarmos que eles são utilizados dentro de seus limites metodológicos, na relação
estabelecidas com nossas fontes e nas devidas interpretações das mesmas.
No início da introdução conceituamos e relacionamos capitalismo, civilização,
vida material e tradução cultural. Mostramos que a expansão do capitalismo produziu
produtos para as zonas periféricas e os agentes capitalistas aliados aos governos locais
criaram a necessidade desses bens. Estes exigiam novos comportamentos, ditos
civilizados pelas nações centrais. Esses produtos não eram consumidos por todos, pois
apenas as elites cearenses possuíam poder econômico para adquiri-los.
Com intuito de perceber quais eram os personagens que faziam parte das
elites de Fortaleza, utilizaremos os critérios colocados tanto por Mosca21 quanto
Busino22. Os dois pensadores colocam que os critérios para definir essa camada social
são: a riqueza, o lugar social de nascimento e o mérito. Para esses autores em toda
sociedade existi uma minoria privilegiada que subordina a maioria. As reflexões deles
não se resumem a uma analise simplista da sociedade dividindo-a apenas em duas
camadas sociais antagônicas. Pois acreditam que a camada privilegiada tem

21
Gaetano Mosca, filósofo italiano nascido na segunda metade do século XIX.
22
Giovanni Busino, sociólogo suíço, nascido no século XX.
25

estratificações. Assim, ocorre a existência de varias elites em uma mesma sociedade:


elite econômica, elite religiosa, política etc. (HOLANDA, 2011)
Através do conceito de “distinção”, desenvolvido por Pierre Bourdieu (2008),
buscaremos compreender o gosto e o consumo de determinados artefatos como um
gesto de diferenciação. Para Bourdieu, o gosto é um símbolo de poder, de
reconhecimento entre os semelhantes e exclusão dos que não pertencem ao mesmo
grupo. Ou seja, o consumo é analisado como um código socialmente produzido capaz
de identificar e diferenciar grupos.
A partir das problemáticas levantadas e da leitura das fontes, elaboramos o
seguinte plano. A divisão do trabalho foi organizada em três capítulos com intuito de
resolver as questões colocadas: o primeiro “A inserção de Fortaleza no processo
civilizador capitalista: modificações no ambiente público e privado”, nesse capítulo o
intuito é mostrar as modificações que ocorreram na cidade de Fortaleza durante o final
do século XIX. Exibir o discurso civilizador do poder público e as tentativas dos
governantes em inserirem novas práticas no cotidiano da sociedade em questão. Em um
primeiro momento mostraremos as transformações civilizatórias no âmbito público e
posteriormente as modificações que ocorreram no espaço privado. Em outro momento
vamos identificar quais residências eram essas que procuravam seguir os modelos
civilizatórios do período. Seja através das modificações arquitetônicas dos lares ou a
partir do consumo e do uso social de determinados objetos domésticos. Então, a
principal função desse capítulo é fazer com que o leitor perceba as modificações
ocorridas no espaço público e privado de Fortaleza.
No segundo “A expansão capitalista chega ao Ceará: a inserção da capital
fortalezense a partir do consumo material (1871-1893)” é explanado como comércio se
desenvolveu na capital cearense durante a segunda metade do século XIX. Mostraremos
os principais motivos econômicos que fizeram com que as transações comerciais se
desenvolvessem na cidade. No início é realizada uma reflexão sobre o desenvolvimento
do capitalismo nas nações europeias e como esse se expandiu para os demais
continentes. E na parte final focamos na circulação dos objetos domésticos, que eram
exportados e importados através de navios a vapores e consumidos a partir de leilões e
de transações com casas comerciais estrangeiras.

O terceiro e último capítulo “Notáveis moradores: a casa de Juvenal Galeno e o


sobrado do Dr. José Lourenço” tem como objetivo mostrar quais os produtos que mais
26

estavam presentes nos inventários analisados. A intenção é realizar uma análise dos
inventários referentes ao período em foco. A partir dessa fonte “reconstituiremos” os
compartimentos que existiam nas residências durante o final do século XIX (ressaltando
duas residências do período). Nossa preocupação é mostrar o significado de cada espaço
e objeto dos lares, bem como, seus valores sociais e signos que atendiam aos rumos da
civilidade e do progresso. Então, a casa, seus cômodos, seus objetos e moradores serão
analisados nesse capítulo para reconhecermos a representação da cultura material no seu
cotidiano.
27

2. A INSERÇÃO DE FORTALEZA NO PROCESSO CIVILIZADOR


CAPITALISTA: MODIFICAÇÕES NO AMBIENTE PÚBLICO E PRIVADO.

Este capítulo está dividido em dois tópicos. O primeiro (A Fortaleza do Final


do Século XIX: Elementos da Civilização) mostra as transformações urbanas que
ocorreram na capital cearense durante o final dos oitocentos. Este tópico apresenta-se
subdividido em cinco subtópicos: no primeiro, é estabelecida uma reflexão sobre a
importância que o governo cearense dava a construção da estrada ferro de Baturité. E
como essa sempre se encontrava associada com as práticas capitalistas e civilizadoras;
no segundo, destacam-se as casas comerciais estrangeiras que se instalaram em
Fortaleza durante as três últimas décadas do século XIX. As firmas estrangeiras são
colocadas como marcos da chegada de agentes capitalistas na cidade e a inserção dessa
no processo civilizador capitalista; no terceiro, é analisada planta topográfica da cidade
de Fortaleza e subúrbios (1875) no intuito de notar a vontade do governo em civilizar a
cidade; no quarto, trabalhamos as secas de 1877, 1878 e 1879 mostrando como essas
estiagens foram utilizadas pelo capitalismo; e no quinto, é feito um estudo sobre os
logradouros (em especial o Passeio Público) reformados ou construídos na cidade
durante o período.
O segundo tópico (Domicílio Fortalezense: Transformações na Estrutura
Material e dos Objetos Domésticos Durante o Século XIX) apresenta as modificações
que ocorreram nos lares de Fortaleza no decorrer dos oitocentos. Mudanças essas que
estavam intimamente ligadas com o crescimento econômico da capital. Este tópico
encontra-se subdividido em três subtópicos: no primeiro, são exibidos os materiais, a
arquitetura e os objetos que formavam as habitações cearenses no inicio do XIX; no
segundo, é realizado algo semelhante ao primeiro só que em referência as residências do
final do século; e no terceiro, problematizamos a relação dos códigos de posturas do
período que exigiam transformações estruturais nos lares.

2.1. A Fortaleza do final do século XIX: elementos da civilização

Fazendo os mais sinceros votos pelo progresso moral e material d`esta


esperançosa província, e pela prosperidade do governo de V. Exc., resta
congratular-me com V. Exc. Pela nova occasião, que se lhe offerece de,
continuar a bem servir á causa pública, e com a província por ter, mas uma
28

vez, de sentir os benéficos effeitos da administração de V. Exc., quem sobrão


patriotismo e bons desejos.23

Analisando essa pequena conclusão de um relatório de província realizado


pelo Barão de Taquary ao comendador Joaquim da Cunha Freire percebemos que no
final do século XIX os governantes estavam pautados em ideias que remontavam a
moral, ao patriotismo, ao progresso e a civilização. É observando esses relatos do poder
público que pretendemos perceber como os políticos mostravam a capital cearense e
como viam a situação de Fortaleza nesse ininterrupto processo civilizador.

A cidade que se encontra presente nos relatos “oficiais” é uma urbe que
parece estar no caminho do progresso. Nos documentos, a sociedade que habita nela é
ordeira.24 Neles, as transformações urbanas se desenvolvem seguindo os modelos de
civilidade capitalista europeu25; a salubridade é algo que se tenta alcançar com a
tentativa de controlar as epidemias que apareciam.26 O que notamos nessas narrativas é
uma capital que está à frente das demais cidades da província e que segue o rumo da
civilização dos outros eixos econômicos do país e também da Europa.

Essas mensagens do poder público eram relatórios anuais apresentados na


Assembleia Legislativa que mostravam informações panorâmicas sobre o Ceará, sobre
educação, economia, salubridade pública, instrução pública, eleições, obras públicas etc.
Estamos cientes que estes documentos estão repletos de particularidades e intenções.
Por isso, damos relevância ao contexto sócio-histórico que foram realizados, como
também aos sujeitos que os produziram (CERTAU, 1982). O que realizamos aqui não é
apenas mostrar a Fortaleza pintada por esses governantes, mas também questionar e
problematizar esse enunciado civilizador existente.

23
Mensagem de 08/01/1872 - Barão de Taquary. p. 37 (Relatório de Presidente de província).
24
Apesar de notar em alguns relatos dos governantes que a população de Fortaleza é ordeira,
encontramos, durante o mesmo período, nos relatórios dos presidentes da Província do Ceará (relatório de
1881) altos índices de homicídios na capital, crimes e desordem causados pela embriaguez, inúmeras
propriedades furtadas, estupros etc.
25
Observamos nos relatos dos políticos cearenses que a capital da província encontrava-se em um
processo de desenvolvimento, esse que possuía inúmeras contradições. Analisando as fontes foi possível
notar que o discurso público colocava Fortaleza como uma cidade que não estava em um “estágio” de
civilização semelhante as metrópoles europeias. Aliais para muitos críticos (RIO, 1987) do período nem
mesmo a capital do Brasil (Rio de Janeiro) tinha desenvolvimento urbano semelhante.
26
O desejo de uma cidade “moderna” e civilizada, segundo o discurso dos médicos-higienistas, só seria
concretizado se a mesma tivesse boas condições de salubridade, fato esse que só seria possível se os
enfermos fossem medicados e as casas e ruas higienizadas. Os sanitaristas alertavam sobre os cuidados
em relação aos pântanos, cemitérios, lazaretos e abarracamentos. Esses espaços deveriam ser
constantemente fiscalizados e higienizados. Mas apesar de toda essa tentativa em limpar a cidade,
percebemos nos relatórios (principalmente durante o período das secas) as precárias condições sanitárias
da capital (GARCIA, 2014).
29

Assim, antes de trabalharmos diretamente com o nosso objeto de pesquisa,


acreditamos ser necessário mostrar que capital cearense era essa do final do século XIX.
Analisar o cenário urbano da cidade é fundamental para compreendermos o nosso
objeto, pois é fácil notar que as reformas urbanas realizadas pelo poder público eram
utilizadas para legitimar a capital como um ambiente civilizado (PECHMAN, 2002) e
que essas transformações no âmbito público estavam relacionadas com os aspectos
privado.

Os governantes cearenses, os agentes capitalistas e as elites locais possuíam a


intenção de civilizar a população, através de dispositivos legais do governo, do
consumo dos produtos comercializados pelas casas comerciais e de comportamentos
exemplares das famílias elitistas. Nesse primeiro capítulo frisamos as intervenções
urbanas (ruas, praças e moradias) que foram embasadas em conhecimentos da
engenharia civil, medicina social e higienista, ditos civilizados.

Entendemos que para falar de civilização temos que ressaltar a importância da


cidade, pois é nesse espaço que ocorre a formação da civilidade. Nesse ambiente urbano
é onde acontecem as relações com outros países e civilizações diferentes. Na urbe temos
as informações sobre notícias, modas, ideias, preconceitos, economia, política etc. Nela
os meios de comunicação constroem e difundem padrões coletivos fazendo com que
seja o espaço ideal para a formação de uma opinião pública.

Nessa Fortaleza do final do século XIX percebemos o processo civilizador


ocorrendo a partir da contenção, do enquadramento, da legitimação e da sedução. As
três primeiras ocorrem com a vigilância médica, intervenção policial, segregação social,
controle da urbanização, códigos de posturas etc. E a última acontece com a
preocupação do governo com a aparência da cidade. Notamos uma vontade estetizante
do poder público em moldar Fortaleza aos moldes europeus. Seja representando uma
imagem civilizada da mesma, forjando o cidadão ou instalando monumentos urbanos.

É bem verdade que as principais capitais brasileiras atravessaram uma série


de mudanças durante esse período em questão. As reformas urbanas e sociais foram
intensas. A proclamação da república e o processo de abolição da escravatura foram
acontecimentos que fizeram surgir novos valores sociais. Todas essas modificações
culturais, sociais e econômicas que ocorreram no Brasil durante as três últimas décadas
do século XIX foram influenciadas pelo processo de expansão do capitalismo mundial.
30

As modificações urbanas e sociais que ocorreram nas principais cidades


brasileiras foram realizadas a partir dos desejos de uma classe dominante que possuíam
inúmeros anseios em inserir a sociedade no processo civilizador capitalista. Tais
modificações citadinas tinham como objetivo alinhar os núcleos urbanos locais aos
padrões de civilização difundidos pelas metrópoles europeias.

De antemão queremos frisar que a Fortaleza desse período não possuía uma
grandeza econômica, social e industrial semelhante aos outros centros urbanos
econômicos do país. E muito menos aos europeus. Estamos cientes que a capital
cearense não experimentou modificações urbanas e sociais tão intensas como as que
marcaram os outros centros econômicos citados. Compreendemos o centro urbano
alencarino como uma região que estava em “constante” desenvolvimento. Notamos a
cidade se inserindo aos poucos na civilização mundial. Era como essas reformas
urbanas marcassem as primeiras etapas de um longo processo civilizador.

Assim como Norbert Elias, pensamos a civilização como um processo que


possui singularidades espaciais e temporais. “O que estamos tentando expressar dessa
maneira são diferenças no tipo e estágio do processo civilizador que essas sociedades
atingiram” (ELIAS, 1994, p. 15).

Durante a segunda metade do século XIX a economia da província do Ceará


cresceu devido o aumento da sua produção e venda algodoeira. As exportações do
algodão cearense começaram a crescer graças ao contexto mundial. A Revolução
Industrial, na sua primeira fase caracterizada pelo setor têxtil, exigia maior demanda de
matéria prima. E a Guerra Civil norte-americana gerou queda na produção dos Estados
Unidos, com isso, houve o crescimento da exportação cearense para “substituir” os
antigos mercados americanos. Assim, a cotonicultura foi o primeiro mercado exportador
alternativo a produção açucareira, contribui para o desenvolvimento de algumas vilas,
principalmente Fortaleza e proporcionou a instalação de casas comerciais estrangeiras.
Crescimento do comércio exportador, aumento da circulação de capital, maior
circulação de valores, hábitos e produtos europeus aportados nas firmas estrangeiras e
nas habitações de estrangeiros na capital, eram elementos que mostravam a inserção da
capital cearense no processo civilizador capitalista.

A partir daí, foram construídas em Fortaleza os primeiros sobrados, belas casas


e fachadas, calçamento, bondes de tração animal e iluminação a gás carbônico. De uma
31

maneira geral as principais reformas que ocorreram na cidade, durante o período em


questão, foram: implantação da estrada de ferro Fortaleza-Baturité (1873), chegada de
várias firmas estrangeiras (Gradvhol & Filhos, Exportadora Cearense, Salgado, Filho &
Cia, Levy Frères, Benoit Levy & Dreysfuss, Reishofer Frère, Clement Levy & Cia,
Féliz Libastres & Cia e a Boris Frères), alargamento das principais vias públicas com
calçamentos através do plano urbanístico de Adolfo Herbster (1875), utilização dos
bondes de tração animal, instalação da rede de iluminação a gás carbônico (1866), da
canalização de água (1867), do serviço telefônico (1883) e de caixas postais, criação das
linhas de navio a vapor para a Europa e Rio de Janeiro (1866) e de um cabo submarino
para a Europa (1882) e abertura da Santa Casa de Misericórdia (1861), do Asilo de
Alienados e Asilo de Mendicidade (1886) (PONTE, 2001).

2.1.1. “O progresso e engrandecimento d`esta província depende de vias férreas”:


A construção da estrada de ferro de Baturité (EFB)
Uma das principais reformas urbanas que marcou a Fortaleza dos anos 70 do
século XIX foi a instalação da via férrea Fortaleza-Baturité (1872). Esse
empreendimento foi responsável pela ligação das duas cidades, fato esse que dinamizou
a circulação do algodão. As ferrovias, quando surgiram, foram financiadas por empresas
privadas inglesas, mas o desenvolvimento e consolidação desse transporte se deram
através do apoio do governo imperial, cujo discurso tinha como objetivo expandir o
comércio (CÂNDIDO, 2005).
Existiam quatro projetos cearenses de ferrovias que foram anunciados entre o
período de 1864 a 1880, foram eles: Projeto Fortaleza – Pacatuba –Baturité – Crato
(1864), Projeto Mundaú – Itapipoca – Imperatriz (1865); Projeto Aracati – Icó – Crato
(1873) e Projeto Acaraú – Sobral – Ipu (1873) (ASSIS, 2011). Todos esses planos
colocavam como os objetivos primordiais dessas ferrovias: capturar a produção de
algodão das serras e intensificar o comércio do interior com alguns portos do litoral.
Dos quatros projetos apresentados apenas o primeiro foi realizado. Acreditamos
que a construção dessa estrada de ferro começou a colocar a centralização econômica da
província na capital fortalezense. A partir desse empreendimento, Fortaleza tornasse
centro econômico da província obtendo assim hegemonia política e centralização
comercial dos produtos de exportação.
A existência de quatro projetos e a concretização de apenas um, mostra a vitória
da elite fortalezense frente os demais projetos liderados pelas outras elites regionais.
32

Com isso essa camada social conseguiu que a produção algodoeira passasse pelo porto
de sua região para exportação. A principal disputa encontrava-se entre a centralização
na enseada de Fortaleza e a de Aracati. A segunda vila era a principal responsável pela a
exportação de produtos, mas na medida em que a estrada de ferro de Baturité foi
construída Fortaleza desbanca Aracati.
Para a construção da EFB (estrada de ferro de Baturité) foi criada a Companhia
Cearense da Via Férrea de Baturité, entre os anos de 1870-1872 (CAMPOS, 1982). Essa
empresa era formada pela elite comercial e política cearense junto com comerciantes e
engenheiros estrangeiros. Figuras como Senado Pompeu, José Pompeu de Albuquerque
Cavalcante, Joaquim José de Cunha Freire (Barão de Ibiapaba), Gonçalo Batista Vieira
(Barão de Aquiraz) e o negociante inglês Henrique Brocklehurst27 faziam parte dessa
Companhia (ASSIS, 2011).
A edificação da Estrada foi apresentada em quatro etapas: a primeira foi
estabelecida entre Fortaleza e Arronches; a segunda, de arronches a Maracanahu; a
terceira, de Maracanahu a Maranguape; e a quarta, de Maracanahu a Pacatuba. A
construção da estrada ocorria a partir da importação de materiais estrangeiros, com
madeiras, trilhos e locomotivas. Estes que eram adquiridos nas praças de Liverpool
mediado pelo negociante Henrique Brocklehurt (ASSIS, 2011).
Em 1872, ocorreu a construção da primeira seção (Fortaleza – Arronches) e
somente em 1875 a estrada chegava ao sopé da Serra de Pacatuba (possuindo ainda
cerca de trinta e três quilômetros) (ASSIS, 2011). Depois de 1875 as atividades no
levantamento da estrada foram cessadas, pois o empreendimento não estava dando o
lucro esperado e, devido ao contexto mundial (reerguimento do comercio norte-
americano), a exportação de algodão não estava mais rendendo o lucro de 1860
(HOBSBAWM, 2003). Chegando até mesmo, em 1878, ocorrer a venda da Companhia
Cearense da Via - Férrea de Baturité para o Governo Imperial (ASSIS, 2011). A
construção da EFB só se concretizaria em 1880 (possuindo noventa quilômetros),
depois das estiagens de 1877, 1878 e 1879.
A materialização do Projeto ferroviário Fortaleza-Pacatuba-Baturité mostra a
inserção do Ceará no contexto comercial mundial. A província cearense começa a
ganhar destaque nas relações comerciais com a França e a Inglaterra. Trata-se de ser o

27
Comerciante inglês sócio representante da casa comercial R. Singleburst & Co. no Ceará. Este
estabelecimento estrangeiro era o mais antigo da província (1811) e o principal responsável em ter dado
início ao comércio cearense com a Europa (TAKEYA, 1995).
33

período da expansão do processo civilizador capitalista, que espacialmente,


culturalmente e economicamente inseriu a região cearense – na zona central do
capitalismo- como exportador de matéria-prima e consumidor de produtos
industrializados.
O discurso do poder público que estava à frente da construção dessas estradas
de ferro estava pautado no progresso. As ferrovias que surgiram no Brasil durante o
final do século XIX, além do objetivo de transportar mercadorias também tinha a
intenção simbólica de legitimar a mensagem de civilização e progresso. Esse meio de
transporte venceu grandes distâncias e permitiu transações comerciais com regiões até
então impensáveis. O trem era a prova viva da travessia do capitalismo pelo atlântico e
chegando no Brasil. É o marco da expansão capitalista além da Europa, chegando até
mesmo ao interior do território brasileiro.
Nos relatório de província do Ceará de 1872 é relatado que “O progresso e
engrandecimento d`esta província depende de um porto abrigado, e de vias férreas” 28.
Notamos a importância das vias férreas para o desenvolvimento do comércio, pois
através dos trens a produção serrana de Baturité iria chegar mais rápido ao porto da
capital. A construção dessas estradas, de acordo com a fala dos governantes, era um
ponto primordial para o desenvolvimento capitalista da província. Em outra passagem
do mesmo relatório analisado podemos perceber a ideia de um futuro promissor graças a
esse tipo de transporte:

O futuro d`esta bella província, como do Brazil todo, está dependendo das
emprezas que teem por base principal encurtar as distâncias, aproximar os
centros productores dos mercados consumidores, e diminuir os sacrifícios dos
transportes, que actualmente absorvem uma grande parte dos valores dos
productos.29

Esse pequeno relato ocorreu um ano antes da inauguração da via férrea de


Baturité. Percebemos que antes da sua inauguração existia uma grande ambição no que
se refere a essa reforma. Ambição esta que vai perpetuar durante toda a década de 1870,
pois a construção completa dessa via férrea só ocorreu em 1880, depois do trabalho
árduo de inúmeros retirantes da seca de 1877, 1878 e 1879 (SILVA, 2013).
Portanto, cremos que a construção da EFB representa a inserção da elite
cearense no processo civilizador capitalista. Foi a partir dessa empreitada que até
mesmo as regiões interioranas da região estabeleceram relações comerciais com as

28
Mensagem de 20/10/1872 - João Wilkens de Mattos. p, 45.
29
Idem. p. 46.
34

nações estrangeiras. A exportação de matérias-primas e o consumo de produtos das


casas comerciais estrangeiras ficaram cada vez mais concretos devido a edificação da
estrada. A capital Fortaleza foi fortalecida e adquiriu a centralidade econômica da
província devido a via férrea de Baturité (que tinha ligação direta com o porto da
capital), com isso, a cidade cresceu economicamente. Crescimento que foi refletido,
principalmente, nas transformações urbanas trabalhadas nessa primeira parte do
capítulo.

2.1.2 O capitalismo chega ao Ceará: instalações de casas comerciais em Fortaleza

A chegada das firmas estrangeiras na cidade de Fortaleza foi outro


acontecimento que fez com que dinamizasse as relações capitalistas na província
cearense. O comércio cearense estava se desenvolvendo durante a segunda metade do
século XIX, devido tanto à criação da Associação Comercial do Ceará30 que estava
garantindo a organização e a estimulação do comércio de manufaturados e matérias
primas da cidade de Fortaleza com países estrangeiros como também da capital com
vários pontos comerciais do interior, da própria província e com outras do Brasil. Outro
motivo desse crescimento deveu-se à chegada das casas comerciais, pois essas
contabilizavam ao todo 84 estabelecimentos estrangeiros com filiais de empresas que
existiam em seu país (NOBRE, 1991).
Dessas 84 “firmas” a maioria eram inglesas e francesas, sendo que a
primeira era responsável por produtos industrializados e manufaturados enquanto as
empresas francesas estavam responsáveis por garantir a importação de artigos de luxo e
estes, por sua vez, vão acabar influenciando muito na maneira de se vestir, de comer, de
andar, de se comportar à mesa, de receber uma visita em sua residência, de dormir, de
cozinhar e de beber. Ou seja, modificações nos costumes da população cearense.

30
Órgão criado por particulares que tinha como objetivo principal controlar e organizar as firmas
comerciais do Ceará. A Associação Comercial do Ceará se preocupava em garantir o desenvolvimento
econômico do Estado fazendo relações com comerciantes estrangeiros. Essa organização realizava os
seguintes serviços: elaboração de lista de gêneros de exportação remetida aos jornais para publicação e
intercâmbios e informações com outras associações comerciais do país, tentatav, até mesmo, resolver
problemas econômicos e sociais, se preocupava em realizar a abertura de estradas que fizesse uma
conexão comercial entre interior e litoral, a instalação de uma filial do Banco do Brasil para
financiamentos da produção e ao comércio, desejava a construção de uma empresa de navegação própria
para o Ceará para deixar de ser dependente do Maranhão e de Pernambuco; a construção de um cais em
Fortaleza e a proteção do ancoradouro de Aracati, a construções de açudes tentando resolver os
problemas da seca e entre outras medidas que sempre tiveram o objetivo de sensibilizar os governantes
para que melhorasse cada vez mais a província cearense (NOBRE, 1991).
35

As principais firmas francesas começaram a se instalarem na província


cearense no início da década de 1870. Essas em sua maioria realizavam comércio de
exportação e importação. Assim nos conta Takeya:

Dentre as cinco casas comerciais francesas que se estabeleceram na


província, no começo da década de 70, três mantiveram-se como casas
importadoras-exportadoras estrangeiras de importância, no contexto da
economia cearense, ao iniciar-se a década de 80: a própria Boris Fréres, a
Gradvohl Frères e a Lévy Frères (TAKEYA, 1995. p. 137).

As instalações de casas comerciais estrangeiras no território cearense mostra


a inserção da região no processo civilizador capitalista. Esses estabelecimentos
comerciais se fixaram na região devido a influência de agentes consulares que primeiro
visitavam a região para observar a viabilidade de instituir as firmas. As primeiras
empresas estrangeiras escolheram o Ceará devido a pouca concorrência que iriam
encontrar na região, pois, comparada com as outras partes do Brasil, o território
cearense possuía poucas casas estrangeiras.
A escolha de Fortaleza para a instalação de filiais estrangeiras ocorreu devido
a capital ser polo centralizador do comércio do estado, pois ocorria ligação comercial
com outras regiões da província através da estrada de ferro de Baturité (EFB), que aos
poucos foi sendo construída na região. Através da instalação definitiva das casas
comercias durante a década de 1870 vamos perceber maior atuação destas no que se
refere a expansão comercial do Ceará. Observando melhor o processo do comércio
desses estabelecimentos vamos perceber que durante esse período existiam dois polos
econômicos desse processo: um era em Paris e o outro nas vilas interioranas do estado
cearense. Nas décadas de 1870 e 1880 as firmas mantinham relações comerciais com
Acaraú, Iguatu, Aracati, Iibiapina entre outras cidades cearenses. Esse comércio
acontecia através da importação de produtos estrangeiros de luxo comprados pelas
cidades interioranas e em troca ocorria a exportação de matéria prima (TAKEYA,
1995).
Vários eram os produtos que eram importados da Europa e tinha destino ao
consumo da província, o comércio era bastante diversificado ocorrendo a importação de
mercadorias de muitas nações europeias. Entre esses produtos importados para a
província cearense a prioridade era por tecidos de origem inglesa e de preferência fino e
mais barato para o consumo popular. Logo após os tecidos as outras mercadorias mais
comercializadas eram artigos de luxo franceses, como peças de vestuário (camisas,
lenços, chapéus, botinas francesas, leques, luvas etc.), perfumaria, objetos de decoração
36

(vidrarias), vinhos, conservas, manteiga, drogas, artigos de armarinho e papelarias


(TAKEYA, 1995).
Portanto, acreditamos que a presença dessas casas comercias representavam a
inserção de Fortaleza no processo civilizador capitalista. A chegada de vários agentes
comerciais, que estabeleceram relações com a elite e o governo local, fizeram com que a
população “criassem gosto” pelos produtos estrangeiros (WALLERSTEIN, 1983). Assim,
começava a ocorrer o consumo desses produtos europeus e estes exigiam um novo
comportamento. Ou seja, acreditamos que a elite fortalezense se insere no processo civilizador
capitalista através do consumo de objetos estrangeiros. 31

2.1.3. A civilização em cada centímetro: a planta topográfica da cidade de


Fortaleza e subúrbios (1875)

No contexto das estratégias de inserção das elites locais no processo


civilizador capitalista, em 1875, Adolfo Hersbster32 concluiu a “Planta Topográfica da
Cidade de Fortaleza e Subúrbios”. Esse projeto urbano se caracterizava pela vontade de
expandir a capital para além do seu limite central. A partir desse plano foram
construídas três avenidas (as atuais Duque de Caxias, D. Manoel e Imperador). A
construção dessas boulevards33 além de ter como objetivo embelezar a cidade também
garantia maior controle sobre os futuros motins e barricadas urbanas que viriam a surgir.
Para o historiador Raimundo Girão o plano urbanístico se caracterizava assim:

As linhas do enxadrezamento vão longe. Para leste, até a Rua Aldeota (hoje
Nogueira Acioli); para o sul, até a rua dos coelhos (Domingos Olimpio), e
para o oeste até as praças Gustavo Barroso e Paulo Pessoa. Alguns arruados
mal dispostos aqui e ali tiveram que desaparecer para quer prevalecesse os
alinhamentos das quadras ou quarteirões projetados. Somente não mataram
estes a rua que fizera ao longo da estrada de Messejana (Av. Visconde do Rio
Branco), porque a necessidade dessa artéria, para o transporte dos

31
O intuito desse tópico foi apenas de situar a importância das casas comercias na consolidação do
capitalismo e na inserção da sociedade fortalezense no processo civilizador capitalista. Uma melhor
análise sobre as firmas estrangeiras e os produtos que eram comercializados na região encontra-se no
segundo capítulo desse trabalho.
32
Engenheiro pernambucano filhos de pais franceses. Tonou-se funcionário da província cearense a
partir de 1857. Foi responsável pela elaboração de diversas obras públicas, mas ganhou destaque na
historiografia cearense pela elaboração de tres plantas urbanísticas da cidade de Fortaleza (1859, 1875 e
1888) (CASTRO, 1994).
33
Esse termo representa a sintonia das elites locais com a civilização capitalista. “Boulevard” tem sentido
de pertencimento. A palavra é utilizada para magnificar a avenida e tem relação com o desejo de
pertencer, de estar inseridas no processo civilizador capitalista, de procurar uma “parentela” com as
cidades centrais, como Paris por exemplo.
37

abastecimentos vindos dos tabuleiros do Ceará, era mais vital que os desejos
artísticos do urbanista (GIRÃO, 1979.p. 80).

Influenciado pelo francês Haussmann34, Hersbster organizou a cidade em


forma de xadrez35, alinhando as ruas, transformando elas mais visíveis e abertas para a
circulação de pessoas, mercadorias, policiais etc. A divisão da capital em quarteirões,
tornando ela ortogonal, com as ruas se cruzando em 90 graus era o modelo dominante
da época presente nas cidades hispano-americanas, principalmente quando o assunto era
organizar o crescimento urbano.

34
Prefeito de Paris nomeado por Napoleão III. Entre 1863 e 1870 foi o principal responsável pelas
reformas urbanas de Paris. Ficou conhecida na história do urbanismo e das cidades devido aos seus
planos urbanísticos que tinha o objetivo de expandir e controlar a urbe (LÖWY, 2006).
35
O plano urbano que possui a sua organização como um tabuleiro de xadrez ocorreu em diversos
contextos socioculturais. A primeira cidade a utilizar esse modelo foi Mohenjo Daro, situada no noroeste
da Índia, a 2.500 a.C. Depois da Índia foi para Mesopotâmia e depois chegou na Grécia e na Roma. A
difusão desse tipo de urbanização estava relacionada com as conquistas militares e com a expansão
comercial. Os espanhóis conheceram a cidade com plano em xadrez através dos romanos e acabaram
introduzindo no Novo Mundo. A quadrícula fazia parte de uma política que tinha como objetivo controlar
as regiões conquistadas (CORRÊA, 2013).
38

Fig. 1
“Planta da Cidade de Fortaleza e subúrbios”, 1875 – Adolpho Herbster. (CASTRO,
1994)

Percebemos que esse plano urbanístico demonstra um traçado urbano


previamente decidido. O desejo exposto nesse projeto era o de expandir a cidade até a
região leste. Na planta estão figurados o Gasômetro36, o reservatório de “água do
Benfica” 37 e o novo Cemitério de São João Batista38.

36
A empresa responsável em fornecer iluminação a gás à cidade de Fortaleza era a firma inglesa Ceará
Gás Company. Desde 1867, essa companhia introduzia avanços tecnológicos que surgiram durante a
Revolução Industrial na capital cearense (CASTRO, 1994).
37
Esse reservatório estava situado na região do Benfica e era nutrido por profundos poços. Os diversos
chafarizes existentes na cidade eram alimentados por encanamentos que tinham origem nesse reservatório
(CASTRO,1994)
38
Cemitério implantado na zona oeste, respeitando as normas de salubridade do período, em substituição
ao antigo cemitério de São Casimiro (CASTRO, 1994).
39

O desejo de inserção cearense na civilização capitalista estava presente nesse


plano urbanístico. O poder público instaurava regras e normas a serem cumpridas nas
inúmeras reformas que ocorriam na cidade:

Como segundo fato, devem ser apontados os padrões das larguras das vias, de
50, 60 e 70 palmos de largura para as ruas (11,00, 13, 20 e 15, 40 metros) e
100 palmos para as avenidas (22,00 metros), bem como das calçadas, com 2
varas de largura (10 palmos ou sejam, 2,20 metros) dimensões estas últimas
não apenas exigidas mas seguidamente repetidas nos códigos de posturas
aprovados posteriormente pela Câmara Municipal. O comprimento dos
quarteirões, conquanto não especificado, variava de 100 e 130 varas (110 a
143 metros) (CASTRO, 1994. p. 69).

Analisado esses códigos impostos pelos governantes refletimos sobre a


civilização no ambiente púbico. Notamos a ambição dos políticos em ordenar Fortaleza
de acordo com os padrões existentes nas metrópoles europeias. Todas as edificações que
fossem construídas a partir desse plano urbanísticos de 1875 teriam que seguir essas
medidas. O que o governo desejava era legitimar a capital como uma urbe civilizada
através dessas reformas.
Entendemos que o modelo urbanístico de Fortaleza estava inserido em um
padrão existente nas cidades coloniais latino-americanas. Esse padrão existente na
America era resultado de um planejamento regulado pelas leis das Índias, de Felipe II.
O plano urbanístico das cidades estava organizado semelhante a um tabuleiro de xadrez
em que as ruas iam se estruturando a partir da Plaza De Armas ou Plaza Mayor
(YUJNOVSKY, 1971).
De acordo com esse modelo a elite, as edificações públicas e de maior
prestigio, os monumentos e as principais praças estavam localizados no centro, espaço
de maior notoriedade. Nesse exemplo centro-periférico os preços das terras situadas na
área central da cidade eram mais elevados. Ou seja, quanto mais se distanciava dessa
localidade menor era o valor financeiro e social (CORRÊA, 2013).
Portanto, compreendemos que o plano urbanístico que foi produzido com o
intuito de embelezar, controlar e segregar, características que no período eram como se
fossem sinônimos de civilizar. Então, as reformas no espaço urbano desempenharam um
papel substancial na inserção da cidade de Fortaleza no processo civilizador.
40

2.1.4. O capitalismo para com a seca? Reflexões sobre as estiagens de 1877, 1878 e
1879

O final da década de 1870 ficou marcado por uma grande seca que se
prolongou durante três anos (1877, 1878 e 1879). Devido a esse problema climático a
população pobre do semi-árido teve sua produção destruída restando como opção de
sobrevivência vaguear pelos caminhos e estradas em busca de auxílio. O caminho de
Fortaleza foi a principal opção encontrada dessa população que chegando à capital
transformaram-se em retirantes.
O governo da província não possuía preparo e nem interesse para tratar dos
efeitos econômicos e sociais causados pela seca. Os retirantes que chegavam à capital
cearense eram vistos pelo poder público como um empecilho para uma cidade que,
segundo eles, estava no caminho certo do progresso. O discurso que colocava esses
sujeitos históricos como um atraso para essa “evolução” é visto nesse relato provincial:

Não dissimulo á V. Exc. o meu confrangimento pelo estado da provincia


dotada de tantos elementos de progresso, que encerra em seu território, e hoje
quase anniquillada em sua saliente estatura pela mão compressora do
tremendo flagelo, ariete demolidor, que alluia e desvaneceu as promessas do
seu futuro esperançoso. 39

Observando esse relato notamos que para os governantes a seca junto com suas
consequências (uma delas os retirantes) interrompeu o progresso da província. Segundo
esse documento, o Ceará (em especial sua capital) até 1877 tinha tudo para se tornar
uma região civilizada segundo os moldes europeus, mas esse caminho foi freado devido
os efeitos sociais e econômicos que a seca causou. Problematizando esse relato,
notamos que o poder instituído colocava os anos de estiagem como períodos infortúnios
e de crise. Mas o que percebemos é que a calamidade estava atingindo apenas a
população pobre, pois a elite cearense, nesse mesmo período, conseguiu desenvolver
sua economia (BEZERRA, 2000). Notamos isso, quando percebemos, mesmo durante
as secas de 1877, 1878 e 1879, a construção de sobrados, chegadas de casas comerciais,
edificações de calçamentos, construção de cadeias públicas reforma do porto e a
continuação da estrada de ferro de Baturité.
Os retirantes que foram em direção de Fortaleza sofreram com a epidemia de
varíola que se alastrou pelos abarracamentos e posteriormente tomou o resto da cidade.

39
Mensagem de 23/11/1877 – Caetano Estellita Cavalcanti Pessoa. p. 19.
41

O terror coletivo causado por essa doença acabou fechando os estabelecimentos


comerciais e paralisando o desenvolvimento urbano. Os recursos do governo da
província tiveram que ser destinados ao controle dessa epidemia como também dos
migrantes, pois para os governantes esses “problemas” estavam relacionados.
Buscando solucionar os males da seca a administração política organizou as
comissões de socorros, responsáveis em atender os retirantes, e realizou a construção
dos abarracamentos. Mesmo com a constituição desses serviços públicos a capital
continuava a receber cada vez mais a população do interior. “Segundo contemporâneos
bem-informados, em um ano mais de cem mil desses “invasores” esfarrapados
ocuparam as praças, as ruas, as calçadas e o Passeio Público...” (NEVES, 2007). A
solução encontrada pelo poder público para controlar (e lucrar) esses inúmeros
retirantes foi a seguinte: “A conveniencia de ocupar as classes laboriosas que a secca
reduzia a inactivas, despertou o pensamento fecundo de tornar productivos os gastos a
fazer com a assistência publica”.40
Passado os primeiros meses da seca de 1877, o governo da província começou
a ter a ideia de utilizar a própria estiagem para acumular capital. Assim, o poder
instituído passou a explorar, em troca de comida e salário, a força de trabalho dos
sertanejos nas edificações das obras públicas. Já no segundo ano (1878) de seca o
governo imperial envia uma comissão41 para o Ceará com objetivo de refletir sobre a
utilização dos retirantes na construção de açudes, melhoramentos de portos, edificação
de abarracamentos, criação de calçamentos e limpeza pública (ASSIS, 2011).
Sendo assim, o governo, pautado nos ideais burgueses, ocupou com
urgência os milhares de retirantes ociosos que se encontravam nas ruas da capital. Nesse
período acreditava-se que o ócio era o principal elemento criador dos vícios e da
perversão. Mas o que percebemos por trás desse discurso de corpos sadios e prontos
para o trabalho é que a sociedade deste período estava idealizada pelo capitalismo.
Então era de total interesse do governo que esses indigentes estivessem saudáveis e
trabalhando, até mesmo porque, os políticos desejavam um retorno do dinheiro que foi
gasto com assistência pública. Esse se daria através da utilização dos retirantes na
construção de diversas obras na capital:

40
Mensagem de 23/11/1877 – Caetano Estellita Cavalcanti Pessoa. p. 22.
41
Comissão imperial composto por homens do Instituto Politécnico em 1878. Fazia parte dessa comissão
os engenheiros Beaurepaire-Rohan e Ernesto Antonio Lassance Cunha (ASSIS, 2011).
42

Paredão e aprofundamento dos açudes do Tauape, Maraponga e Alagadiço.


Nivelamento da Praça da Alfandega.
Idem da frente do cemitério, Praça do Quartel e contorno da Fortaleza.
Destocamento e Limpezas interna e externa do cemitério.
Aterro do Maceió.
Boeiro e aterro da lagôa do Garrote.
Rampas do Passeio Público.
Aterro dos barreiros da rua da Conceição.
Principio do calçamento das estradas de Soure e Mecejana.
Desecamento e escavação da lagoa do Garrote.
Limpeza geral da cidade.
Construção de palhoças e casas de telhas nos abarracamentos do Meirelles,
Pajehú, Alto da Pimenta, São Luiz, Calçamento, Tijubana, Soure, Alto do
cemitério e Lagôa-secca.
Reparos da ponte do Siqueira.
Auxilios prestados á construção do novo paiol, ás obras do quartel de linha e
42
ao asylo de mendicidade, em via de construção.

As inúmeras obras públicas presente nesse trecho do relatório do Presidente


da província do Ceará foram realizadas em Fortaleza durante o ano de 1877, o primeiro
ano da seca. É importante salientar que até o fim do ano de 1880 esses retirantes
estavam inseridos em oficinas de trabalho e nas obras públicas que foram responsáveis
em reformar não só a capital, mas também outras cidades. Ou seja, a elite fortalezense
acumulava capital a partir do trabalho compulsório dos sertanejos.
Um das principais obras que teve continuidade com a chegada e a utilização
dos retirantes foi a estrada de ferro de Baturité. Como vimos no inicio do capítulo, a
construção da via férrea parou em 1875, edificado apenas trinta e três quilômetros,
devido a problemas econômicos. A continuação da mesma só começou a ocorrer em
1877 e teve sua conclusão em 1880 (possuindo noventa quilômetros), posterior os três
anos de estiagem. O governo, com o objetivo de acumular capital, utilizou o momento
de tragédia da seca para concluir a EFB, utilizando tanto o braço do trabalhador
interiorano como também os recursos dos Socorros Públicos do Estado (SILVA, 2013).
Acreditamos que mesmo em contexto de caos sazonal da seca os agentes
capitalistas realizavam estratégias de inserção da província cearense no capitalismo
mundial. Notamos que no Ceará, o processo de inserção é alimentado também pela
desordem. Como se a seca fosse um elemento que traz a desorganização, mas também
produz capital para que essa inserção seja efetiva. As elites cearenses junto com
comerciantes estrangeiros adaptaram as secas às estratégias capitalistas fazendo com
que, até mesmo em um momento de tragédia, acumulassem capitais e inserisse a
província no processo civilizador capitalista.

42
Mensagem de 23/11/1877 – Caetano Estellita Cavalcanti Pessoa. p. 22.
43

Portanto, os migrantes que chegaram a Fortaleza durante esse período da seca


têm seu papel na história cearense, por mais que o poder público preocupado com os
parâmetros de civilização tivesse tentado a qualquer custo rechaçar esses sujeitos
históricos dos planos de desenvolvimento da urbe. O projeto de civilização do governo
cearense para sua capital excluía os pobres e indigentes, pois para a elite as camadas
subalternas não estavam inseridas nesse processo civilizador e nem teriam o direito de
usufruírem dos “avanços” que estavam ocorrendo na cidade. Por mais, que uma boa
parte das reformas urbanas tivessem sido realizadas pelos próprios retirantes.

2.1.5. O lazer como ferramenta da civilização: A reforma do Passeio Público

No início dos anos de 1880, terminado os três anos de seca, Fortaleza continuou
realizando reformas que demonstravam a inserção da capital no processo civilizador
capitalista. Logo teve início essa década, a população foi “contemplada” com a reforma
de um dos mais importantes logradouros da época: o Passeio Público.
Esse espaço surgiu com o objetivo da cidade possuir um lugar especifico para
que a população passeasse, realizassem encontros, flertassem etc. Ou seja, era um lugar
destinado às diversas práticas de sociabilidades realizadas pela sociedade fortalezense
daquele período.
O passeio público esta localizado próximo do mar, era bem arborizado,
possuía muros ao redor e na sua decoração encontrávamos estátuas em forma de
divindades mitológicas gregas, bancos longos e passarelas pavimentadas. O logradouro
era dividido em três planos. Em que o primeiro plano era o mais aformoseado e
frequentado pela elite, enquanto os outros dois eram utilizados pelas outras camadas
sociais. Acreditamos que essa divisão se deu a partir do segregacionismo social
existente no período que demonstrava que essas reformas urbanas eram para o lazer dos
ricos e para o controle dos pobres. No que se refere a utilização desse espaço, o escritor
Adolfo Caminha comenta:

Mas, ora, toda a gente possuía dois vinténs para alugar uma cadeira, e,
ademais, ia-se ao Passeio Público para andar, para se mostrar aos outros
como numa vitrine, não valia a pena ir para ficar sentado, casmurro, a ver
desfilar o quê? O mesmo carnaval de todos os domingos e quintas-feiras, as
mesmas caras, as mesmas toilettes. Não valia a pena decerto (CAMINHA,
1999.p. 75).
44

Nessa passagem observamos o logradouro como um cenário para o corso das


famílias ricas. Era nesse espaço que elas desfilavam com suas vestimentas ostentando
riqueza e diferenciação social. Então além da sua finalidade para as novas práticas de
lazer, o Passeio Público também funcionava como uma vitrine.
Notamos que as reformas urbanas, realizadas em Fortaleza nesse período, eram
construções sólidas, pesadas, majestosas, permanentes e que representavam estilos de
várias épocas. Assim como Hobsbawn, acreditamos que essa arquitetura era uma
linguagem de símbolos sociais43. Construções com a finalidade de demonstrar que a
elite da cidade possuía um poder eterno, grandioso e esmagador.
Analisando os logradouros (em especial o Passeio Público), que surgiram na
capital cearense nesse período, percebemos que esses espaços faziam parte desse
processo de inserção da urbe alencarina nos processo civilizador capitalista. A intenção
de construir ou de reformar esses locais se insere na vontade que o poder público
possuía em substituir as formas de lazer tradicional pelas formas de lazer mais
civilizadas. Assim nos mostra Thiago Porto:

A intenção era de a Capital rompesse com as práticas de lazer tradicionais e


buscasse um lazer mais civilizado. Tais formas de lazer surgiam não se
sobrepondo a outras práticas populares. Na realidade, percebemos que essas
tentativas das elites de controlar as populações mais pobres também se
estenderam às práticas exercidas no tempo livre. Seria interessante, pois, que
o processo de imposição de restrições também se estendesse ao campo do
lazer. Assim, o controle social e o controle do Estado passaram a moderar as
diversas relações sociais (PORTO, 2015, p. 55).

Podemos compreender que as reformas ou construções de praças, como o


passeio público, tinham como objetivo mostrar a inserção da capital no processo
civilizador capitalista. E não só a partir da arquitetura exibida nesses ambientes, mas
também no que diz respeito as relações de sociabilidades exercidas nesses espaços
sociais. As novas formas de lazer, que foram colocadas por esses ambientes, chegaram
com o intuito de abolir as formas tradicionais. Embora fosse comum ver atos rurais e
tradicionais que eram considerados incivilizados pelas elites locais.
Entendemos a construção desses espaços como objetos que o poder público
utilizou para legitimar a inserção da capital cearense no processo civilizador.
Logradouros que tinham como objetivos controlar a população, demonstrar poder
(através da arquitetura e das pessoas que frequentavam) e substituir as formas de lazer

43
Ver Hobsbawn, Eric. J. A Era do Capital. Paz e Terra, 1977, cap. 15.
45

consideradas atrasadas para a elite. Essas praças públicas só começaram a serem


substituídas nos anos 30, devido o advento dos cinemas e dos clubes (PONTE, 2011).
Portanto, entendemos Fortaleza, durante a segunda metade do século XIX,
como uma urbe que estava em constante contradição. Percebemos sinais de progresso,
mas também práticas consideradas “atrasadas”. Apesar do constante discurso de
desenvolvimento, colocado pelos governantes, tínhamos em diversas partes da cidade o
caos e a miséria. Então, a capital cearense como qualquer outra cidade capitalista vivia
essa contradição econômica, enquanto de um lado encontramos uma elite que crescia
financeiramente do outro observamos as camadas pobres morrendo devido a fome ou
epidemias.
O discurso levantado pelo poder público possuía uma visão panorâmica do que
realmente estava sendo praticado no meio urbano. A ideia colocada pelas instituições
era que Fortaleza estava no caminho no progresso e que o único empecilho para
alcançar esse objetivo seriam as camadas populares. Toda e qualquer prática relacionada
com essa camada social era combatida e restringida. A intenção era adaptar
(controlando e explorando) esses indivíduos aos novos moldes civilizatórios, quando
possível, se não a opção era afasta-los cada vez mais desse progresso.
As reformas urbanas, discutidas nessa primeira parte, foram realizadas pelo
governo provincial para atender as suas demandas e também as da elite cearense que
começava ganhar destaque. A estrada de Baturité, construída pelos retirantes, foi
pensada para desenvolver a economia do governo, os diversos produtos importados que
chegaram à província, através das firmas comerciais estrangeiras (francesas e inglesas),
eram economicamente acessíveis apenas para os mais abastados da região cearense e os
logradores públicos eram basicamente destinados a elite (na medida em que excluía as
camadas populares através dos inúmeros códigos de posturas), essa que fazia questão de
mostrar o seu poder material.
Para as camadas populares o que restava eram regras e normas. As plantas e
projetos urbanísticos, a Santa Casa de Misericórdia, o Asilo de Alienados, Asilo de
Mendicidade e os códigos de posturas eram destinados ao controle ou exclusão dos
indesejados pelos ricos. Essas transformações ocorreram com o objetivo de afastar, cada
vez mais, os marginalizados do perímetro urbano central da cidade (local de moradia da
elite), pois estes eram considerados focos de epidemias e desordem. Ou seja, eram
verdadeiras pedras no “caminho esperançoso” da capital cearense.
46

2.2. Domicílio fortalezense: transformações na estrutura material e dos objetos


domésticos durante o século XIX
A sua numerosa população (do Aracati), o comércio bem estabelecido e
tratado com algum sistema, a civilidade, a polidez de seus habitantes fazem
desta vila assaz recomendável, juntando a isto um agradável e regular
arquitetura nas suas casas, e no grande número delas os donos possuem
avultuados cabedais; ao passo que a vila de Fortaleza é um montão de areia
profundo, apresentando, dos lados, pequenas casas térreas, encontrando-se
nesta classe a muito e velha e arruinada casa dos governadores (GIRÃO,
1947.p. 165)

Nessa pequena passagem notamos a descrição da capital cearense no início do


século XIX. O primeiro presidente da província do Ceará, Bernardo Manuel, faz uma
comparação entre Fortaleza e Aracati. A seu ver a segunda cidade encontra-se mais
civilizada que a primeira. Notamos que o termo civilidade é utilizado em referência à
arquitetura das residências, que em Aracati já são numerosos até mesmo a construção de
sobrados. Enquanto que em Fortaleza as ruas não eram pavimentadas e as casas
existiam em pequenos números, e eram todas térreas.

Assim, percebemos que o conceito de civilização também é utilizado pelo


poder público no sentido de colocar as residências de acordo com os padrões de morar
europeu. Nesse sentido a casa teria que ser ampla, com um piso ou mais, com materiais
resistentes que transmitiam eternidade e que acima de tudo atendesse as normas
higiênicas exigidas pelo governo (LEMOS, 1999). As moradias teriam que transmitir
suntuosidade através de construções de fachadas esplêndidas, essas tinham que refletir a
posição social do morador. Entendemos que o termo civilização estava relacionado com
luxo e higiene, pois para uma residência seguir os padrões europeus teria que associar
poder material e salubridade.

O que desejamos debater nessa segunda parte do primeiro capítulo é que o


objetivo de civilizar a capital cearense, na segunda metade do século XIX, também
estava presente nas residências particulares. Compreendemos que o processo de
remodelação da cidade partiu dos poderes públicos junto com a elite fortalezense. Se
num primeiro momento mostramos as transformações ou criações de várias construções
públicas (estrada de ferro, praças, ruas etc.), agora refletiremos sobre as modificações
no âmbito privado, que seriam as residências da elite da capital. Nesse sentindo
mostraremos as estratégias arquitetônicas utilizadas pelas camadas abastadas para se
inserirem no processo civilizador capitalista.
47

Num primeiro momento refletiremos sobre as residências existentes em


Fortaleza durante o início do século XIX. Arquitetura, materiais de construção,
compartimentos e objetos domésticos que estavam presentes nos lares. Em um segundo
momento, observaremos as transformações que a estrutura habitacional, junto com os
objetos, sofreu durante meados dos oitocentos. E por último, analisaremos as
modificações impostas pelas códigos de posturas nas residências.

2.2.1. A arquitetura rústica: os lares da capital no início dos oitocentos

Além da descrição realizada pelo Presidente Bernardo Manuel, sobre as


residências existentes em Fortaleza nos primeiros anos do século XIX, também temos
outro relato que chega a descrever as poucas casas que tinham na cidade:

A vila de Fortaleza do Ceará é edificada sobre terra arenosa, em formato


quadrangular, com quatro ruas, partindo da praça e mais outra, bem longa, do
lado norte desse quadrado, correndo paralelamente, mas sem conexão. As
casas têm apenas o pavimento térreo e as ruas não possuem calçamento; mas,
em algumas residências há uma calçada de tijolos diante. Tem três igrejas, o
Palácio do Governador, a Casa da Câmara e prisão, Alfândega e Tesouraria.
Os moradores devem ser uns mil e duzentos (Koster, 1809, apud GIRÃO,
1979, p. 61).

Esse relato mostra as impressões que o viajante estrangeiro Henry Koster


obteve de sua passagem em 1809 pela cidade. Nesse período as casas de Fortaleza eram
cobertas de telhas ou de palhas (em sua maioria) e as suas paredes eram de taipas44.
Durante essa época “acreditava-se” que o terreno da capital cearense não suportava
construções assobradadas. Então, a maior parte das moradas eram térreas, enfileiradas,
justapostas, estreitas e achatadas. Essas não possuíam azulejos, frisos, colunatas e nem
um tipo de ornamento decorativo (GIRÃO, 1979).

A arquitetura rústica dos lares cearenses durante a passagem do século XVII


para o XVIII reflete bem as condições financeiras dessa província durante esse período.
Nessa época essa região ainda não possuía um produto econômico que tivesse destaque
internacional (a principal fonte econômica ainda era a pecuária). Por isso, nessa
passagem de século, o Ceará não terá uma riqueza significativa que seja capaz de
transformar a malha urbana da capital e nem modificar a produção arquitetônica vigente
(CASTRO, 1973).

44
A taipa utilizada nas residências de Fortaleza era a de sopapo, pois este material era adequado ao clima
semi-árido cearense. Posteriormente, na segunda metade do século XIX, as moradas vão trocando a
utilização da taipa por tijolos de diatomita ou de barro (JUNIOR, 2009).
48

Até o século XVIII a principal atividade econômica cearense era a pecuária.


Essa era destinada a uma produção interna e vivia a margem dos produtos principais que
eram destinados à exportação. Devido a esse papel secundário, somado com as secas
que assolavam a região, essa produção não foi capaz de fazer a província cearense
crescer economicamente. No geral a população era pobre, os fazendeiros possuíam suas
terras no interior, com casas simples, e residências nas vilas principais. Era a prática que
chamamos de absenteísmo (GIRÃO, 1947).

As residências do século XVIII, seja no campo ou nas vilas, eram construídas


com materiais de rápida deterioração como taipas e palhas. As composições
arquitetônicas desses lares, junto com a rara mobília presente, nos fazem perceber o
caráter de instabilidade dos moradores. Assim, até a primeira metade do século XIX não
percebemos transformações arquitetônicas significativas, pois as edificações, os
materiais, os cômodos, a mobília eram marcadas pela rusticidade. (VIEIRA JR, 2004).

A estrutura das moradas era fixada em pequenos terrenos, o piso interior era
feito de tijolos ou até mesmo de terra batida e os móveis presentes eram poucos, isto é,
mesas, tamboretes, baús e as redes. Em sua maioria esses objetos eram feitos de couro.
Os poucos compartimentos (sala, alcova, corredor e a parte dos fundos) que existiam na
casa não tinham forros, as paredes divisórias nunca chegavam as cobertas (isso mostra a
pouca privacidade desse período). Em muitas residências pobres nem existiam os
corredores, isso fazia com que os aposentos também fossem espaços de passagens para
outros cômodos (CASTRO, 1983).

Os poucos cômodos existentes nas casas nos dão a ideia de que estes
possuíam múltiplas funções. Só existia uma sala e essa era utilizada para receber
convidados e para jantar. Também, devido a utilização das redes, servia como
dormitório para viajantes que visitavam a região. O quarto era destinado a vida íntima a
família, mas muitas visitas tinham acesso ao mesmo. A parte dos fundos ou quintal era
um espaço destinado a produção das refeições (foi nesse ambiente que surgiram as
cozinhas), ao trabalho (nele se fazia a charqueada ou praticavam a agricultura) e a
proteção dos moradores (por ser o cômodo mais distante da rua, os moradores tinham
exclusividade) (VIEIRA JR, 2004).

Analisando os compartimentos das casas notamos a superposição de funções


em cada espaço. Nem mesmo o quarto possuía função fixa, pois sua utilização se
49

adequava as necessidades do cotidiano. Os raros e leves objetos refletiam a pobreza dos


anfitriões, as múltiplas funções dos cômodos e as viagens repentinas. As poucas
divisões e separações dos ambientes nos fazem notar a linha tênue entre o público e o
privado existente no período colonial.

As habitações cearenses possuíam uma arquitetura hibrida, na medida em que


se adequavam ao modelo estrutural português, mas eram construídas com materiais
regionais. Os produtos utilizados nessas construções eram a taipa, tijolo de diatomita ou
de barro, madeira de carnaúba e a palha. Esses eram usados com a função de isolantes
térmicos, pois a constituição dessas paredes retinham o calor durante o dia, liberando-o
aos interiores das edificações apenas a noite, ato fundamental para o clima semi-árido
cearense que possui uma elevada amplitude térmica. Essa hibridização era percebida
não só na arquitetura cearense, mas também em outras regiões do Brasil: “... a morada
urbana se manteve mais fiel a arquitetura portuguesa, pelo menos na aparência, embora
não descartasse as influências indígenas e as adaptações dos colonos quanto ao modo de
morar...” (SOUZA, 1997.p. 91)

Compreendemos essa prática hibrida arquitetônica “... como o resultado de


encontros múltiplos e não como o resultado de um único encontro, quer encontros
sucessivos adicionem novos elementos à mistura, quer reforcem os antigos
elementos...” (BURKE, 2003, p. 31), pois nessas residências regionais o que notamos
são elementos primitivos indígenas, lusitanos e sertanejos, sejam em relação aos
materiais, as técnicas ou as formas.

A reação comum a esse múltiplo encontro cultural é adaptação ou empréstimo.


A nosso ver essa apropriação pode ser percebida quando retiramos um artefato do seu
local original e o transformamos de maneira que se encaixe em seu novo ambiente. O
bom exemplo disso é o processo de tropicalização. Essa em seu “... sentido literal ocorre
quando as roupas ou as casas que foram planejadas para países frios são modificadas
para serem exportadas para países quentes” (BURKE, 2003, p. 92).

Comparando as residências cearenses, do período colonial, com as das outras


regiões do Brasil, notamos um padrão geral (SOUZA, 1997). Eram moradias rústicas
com um ou dois cômodos que serviam para cozinhar, dormir e trabalhar. As divisões
internas e as multifuncionalidades dos cômodos não garantiam a privacidade dos
50

moradores. No período colonial a intimidade não era fator importante para a sociedade,
pois o que encontramos era uma imbricação entre as esferas pública e privada:

Portanto a distinção clássica entre público e privado não se aplica à vida


colonial antes do final do século VIII e início do XIX e, ainda assim, de
forma muito tênue, pois o privado assume conotações distintas daquelas
adequadas a nossa sociedade atual (SOUZA, 1997. p. 89).

Notamos uma indistinção das duas esferas. Tanto o exterior como o interior
não possuem delimitações fixas durante o período colonial. A ideia do ambiente interno
com paz, moralidade, tranquilidade, proteção e o externo com perdição e desvio da
conduta ainda não existia. Até porque as famílias, devido a fatores climáticos ou
econômicos, viviam migrando entre regiões e, por isso, não tinham a necessidade de
construir casas com materiais duradouros (que indicassem proteção) e muito menos
possuírem muitos objetos de difícil transporte.

As divisões mais fixas dos cômodos e a utilização de objetos requintados só


começaram, em algumas residências45, no final do século XIX (e a consolidação só na
década de 1930). À medida que o Brasil se inseria no processo civilizador capitalista
sua economia crescia. Novos produtos eram importados e os comportamentos do
cotidiano eram modificados. As noções de público e privado estavam cada vez mais
distintas e agora hábitos antigos interferiam no pudor e causavam repugnância.

Então, entendemos que as edificações cearenses do início do século XIX


ainda possuíam uma arquitetura singela, constituídas de materiais vernáculos com
padrões influenciados pela cultura lusitana. Eram residências que não estavam
preocupados com uma suntuosidade, mas sim com a sua funcionalidade. O maior
objetivo dessas construções era que elas garantissem a sobrevivência dos moradores e
para isso seria necessário a sua adaptação ao clima. Por fim, os aspectos físicos dessas
moradas cearenses eram reflexos das condições econômicas da província, essas que
seriam bastante modificadas na segunda metade do século XIX.

45
Como o sobrado do Dr. José Lourenço, a casa do Barão de Camocim, a casa do Juvenal Galeno e entre
outros sobrados citados por historiadores, memorialistas e literários da época. Todas essas residências são
debatidas durante toda a dissertação.
51

2.2.2. As suntuosas habitações: as residências fortalezenses no final do século XIX

Sob o influxo do crescimento econômico da capital cearense e da absorção dos


padrões europeus, a elite de Fortaleza investia na construção de suntuosas habitações
que demonstravam o seu poder econômico e refletia a sua inserção no processo
civilizador. Assim, novas residências elegantes foram surgindo na urbe, até mesmo
sobrados:
No trecho da citada Rua Boa Vista, então denominada Rua da Pitombeira,
Francisco Pacheco de Medeiros, por alcunha___Pachecão, erguera outro
sobrado (1825), o primeiro de tijolo e telha a levantar-se em Fortaleza (onde
teve sede a Intendência Municipal e hoje demolido), e pelo seu lado sul é que
faziam os alinhamentos da Travessa Municipal (Rua Guilherme Rocha). Na
outra esquina desta, com a Rua da Palma (Major Facundo), outro sobrado se
levantou, de propriedade do Comendador José Antônio Machado, o pioneiro,
na cidade, das edificações de mais de dois andares (GIRÃO, 1979).

Notamos que os primeiros sobrados construídos em Fortaleza remontam ainda


da primeira metade do século XIX, esse tipo de construção apareceu, mais ainda, na
segunda metade do mesmo século. Com a expansão da cotonicultura a economia
cearense cresceu e ganhou maior importância nesse período, fazendo com que sua
capital se tornasse eixo econômico da província. A partir de 1860, a província cearense
se torna uma das principais regiões produtoras e exportadoras de algodão para a Europa.
Com esse desenvolvimento econômico o poder público conseguiu realizar inúmeras
reformas urbanas em Fortaleza (modificações que foram debatidas no início do
capítulo) e a elite alencarina aumentou o seu poder material.

Nessa segunda metade do século XIX, paralelo as obras erguidas pelo poder
público, as camadas abastadas de Fortaleza fizeram surgir lojas, clubes, mansões,
chácaras, hotéis, sobrados que possuíam uma arquitetura mais consistente e eclética. As
principais edificações particulares (identificadas), que tinha como característica a
suntuosidade, que surgiram nessa época foram: a casa do Barão de Camocim (figura 2),
Sobrado Dr. José Lourenço (figura 3) e a casa do escritor Juvenal Galeno (figura 4).

Analisando a primeira planta urbanística realizada pelo engenheiro


pernambucano Adolfo Herbster , em 1859, percebemos que a “população, computados
os subúrbios, constituídos de tugúrios de palha, não ultrapassava de 16.000 habitantes.
Casas de tijolos, alinhadas, apenas 690, das quais 80 eram sobrados” (GIRÃO, 1979, p.
97). Notamos que comparado com os levantamentos realizados no inicio do século
52

agora sim começam a surgirem inúmeros sobrados. “Observando” esses novas


construções são notórias as seguintes mudanças:

As casas baixas, proletárias, de beira e bica, paredes de taipa e também, as


mais presunçosas, de beira e sub-beira, portas lisas e sem bandeirolas nem
persianas, aos poucos eram substituídas por outros mais elegantes e
burguesas, de cimalhas e cornijas, com fachadas artísticas, de frontões
ogivais, varandas ou balcões de ferro, quais as sacadas onde se postavam as
moçoilas que Agassiz viu em elegantes tualetes (GIRÃO, 1979, p. 106).

Essas transformações arquitetônicas nas edificações foram efetivadas nesse


período devido ao surgimento de novas técnicas e materiais que eram importados. A
arquitetura nacional em meados do século XIX foi influenciada pelo estilo neoclássico.
Aos poucos percebemos a substituição da taipa pelo tijolo, surge a beira-seveira, a
cornija de massa, as platibandas, as bocas de “jacaré”, as gárgulas em folha-de-flandres
e até mesmo os azulejos português e francês.

(Figura 2 – Imagem do Sobrado Dr. José Lourenço situado na Rua Major Facundo, antiga Rua da Palma –
Construído na década de 1870)46

46
Disponível: http://www.fortalezanobre.com.br/2010/07/sobrado-dr-jose-lourenco.html; acessado em
03/11/2015 as 23:40.
53

(Figura 3 – Imagem do solar do Barão de Camocim (comerciante Geminiano Maia) casado foi com a
francesa Rose Nini Liabastre. A casa esta situada no cruzamento das ruas Menton de Alencar e General
Sampaio) – Construída em 1880)47

(Figura 4 – imagem da Casa de Juvenal Galeno, situada na Rua General Sampaio – Construída em 1887)
48

Então, é nas suntuosas moradias das elites de Fortaleza que iremos perceber uma
maior ornamentação nas fachadas, atitude possível graças à estabilização política e
econômica da capital sobre os demais centros provincianos.

47
Disponível: http://casaroesdefortalezafa7.blogspot.com.br/2011/06/casarao-do-barao-de-camocim.html;
acessado em 03/11/2015 as 23:43.
48
Disponível: http://www.casadejuvenalgaleno.com.br/p/iconografia.html; acessado em 03/11/2015 as
23:46.
54

Os interiores das habitações também sofreram algumas transformações


durante a segunda metade do século XIX. As residências da elite modificaram não só a
arquitetura externa da residência, mas também a interna. Assim percebemos nessa
pequena passagem da obra “A Fome” de Rodolfo Teófilo:

Era um salão de luxo, porém ornado à moda parisiense e que seria um


confronto, uma delícia num clima frio, mas, no equador, era uma estufa, uma
tortura. Uma mobília de magno à Luís XIV, estofado com as cadeiras em
duas filas, aos lados do sofá, numa simetria monótona e rotineira, enchia o
espaço da parede do oitão ao meio da sala. As cadeiras pisavam com os pés
de carritéis de metal amarelo um espesso tapete Francês, verdoengo com
alegóricas figuras chinesas.
Sobre o mármore dos dunquerques espelhos de cristal encaixalhados em
quadrilongas molduras douradas, com festões áureos de narcisos e tulipas.
Dois a dois sobre a pedra do móvel, empinavam-se os jarros de porcelana,
mostrando no bojo ramalhetes de rosas em relevos, aparentando a cor e
frescuras naturais. Entre as flores petrificadas apareciam as figuras esbeltas e
sadias de camponesas meio nuas, deixando perceber as formas meio
descobertas. Do centro do teto, um forro de pesado estuque, em desacordo na
altura com os preceitos arquitetônicos, descia o suporte de um candeeiro de
gás com doze luzes. As três janelas, que se abriam para a rua, eram decoradas
de cortinadas de seda branca, franjados de ouro. Os panos de parede eram
forrados de papel azul-celeste com flores douradas. Nos claros das janelas e
nos espaços vazios dos lados do grande espelho oval sobre o sofá pendiam
retratos de família em telas ricamente molduradas. Entre as personagens que
o pincel do artista copiou, duas prendiam a atenção: uma pela a esquisitice do
trajo, outra pela irregularidade das feições. Eram um homem e uma mulher.
De visa-a-vis, olhavam um para o outro, mas com um olhar morto, um olhar
de animal quando rumina (TEÓFILO, 1979. p. 57)

O trecho acima retrata a sala de visitas do comendador Prisco da Trindade.


Esse personagem era um dos principais comerciantes de escravos de Fortaleza. Homem
de bastante respeito e respaldo entre as camadas mais ricas da capital (no romance).
Logo no início da descrição dessa residência o autor já realiza uma comparação da
mobília da casa do comendador com as mobílias europeias. É mostrada a dificuldade da
utilização de determinados objetos e decorações no país dos trópicos, alegando que
devido ao clima quente era quase impossível ter um conforto com esses artefatos de
origem parisiense. Essa questão de colocar o clima como um fator determinante para a
civilização era uma característica muito comum entre os estudiosos cientificistas e
deterministas geográficos do século XIX.
Analisando a descrição da sala de visitas de Prisco da Trindade, notamos uma
vontade de se inserir nesse processo civilizador mesmo se isso custasse o seu
desconforto. Vemos uma sala totalmente decorada com objetos importados e uma
grande preocupação com os arranjos dos objetos. As cadeiras teriam que estar sempre
em simetria, o uso das cortinas nas três janelas permitia a entrada de vento e uma maior
55

claridade para a sala dando assim a esse espaço uma maior higiene. Por último a
presença de inúmeros quadros e jarros de porcelana que decoravam o ambiente
demonstrando a riqueza e a ostentação dos moradores.
Entendemos que os lares fortalezenses desse período foram modificados. As
residências da elite foram se modificando e se adaptando as influências culturais
europeias. As famílias abastadas brasileiras (inclusive a cearense) passaram a orientar-
se, cada vez mais, pelas práticas e comportamentos da burguesia europeia,
industrializada, comerciante e tecnologicamente desenvolvida, vinculando-se
culturalmente à França, à Inglaterra e à Alemanha. As habitações burguesas sofreram
um processo de compartimentação do espaço doméstico49, ou seja, é notório
verificarmos que durante esse período estudado surgiram nas habitações quartos
separados para pais e filhos, demarcações entre os locais onde se cozinhava e o local
onde se comiam (ABRAHÃO, 2008). Mudanças que estabeleciam uma relação entre
privado e público diferente da do início do século XIX. Essas transformações
modificaram a casa tanto no âmbito arquitetônico como também na utilização dos
artefatos domésticos. É esse gosto burguês europeu de morar que atravessou o
Atlântico, através dos meios de comunicação da época, dos viajantes estrangeiros que
habitavam no Brasil e também pelas casas comercias que faziam residências no nosso
território, e entrou nas habitações das famílias brasileiras.

2.2.3. A moradia civilizada: as normas habitacionais dos códigos de posturas

Outro fator responsável pelas modificações das moradias fortalezenses foram


os códigos de posturas municipais estabelecidos durante o século XIX. Esses
determinavam os tipos de casas ideais que os moradores deveriam obedecer. O que
notamos é o poder público querendo impor a sociedade alencarina em um modelo de
civilização através de leis. Essas regras municipais determinavam as medidas corretas
que uma habitação deveria ser construída e quem não seguissem as ordens poderia ser
multado.

Os principais códigos de posturas utilizados para análise foram os dos anos


de 1865, 1870 e 1879. Os artigos presentes no primeiro davam ênfase nos aspectos
rurais que ainda estavam presentes na capital cearense. As regras ocorriam com o intuito

49
No Ceará, a compartimentação das residências só vai se consolidar na década de 1930, pois no final do
século XIX ainda era fácil encontrar casas que não possuíssem cômodos com funções estritamente
especificas.
56

de garantir a higiene, disciplina e ordem. O segundo conjunto de leis estabelecia


medidas relacionadas a saúde como a vacinação e afirmava alguns padrões de
construções que já estavam presentes no último código. A última coleção de leis
analisada representava a importância que o poder público dava a limpeza da cidade e ao
controle dos lugares públicos. Esses princípios instrucionais deixaram claro o foco no
desenvolvimento urbano relacionado com a higiene e a saúde (CAMPOS. 1988).

Explorando os códigos de posturas que estavam vigentes durante o século


XIX percebemos que o objetivo dos governantes era de restringir e punir os moradores
que não obedecessem ao padrão ideal de cidadão estabelecido. Esse modelo teria que
estar relacionado com o progresso, e para isso, a sociedade tinha que estar de acordo
com os moldes urbanísticos europeus. Então, essas inúmeras leis foram criadas para
adequar os indivíduos cearenses a uma nova ordem social, essa que por sua vez era dita
como civilizada pela administração provincial.

O código de posturas de 1865 colocava que as principais modificações de


convivência social estabelecida são consequências necessárias para a harmonia de uma
sociedade que estava a caminho da civilização (CAMPOS, 1988). Nesse conjunto de
leis notamos um maior controle nos hábitos, costumes e nas habitações. As principais
transformações comportamentais (que já estavam presentes em códigos anteriores)
foram: a não permissão de cidadãos andarem pela urbe vestidos com poucos trajes,
proibição de jogar lixo nas ruas (ocasionando multa de 1$000 reis), fim da atividade
pesqueira em algumas lagoas e rios (multa de 10$000 reis), maior fiscalização no
matadouro, nas poças de água presentes nos quintais e nas salgadeiras de couros,
fechamento dos chiqueiros e interdição dos banhos nas lagoas citadinas (CAMPOS,
1988).

Notamos que as principais preocupações das regras de posturas de 1865


estavam relacionadas com os comportamentos rurais da população cearense. E esses
simples hábitos eram mal vistos pela elite e pelos governantes. O estilo de vida do
homem rural era colocado como hábito selvagem e um empecilho para o progresso
civilizador da cidade. Muitos outros costumes que agora causavam pudor e repugnância
começaram a ser proibidos, mas querendo o poder público ou não, essas práticas rurais
ainda estavam presentes em Fortaleza. Sendo assim, identificamos na capital cearense
57

desse período uma mescla entre os costumes do campo e os novos hábitos citadinos
influenciados pelas nações europeias.

O processo civilizador capitalista imposto pelo governo possuía grande


preocupação em ocultar o “estado selvagem” da população. Essa preocupação se dava
em todos os aspectos da vida social como: aparência das vestimentas, da casa, do décor,
dos comportamentos em público etc. Os aspectos culturais e sociais que estivessem
relacionados com o período colonial e com o ambiente rural eram classificados como
“não-civilizados”. Assim, o projeto de civilização do governo cearense estava engajado
em combater os comportamentos rústicos para que a cidade se enquadrasse nos
parâmetros das nações civilizadas.

A oposição entre campo e cidade ocorria com o intuito de representar que o


estágio de civilidade da capital estava a frente da desordem do ambiente rural. Assim, a
urbe seria o espaço da lei e da ordem; logo da civilização. E o campo, o local onde as
leis são desrespeitadas e onde os rudimentos da civilização falham, embora alguns
valores do homem do campo sejam valorizados (simplicidade, pureza e honestidade).

No que se refere às imposições arquitetônicas, o código de 1865 já começou a


informar o tamanho das casas, os materiais que deveriam ser utilizados e os adereços
que teriam que ser implantados nas fachadas. O artigo 7 estabelecia o seguinte:
As casas que se construírem nas duas avenidas de cem palmos terão vinte e
dous palmos de altura na frente, entre as soleiras das portas e a base da
cornija. Terão todas cornijas e acrotérios, cuja a altura corresponderá a uma
quarta parte de altura da frente. As portas quando de verga direita ou de verga
semicircular ou de gótica fechada, terão 14 palmos de altura e 6 de largura, e
quando de verga semicircular ou gótica aberta terão as portas doze e meio
palmos de altura até a imposta do arco, e as janelas oito palmos. Os claros e
cunhais terão pelo menos a largura das portas e janelas; o espelho terá 8
palmos de altura e as soleiras das portas serão assentadas um palmo acima do
nível das calçadas. Os contraventores serão multados em dez mil réis, além
de ser demolida a parte da casa que se não conformar com a presente postura
(CAMPOS, 1988. p. 114).

As leis determinavam os tamanhos e larguras das portas, janelas, claros,


cunhais, espelhos, cornijas (essas eram de usos obrigatórios), acrotérios, altura da casa e
a distância entre as cornijas e as portas. Os donos das edificações que não obedecessem
a essas regras seriam multados e teriam suas moradas destruídas. Alertamos que essas
leis só eram impostas na região que o poder público considerava ser a cidade. Ou seja, o
espaço central era bastante modificado, mas as partes periféricas eram destinadas ao
abandono, não sendo até mesmo consideradas como regiões da urbe (CAMPOS, 1988).
58

O código de posturas e 1870, aprovado pelo Des. João Antônio de Araújo


Freitas Henrique, possuía 87 artigos. Junto com as leis de 1879 essas regras tentaram
inserir a cidade, cada vez mais, no processo civilizador. E para isso, os governantes
acreditavam que o município teria que ter maior rigor quando o assunto fosse saúde-
higiene e salubridade. Então, a principal atenção que essas normas deram foram nos
assuntos referentes ao controle social, saneamento e higienização.

Diante de todas essas exigências civilizatórias pode-se concluir que nas


três últimas décadas do século XIX, civilização tinha sinônimo de salubridade, higiene,
disciplina e segregação. As modificações impostas pelos governantes, nesse período,
mostravam preocupação com a questão da higiene pública e privada. Analisando o
código de posturas de 1870 notamos as seguintes medidas que tentavam estabelecer
melhores condições higiênicas: maior fiscalização dos condutores de carne verde, dos
vendedores de leite, frutas, verduras, legumes, doces, ovos e fumo, continuavam as
preocupações com a utilização dos lagos (só que agora com uma atenção para a limpeza
desses), os funcionários responsáveis pelo abastecimento de água potável nas casas
teriam que demonstrar boas condições higiênicas, proibição do banho de pessoas com
doenças consideradas contagiosas em certos lugares, não permissão de currais na cidade
e um maior controle no uso de armas (CAMPOS, 1988).

Passados cinco anos do conjunto de leis de 1865 ainda notamos que


existiam preocupações com os hábitos rurais dos citadinos fortalezenses. Algumas
regras levantadas nesse código de 1870 continuavam afirmando o desejo do poder
público em extinguir esses costumes do campo, principalmente hábitos que iam de
confronto com a higiene e com a moral estabelecida na época. Portanto,
compreendemos que o objetivo desses códigos era medicalizar o espaço e a sociedade,
para isso, era necessário combater focos naturais e sociais das moléstias.

A medida que Fortaleza ia crescendo e se tornando populosa as preocupações


com o desenvolvimento das epidemias aumentavam. O processo de medicalização
ocorria no tratamento da água, do ar, dos espaços e da sociedade. A ideia que o governo
colocava era que se a cidade não estivesse em ótimas condições sanitárias ela não
produziria riqueza e nem civilização.

No que se refere às construções públicas e privadas notamos que o código de


posturas de 1870 estava voltado para garantir lares arejados. Influenciados pelo olhar
59

clínico da época as leis exigiam edificações grandes, iluminadas e que garantissem a


salubridade do ambiente. As exigências arquitetônicas eram as seguintes:

A altura das casas erguidas nos limites da cidade, da “soleira até a linha de
base da cornija” deveria alcançar 4m84; toleradas a cornija e platibanda com
0,44 cm e 0,55 cm de altura, e “de 0,22 a 0,28 de saliência, e esta entre a
quarta e quinta parte da altura da frente”. Em outras palavras: a altura total da
frente deveria ficar com aproximadamente 6m05cm, e o da cornija pelos 4 e
5 metros, a partir da soleira (CAMPOS, 1988. p. 143).

Observando os procedimentos técnicos do âmbito arquitetônico notamos que


não foram muitas as modificações entre os códigos de 1865 e 1870. Os artigos presentes
nos dois conjuntos de leis estabeleciam medidas arquitetônicas que possuíam um padrão
nacional. Portanto, as residências teriam que ter um padrão de fachadas idênticas e que
garantissem uma maior salubridade privada.

Segundo Eduardo Campos o Código de Posturas de 1879 foi uma versão


melhorada das leis de 1870. À medida que Fortaleza cresce a preocupação com a
questão sanitarista também foi redobrada. Nesse conjunto de leis notamos as seguintes
medidas no âmbito publico: divisão das ruas em setores e distritos, serviço de limpeza
das ruas e logradouros, obrigação da vacinação, instauração de transportes adequados
para o serviço de limpeza e de abastecimento da água, criação de uma comissão
responsável em examinar a salubridade das fontes, chafarizes, tanques e depósitos, e
composição de varias regras para a utilização do Passeio Público.

O primeiro título do código de posturas de 1879 é especifico sobre as


edificações. Encontramos 25 artigos que estabelecem regras para as residências
construídas dentro da planta da cidade. As principais posturas estabelecidas nas
construções foram: alinhamento e nivelamento das casas (sejam de taipa, palha ou
alvenaria), calçadas de pedras ou tijolos vermelhos e sempre conservadas e niveladas,
casas edificadas sobre o alicerce de tijolos ou pedras com argamassas de cal e areia,
todo mês de junho os moradores teriam que pintar e retocar a frente dos lares
(guarnecidas de azulejos coloridos), proibição de alçapões no telhado e permissão da
construção de “serpentões”.

Semelhante aos conjuntos de leis anteriores, esse último código da década de


1870 também estabeleceu padrões métricos para a arquitetura das casas e seus
ornamentos. As regularidades dos lares se davam com as seguintes dimensões: altura
60

entre a soleira e linha da base de cornija de 4, 84m , portas com 2,64m de altura e 1,10m
de largura, janelas com 1,65m de altura e 1,10m de largura, claros entre portas e janelas
com altura de 2, 20m (máximo) e mínimo de 0,49cm, soleira das portas de 0,1cm a
0,22cm acima da calçada, calçadas com 1,76m de largura, cornija de 0,44cm de altura
sobre 0,22cm de saliência e platibanda de 0,88cm.

Assim, analisando essas inúmeras regras estabelecidas pelo poder público,


conseguimos perceber que as posturas de 1879 não diferem muito dos outros códigos e
continua estabelecendo leis que tinha por objetivo controlar o cotidiano público e
privado. Os espaços das ruas, logradouros e casas eram determinados pelo poder
público e quem não seguisse esse padrão era punido com multa. Os lares tinham que
utilizar os materiais (tijolo e telha) de acordo com os moldes colocados pela lei (exceto
se o material fosse importado). Por fim, as edificações que não estivessem em
conformidade com as leis seriam demolidas e o morador multado.

Mas é importante salientar que existia uma grande distância entre a ordem e
a efetivação das leis, pois muitos domicílios não acatavam as preocupações e os
desígnios registrados nos códigos. Mesmo na segunda metade do século XIX notamos
habitações em situações precárias. Na década de 1860 encontramos mais de 7.200
residências cobertas de palhas e fora das normas estabelecidas (BRASIL, 1997). Quadro
esse que mudaria lentamente até o final do século XIX, pois até mesmo na década de
1870 encontramos casas de taipa: “Declarou mais o mesmo inventariante ter ficado uma
pequena casa de taipa na rua do Imperador que os avalliadores avalliarão por cem mil
reis”.50

Observando os inventários das três últimas décadas do século oitocentistas,


apesar de um número significativo de sobrados com fachadas padronizadas, ainda
encontramos descrições de casas de taipas, cobertas de palhas, com poucos móveis,
poucos cômodos e com valores que indicavam residências simples que não seguiam as
leis do poder instituído.

Os três códigos de postura (1865,1870 e 1879) nos mostram a necessidade


que o poder público possuía em querer disciplinar e adequar a população aos padrões de
“civilidade” europeia. Entendemos que o governo, com essas normas urbanas, “criou”

50
Arquivo Público do Ceará, COF. Inventário de Francisco Fernandes de Faria, Fortaleza, 1871.
61

um modelo de morador que a sociedade deveria seguir, seja através de punições ou


restrições, para ganhar status de cidade civilizada.

A partir do que observamos nos códigos de posturas, concluímos que em


todos os conjuntos de normas ocorre uma preocupação com a padronização dos espaços
residenciais de Fortaleza. As inúmeras especificações arquitetônicas exigidas nos
mostram a intenção do poder provincial em garantir um controle social a partir de
edificações que transmitissem um modelo de vida disciplinado e acordado com as
exigências estrangeiras da época.

A imensa preocupação em determinar, até mesmo, os tipos de materiais que


poderiam ser utilizados nas edificações estão influenciados pelas teorias científicas
europeias do período. A obrigatoriedade da utilização do tijolo e da telha em
substituição a taipa e a palha ocorreram devido a motivos climáticos e higiênicos. Essas
medidas visavam a prevenção de focos de doenças que poderiam contaminar toda a
população.

Sendo assim, qualquer habitação que classificada como insalubre seria


combatida pelo governo. As casas de palhas, que se encaixavam nesse perfil, logo foram
colocadas para fora do perímetro da cidade. A lei nº1692 de 1875 determinava que esse
tipo de moradia devesse ser construídas distante da parte central da cidade ( avenidas
Duque de Caxias, Imperador e ruas do Pajeú). A ideia era que segregasse as práticas
incivilizadas do centro cultural das elites.

Então, tivemos como objetivo, nessa primeira parte de nossa dissertação,


refletir sobre três temáticas que estão relacionadas direta ou indiretamente com o nosso
objeto de pesquisa e com a nossa problemática central. Tentamos em um primeiro
momento escrever que Fortaleza era aquela da segunda metade do século de XIX.
Posteriormente descrevemos e debatemos sobre as transformações arquitetônicas
domesticas da capital cearense durante o período oitocentista.

Acreditamos que com a análise construída no primeiro tópico deste capitulo


foi possível entendermos a inserção da cidade de Fortaleza no processo civilizador
capitalista. Notamos que essa inserção ocorreu também no ambiente público a partir da
construção da estrada de ferro de Baturité, da chegada de casas comerciais estrangeiras,
da remodelação das ruas e da construção de logradores públicos. Assim, para falarmos
62

de civilização foi necessário ressaltarmos a importância da cidade, já que é nesse espaço


onde ocorrem as relações sociais regionais, nacionais e internacionais.

Na segunda parte foi possível ver a trajetória arquitetônica das casas da capital
cearense durante o século XIX. Notamos que no início desse período as casas eram
construídas com materiais rústicos e não possuíam muitas divisões. Já na segunda
metade do século em foco já observamos casas com mais de um andar, com fachadas
ornamentadas e espaços domésticos com funções específicas. Assim, concluímos que as
modificações dos lares da capital cearense ocorreram graças ao crescimento econômico
da cidade, aos códigos de postura que impuseram regras (transição do rural para o
urbano) e a vontade dos agentes capitalistas e das elites regionais em seguir o padrão de
morar europeu dito civilizado.

Portanto, o intuito desse capítulo foi apresentar as mudanças ocorridas em


Fortaleza e suas interferências no âmbito dos espaços das residências e acompanhar a as
transformações estruturais, dentro de uma diversidade de relações de praticas culturais e
demarcadores sociais absorvidas pela elite que deixaram vestígios de um modo de
morar bastante caracterizado pela sofisticação. Relacionado com isso, antes de
analisarmos os objetos domésticos que representavam essa inserção (objetivo realizado
no terceiro capítulo), cabe agora na segunda parte do trabalho entender como esses
artefatos domésticos eram importados na capital cearense e consumidos pela elite local.
63

3. A EXPANSÃO CAPITALISTA CHEGA AO CEARÁ: A INSERÇÃO DA


CAPITAL FORTALEZENSE A PARTIR DO CONSUMO MATERIAL (1871-
1893)
Este capítulo está dividido em dois tópicos: O primeiro (Expansão do Processo
Civilizador Capitalista Mundial: da Europa a Fortaleza) mostra o desenvolvimento do
capitalismo na Europa em meados do século XIX, as diversas estratégias dos agentes
capitalistas para expandir o comércio pelo mundo e exibimos o desenvolvimento
econômico do capitalismo no continente europeu. Analisamos a produção sendo
mercantilizada e a necessidade de um maior mercado consumidor. Com isso, refletimos
sobre a fase imperialista desse sistema econômico levando em consideração o
surgimento/consolidação de tecnologias (navio a vapor, telegrafo, locomotiva etc.) que
serviram como instrumentos para a expansão do capital.

Ainda nessa primeira parte também temos como intuito mostrar o


desenvolvimento do comércio cearense durante o século XIX. Partindo desde 1799, ano
em que a capitania do Ceará consegue autonomia administrativa em relação a
Pernambuco, passando pelo desenvolvimento da cotonicultura chegando até o
crescimento das instalações de casas comercias em toda a província. É analisado como
Fortaleza ganhou importância econômica durante o século XIX, chegando a desbancar
centros comerciais consolidados na província cearense, como Aracati e Icó. Então, o
objetivo dessa primeira parte do capítulo é refletir sobre a ligação da província cearense
(com ênfase em sua capital) com os mercados Europeus.

O segundo tópico apresenta as principais linhas de vapores que realizava a


conexão de Fortaleza com o mundo, as firmas comerciais existentes na capital cearense
exibindo a importância dessas para o desenvolvimento do Processo Civilizador
Capitalista na região. Realizando uma ligação dos navios, casas comerciais e os
anúncios dos periódicos, conseguimos identificar as empresas comerciais da cidade que
tinham como objetivo a importação e venda de produtos estrangeiros.

Além de focarmos no processo de importação também ponderamos as ligações


dessas empresas com outras atividades econômicas na região (como ações para
combater a seca, para criar um banco econômico e custear linhas de vapores para
Europa). Dentre as firmas estrangeiras levantadas na pesquisa focamos nossos estudos
na história da Casa Comercial Boris Frères, desde a sua chegada em 1871 até a sua
primeira recessão econômica ocorrida em 1893.
64

Por fim, realizamos um estudo sobre o consumo de objetos domésticos na


cidade de Fortaleza. A partir dos anúncios dos jornais, das transações das casas
comerciais e dos leilões (mostrando os horários, locais, as sociabilidades e os motivos
da ocorrência deles) percebemos como ocorria a venda e a compra dos artefatos dos
lares. Além disso, problematizamos os significados do consumo dos utensílios da casa.
Assim noções de distinção e inserção são debatidas nessa última parte, mostrando como
a elite fortalezense consumia os objetos importados das casas comerciais.

3.1. Expansão do Processo Civilizador Capitalista Mundial: da Europa a Fortaleza

A razão principal disso reside na transformação e expansão econômica


extraordinárias dos anos entre 1848 e o início de 1870, e constituem o
assunto principal deste capítulo. Foi o período no qual o mundo se tornou
capitalista e uma maioria significativa de países “desenvolvidos”
transformou-se em economias industriais (HOBSBAWN, 2012.p. 60).

Iniciando o capítulo com a explanação acima podemos perceber que, segundo o


historiador Eric Hobsbawn, entre os anos de 1848 e 1870 o sistema econômico
capitalista teve um crescimento mundial. Durante meados do século XIX presenciamos
a expansão do capitalismo tanto no continente europeu como nas demais regiões
continentais do mundo. É nesse período que notamos o crescimento das exportações das
principais nações econômicas europeias, surgimento de novas indústrias e, com isso,
aumento da taxa de empregos, crescimento e variedades de manufaturas (que ganhavam
destaques nas Grandes Exposições Internacionais surgidas na época) e a consolidação
do liberalismo econômico (incentivando o livre comércio e a iniciativa privada motores
fundamentais para o progresso da indústria).

Na área da tecnologia esse período (1848-1870) é marcado pela utilização da


estrada de ferro, do telégrafo, do cabo submarino e do navio a vapor. Graças a esses
artefatos foi possível o crescimento do espaço geográfico econômico capitalista, pois
foram consolidadas comunicações diretas e relações comerciais com regiões ditas
inviáveis durante épocas anteriores. Os navios a vapor eram os principais responsáveis
pela importação de matérias-primas das outras regiões e pela exportação de
manufaturados europeus. Muitos foram as linhas de navegações que surgiram durante
esse período ligando o velho mundo ao novo. As estradas de ferros atreladas com as
locomotivas exigiam uma maior produção de carvão e ferro (matérias primas
fundamentais desse período) e fortificavam as interações comerciais terrestres ligando
65

capitais as cidades interioranas de inúmeras regiões globais. O telégrafo e o cabo


submarino foram responsáveis por envio de mensagens diretas entre a Europa e regiões
separadas pelos oceanos.

O que percebemos é um capitalismo centrado na Europa (sobretudo na


Inglaterra) que cresceu de maneira triunfante nas demais zonas do globo.
Desenvolvimento esse que deu um grande impulso na década de 1860 e atingiu seu
ápice nos de 1871 e 1873. Nesse recorte temporal o capitalismo deixa de ser economia
local para ser mundial. Na era do imperialismo os países exportam matérias-primas e
alimentos, e mesmo a preços relativamente baratos conseguem capitais para consumir
os produtos manufaturados europeus. Então, como contexto socioeconômico temos uma
enorme expansão da economia mundial baseada na industrialização de vários países e
no trânsito mundial de produtos, dinheiro e pessoas.

É em meados do século XIX que as nações começam a obter um avanço


considerável no que diz respeito a relações diplomáticas, políticas, administrativas e
econômicas. Antes de 1848 essas conexões não ocorriam de forma mundial, pois apenas
possuíam um caráter local. Até o século XIX as nações europeias não tinham um
conhecimento pleno sobre o mundo, muitos mapas configurados pelos europeus não
representavam partes dos outros continentes, pois esses não conheciam de fato as
características de determinadas regiões.

Segundo a historiografia mundial, podemos afirmar que na década de 1870


esse quadro de interligações mundiais foi bastante modificado. De fato na época do
imperialismo europeu as nações desse continente estabeleceram contato (exploração,
comércio, colonização, civilização) com até mesmo os lugares mais remotos do planeta.
Notamos um crescimento nas exportações de produtos europeus para regiões
continentais ate que até então não estava inseridas no processo civilizador capitalista.
“Em outras palavras, em 35 anos o valor das trocas entre a mais industrializada das
economias e as regiões mais atrasadas ou remotas do mundo havia-se multiplicado por
6”(HOBSBAWN, 2012.p. 90).

O contato europeu com as demais regiões do globo ocorria através do envio


de comissões científicas, agentes consulares, viajantes que relatavam sobre os aspectos
regionais, exploradores de minérios, engenheiros responsáveis pelas construções de
estradas de ferro e de comerciantes. O nosso estudo foca nos estrangeiros que chegaram
66

ao Brasil (em especial na província do Ceará) para a realização do comércio de produtos


domésticos. Aqueles que com o passar do tempo possuíram o domínio da importação,
exportação e do transporte marítimo. Esses com seus produtos também trouxeram uma
ideia de civilização e progresso que aos poucos os territórios remotos foram se
inserindo:

Explorar significava não apenas conhecer, mas desenvolver, trazer o


desconhecido e, por definição, os bárbaros e atrasados para a luz da
civilização e do progresso; vestir a imoralidade da nudez selvagem com
camisas e calças, com uma providencial e beneficente manufatura de Bolton
e Roubaix, levar as mercadorias de Birmingham que inevitavelmente
arrastavam a civilização para onde quer que fosse (HOBSBAWN, 2012.p.
91).

Percebemos que o concreto da expansão capitalista ocorria através dos objetos.


O consumo e a utilização dos artefatos europeus significavam ser civilizado e estar no
caminho do progresso. Eram os artefatos do lar e a própria residência que
representavam o apogeu do período. A casa e seu conjunto era a “quintessência do
mundo burguês” (HOBSBAWN, 2012). Os objetos e as decorações arquitetônicas
expressavam status e poder. Eram produzidos com materiais que exibissem eternidade,
conforto e excelente elaboração. Esses representavam mais as riquezas dos anfitriões do
que um gosto congênito.

As principais nações europeias que estabeleciam essa relação de


comércio/civilização com o Brasil eram a Inglaterra e a França. A primeira exportava
para as regiões brasileiras manufaturas em geral, enquanto a segunda se especializava
na produção de artigos de luxo (objetos, decoração e roupas). A relação da nação
francesa não se resumia apenas em exportações, pois essa também importava alimentos
(café, carne, cereais, açúcar, cacau) e matérias-primas necessárias à indústria (carvão,
lã, algodão, seda, madeiras e peles).

A priori o objetivo francês com o Brasil era adquirir as matérias-primas


existentes nas regiões do país e não, ainda, exportar seus artigos de luxo para a
população brasileira:

No primeiro relatório sobre o Brasil, disponível para pesquisa e já citado


anteriormente, redigido em 1823, as províncias brasileiras são apenas listadas
com “noticias” sobre suas possibilidades em termos de produção agrícola e
mineral. Há um interesse maior pelos tipos de matérias-primas que diferentes
regiões brasileiras poderiam oferecer do que pelo grau de consumo que essas
mesmas regiões ofertariam às manufaturas francesas (TAKEYA, 1995.p. 52).
67

Se na primeira metade do século XIX a França estava concentrada em consumir


os produtos agrícolas brasileiros, na outra metade do mesmo século ela se colocou com
uma proposta diferente. Pois no decorrer do mesmo século as nações europeias (não só
a França) obtiveram um aprofundamento do conhecimento sobre o Brasil
(principalmente a partir das ações dos agentes consulares), e agora estavam percebendo
a capacidade de algumas regiões brasileiras consumirem as manufaturas de luxo
francesas.

Retomando o debate sobre a expansão do capitalismo (1848-1875) e


relacionando com a questão levantada a cima, das relações comerciais entre França e
Brasil, podemos entender que no início as áreas centrais do capitalismo procuravam
mão de obra barata e produtos agrícolas nas zonas periféricas. E assim como
Wallerstein (1983), acreditamos que só depois da chegada de inúmeros estrangeiros
(agentes capitalistas) nas regiões brasileiras que o consumo de mercadorias europeias
começaram a crescer.

Estimasse que entre os anos de 1855 e 1874 aproximadamente 250.000


europeus instalaram-se no Brasil (HOBSBAWM, 2012). Foram esses estrangeiros que
começaram a reclamar da ausência dos produtos dos seus países de origem e que
também em consonância com os governos locais começaram a criarem desejos na
população local para o consumo dos objetos do velho mundo. Ou seja, na expansão do
processo civilizador capitalista primeiro criavam os objetos e depois a necessidade
desses artefatos para se inserir numa economia global.

A província do Ceará passa a se inserir no processo civilizador capitalista a


partir do século XIX. Antes desse período essa região era subordinada a Pernambuco e
não realizava comércio direto nem com a metrópole portuguesa. Durante todo o século
setecentista a região alencarina estava sob tutela econômica, militar, administrativa e
religiosa da Capitania Geral de Pernambuco, isso impossibilitava o desenvolvimento da
região cearense.

A população local não tinha muito desejo (e nem recursos financeiros) para a
realização do comércio direto com a Europa. As principais transações econômicas
efetuadas eram permutas com a praça de Pernambuco. Como a principal atividade
econômica (no século XVIII) era a pecuária, a província comutava carne seca com
produtos de primeiras necessidades como: fazendas, bebidas engarrafadas, drogas,
68

objetos religiosos, instrumentos de trabalhos etc. importados pelos comerciantes


pernambucanos. Esses produtos entravam na região pelo município de Aracati chegando
a Fortaleza através de mascates e ambulantes.

O acontecimento que marca os primeiros passos do longo caminho da região


para se inserir na economia mundo foi a Carta Régia de 17 de Janeiro de 1799, em que o
Príncipe Regente Dom João garantia a autonomia do território cearense perante a
Capitania de Pernambuco. A partir dessa data o Ceará-Grande estava permitido de
realizar comércio direto com a Europa para isso ainda no mesmo ano foi criada a Junta
da Fazenda, em 1812 foi instalada efetivamente a Alfândega de Fortaleza e antes de
terminar a primeira década do século XIX a capitania já possuía quatro portos.

No início dos oitocentos a maior parte dos portos do Ceará eram enseadas
naturais e isso dificultava muito as operações de carga e descarga (muitas vezes as
mercadorias caiam no mar). O governo vendo essa situação dedicou-se em construir um
cais no Mucuripe e em outros portos da região. A construção de ancoradouros com
instalações adequadas foram sendo realizadas durante todo o século XIX, medidas essas
que facilitaram muito as transações comerciais. A Junta da Fazenda, através da cobrança
de impostos, também visando melhorar o comércio cearense empenhou-se na edificação
de estradas. Essas tinham como objetivo facilitar as transações comerciais realizadas
através de carros de bois, pois era através desse transporte que as mercadorias eram
adquiridas no porto e levadas para as cidades.

10 de março de 1803 foi a data da primeira realização comercial direta entre o


Ceará e Portugal. Nesse dia “aportou no Mucuripe a escuna “Flor de Maio”, de Antônio
Nunes, que a capitaneava, e procedente da Cidade do Porto, com escala na ilha da
Madeira” (NOBRE, 1991. p. 15). A segunda embarcação de Portugal no território
cearense foi a polaca Felicidade (em 2 de dezembro do mesmo ano) com passagem
também pela ilha da Madeira, esse paquete era do negociante de Fortaleza José Pacheco
Espinosa (NOBRE, 1991). Analisando essas atividades comercias podemos perceber
que as primeiras barcas a fazerem comércio direto com a metrópole eram de
negociantes cearenses. Isso acaba mostrando o interesse desses pela autonomia
comercial perante as outras praças vizinhas.

Nas duas primeiras décadas do século XIX notamos o avanço da capitania


cearense no caminho de inserção no capitalismo mundial. Desde a virada do século
69

(XVIII-XIX) com concessão de sua autonomia administrativa, econômica, política e


religiosa a região começou a investir na sua economia. Observamos barcos chegando de
Portugal, portos e estradas sendo construída, intensificação das exportações e
importações, impulso da agricultura destinada ao exterior e formação de associações
entre os negociantes que abriam comunicação direta com alguns portos da Europa.
Realizações essas que só aumentaram cada vez mais a partir da Carta Régia de abertura
dos portos do Brasil as nações amigas.

3.2 - A consolidação da capital cearense na economia mundo: as linhas de vapores


internacionais, casas comerciais e o consumo de objetos.

A partir de 1808, o comércio com a Inglaterra se intensificou, pois essa era a


principal nação europeia que tinha acordos com Portugal. Na capitania do Ceará
também notamos, nesse período, as primeiras transações econômicas entre o Porto de
Fortaleza e o de Londres:

...em 4 de fevereiro do dito ano saíra do porto de Fortaleza para o de Londres


a galera “Dous Amigos”, transportando o carregamento no valor total de mais
de vinte conto de réis (20:487$000), representado por 3.736 arrobas de
algodão e 450 de açúcar, além de 1.267 couros salgados, sendo os principais
carregadores Antônio José Moreira Gomes, José Pereira de Castro (padre, o
que não consta), José Antônio Machado, Antônio Francisco da Silva e José
de Agrela Jardim. (NOBRE, 1991.p. 18)

Essa interconexão direta entre Ceará e Londres se não foi a primeira existente
entre as regiões foi uma das pioneiras. Em 1809 temos os comerciantes Barroso,
Martins, Dourado e Carvalho (em Londres) enviando para Fortaleza o sócio Lourenço
da Costa Dourado, através do navio “Paquete do Ceará”, com o objetivo de conhecer as
relações comerciais (principalmente do algodão) da capitania. Já em 1811 o navio inglês
Sophia e Bertha ancorou no porto fortalezense trazendo a bordo o irlandês William
Ware, responsável em fundar a primeira firma estrangeira de comércio direto fixada no
Ceará.

Se na primeira metade do século XIX observamos poucos estabelecimentos


51
comerciais na capitania do Ceará, notamos situação bastante diferente a partir de
meados dos oitocentos. Em 1860 na cidade de Fortaleza existiam 353 estabelecimentos

51
A maior parte dos estabelecimentos comerciais do Ceará, durante esse período, eram portugueses
(principalmente após a independência). Tínhamos poucas firmas pertencentes a outras nações como:
Singlehurst & Cia de 1835 (inglesa), Corlett & Cia de 1835(inglesa) e Henri Cals de 1842 (francesa).
(NOBRE, 1991)
70

comercias sendo que 84 pertenciam a estrangeiros. Seis estabelecimentos de gêneros de


primeiras necessidades eram estrangeiros (tinham 93 quitanda). Meia dúzia de oficinas
(alfaiates, sapateiros, ourives, funileiros etc.) eram estrangeiras (tinham 76). Vinte e
quatro tabernas eram estrangeiras (tinham 73). Quinze lojas de fazendas eram
estrangeiras (tinham 53). Dez casas que vendiam roupas e calçados eram estrangeiras
(tinham 11). Doze armazéns eram estrangeiros (tinham 15). Seis açougues eram
estrangeiros (tinham 17). Sete escritórios de comércio eram estrangeiros (tinham 12).
Uma botica era estrangeira (tinham 4) (NOBRE, 1991).

Notamos que a província cearense obtém um aumento de sua inserção no


capitalismo mundial a partir da segunda metade do século XIX. Se no início desse
século percebemos poucas embarcações chegando à capital cearense e apenas algumas
firmas estrangeiras com filiais na região, em meados do mesmo século já é possível
notar 84 estabelecimentos responsáveis pela venda de uma diversidade de mercadorias52
e também da concretização das primeiras linhas de vapores ligando Fortaleza a Europa e
aos EUA.

O aumento do número de casas comerciais na província do Ceará se deve ao


fato de sua economia algodoeira crescer muito a partir de 1860. Em meados do século
XIX a o principal produto dessa região deixa de ser a pecuária e passa a ser o algodão.
Esse era produzido principalmente nas áreas serranas e exportado para as indústrias
têxteis inglesas. A região cearense (e outras áreas do Brasil) começa a ganhar destaque
nessa produção, durante esse período, devido ao principal concorrente do Brasil (os
EUA) estar envolvido numa guerra civil, essa que diminui drasticamente a produção
norte-americana.

Com a exportação algodoeira cearense crescendo foi possível que a elite


comercial da região desenvolvesse financeiramente e começasse a consumir produtos
importados. As primeiras casas comerciais estrangeiras que chegaram ao Ceará tinham
como principal objetivo a busca por matérias primas (em especial o algodão) para serem
enviadas as suas nações de origem. Além do comércio do algodão o outro motivo que
levou a escolha do Ceará para a fixação foi a pouca concorrência que essas primeiras

52
Apesar de termos firmas estrangeiras realizando comércio de diversos tipos, essas firmas europeias ou
estadunidenses se destacavam mesmo na negociação direta com as praças Europa e dos EUA.
71

firmas iriam ter (comparada com as outras regiões do Brasil tinham-se poucas casas
dedicada ao comércio de importação).

Entre os inúmeros municípios existentes no Ceará os negociantes europeus


também começaram a optar pela capital fortalezense para a instalação de seus
estabelecimentos. A escolha dessa cidade dentre outros polos econômicos que também
estavam em desenvolvimento (Quixadá, Aracati, Sobral e Crato) deve-se ao fato de que
a capital estava se tornando num centro econômico da província. Fortaleza durante a
segunda metade do século XIX teve seu porto53 melhorado, novas linhas de vapores
ligando às cidades nacionais e internacionais, estradas de ferro que ligava ela a região
serrana e construção ou melhoramento de vias terrestres que a conectava as partes
norte, sul e oeste. A procura pela urbe era tão grande que a quadra que estar presente a
Rua da Palma (atual Major Facundo) era denominada popularmente de quarteirão dos
“estrangeiros” (NOBRE 1991).

No princípio da segunda metade do século oitocentista o comércio direto entre


o Ceará e a Europa através de navios a vapor possuía repercussão negativa. O porto da
capital ainda não era devidamente adequado para esse tipo de embarcação e a região não
possuía vapores para realizar essas transações (ficava dependente a Pernambuco e ao
Maranhão). Esse quadro começou a mudar a partir de 1866 quando temos o registro dos
primeiros navios a vapor:

A 5 de novembro de 1866 chegou ao porto de Fortaleza o vapor “Augustine”


pertencente à firma Booth & Cia. De Liverpool, sendo assim essa linha de
vapores a 1º a por o Ceará em comunicação direta com a Europa. Quase três
anos depois, outra linha, a Red Cross, também de Liverpool, iniciava igual
serviço com o vapor “Paraense”. Fundidas numa as duas poderosas
Companhias Inglesas, continua a seu cargo, quase exclusivo, o serviço de
exportação e importação do Ceará com as praças europeias e os Estados
Unidos da América do Norte (STUDART, 1923 e 1924, apud NOBRE, 1991,
p. 29).

Notamos que até 1866 as navegações que faziam o comércio direto entre o
Ceará e a Europa eram movidas a vela. Essas demoravam cerca de 50 a 60 dias
dificultando as atividades comerciais. Com a utilização do carvão para obtenção de
energia surgiram os navios a vapor (um dos principais símbolos da expansão do

53
No decorrer do século XIX o porto do Mucuripe vinha se estruturando adequadamente aos navios que
não paravam de chegar. Em meados do século XIX o porto de Fortaleza se encontrava em sétimo lugar
nacional quanto ao valor das importações (NOBRE 1991).
72

capitalismo), nesses o mesmo trajeto durava cerca de 20 a 30 dias.54 Os primeiros


navios a vapor a ancorar no Ceará foram ingleses. As casas comerciais dessa nação
financiavam os vapores e organizavam as linhas. Durante muito tempo eram os
britânicos que tinham o monopólio das linhas de vapores responsáveis pelas transações
comerciais entre o Ceará e o mundo.

Apesar de os navios ingleses serem os principais responsáveis pelas


conexões comerciais existentes entre os dois continentes colocados. Esses não
realizavam apenas transações entre a Inglaterra e o Brasil, pois também eram
responsáveis em levar matérias primas para as outras nações (Alemanha, Suíça,
Holanda, França, Espanha, Bélgica, Áustria-Hungria, Itália, Estados Unidos, Portugal
etc.) como também por trazerem manufaturas dessas. Os vapores britânicos também
tinham controle sobre a navegação de cabotagem no Brasil. Até 1886 esse tipo de
navegação era exclusividade das companhias nacionais, mas a partir desse ano foi
permitida a participação estrangeira nesse ramo. Desde então os britânicos garantiram o
domínio que durou até o período republicano (GRAHAM, 1974).

Durante todo o século XIX existiam dois destinos diferentes dos navios
estrangeiros em relação ao Brasil: o litoral ocidental e o setentrional. No primeiro os
principais portos eram o do Rio de Janeiro e o de Santos (SP) e no segundo os
ancoradouros de Belém (o principal), São Luís e Fortaleza. Nesses últimos as
embarcações europeias ou norte-americanas realizavam rotas diretas e depois voltavam
para seus portos de origem sem fazer escala no litoral ocidental (TAKEYA, 1995).

Os navios ingleses possuíam o domínio comercial do litoral setentrional


brasileiro, enquanto os paquetes franceses conquistavam cada vez mais o comércio do
litoral ocidental55. No geral era a Inglaterra que liderava o comércio com as regiões do
Brasil, isso fica ainda mais claro quando analisamos o ano de 1861 e notamos que a
marinha britânica enviou 420 navios enquanto a França no mesmo ano só mandou 85
(GÁLLÉS, 1861, apud TAKEYA, 1995).

54
O surgimento da energia a vapor na navegação, a utilização da hélice, a constituição das embarcações
por metais facilitaram muito o avanço do comércio transatlântico, pois com esses novos materiais
aumentaram a capacidade de carga e a velocidade dos navios. (FURTADO, 1970)
55
Existem relatos de comandantes navais que durante o ano de 1859 presenciava-se, no porto de
Fortaleza, apenas cinco navios por ano, enquanto somavam-se em vinte os navios ingleses. Embora
percebemos nos relatos que a população cearense já desejava as manufaturas francesas.
73

É no decorrer da segunda metade do século XIX que o Brasil começa a ter


linhas regulares de vapores (antes as embarcações não tinham horas e destinos
programados para o ano todo). Essas foram garantidas pelas inúmeras companhias de
navegação internacionais que já praticavam as rotas de longo curso. Com a fixação
dessas podemos perceber a inserção do Brasil na expansão do capitalismo mundial, pois
é através dessas rotas que começaram a ocorrer constantemente as trocas comerciais de
manufaturas e matérias primas. É com a intenção de se inserir, cada vez mais, nesse
processo civilizador mundial que algumas regiões do país começam a investir na
urbanização das cidades, no melhoramento dos portos, no sistema de transporte e
principalmente nas atividades comerciais.

Entendemos que o surgimento de linhas fixas de vapores que fazem a


transição de mercadorias entre o Brasil e as nações europeias é um dos marcos
concretos da expansão do capitalismo. É a partir dessas rotas padronizadas de
navegação que começamos a ter um avanço do comércio brasileiro e a chegada de
muitos estrangeiros. Notamos trajetos fixos que tem origem na Europa, passa pelas
regiões do Brasil e tem destino em outras nações da América. Além de ocorrer permutas
financeiras também aconteciam trocas culturais, deixando o mundo cada vez mais
globalizado.

A primeira linha regular de navegação entre o Brasil e a Europa foi implantada


em 1851 ligando a capital nacional à Manchester. A companhia de navegação inglesa
responsável por esse feito foi a Royal Mail Steam Packet Line. Foi a partir dessa rota
regular que os britânicos dominaram as transações comerciais durante a década de 50
oitocentistas, já que a primeira linha regular Francesa só se concretizou em 1861. Essa
foi gerenciada pela “Compagnie des Messageries Imperiales” com o trajeto que partia
do porto de Bordeaux, passando por Lisboa, Dakar, Bahia, Pernambuco e chegando ao
Rio de Janeiro (e ainda possuía uma linha de extensão para Buenos Aires e Montevidéu)
(TAKEYA, 1995).

Depois da instalação dessas duas pioneiras linhas regulares de navegação


tivemos muitas outras companhias marítimas inserindo novas rotas fixas que partiam do
seu porto de origem e chegava a várias regiões do Brasil. As empresas de navegação
que realizaram isso nas décadas de 1860 e 1870 foram: The Liverpool, Brazil anda
74

River Plate Steamship Company56 (Liverpool), Societé Genérale de Transports


Maritimes de Marselha, Hamburgo Suedamerikanische (Hamburgo), A. Booth
Company (Liverpool), Noerddeutscher Lloyd (Hamburgo), Red Cross Line of Mail
Steamers (Liverpool), Compagnie des Chargeurs Réunis (Havre), United States and
Brazil Mail Steamship (Nova York), G.B, Lavarollo (Gênova), Liverpool and North
Brazil Mail Steamers (Liverpool) e The Pacific Steam Navigation Company
(Liverpool).

Durante essas duas décadas da segunda metade do século XIX notamos a


presença de cinco companhias inglesas, três francesas, duas alemãs, uma norte-
americana e uma italiana. No início, essas firmas focaram suas transações nos portos de
Recife, Salvador e Rio de Janeiro57. Assim podemos ver nessa imagem abaixo algumas
rotas francesas no litoral ocidental durante a década de 1880.

56
Também conhecida como Lamport & Holt.
57
Durante a década de1880, embora tenhamos relatos de companhias francesas estabelecendo rota no
litoral setentrional, essa região era de domínio inglês. As firmas britânicas fecharam um acordo com as
francesas, no qual determinava que a rota da borracha (litoral setentrional) ficaria sob o domínio das
companhias inglesas e a rota do café (litoral ocidental) sob o controle das empresas de navegação
francesas. Quadro esse que só iria ser bastante modificado no final da década (TAKEYA, 1995).
75

(FIGURA 5 – Rotas de companhias francesas no litoral ocidental brasileiro e algumas regiões da América
do Sul)58

Na figura acima podemos perceber as principais linhas regulares de vapores


financiadas pelas três companhias francesas (Societé Genérale de Transports Maritimes,
Compagnie des Chargeurs Réunis, Compagnie des Messageries Imperiales) existentes
no Brasil. O trajeto pontilhado tem origem na França passando por Lisboa, África,
Recife, Rio de Janeiro, Santos e termina em Buenos Aires. A rota que sai de Bordeaux
passa por Recife, Salvador, Rio de Janeiro, Santos, Montevidéu, Buenos Aires,
Talcahuano e ancora em Valparaiso. E a linha que parte de Havre passa por Recife, Rio
de Janeiro e acaba em Santos.

58
TAKEYA, Denise Monteiro. Europa, França e Ceará: origens do capital estrangeiro no Brasil/Denise
Monteiro Takeya-Natal: UFRN. Ed. Universitária, 1995. p. 76.
76

Observando a imagem dessas rotas de navegação de companhias francesas


podemos refletir sobre o avanço do processo civilizador capitalista. O capitalismo
mundial estava em expansão em meados do século XIX e a inserção do Brasil nesses
trajetos de navegação é um marco concreto desse capitalismo mundial. O que
percebemos são conexões culturais entre cidades francesas, africanas, brasileiras,
uruguaias, argentinas e chilenas. Acreditamos que além da circulação de matérias-
primas e manufaturas também ocorria disseminação de hábitos e costumes.
Normalmente práticas culturais europeias (a partir de objetos) que eram traduzidas pelas
nações latino-americanas.

É a partir desse período que vamos perceber uma maior hibridização nas
esferas econômica, social, política, cultural (atitudes, mentalidades, valores, costumes,
artefatos, práticas e representações) entre o novo e o velho mundo. No Brasil, ao entrar
em contato com produtos europeus e de outros países americanos, aconteceram
encontros múltiplos de cultura que foram sucessivos e que ora reforçavam antigos
elementos ora anulavam outros. Compreendemos a inserção do Brasil no processo
civilizador capitalista mundial através do consumo de objetos de outras nações e da
utilização desses dentro da realidade de cada região do país e da classe social que os
consomem.

Enquanto no litoral ocidental brasileiro temos linhas de vapores regulares


desde 1860, no Ceará só teve início a partir da década de 1880. Foi a companhia
francesa Chargeurs Réunis que concretizou, em 1883, uma rota fixa entre Havre e
Fortaleza. Em 1884 temos a criação de outra linha regular que conectava Hamburgo,
Pará, Maranhão, Ceará, Pernambuco e Bahia. A província cearense se inseriu nessas
rotas do comércio mundial devido a sua produção algodoeira. Foi a partir desse produto
que ingleses, franceses e alemães (pioneiramente) se interessaram em criar linhas
regulares de vapores para região (FIGURA 23). Além da produção do algodão cearense,
o porto de Fortaleza também estava incluso na rota da borracha. Muitas firmas
estrangeiras tinham interesse na extração de borracha na região do amazonas e o porto
da capital cearense era um ponto de passagem.
77

(FIGURA 6 – Rotas de companhias internacionais na província do Ceará e no litoral setentrional


brasileiro) 59

Nessa figura 23 podemos notar as linhas regulares de vapores existentes


entre a região setentrional no Brasil, os Estados Unidos, França, Inglaterra e Alemanha
durante o ano de 1880. Na imagem percebemos três rotas fixas: um trajeto tem saída
dos portos de Liverpool e de Hamburgo tendo ligação direta com o Brasil passando por
Fortaleza (CE), São Luís (MA), Belém (PA) chegando a Manaus (AM), uma rota que
tem início em Liverpool, Havre ou Hamburgo passando por Porto, Lisboa, Fortaleza,
São Luís, Belém e termina em Manaus e outra linha de navegação que liga Nova York e
Nova Orleans a Manaus.

59
TAKEYA, Denise Monteiro. Europa, França e Ceará: origens do capital estrangeiro no Brasil/Denise
Monteiro Takeya-Natal: UFRN. Ed. Universitária, 1995. p. 79.
78

Ao analisar essas linhas regulares de vapores podemos concluir que o foco


das companhias de navegação estrangeiras era o porto de Manaus, pois era nessa região
que estava ocorrendo a extração e o comércio da borracha. No início da segunda metade
do século XIX a província do Ceará (especificamente Fortaleza) entra nessas rotas
comerciais mundiais como uma região de suporte para o ciclo da borracha. A
ancoragem de navios estrangeiros no porto da capital cearense ocorria no sentido desses
buscarem apoio técnico ou apenas para completarem a carga na viagem de volta ao
continente de origem. Só com o passar dos anos que comerciantes estrangeiros
perceberam a importância das cidades cearense no mercado consumidor de produtos
importados e na exportação de algodão.

Embora tenha sido uma companhia francesa de navegação a primeira a


instalar uma linha de navios regulares na região cearense quem realmente de fato tinha o
domínio da navegação dos portos da província eram as firmas inglesas. A principal
companhia de navegação inglesa que disponibilizavam os navios a vapor e determinava
as rotas regulares era a firma Red Cross Line (Liverpool). Percebemos a atuação dos
britânicos ao analisarmos os periódicos da época:

(FIGURA 7 – Anúncio do Jornal Pedro II) 60

60
Jornal Pedro II - Ano 41 Fortaleza, Quarta-feira 2 de fevereiro de 1881, pag. 2 nº 10.
79

(Figura 8 - Anúncio do Jornal Pedro II) 61

Os dois anúncios retirados do Jornal Pedro II tem informações dos navios62


que entraram no porto de Fortaleza durante os meses de janeiro e março do ano de
188163. No primeiro período exibido temos quatro navios ingleses de vinte e três
embarcações64 que visitaram o porto local e no outro mês colocado também podemos
ver quatro navios britânicos de trinta. A maior parte dos barcos que ancoravam na
enseada da capital cearense eram nacionais (no geral eram de cabotagem) e entre os
estrangeiros observamos o predomínio inglês.

O porto de Fortaleza era frequentado por navios nacionais e internacionais


muito antes do surgimento de linhas regulares de vapores. Tanto na década de 1860
quanto na de 1870 notamos a entrada e saída de embarcações no ancoradouro cearense.
Em sua maioria eram barcos ingleses, alemães, estadunidense, franceses e nacionais.

61
Jornal Pedro II - Ano 41, Fortaleza domingo 6 de março de 1881, nº 19, pag. 2.
62
Segundo o anúncio podemos notar embarcações de diferentes tipos: vapores, patacho, palhabote,
escuna, iate, lancha, cutters, barcaças, brigue.
63
O motivo de escolher as informações apenas desses meses de 1881 foi devido a disponibilidade da
fonte histórica. Nos jornais analisados só observamos levantamentos detalhados desses dois meses, nos
demais obtemos anúncios de navios que chegavam ao porto da capital cearense (que iremos citar durante
esse capítulo), mas não com essas estatísticas especificas.
64
Também podemos notar a quantidade de navios que saiam de determinadas regiões (Rio de Janeiro,
Pernambuco, Pará, Maranhão, Porto Alegre, Aracati, Camocim, Acarahú, Barra nova, Áreas, Hamburgo,
Liverpool, Nova York, Escócia, Mundaú e Trapany).
80

Esses últimos chegavam basicamente de três destinos: norte65 (Manaus, Belém e São
Luís), sul66 (Rio de Janeiro, Santos, Porto Alegre e Salvador) e de regiões mais
próximas (Pernambuco, Camocim, Acaraú e Aracati).

(Figura 9 – Anúncio do Jornal Pedro II) 67 (Figura 10 - Anúncio do Jornal Pedro II) 68

(Figura 11 – Anúncio do Jornal Pedro II) 69 (Figura 12 – Anúncio do Jornal Pedro II) 70

A chegada dos vapores era anunciada nos jornais especificando suas origens
e escalas. Nas imagens exibidas acima podemos observar os navios Douro, La Prata
(ingleses) e o patacho Valborg (dinamarquês). O primeiro fazendo conexão com
Hamburgo, Paris, Londres, Lisboa até chegar a Fortaleza. O segundo com a missão de

65
Eram chamados nos jornais de vapores do norte.
66
Eram chamados nos jornais de vapores do sul.
67
Jornal Pedro II - Ano 31 Fortaleza sábado 6 de agosto de 1870 nº 163. Pag. 2.
68
Jornal Pedro II – Ano 31 Fortaleza sábado 30 de julho de 187O nº 157. Pag. 2
69
Jornal Pedro II – Ano 31 Fortaleza sábado 30 de julho de 1870 nº 157. Pag. 2.
70
Jornal Pedro II – Ano 39 Fortaleza quinta-feira 13 de fevereiro de1879 nº13. Pag. 2.
81

realizar o transporte de passageiros entre Inglaterra e Brasil. E o último importando no


Brasil (Pernambuco e Ceará) 2.500 volumes de diversos gêneros.

Foi analisando o Jornal Pedro II entre os anos de 1870 até 1889 que
conseguimos perceber o comércio constante no porto da capital cearense. Navios de
diversos tipos ancorando no litoral sejam para realizarem mercado de cabotagem ou
ligação direta com as outras nações (também podemos ver barcos realizando os dois
tipos de negócios). Companhias de navegação nacional ou internacional fretando barcos
para o transporte de pessoas ou manufaturas. Casas comerciais estabelecendo acordos
consignados para o transporte de objetos, gêneros alimentícios e matéria-prima. É
através dessas fontes que podemos perceber a importância da invenção do navio a vapor
para a expansão do capitalismo, pois foi através desse transporte que ocorreu o
crescimento de transações de mercadorias e de pessoas entre os diversos lugares do
mundo em um curto espaço de tempo.

71
(Figura 13 – anúncio do Jornal Pedro II) (Figura 14 – anúncio do Jornal Pedro II)
72

Entre os diversos produtos que os vapores estrangeiros importavam no Ceará


observamos a importância que o Jornal Pedro II dar a manteiga inglesa. Sabemos os
armazéns pagavam certa quantia de dinheiro para os periódicos anunciarem seus
produtos. Por que entre vários gêneros a serem divulgados o armazém J. W. Studart
escolheu justamente a manteiga britânica? A principal resposta para a essa pergunta era
pelo simples fato de a demanda fortalezense ser grande. As famílias da capital (sejam

71
Jornal Pedro II – Ano 31 Fortaleza domingo 21 de agosto de 1870. Nº 175. Pag. 4
72
Jornal Pedro II – Ano 31 Fortaleza terça 2 de agosto de 1870. Nº 159. Pag. 2 E 3.
82

estrangeiras ou não) que possuíam condições financeiras consumiam esses produtos


importados. Utilizar um gênero alimentício europeu dava status social, tanto devido o
seu valor como a sua origem. Era como se determinado consumidor estivesse se
inserindo na civilização (já que o conceito de ser civilizado nesse período era estar de
acordo com os padrões europeus). Ter essa manteiga presente na mesa de jantar com
certeza dava maior requinte para a cerimônia73.

Os vapores também estavam responsáveis pelo transporte de estrangeiros


para Fortaleza. Esses, como já foi dito, eram de inúmeras nações europeias que vinham
para essa cidade fugindo de guerras, perseguições, visitar familiares que já estavam
aqui, realizar pesquisas, fazer permutas rápidas ou estabelecerem firmas comerciais. Os
periódicos do período costumavam exibir a lista de passageiros presentes nos navios a
vapor. Tínhamos tanto estrangeiros chegando a Fortaleza como também cearenses
partindo para a Europa (mostrando uma grande conexão mundial).

(Figura 15 – anúncio do Jornal Pedro II)74

73
Esse exemplo da manteiga inglesa nos faz perceber como o processo civilizador capitalista estava
presente (e modificando) até o paladar da sociedade.
74
Jornal Pedro II – Ano 41 Fortaleza quarta feira 2 de fevereiro de 1881. Nº 10. Pag. 4.
83

(Figura 16 – anúncio do Jornal Pedro II) 75

Compreendemos os transportes marítimos (em especial os navios a vapor)


como elos entre o velho e novo mundo. Eram os principais responsáveis em fazer a
conexão entre as casas comerciais estrangeiras e suas filiais presentes no Brasil (no
nosso caso Fortaleza) ou com armazéns regionais. No primeiro anúncio citado acima
observamos o vapor europeu Theresine importar produtos para o armazém Barroso &
Irmão. E no segundo vemos o navio inglês La Plata trazer produtos para as seguintes
firmas comerciais: Singlehurst & Cia, Pedro Nava & C., Rocha Junior, Francisco Luiz
Carreira, Cunha & Sobrinhos e L. Seixas Correa.

Os estrangeiros negociantes que chegavam ao Ceará já possuíam um


comércio fixo na região ou eram agentes consulares observando novas possibilidades de
instalação de firmas. Esses cônsules foram responsáveis pela a realização de inúmeras
conexões do comércio internacional representando as matrizes de varias casas
comerciais europeias na região cearense. Muitos deles obtinham grande valor honorífico
e estavam inseridos na elite cearense. Na província alencarina à medida que ia chegando

75
Jornal Pedro II – Ano 31 Fortaleza sábado 30 de julho de 1870. Nº 157. Pag. 3.
84

o final do século XIX agentes de varias nações europeia iam concretizando moradias e
fechando negócios na região76:

.Se em 1876 havia um único agente consular nessa província, na cidade de


Aracati – um comerciante representante da Espanha –, ao inaugurar-se a
república, em 1889, o Ceará contava com cônsules, vice-cônsules e agentes
consulares da França, Inglaterra, Alemanha, Estados Unidos, Bélgica,
Holanda, Espanha, Itália, Portugal, Rússia, Suécia, Noruega, Áustria,
Hungria, Dinamarca, Argentina, Uruguai, Chile,Venezuela, Bolívia, Paraguai
e Peru. (TAKEYA, 1995. p. 42)

Notamos o processo de internacionalização do comércio cearense através da


fixação de agente consulares (com suas firmas) das nações da América e também dos
países europeus. Entre os representantes comerciais europeus o que teve mais destaque
na região foi a família francesa Boris. Esses recebiam informações sobre as condições e
vantagens de instalar uma firma comercial na província do Ceará desde o início da
década de 1860. A primeira tentativa da família em criar uma casa comercial na região
foi em 1869 (só teve atuação durante esse ano) que tinha o nome de Théodore Boris &
Frères77.
Ao voltar para França, Théodore e Alphonse, funda a casa comercial Boris
Frères matriz em 1872. Nesse mesmo ano, Théodore, Achille e Adrien Boris (outros
irmãos da família), estabelecem a casa filial na Rua da Palma, no centro de Fortaleza
(TAKEYA, 1995). Com isso, podemos perceber como guerras na região da Europa
também motivaram as primeiras migrações (além de guerras também a oportunidade do
lucro comercial) para a região cearense e como as atividades comerciais eram herdadas
de pai para filho.
A Boris Frères atuava principalmente como atacadista78 vendendo
manufaturas importadas de diversos tipos para vários armazéns ou outras casas do

76
Entre as diversas vantagens que os comerciantes estrangeiros tiveram para a prosperidade de suas
firmas comerciais na região era o simples fato de serem europeu. Esse fator lhe garantia contato direto
com o comércio do velho mundo e culturalmente eram vistos como representantes da civilização (eles e
seus objetos) (PEDRO, 2015).
77
Théodore e Alphonse Boris chegaram a Fortaleza em 1869 fugindo da Guerra Franco-´Prussiana
(disputa pelo território de Alsácia-Lorena) e tentaram fundar uma casa comercial na capital cearense que
garantiria a importação de manufaturados a exportação de matérias-primas. Um ano depois a Guerra entre
as nações europeias chega ao fim então os irmãos Boris resolvem voltar para a França. Essa primeira
estadia francesa na capital cearense serviu como espécie de obter informação sobre o comercio local e ver
a possibilidade da criação de uma casa comercial fixa na região (TAKEYA, 1995).
78
No período estudado existiam estabelecimentos de atacado e varejo. O primeiro geralmente era filial de
alguma casa comercial estrangeira (esses normalmente estavam situados nas principais cidades cearenses
como Aracati e Fortaleza) ou comerciantes interioranos de grande porte (esses eram responsáveis em
distribuir os produtos nos comércios de varejo das cidades e vilas “interioranas”) que tinha contato direto
com as casas filiais estrangeiras. O segundo eram comerciantes de pequeno porte que costumeiramente
85

Brasil. A filial estabelecida na capital cearense encontrava-se em contato direto com a


matriz em Paris fazendo primeiro um mercado entre dois polos. Depois de importar os
produtos da matriz a Boris Frères filial vendia essas mercadorias para os comerciantes
de Fortaleza (sejam estrangeiros ou cearenses) e também enviava tanto para outras
cidades cearenses79 (Acaraú, Iguatu, Aracati, Ibiapina etc.) como também para outras
províncias do país80 (principalmente as situadas no norte e nordeste) 81.
As transações comerciais entre esses diferentes estabelecimentos comerciais
ocorriam de diferentes formas. Quando a transição comercial acontecia entre duas casas
comerciais estrangeiras normalmente era através de consignação82 ou comissão83
(embora também acontecesse entre uma firma estrangeira e outra cearense). Já quando
era entre estabelecimentos estrangeiros e comerciantes cearense costumeiramente
acontecia o comércio direto, esse se concretizava por permutas de matérias-primas com
manufaturas exteriores.
Os principais produtos importados por essa casa francesa eram: tecidos, peças
do vestuário, perfumaria, vinhos, utensílios de decoração, manteigas, conservas, farinha
de trigo, drogas e mobílias. Os tecidos embora fossem importados por uma firma
francesa eles eram em sua maioria de origem inglesa. As camisas, lenços, botinas, luvas,
leques e lenços eram vestimentas francesas. A manteiga era inglesa (como vimos nos
anúncios dos periódicos citados nesse capítulo). As drogas, utensílios de decoração e
mobílias84 (Francesas) eram de origem europeia. E a farinha de trigo era importada dos
EUA para a produção de pães e bolachas.
As matérias-primas exportadas pela Boris Frères eram: velas de cera de
carnaúba, charque, água ardente, algodão, penas de ema, couro, chifre de boi, borracha e
plantas medicinais. Dentre esses produtos o algodão era o mais exportado pela casa

não vendiam uma diversidade de produtos, tinha um contato direto com as filiais estrangeiras e os
produtos que adquiriam vendiam diretamente para a população (PEDRO, 2015).
79
As mercadorias importadas obtidas pela Boris Frères eram primeiras consumidas pelos comerciantes
presentes na área urbana da capital (que também realizavam o comércio de atacado), esses redistribuíam
os produtos para os negociantes (a maior parte atuava na área do varejo) das outras vilas e cidades do
Ceará (TAKEYA, 1995)
80
Esse tipo de transação ocorria principalmente com Recife e era realizado por comerciantes atacadistas.
81
Já exportação de produtos cearenses acontecia com a inversão do trajeto. Ou seja, a matéria-prima saia
das cidades interioranas, passava pelas casas comerciais de Fortaleza até chegar a Europa.
82
A casa comercial que vende os produtos para a outra deixa as mercadorias com essa para que ela venda
os produtos sem a responsabilidade de pagar pelo que não for vendido.
83
Nesse caso a casa que atuava como intermediaria garantia uma comissão em cima do lucro das
transações comerciais.
84
Essas eram também consumidas através de leilões. Analisando periódicos e inventários post-mortem
observamos camas francesas, cadeiras austríacas, pianos alemães, louças inglesas e mobília de vinhático a
Luiz XV. Ou seja, mobílias de diversas nações europeias. (sobre essas manufaturas iremos falar de
maneira especifica no último capítulo).
86

comercial, esse tipo de material era utilizado na confecção de roupas europeias85. O


couro que era utilizado para fabricar diversos artefatos foi o segundo gênero mais
enviado para o velho mundo. As penas de ema que eram utilizadas para a fabricação de
objetos de decoração e peças de vestimentas francesas era o terceiro artigo mais
exportado. A borracha que era produzida no Ceará a partir da maniçoba e da
mangabeira não era tão cogitada como a da Amazônia. O chifre de boi era utilizado na
confecção de botões das vestimentas.
Durante as três últimas décadas do século XIX além da Boris Frères também
tínhamos outras firmas estrangeiras atuando (em Fortaleza) como casas exportadoras e
importadoras de produtos. Em 1874 temos a fundação da casa comercial J. Schaepffer
& Cia86 que exportava couro e importava farinho de trigo dos EUA. Também na década
de 1870 tínhamos a atuação das casas estrangeiras Brunn & Cia (matriz em Havre), H.
Saxer & Cia, Jeanvenand & Cia87 e Sccheliply & Cia88.
Ainda nesse período estudado temos informações sobre duas casas
estrangeiras que competiam de maneira acirrada com a Boris Frères que eram a
Gradvohl Frères e a Singlehurst & Cia. A primeira era uma casa francesa que tinha
Matriz em Paris e duas filiais na província do Ceará, uma em Aracati e outra em
Fortaleza. Segundo as avaliações dos comerciantes do período era uma casa comercial
com excelência, honorabilidade e solvabilidade. Atuava como atacadista (importando
diversas manufaturas francesas) e não realizava transações comerciais com a Boris
Frères. A segunda era uma casa inglesa que praticava o comércio de atacado desde a
década de 1870. Essa firma comercial possuía vantagem nas relações comerciais devido
ao fato de também ser proprietária da companhia de navegação Red Cross Line of Mail
Steamers. Com isso, ela desfrutava de preferências nos embarques e seguros de
mercadorias (SOUZA, 1968).
Analisando a atuação dessas casas comerciais estrangeiras podemos
levantar algumas contribuições delas para a cidade de Fortaleza. Para além do caráter
cultural europeu inserido na cidade através das mercadorias importadas também
notamos as ações dessas firmas no desenvolvimento da capital. Foram através desses
agentes estrangeiros que tivemos, durante o período em foco, melhoramentos
85
A analisando a fabricação de produtos europeus com algodão, penas de ema e chifres de boi
percebemos que a sociedade cearense estava consumindo artefatos estrangeiros produzidos pelas suas
próprias matérias-primas regionais.
86
Na década de 1860 essa casa comercial tinha o nome de Kalkmann & Cia.
87
Essa casa importadora vendia tecidos para os comerciantes de Sobral (TAKEYA, 1995).
88
Essa casa importadora vendia “espoletas” para os comerciantes de Icó (TAKEYA, 1995).
87

portuários, crescimento do transporte urbano (como abertura e pavimentação de


estradas), benfeitorias nos armazéns, aumento do número de linhas de vapores que
ligavam Fortaleza ao “mundo” (como vimos antes muitas firmas estrangeiras também
eram donas de companhias de navegação), chegada cada vez mais de estrangeiros com o
intuito de investirem economicamente na região89, fundação de agências bancarias90 e
de uma associação comercial91.
Observando as modificações urbanas ocorridas em Fortaleza durante as três
últimas décadas do século XIX podemos afirmar que a capital cearense era um centro de
remanejamento e concentração de rendas territoriais, de impostos, de lucros das
transações comerciais e dos objetos importados. A urbe cearense tornou-se de fato um
centro cosmopolita que distribuía ou redistribuía artefatos importados que transmitiam
valores e práticas das nações que eram fabricados.
As casas comerciais situadas em Fortaleza (e no Brasil) comercializavam
quatro tipos de produtos: animais vivos, matéria bruta e artigo para indústria, artigos
manufaturados e alimentos. Os animais em sua maioria eram os carneiros, gados e
cavalos. No que se referem aos artefatos destinados as fábricas tínhamos a importação
de carvão. As manufaturas eram diversas desde trilhos (passando por ferro, aço,
produtos químicos) até móveis e vestimentas. Os gêneros alimentícios eram farinha de
trigo, vinho, licores, manteiga etc. (PEDRO, 2015).
Os produtos mais divulgados nos anúncios dos periódicos eram os
alimentícios. Acreditamos que era esse tipo de gênero comercial que foram mais
importados pelas casas estrangeiras e vendidos pelos armazéns locais. As firmas
comerciais não eram especializadas em apenas um tipo de produto, nem se restringia a
um tipo de comercio e nem tão pouco a produtos de apenas sua nação de origem. Ou

89
A maior parte dos proprietários das casas comerciais estrangeiras atuavam também como agentes
consulares. Eles eram responsáveis em analisarem as possibilidades de comércio da região e informarem
aos comerciantes de suas respectivas nações. Além disso, também ficavam responsáveis pelos interesses
dos cidadãos estrangeiros estabelecidos na cidade. A partir disso compreendemos que essas atitudes
garantiram uma maior seguridade para os estrangeiros que chegaram posteriormente.
90
As casas comerciais além de estarem envolvidas e de serem as principais incentivadoras das primeiras
agências bancárias da região muitas também chegaram a fazer a função de um próprio banco. Um bom
exemplo foi a Boris Fréres que durante longo tempo realizou empréstimos com juros para outros
comerciantes (TAKEYA, 1995).
91
A Associação Comercial do Ceará (ACC) foi criada em 1866 (uma das primeiras a surgir no Brasil). a
maior parte dos fundadores e dos presidentes desse período eram estrangeiros e tinham ligação com as
firmas comerciais. Essa associação realizava as seguintes tarefas: produção de listas contendo os gêneros
de exportação para serem publicadas nos jornais, intercâmbios com outras associações comerciais do
Brasil, construção de estradas e açudes, melhoramento das navegações etc. (NOBRE, 1991)
88

seja, podemos notar as casas comerciais importando e exportando diferentes tipos de


produtos de diversos países (PEDRO, 2015).
Os anúncios de objetos domésticos eram poucos divulgados nos periódicos.
Geralmente nos jornais do período era destinada a última página para a publicação de
vendas de produtos. Na maior parte dos jornais analisados em nossa pesquisa notamos
uma grande quantidade de comunicados comerciais informando a venda de roupas,
alimentos, bebidas, casas, terrenos, ouros e remédios. Em relação as mobílias
encontramos poucos anúncios, e os poucos encontrados não descrevem os objetos a
venda.
O motivo de existirem poucos anúncios de casas comerciais estrangeiras
divulgando objetos importados deve-se ao fato de serem produtos consumidos por uma
camada restrita da sociedade. As transações comerciais de uma mobília importada eram
realizadas de maneira direta entre as famílias consumidoras e os agentes estrangeiros
das firmas comerciais. Os compradores dessas mercadorias estavam mais preocupados
com a chegada dos vapores no porto de Fortaleza, pois a ancoragem desses anunciava a
chegada de produtos encomendados ou a vinda de agentes estrangeiros para a realização
de uma nova transação comercial. Assim, era mais comum termos muitas folhas dos
jornais destinadas a divulgar a entrada e saída de vapores do que páginas anunciando
produtos (PEDRO, 2015).
Nos periódicos também poderíamos ver a oferta de mobílias através dos
anúncios de leilões. Esses aumentaram durante a segunda metade do século XIX,
ocorrendo preferencialmente a partir do meio-dia nos armazéns92 existentes em
Fortaleza e sempre eram organizados por algum agente comercial. Os objetos obtidos
em leilões eram consumidos quando os proprietários se desfaziam deles, devido a vários
motivos que na maioria das vezes eram causados por mudanças de famílias para a
Europa. Os principais consumidores que estavam presentes eram da elite cearense, os
artefatos leiloados eram adquiridos durante viagens à Europa, traziam os produtos
principalmente da França e Inglaterra93.

92
Os principais locais onde ocorriam os leilões eram: Armazém do Agente Jatahy, Armazém do
Singlehurt & Comp., Armazém de Antonio Nunes Cardoso , Armazém de J. W. Studart, Armazém de M.
A. da Rocha Junior & Irmão, Armazém do Agente Ellery, Armazém do Levy Frères, Armazém de
Candido Gomes de Rego e o Salão Clube Cearense.
93
Os objetos comprados ou leiloados pela elite da capital cearense muitas vezes também eram fabricados
na própria região cearense. Muitos contratavam marceneiros que ficavam responsáveis em produzirem
réplicas de mobílias importadas seja com materiais nacionais ou estrangeiros.
89

(Figura 17 – Jornal Pedro II) 94 (Figura 18 – Jornal Pedro II) 95

94
Jornal Pedro II – Ano 38 - Fortaleza terça feira 30 de abril de 1878. Nº 31. Pag. 4.
95
Jornal Pedro II – Ano 38 – Fortaleza sexta-feira 17 de maio de 1878. Nº 36. Pag. 4.
90

(Figura 19 – Jornal Pedro II) 96 (Figura 20 – Jornal Pedro II) 97

96
Jornal Pedro II – Ano 38 – Fortaleza quinta feira 23 de maio de 1878. Nº 38. Pag. 4.

97
Jornal Pedro II – Ano 38 – Fortaleza terça feira 18 de junho de 1878. Nº 45. Pag. 4.
91

(Figura 21 – Jornal Pedro II) 98 (Figura 22 – Jornal Pedro II)99

Como podemos observar, os leilões ocorriam em qualquer dia da semana ou


finais de semana. Esses aconteciam nos armazéns, nas casas comerciais, em clubes ou
até mesmo na própria residência da pessoa que estava leiloando seus produtos. Também
notamos agentes comerciais organizando os leilões, mesmo quando esses não
aconteciam em suas firmas comerciais. No ambiente do leilão acontecia uma espécie de
sociabilidade em que eram realizadas conversas (acordos econômicos) bebendo vinhos e
comendo petiscos.
Entre os objetos leiloados podemos observar: guarda- roupa, camas, cadeiras,
bancas, mesas, escrivaninha, mobília de mogno, consolo de mármore com espelho,
guarda-louça, mesa de jantar e aparadores, mobília de vinhático a Luiz XV, piano,
sofás, maquina de costura, sofás, cadeiras de balanço, mobília de amarillo, quadros,
armários envernizados, cômodas, lavatórios, estantes, escarradeiras, guarda vestido,
espelhos, telescópio, tapetes, candelabros, lustres de gás, estátuas de mármore, cabides,
cadeiras austríacas e americanas, lanternas, colheres de metal, facas, garfos, relógios,
98
Jornal Pedro II – Ano 38 – Fortaleza quinta feira 7 de fevereiro de 1878. Nº 11. Pag. 4.

99
Jornal Pedro II – Ano 31 – Fortaleza domingo 7 de agosto de 1870. Nº 164. Pag. 4.
92

castiçais, candeeiros de cristal, jarros de porcelana, aparelhos de porcelana, copos,


faqueiros, cortinas, bilhares, louças para chá e jantar, vidros e cristal, bandejas e salvas
de metal fino, urnas para chá, toalhas, guardanapos e cálices.
Notamos a uma diversidade de objetos que estavam presentes nas residências
das elites fortalezenses. Mobílias produzidas com amarillio, mogno, vinhático e
algumas obedecendo as formas francesas ou austríacas (Luiz XV). Encontramos a
presença de aparelhos para jantar e para chá de porcelanas, prata ou até mesmo ouro. A
utilização de talheres específicos para cada refeição nos faz perceber a inserção da elite
fortalezense no processo civilizador capitalista numa região que ainda encontramos
muitas famílias realizando refeições com as mãos.
Analisando o ritual ocorrido em um leilão entendemos que neles os homens
determinavam os valores dos objetos e esses definiam os valores dos primeiros. Assim
como Appadurai (2008), também enquadramos os leilões como um torneio de valor:

São complexos eventos periódicos que, de alguma forma culturamente bem


definida, se afastam das rotinas da vida econômica. A participação desses
eventos tende a ser simultaneamente um privilégio daqueles que estão no
poder e um instrumento de disputa de status entre eles (APPADURAI, 2008.
p. 36.)

Observando a definição do conceito de torneio de valor conseguimos associa-lo


as sociabilidades que aconteciam nos leilões da capital cearense durante o final do
século XIX. Esses eram sim eventos periódicos que se afastavam da economia comum e
as pessoas que estavam inseridos neles estavam no poder da sociedade fortalezense e
buscavam status e reputação.
Sendo assim, os rituais, os aspectos lúdicos e as sociabilidades que aconteciam
nesses leilões se encaixavam fora das trocas comerciais convencionais, pois nesse ritual
econômico podemos perceber uma espécie de jogo ou cerimônia que consolida uma
comunidade de troca entre pares.
Em um leilão, além da importância dos lances dados, também é garantido nesse
espaço a instituição de um grupo de privilegiados que se autodeterminam como a elite
da região. É a participação nesse evento que determina a inserção de determinada
pessoa na classe social mais abastada do período, seja pela compra dos produtos que são
leiloados ou pelo simples fato de participar desse ato considerado suntuoso e capaz de
produzir valores simbólicos de diferenciação social (BAUDRILLARD, 1981).
93

Portanto, nesse segundo capítulo tivemos como principal intuito refletir sobre a
expansão do capitalismo no seu âmbito geral. Entendemos que para realizar uma melhor
analise do objeto principal da pesquisa seria necessário o entendimento do contexto
econômico mundial e local. Assim, nessa parte do trabalho tivemos que refletir sobre o
crescimento econômico do capitalismo europeu e sua expansão para as demais regiões
do mundo.
No primeiro momento analisamos o desenvolvimento e a consolidação do
sistema econômico capitalista na Europa. Observando as invenções concretas da
Revolução Industrial e os objetivos das nações europeias, durante o imperialismo,
conseguimos compreender como o porquê do século XIX ser considerado a era do
capital. Elencamos o navio a vapor, a locomotiva, o telegrafo e o cabo submarino como
criações primordiais para a expansão do comércio capitalista. E através da historiografia
e das fontes podemos notar a Inglaterra e a França liderando essa expansão capitalista.
Na segunda parte do capítulo refletimos sobre a inserção de Fortaleza na
economia mundial do capitalismo. Realizamos uma analise do crescimento econômico
da capital cearense a partir do ano de 1860 e do aumento das relações econômicas entre
a cidade e as principais nações europeias no decorrer do século XIX. Foi nessa parte que
conseguimos identificar as linhas de vapores que tinham Fortaleza como passagem,
chegada ou saída. Também foi possível identificar as principais casas comerciais do
período e as suas diversas formas de atuação na cidade. Além de exibir e problematizar
as formas de consumo das mobílias através dos leilões que aconteciam no período (que
como vimos também tinha um papel de distinção social).
Por fim, o objetivo desse segundo capítulo foi analisar a expansão do processo
civilizador capitalista partindo da Europa até chegar a Fortaleza. Entender a inserção da
capital cearense nesse processo através dos objetos domésticos sempre foi o objetivo
principal da pesquisa. E para isso tínhamos como necessidade entender o consumo e a
utilização desses utensílios domésticos. Esperamos que os questionamentos realizados
em relação ao comércio e o consumo como algo distintivo tenham sido respondidos
nessa segunda parte do trabalho. Em relação às problemáticas da origem dos objetos e
de suas funções (principalmente simbólicas) debateremos agora no último capitulo.
94

4. “Notáveis” moradores: A casa de Juvenal Galeno e o Sobrado do Dr. José


Lourenço.

Nesse último capítulo vamos analisar as residências do escritor Juvenal Galeno


e do Dr. José Lourenço. O intuito é exibir uma breve história desses intelectuais. E
posteriormente descrever e analisar as suas moradias (construídas na segunda metade do
século XIX) junto com os objetos domésticos que pertenciam aos ditos proprietários.

No primeiro tópico (Vidas e “obras”: breves biografias do escritor Juvenal


Galeno e do Dr. José Lourenço de Castro e Silva) o objetivo é analisar as biografias de
Juvenal Galeno e do Dr. José Lourenço. Acreditamos que fazendo um estudo de suas
histórias conseguiremos entender as posições deles na elite cearense. É através de suas
famílias (e as relações delas com outras) e suas ações políticas, intelectuais, médicas etc.
que podemos entender a posição social deles.

O segundo tópico (A prestigiosa forma do morar citadino: a casa do Juvenal


Galeno e o sobrado do Dr. José Lourenço) possui duas partes: na primeira analisamos a
arquitetura das casas em estudo e na outra o foco são nos objetos domésticos do
período. Em relação às estruturas físicas das residências é através dos compartimentos,
dos andares, da pintura e dos ornamentos nas fachadas que buscaremos entender a
inserção no processo civilizador. Já na segunda parte o intuito é refletir sobre os objetos
presentes em cada cômodo da residência (sala de visita, sala de jantar, quarto e
cozinha). Identificar quais eram os artefatos que tinham presença obrigatória nesses
ambientes e como eles eram utilizados (funcionalmente e socialmente) é o nosso foco.

Observando os inventários do Juvenal Galeno e do Dr. José Lourenço


percebemos uma variedade de objetos mencionados. Artefatos que demonstram enorme
requinte, sofisticação e alinhamento com o Processo Civilizador Capitalista. Analisando
a arquitetura da casa e os artefatos presentes nela, notamos que os dois anfitriões
buscaram unir em suas moradas, ostentação e hierarquia. Acreditamos que tanto o
escritor como o doutor, ao edificarem suas casas tiveram a preocupação em seguir os
padrões de moradias europeus, além de simbolizar as necessidades de suas famílias,
essas que eram reconhecidas socialmente na cidade.

É bem verdade que ainda encontramos em Fortaleza algumas residências que


foram edificadas entre o final do século XIX e o início do século XX. Como por
95

exemplo, o sobrado do Dr. José Lourenço (1845-1854), a casa do Juvenal Galeno


(1887), a casa do Barão de Camocim (1880), a casa de Thomaz Pompeu de Souza Filho
(1916) e o palacete Jeremias Arruda (início do século XX). Entre essas residências,
escolhemos as duas primeiras como principais fontes de estudo.

A escolha dessas residências para a presente pesquisa, entre as outras, se


deve ao fato delas terem sido construídas no período (segunda metade do século XIX)
em que estamos analisando a cidade, suas fachadas se encontram em ótimo estado de
conservação e principalmente porque, entre as casas levantadas anteriormente, essas
duas habitações são as únicas que ainda encontramos seus inventários, esses descrevem
os objetos domésticos que existiam nas mesmas (no caso da residência de Juvenal
Galeno os objetos ainda existem como objetos museológicos). Mas estamos cientes de
que quando necessário utilizaremos as demais habitações, que foram edificadas no final
do século XIX, para realizar um estudo em conjunto.

4.1. Vidas e “obras”: breves biografias do escritor Juvenal Galeno e do Dr. José
Lourenço de Castro e Silva.

Antes de focar nossas análises sobre os lares de Juvenal Galeno e do Dr. José
Lourenço, acreditamos ser necessário conhecer em que círculo social esses cearenses
nasceram e qual relevância econômica seus parentes possuíam durante o período em
foco. Entendemos que a cultura material, aqui representada pelos objetos e as casas, está
imbricada com o homem, por isso, defendemos a ideia de que os artefatos domésticos
constituem a história e a personalidade dos seus usuários. Sendo assim, em um primeiro
momento ilustraremos a história do escritor e do doutor. E no último subtópico
abordaremos as duas casas com seus objetos desde origem até a utilização.

A família Galeno durante o século XIX se destacou pelo crescimento da


atividade agrícola, com destaque na produção do café e do algodão. O avô de Juvenal
Galeno, Albano da Costa dos Anjos, era proprietário do Sítio Aratanha-velha,
localizado na Serra de Aratanha (NETTO, 2010). Nesse primeiro momento a principal
produção desse sítio era o algodão que mesmo depois da morte de Albano (em 1822)
essa continuou a ser realizada por seus filhos. Em um segundo momento, a produção
96

algodoeira entra em crise e a região serrana começa a se destacar na produção de café


(GIRÃO, 1985).

Assim, o pai do José da Costa na década de 1820 fundou o Sítio Boa Vista e
passou a dedicar-se na atividade cafeeira. “Devido aos fatores favoráveis ao cultivo,
como o solo, a temperatura e a pluviosidade, em 1841 o café já consta na lista de
exportações cearenses alcançando o seu auge entre 1881 e 1886” (NETTO, 2010, p. 24).
Então compreendemos que a família Galeno, descendente da Albano, tinha um destaque
social devido o seu poder financeiro.

Os pais do Juvenal Galeno tiveram quatro filhos, sendo que ele foi o único
homem. Suas três irmãs se chamavam Liberalina Angélica Teófilo da Costa e Silva,
Florentina da Costa e Silva e Joana da Costa e Silva. Analisando outros parentes do
poeta encontramos muitos nomes renomados da história cearense como: o Barão de
Aratanha (cunhado), o médico José Lino da Justa (tio), o historiador Capistrano de
Abreu (primo), o jurista Clóvis de Beviláqua (primo) e o escritor Rodolfo Teófilo
(primo).

Juvenal Galeno nasceu no dia 27 de setembro de 1836, em Fortaleza. Durante a


sua infância morou no Sítio Boa Vista situado na Serra de Aratanha. Realizou o ensino
primário na cidade de Pacatuba. Aos 13 anos já conhecia o latim e já começou a mostrar
a sua predisposição para as práticas letradas ao redigir um jornal literário chamado
Sempreviva. Com 14 anos vai morar em Aracati com o seu tio Rodolfo Teófilo, lá
trabalha como prático em uma farmácia e continua seus estudos na principal escola
pública da cidade.

Em 1851 começa a estudar humanidades no Liceu Cearense. Em 1853, funda,


junto com Joaquim Catunda, o Jornalzinho Mocidade Cearense, considerado o primeiro
periódico estudantil cearense. O poeta também ajudou na construção do jornal O
comercial.

Juvenal Galeno formou-se no curso de humanidades no Liceu do Ceará e


depois por ordem de seu pai, José Antonio, foi mandado ao Rio de Janeiro para estudar
agricultura. Desviando dos desejos do seu pai, passou a conhecer e entender sobre
literatura tendo contato com grandes nomes da intelectualidade brasileira, como
97

Quintino Bocaiuva100 e Machado de Assis101. Quando o escritor voltou para o Ceará já


traz seu primeiro livro, intitulado “Prelúdios Poéticos” (1856).

No Rio de Janeiro, o escritor ficou hospedado na residência do proprietário da


tipografia que era impresso o Marmota Fluminense102. Ele também começou a
contribuir com esse jornal publicando poemas. Em 1856, com a publicação do
“Prelúdios Poéticos”, Juvenal Galeno marca o inicio do romantismo cearense. Notamos
que com apenas vinte anos o escritor cearense já possuía destaque na intelectualidade
regional.

Em 1858, adquire a função de suplente de deputado na cidade de Icó. Exercendo


esse cargo lutou bastante pela criação de uma escola agrícola, essa que acabou sendo
construída na cidade de Pacatuba com o nome Colégio Agrícola Juvenal Galeno, em
homenagem ao poeta.

A partir de 1859, Juvenal Galeno começa a ter influência e incentivo do


grande escritor brasileiro Gonçalves Dias. O encontro dos dois ocorreu no Sítio Boa
Vista da Família Galeno localizado na Serra de Aratanha. Gonçalves Dias chegou à
província cearense através da Comissão Cientifica de Exploração103. Essa chegou ao
Ceará com o objetivo de explorar o interior da província, conhecendo sua geografia, seu
povo e seus recursos naturais. Compondo a expedição e responsável pelo estudo
etnográfico, estava o escritor Gonçalves Dias.

Ainda em 1859, Galeno escreve a obra A Machadada. Nessa o autor faz


referências ao período em que serviu a Guarda Nacional. Na obra encontramos muitas
críticas a essa corporação. Em uma delas Juvenal critica a punição que recebeu do seu
comandante Coronel João Antonio Machado por ter faltado um evento do Batalhão para

100
(1836 -1912) Político e jornalista brasileiro que teve um importante papel no processo de Proclamação
da República. Também foi ministro das relações exteriores do Brasil, de 1889 a 1891, e presidente do
estado do Rio de Janeiro, de 1900 a 1903.
101
(1839 – 1908) Escritor brasileiro considerado como o maior nome da literatura nacional. Trabalhava
com os seguintes gêneros literários: poesia, romance, crônica, dramaturgia, conto, folhetim e jornal
(SIMIONATO, 2009).
102
Periódico Carioca que esteve ativo entre 1849 e 1861 de propriedade de Francisco Paulo Brito. Era um
jornal que contou com os primeiros escritos de Machado de Assis e possuía uma grande função cultural
durante o Segundo Reinado (SIMIONATO, 2009).
103
“Caravana” cientifica composta Freire Alemão, Guilherme Capanema, Manuel Ferreira Lagos,
Giacomo Raja Gabagilia, Golçalves Dias e José dos Reis Caravalho. Estes foram indicados pelo Instituto
Histórico Geográfico Brasileiro para realizarem pesquisas nas áreas de geografia, etnografia, botânica,
mineralogia, astronomia etc. Estas análises científicas ocorreram na província cearense e em seus
arredores durante os anos de 1859 e 1861 (PORTO ALEGRE, 2003).
98

ir a um almoço com o escritor Gonçalves Dias. O Poeta cearense passou seis dias na
prisão, tempo esse que deu lhe deu inspiração para escrever a obra.

Em 1860, o literato cearense publica as seguintes obras: Quem com ferro fere
com ferro será ferido e Porangaba. A primeira é a única obra teatral escrita por Juvenal.
Ela foi encenada no Teatro Taliense (um dos primeiros teatros de Fortaleza) pela
companhia Portuguesa de ator Coimbra. A segunda faz referência a uma lenda que o
poeta escutou de um caboclo. A lenda acabou virando um poema que conta a história da
índia chamada Porangaba que se apaixonou por um Português.

No ano de 1865, Galeno escreveu mais três obras: Lendas e Canções Populares,
Canções da Escola e Cenas Populares e Lira Cearense. O primeiro livro consagra o
poeta cearense como um escritor do povo. No segundo são questionados os tradicionais
métodos de ensino utilizados nas escolas e o autor sugere novas abordagens com os
alunos. E o terceiro é o primeiro livro de conto do Ceará. Nele são colocados oitos
contos que mostram a vida da sociedade cearense no litoral e no sertão.

Durante a segunda metade do século XIX, Juvenal Galeno foi ganhando,


cada vez mais, destaque social. Suas produções literárias foram aumentando
consideravelmente e com isso ganhou respeito literário, social e político. Em 1876, o
poeta é nomeado terceiro suplente do Juiz Municipal e de Órfãos da cidade de Pacatuba.
Em 1886, na companhia de Antônio Bezerra104, Rodolfo Teófilo105, Francisca
Clotilde106, Oliveira Paiva107 e Farias Brito108 participa da fundação do Clube
Literário109 e da criação da revista A Quinzena. Em 1887, conquistou um lugar

104
(1841-1921) Importante naturalista, escritor, historiográfico e poeta cearense. Escrevia para o jornal O
Libertador e foi fundador do Instituto do Ceará. Contribui bastante para a compreensão da história do
Ceará.
105
(1853-1932) Escritor, Farmacêutico, poeta e contista que nasceu na Bahia, mas teve atuação no Ceará.
Como farmacêutico combateu de forma ferrenha a epidemia da Varíola que se alastrou por Fortaleza
durante o final do século XIX. E como escritor teve destaque por pertencer ao movimento da Padaria
Espiritual e exibir com detalhes o cotidiano do Ceará durante o final do século XIX.
106
(1862-1935) Ganhou destaque por ser uma das poucas escritoras do seu período (ambiente
“dominado” por homens). Além de escritora era Jornalista e educadora. Defendia o processo de abolição
e a autonomia feminina.
107
(1861-1892) Escritor cearense e colaborador do Jornal Libertador. Apoiava o processo de abolição.
Sua principal obra foi A Afilhada.
108
(1862-1917) Escritor e filosofo cearense. Teve bastante importância na constituição do pensamento
filosófico brasileiro. Realizou obras completas que refletiam sobre conhecimento, ser, metafísica e
espiritualismo.
109
Agremiação literária surgida na segunda metade do século XIX, influenciada pela academia francesa,
que era composto pelos principais escritores cearenses. Nessa associação que era editada a revista A
Quinzena.
99

importante no Instituto do Ceará. E em 1889 começou a exercer a profissão de


bibliotecário da Biblioteca Pública, cargo esse que exerceu durante 19 anos.

Em 1894, o escritor cria o Centro Literário, com literatos renomados da


intelectualidade cearense, como Pedro Moniz110, Quintino Cunha111, Barão de
Studart112, José Albano, Farias Brito e Antonio Papi Júnior113. É nesse período que
Juvenal Galeno teve sua obra Lendas e Canções Populares editada e publicada pela
Tipografia da Casa Editora Antônio Maria Pereira, de Lisboa. Com isso, o autor
começou a ter sua poesia sendo conhecida na Europa.

No início do século XX, começa a aparecer os primeiros sintomas do glaucoma


em Juvenal Galeno que em curto espaço de tempo ocasionou a perda total da sua visão.
Assim, em 1908 ele é aposentado de todos os seus cargos públicos, mas a sua produção
literária não para de crescer. Ele continuou escrevendo para jornais e revistas com a
ajuda de sua filha Henriqueta. O poeta ditava e sua filha registrava tudo.

Em março de 1931, aos 95 anos o poeta contraiu um quadro infeccioso que o


levou a morte. O ocorrido gerou uma grande comoção da população cearense.
Autoridades, pessoas abastadas, pobres, pescadores, jangadeiros se fizeram presentes no
funeral do mesmo. Assim nos mostra Wilson Boia:

No dia seguinte, domingo, ás dezesseis horas e quarenta minutos, numa


tarde chuvosa, sai o féretro, da rua General Sampaio, N. 272 (hoje 1128),
seguido por sessenta automóveis, vários ônibus e pelo povo que o
compreendia e o amava. Fernandes Távora, interventor federal e todo o seu
secretariado participa do cortejo até o campo-santo, lá sendo feita a
encomendação do corpo pelo Padre João Dantas. E sobre a sua sepultura,
uma lira, formada de flores de cor de neve, símbolo da pureza de um homem
(BÓIA, 1986, p. 22).

Analisando a vida de Juvenal Galeno percebemos que o escritor nasceu em


uma família rica e recebeu muitos “privilégios”, entre esses podemos enumerar a
educação. Nesse período o índice de analfabetismo era grande e o acesso ao estudo era
destinado principalmente para quem possuía condições financeiras. As escolas primárias

110
(1866-1898) Escritor, jornalista, novelista cearense. Foi o fundador do centro literário e presidente da
Fênix Caixeiral, organizações que tiveram grande importância na intelectualidade cearense.
111
(1875-1943) Poeta, advogado e escritor cearense. Formado pela Faculdade de Direito do Ceará em
1909, exercia essa profissão. Entre 1913 e 1914 exerceu o cargo de deputado estadual.
112
(1856-1938) Historiador, médico e vice-cônsul da Inglaterra no Ceará. Participou do movimento
abolicionista e teve importante atuação no Instituto do Ceará. É responsável por muitos relatos e reflexões
da historiografia cearense.
113
(1854-1934) Um dos principais escritores regionalistas da literatura brasileira. Participou de
campanhas abolicionistas e republicanas.
100

eram muito precárias e o ensino superior era inexistente na província. Sendo assim, os
poucos indivíduos que desejavam um ensino superior tinham que viajar para outras
regiões brasileiras.

Juvenal Galeno foi um de muitos outros intelectuais cearenses que concluíram


seus estudos em outras províncias brasileiras. Observando essa questão notamos que a
maior parte da intelectualidade cearense do final do século XIX pertencia à elite da
região. Os pais do poeta cearense já tinham destaque social e político devido as suas
condições financeiras. Como vimos anteriormente, José Antonio e Maria do Carmo
Teófilo estavam entre os principais produtores de café e de algodão do período. Essas
produções econômicas foram o bastante para que a família Galeno ganhasse muito
dinheiro tornando-se grande proprietária de terra e, com isso, adquiria poderes políticos
e privilégios sociais.

Devido a sua condição financeira e a sua profissão de literato, conseguiu


realizar viagens ao Rio de Janeiro e também publicar suas obras em território europeu
(Lisboa). O contato com estrangeiros seja em Fortaleza, no Rio de Janeiro
(pessoalmente) ou direto com a Europa (através de correspondências) fez com que o
escritor também conhecesse os costumes e hábitos desses. Essas características culturais
influenciaram bastante os gostos de Juvenal que podemos notar o reflexo desses em
suas obras literárias como também na arquitetura e dos móveis da sua residência.

Outro habitante da Fortaleza do final do século XIX que também se destacava


pela sua influência social era o Dr. José Lourenço. José Lourenço de Castro Silva
nasceu em 03 de agosto de 1808, em Aracati. Seus pais eram Maria do Carmo Sabina e
Manoel Lourenço da Silva. Ao todo José Lourenço teve 11 irmãos. Aos 24 anos, no Rio
de Janeiro, inicia-se no curso de Medicina na Academia Imperial. Durante sua morada
na capital brasileira exerceu o cargo de cirurgião do Hospital Regimental. Nessa cidade,
em 1836 (com 28 anos), casa-se com Maria Amália de Brito114. Em 1838, depois de 10
anos, José Lourenço de Castro e Silva volta para Fortaleza para exercer a profissão de
médico (MOREIRA, RIBEIRO, 2007).

Chegando a Fortaleza, indicado pelo presidente da Assembleia Provincial do


Ceará (João Facundo de Castro Menezes), recebe o cargo de médico da pobreza. Entre

114
Nascida na capital brasileira e filha de um funcionário do Tesouro Nacional. Ela com José Lourenço
tiveram um filho (que obteve o mesmo nome do pai), nascido em 1844, em Pernambuco.
101

1838 e 1841 exerceu o cargo de médico da polícia da capital cearense e de provedor da


saúde do porto. O cargo de médico do Hospital Militar de Fortaleza é exercido por José
Lourenço entre 1848 a 1852 (em 1851 atuava como cirurgião do Meio Batalhão de
Caçadores de Linha e em 1852 como inspetor da Saúde Pública e comissário
vacinador). Ainda no que se refere a saúde e salubridade, participou da comissão
responsável pela instalação de um novo cemitério em Fortaleza (1861) (MOREIRA,
RIBEIRO, 2007)

Analisando essa pequena biografia da profissão médica do Dr. José Lourenço,


notamos a importância dele para a população e para o crescimento dessa ciência em
Fortaleza durante meados do século XIX. A sua atuação se dava em cuidar das pessoas
pobres, dos presos pobres, visitar doentes, aplicar vacinas, realizar relatórios
direcionados ao presidente da província (mostrando a quantidade de pessoas que
ficaram curadas ou não depois de suas visitas médicas), garantir a diminuição da entrada
de doenças (que tinham proporções epidêmicas) pelo porto de Fortaleza e combater a
febre amarela e a varíola em diversos municípios da província cearense (através do
envio de medicamentos).

Na área da literatura, o Dr. José Lourenço de Castro e Silva foi responsável


pelas seguintes publicações: folheto “Quartoze meses de imoralidade, ou a
administração do Sr. Manoel Felizardo de Souza e Melo” (1834), criação do periódico
“Sentinela Cearense na Ponta do Mucuripe” (1838), texto “Aos nossos
comprovincianos, aos nossos amigos e correligionários” (1845), artigo “O rompimento
do Cearense contra os Equilibristas, a desvantagem e sem razão de semelhante
proceder” (1847), trabalho “Breves considerações sobre a climatologia do Ceará,
precedidas de uma ligeira descrição da cidade e seus subúrbios” (1849), tese de
medicina “Ligeiras observações sobre algumas enfermidades dos órgãos anexos ao
globo ocular e a Oftalmia aguda em geral” (1850), livro “O Dr. José Lourenço de Castro
Silva perante o Sr. Dr. Manoel Mendes da Cruz Guimarães ou A vítima e o detrator”
(1860) e o livro “Refutação ás calunias de Antonio Teodorico” (1866). E ainda na área
da intelectualidade exerceu o cargo de professor de Francês do Liceu do Ceará (1846) e
a função de juiz de Direito em Fortaleza (1855) (MOREIRA, RIBEIRO, 2007).

Observando as publicações “literárias” do Dr. José Lourenço de Castro e


Silva podemos notar que suas escrituras possuíam duas vertentes: a política e a médica.
102

Em relação à primeira, o doutor sempre saia em defesa do Partido Liberal (grupo


político em que estava inserido). Os principais escritos partidários eram em oposição ao
partido conservador. Ora “detratava” e “caluniava” seus opositores, ora acusava os
demais de fazerem consigo o mesmo. No que se refere a segunda vertente de suas
publicações, notamos a preocupação em provar a veracidade de seus conhecimentos
médicos, de alertar a população sobre as enfermidades presentes na região e sobre a
importância da vacinação.

E na área política exerceu o cargo de deputado na Assembleia Legislativa


Provincial do Ceará (1838-1841 e 1846 - 1847) e liderou (junto com Tomás Lourenço,
os alferes Bento Brasil e Joaquim Sombra, os coronéis Manoel Cavalcante e Francisco
Xavier de Souza e o major Antonio Raimundo Brígido dos Santos) uma tentativa de
rebelião liberal na cidade de Exu. A atuação política do Dr. José Lourenço ocorria em
defesa do partido Liberal em conjunto com José Martiniano de Alencar e seu tio João
Facundo de Castro Menezes (esse que foi assassinado em 1841 por desavenças
políticas) (MOREIRA, RIBEIRO, 2007).

Observando a trajetória biográfica do Dr. José Lourenço de Castro e Silva


notamos que, assim como Juvenal Galeno, ele também era de origem rica e estava
inserido numa elite intelectual, política e medica. Por ser de família abastada recebeu o
privilégio da educação, e assim, como outros membros da elite cearense conseguiu obter
um diploma de ensino superior na capital brasileira. Então, devido as suas condições
financeiras e a sua formação superior conseguiu obter um destaque político e social na
província cearense (especialmente na capital). Os membros dessa elite se conectavam
tanto em encontros literários (ou saraus) como também na organização de associações:

Em 1851, fundou ao lado do Dr. Manuel Caetano de Gouveia, a associação


Recreação Familiar Cearense. De acordo com o historiador José Ramos
Tinhorão a associação recreativa tinha por finalidade promover, nos poucos
sobrados da Fortaleza oitocentista, festas para a apresentação dos novos ricos
da sociedade fortalezense (MOREIRA, RIBEIRO, 2007, p. 98).

A fundação dessa associação nos mostra o objetivo da elite cearense de se


distinguir cada vez mais das outras camadas sociais. Eram realizados encontros no
sobrado do Dr. José Lourenço e nessa praticavam as diversas formas de sociabilidades
(encontros políticos, reuniões, inserção de novos membros, saraus, chás etc.) existentes
na Fortaleza oitocentistas.
103

Portanto, acreditamos que o escritor Juvenal Galeno e o Dr. José Lourenço


estavam inseridos em diversas estratificações da elite (política, religiosa, intelectual,
médica etc.) cearense que se relacionavam constantemente. O que garantia essa inserção
nos ciclos elitistas era o seu poder econômico (refletido também em suas moradas e
objetos domésticos), os locais de nascimento (os dois nasceram em famílias com grande
poder aquisitivo) e o mérito (com os privilégios de riqueza e locais de nascimento
conseguiram com “maior” facilidade crescerem cada vez mais em suas profissões).

4.2. A prestigiosa forma do morar citadino: a casa do Juvenal Galeno e o sobrado


do Dr. José Lourenço.

Depois de realizamos esse pequeno levantamento sobre as histórias de Juvenal


Galeno e do Dr. José Lourenço e de situarmos os lugares desses nas diversas
estratificações da elite cearense (em especial de Fortaleza), agora passaremos a analisar
as residências com seus objetos. O intuito aqui é estudar a arquitetura das casas, suas
fachadas, seus compartimentos, como eram utilizados esses espaços e quais materiais
eram utilizados nas construções. E concluiremos com a análise dos objetos domésticos
tentando entender suas origens, como foram consumidos, os materiais utilizados em
suas fabricações, suas funcionalidades e principalmente as suas funções sociais.

. O escritor cearense mandou construir sua casa no ano de 1887 e a partir dessa
data começou a residir nela com sua família. Desde o início a residência era palco de
diversos encontros e saraus literários. O educador Filgueiras Lima115 chegou a
denominar a habitação como a sala de visita da intelectualidade cearense. Os principais
literatos da província como Rachel de Queiroz116, Patativa do Asssaré117, Fernandes
Távora118, Moreira Campos119 e Mozart Soriano Albuquerque120 frequentavam bastante
esses encontros literários.

A casa de Juvenal Galeno sempre esteve situada na Rua General Sampaio. Em


1876, aos 40 anos, o poeta casou-se com Maria do Carmo Cabral e Silva e um ano
depois já com quatro filhos (Antônio, Maria do Carmo, José e João) a família foi morar
115
(1909- 1965) Grande poeta e educador cearense responsável em promover campanhas educativas,
reformar escolas e modificar o ensino normal e primário.
116
(1910-2003) Escritora, Jornalista e cronista cearense que teve respaldo em todo o Brasil. Seus
romances se caracterizavam por contar história sobre o nordeste.
117
(1909-2002) Poeta popular. Cantor, compositor e improvisador cearense.
118
(1877-1977) Médico, escritor, político, professor e jornalista cearense.
119
(1914-1994) Contista cearense considerado um dos principais, dentro desse gênero, em todo o Brasil.
120
Membro do Instituo do Ceará e da Academia Cearense de Letras.
104

em Fortaleza. Ainda hoje, a residência encontra-se bem conservada e situada no mesmo


local que foi construída. Hoje funciona como um centro cultural.

Analisando a localização da residência do poeta percebemos que essa estava


situada em um local privilegiado da cidade. Ou seja, a sua localização era na parte
central de Fortaleza. Nessa região da urbe que estavam localizados os serviços, como
mercado, escola, bondes, casas comerciais e os espaços destinados ao lazer. Diferente
do que ocorriam com as residências que estavam nas zonas periféricas da cidade, pois
os moradores dessas áreas tinham muitas dificuldades na utilização desses serviços,
devido a distância.

No primeiro capítulo do nosso trabalho, quando analisamos a planta


urbanística de Adolpho Herbester, percebemos que a parte central da cidade era
destinada a elite e a população pobre foi sendo retirada desse espaço para ser segregada
na periferia. Ao observar o modelo centro-periférico notamos que quanto mais distante
da parte central menor seria o valor social e financeiro do morador. As residências da
elite da capital estavam situadas entre as três principais avenidas (as atuais Duque de
Caxias, D. Manoel e Imperador). E o endereço da casa de Juvenal Galeno estava nessa
área (assim também como as outras residências121 levantadas no inicio do tópico).
Então, compreendemos que as localizações das casas não indicavam apenas um
distanciamento geográfico, mas também um afastamento social.

A casa na Rua General Sampaio foi a primeira e única residência da família na


capital cearense. Para a construção dessa morada, Juvenal comprou as duas habitações
vizinhas e reformou para que se transformasse em uma ambiente maior e confortável
para habitar a sua família.

121
Casa do Barão de Camocim, o sobrado do Dr. José Lourenço, a casa do Tomás Pompeu de Souza
Filho, o palacete Jeremias Arruda (atual instituto do Ceará), a casa do Thomaz Pompeu de Sousa Brasil.
105

(Figura 23 – imagem da Casa de Juvenal Galeno, situada na Rua General Sampaio – Construída em
1887 – Essa imagem mostra a residência restaurada)122

Analisando a construção visualizada acima percebemos que Juvenal Galeno


tentou demonstrar sofisticação arquitetônica. A intenção em edificar uma residência que
exaltasse requinte e luxo era uma tentativa de seguir os novos padrões de moradia e
também de exibir as necessidades de uma família reconhecida socialmente na cidade.

A opulência arquitetônica dessa residência se faz presente à medida que


notamos as platibandas, as cornijas, a beira-seveira, as gárgulas em folha-de-flandres e a
própria dimensão espacial. A partir dessa fachada da casa percebemos que a edificação
do poeta encaixava-se nos padrões considerados civilizados, ocupando nesse período
um grande exemplo para aqueles que tinham o desejo de alcançar os traços da
civilização.

A estrutura da casa de Juvenal Galeno exibia em seus detalhes o padrão de


moradia desejado pelos setores sociais privilegiados, tanto pelo estilo eclético do prédio,
como também pela constituição material de produtos importados da Europa. A

122
Disponível: http://versoeliberdade.blogspot.com.br/; acessado em 24/11/2015 as 08:21.
106

dimensão espacial da casa em si demonstrava os limites das relações sociais e as


condições financeiras dos sujeitos que habitavam nela.

O sobrado do Dr. José Lourenço também estava situado na área central da


cidade (localizado na Rua da Palma nº 32, hoje Rua Major Facundo nº 154). Essa
residência foi construída entre os anos de 1845 e 1854, nessa época era a única em
Fortaleza com três pavimentos. Residências com andares a cima do térreo não era muito
comum em Fortaleza (tinham-se a crença de que o solo arenoso da cidade não suportaria
residências elevadas) e ainda mais de dois andares (estrutura inédita na região cearense)
(CASTRO 2003).

A Rua da Palma foi uma das primeiras da capital a ser “arruadas”. Ou seja,
teve início o processo de pavimentação, de ordenação espacial e até mesmo os primeiros
passos do nivelamento das calçadas (nivelamento esse que até as duas primeiras década
do XX não estaria concluído). Os sobrados e as habitações térreas eram todas
numeradas de maneira rigorosa. A implantação e a manutenção dos dísticos era lei
municipal passível de multa, mas praticamente só as pessoas abastadas tinham dinheiro
para obedecer a essa lei civilizatória, com isso, esse artefato era utilizado como
distinção (HOLANDA, 2007).

O lote em que a residência do Doutor foi construída estava situado no centro


de um dos quarteirões da Rua da Palma e ao lado da sombra, peculiaridades essas que
valorizavam ainda mais o valor econômico (e por consequência o social) do imóvel.
Além da localização, os materiais utilizados (junto com a arquitetura) na constituição do
sobrado também configuravam distinção econômica. Tijolo, cal, telhas, madeira, areia,
matérias esses que eram importados e ganhavam destaques numa região em que a
maioria das residências ainda estavam sendo levantadas com taipa e palha (HOLANDA,
2007).

A arquitetura era composta por muitos pavimentos (presentes no andar térreo e


123
nos dois andares), janelas, portas e a ornamentação na fachada. Essa última era

123
A maioria das casas fortalezenses eram coladas parede com parede, isso impossibilitava um grande
número de janelas e portas. Os sobrados possuíam a diferença de terem janelas (que ajudavam bastante na
salubridade devido a circulação de ar) nos andares de cima (pavimentos onde as famílias passavam a
maior parte do tempo, já que a tendência era que o térreo fosse utilizado para fins comerciais) e inúmeros
compartimentos. Diferente das casas dos menos abastados que era composta por uma sala de entrada,
alcovas e um corredor que levava a cozinha.
107

ricamente adornada com azulejos, vasos, arabescos, esculturas, cornijas, platibandas,


beira-seveira, florões e rosáceas.

(Figura 24 - imagem do sobrado do Dr. José Lourenço, situada na Rua Major Facundo – Essa imagem
mostra a parte frontal da residência restaurada)124

Olhando para o sobrado restaurado do Dr. José Lourenço conseguimos imaginar


as características desse tipo de morada que existiam em Fortaleza durante a segunda
metade do século XIX. A maior parte deles possuíam apenas dois andares (o sobrado do

124
SILVA FILHO, Antonio Luiz Macêdo. Memórias da morada. IN: MUSEU DO CEARÁ, Associação
Amigos do (org). O Sobrado do Dr. José Lourenço. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora Ltda., 2007. p.
90.
108

Dr. José Lourenço era uma exceção chegando a ter três) e o térreo quase sempre era
utilizado para as realizações profissionais, enquanto os demais pavimentos eram
destinados ao convívio familiar. Notamos uma infinidade de portas e janelas, essas
últimas nos sobrados tinham na parte frontal e lateral (ver figura 7). A grande
quantidade era devido aos incêndios125 que ocorriam (eram muitos em Fortaleza durante
esse período) e também devido às recomendações dos sanitaristas para uma maior
circulação de ar e iluminação nas residências tendo como objetivo a salubridade
eficiente.

(Figura 25 - imagem do sobrado do Dr. José Lourenço, situada na Rua Major Facundo – Essa imagem
mostra a parte lateral da residência restaurada)126

125
Analisando os artigos, referentes a segunda metade do século XIX, da Revista do Instituto do Ceará
percebemos um grande número de incêndios nas residências de Fortaleza. Esses ocorriam devido as
composições materiais das habitações. A maior parte dos lares fortalezenses (mesmo na segunda metade
do século XIX) eram feitos de paredes de taipas e cobertas de palhas (HOLANDA, 2007). E os números
limitados de sobrados que existiam na capital, embora a sua maior parte fosse constituída de alvenaria,
também eram compostos por madeiras.
126
RAMOS, Francisco Régis Lopes. A peleja da tinta nas encruzilhadas do tempo. IN: IN: MUSEU DO
CEARÁ, Associação Amigos do (org). O Sobrado do Dr. José Lourenço. Fortaleza: Expressão Gráfica e
Editora Ltda., 2007. p. 58.
109

Outra observação que podemos fazer, a partir da imagem do sobrado


restaurado, é em relação às cores externas. A pintura restaurada mostra cores claras com
base em prospecções (paredes amarelas, azulejos azuis e janelas verdes). Segundo o
relato de viajantes estrangeiros e de memorialistas regionais127, os sobrados existentes
em Fortaleza possuíam cores claras e vivas que chamavam bastante atenção.

Em relação aos compartimentos das casas podemos afirmar que as residências


das elites possuíam mais espaços específicos, enquanto que nas das famílias menos
abastadas um mesmo alojamento possuía varias funções. Geralmente a divisão
domestica das habitações eram as seguintes: o cômodo frontal (destinado a recepção),
os dormitórios na parte central (presente também a alcova), a sala de jantar e a cozinha
era situada no fundo da casa (muitas vezes separada da arquitetura da casa e localizada
no quintal, por questão de salubridade). A literatura do período descreve muito bem
como era dividido os lares:

Logo à entrada havia uma escadinha de três degraus, de onde se via, lá


dentro, nitidamente como por um cristal muito límpido, a sala de jantar e as
bananeiras do quintalejo, de um verde tenro... Sala de visitas, alcova,
comunicando com um quarto, casa de jantar, varanda, despensa, quarto para
criado, cozinha e quintal, tudo asseado e confortável, com uns tons
aristocráticos matizando a compostura graciosa dos móveis, papel claro nas
paredes e lustre na sala de visitas (CAMINHA, 1999, p. 93).

As divisões da casa em compartimentos além de estarem ligadas com a


questão da função de cada espaço também possuía o intuito de refletir a segregação
social existente entre os habitantes da mesma residência. Podemos perceber isso na
separação da cozinha e das dependências dos criados dos demais locais da casa. Esses
dois ambientes estavam localizados no fundo das habitações (muitas vezes eram até
mesmo separados da própria casa). Essa divisão tentava obedecer as “regras” de
civilização do mundo europeu no qual determinava que os serviços domésticos
deveriam ser realizados longe do olhar dos patrões e dos anfitriões (FORTY, 2007).

Nas casas térreas era comum a presença de um corredor que ligava a parte
frontal da casa até o quintal. A existência desse espaço passou a ser necessária devido às
mudanças das noções de privacidade. Se na maior parte do período colonial era comum
a passagem por dentro dos quartos para se chegar ao quintal da casa, a partir da segunda
metade do século XIX a existência do corredor cessou esse hábito.

127
Louis Agassiz (1898), Elisabeth Agassiz (1898) e Antonio Bezerra de Menezes (1992).
110

Na parte frontal das residências estava situada a sala de visita. Esse espaço era
responsável pela ligação entre a casa e a rua (o mundo privado e o público). O cômodo
era destinado a receber os convidados e era nele que ocorriam os principais encontros
socioeconômicos que os anfitriões realizavam. Antes das criações dos clubes e da
consolidação dos teatros, as festas ocorriam nas salas de visitas das elites:

Depois daquela noite, não se dançou mais em casa da Fabiana. Aquilo era
uma gente que vivia num estreito círculo, e não aproveitava a boa existência
trabalhada e divertida da Fortaleza. A Maninha era por isso mesmo alguma
coisa matuta. Se freqüentou o Clube, foi levada pelo pai e pela curiosidade,
poucas vezes, quando havia baile em que o desembargador, pela sua nova
condição de amigo do Visconde, era figura obrigada. O Osório, então,
aparecia todo formal, de casaco, em verdadeiro magistrado, que mede as
palavras e não muda um pé sem a devida justeza (PAIVA, 1961, p. S/N).128

Lendo esse pequeno trecho da obra “A afilhada” percebemos que no final do


século XIX muitas famílias, até mesmo as que pertenciam a elite, realizavam festas (que
exigiam danças) em suas próprias casas (especificamente na sala de visita). Além de ser
um espaço destinado para uma conversa tranquila também era bastante utilizado para
festas e cerimônias grandiosas. Notamos que durante as três últimas décadas dos
oitocentos a elite começou a se incomodar com essas festas sendo realizadas na própria
residência e passou a preferir a realização de festividades e sociabilidades em teatros,
praças e clubes129.

No caso do escritor Juvenal Galeno ele também utilizava esse espaço para a
realização dos saraus literários (evento de sociabilidade intelectual composto pelos
renomados escritores cearenses). Já no caso do Dr. José Lourenço, esse espaço era
utilizado para os encontros da associação Recreação Familiar Cearense (evento de
sociabilidade elitista composta pelos antigos e novos ricos da sociedade fortalezense).

Os objetos que estavam presentes nesse compartimento deveriam ser os mais


luxuosos, pois estariam à vista dos convidados. Esses artefatos demonstravam o poder
aquisitivo do anfitrião e sua personalidade. No geral os objetos presentes na sala de
visita eram: piano, escarradeira, oratório, cabide130, cadeiras de palhinhas, canapé ou

128
As referências da obra A afilhada foram retiradas de um acervo digital. Disponível:
http://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?id=143033; acessado em 13/07/2017 as 08:21.
129
O que observamos é o surgimento de clubes e teatros durante a passagem do século XIX para o XX.
Esses espaços sociais vão suprir a utilização da sala de visita como algo destinado a festas e danças.
130
O cabide ficava logo na entrada da sala de visita com intuito de os visitantes colocarem suas cartolas,
bengalas e chapéus. Geralmente esse artefato era ornamentado com espelho. Notamos que esse objeto
surgiu de uma necessidade das vestimentas europeias que a sociedade cearense insistia em usar. Chapéus,
111

escabelo, consolo, espreguiçadeiras, mesa de centro, candelabros, candeeiros,


luminárias ou bico de gás131, quadros que representavam os anfitriões e espelho132. A
quantidade e a qualidade do material dos mesmos revela a situação financeira dos
proprietários.

A sala de visita com seus objetos tentava refletir para a sociedade que a casa
era um local de lazer, descanso, proteção e não de trabalho. Tudo que fosse relacionado
a produção e trabalho no máximo teria que ser destinado aos fundos da residência, já
que na parte frontal do lar teria que ser transmitido a personalidade dos anfitriões
133
(FORTY, 2007) . Numa sociedade em que as pessoas eram bastante reservadas era a
cultura material exibida principalmente através dos móveis, que poderia demonstrar o
caráter das pessoas. “Mesmo assim os objetos eram mais do que meramente utilitários
ou símbolos e status e sucesso. Tinham valor em si mesmos como expressões de
personalidade, como sendo o programa e a realidade da vida burguesa, e mesmo como
transformadores do homem” (HOBSBAWN, 2012, p. 351).

Com o passar do século XIX as residências, cada vez mais, se consolidaram


como representações do caráter das pessoas, devido a essas novas normas europeias
foram que os indivíduos (inclusive cidades americanas) começaram a se importar para
exibir a sua casa da melhor forma possível para a sociedade. O cômodo frontal tinha
como objetivo tentar juntar individualismo com padrões estabelecidos pela sociedade
vigente (sobretudo europeia).

O paradoxo entre individualidade e padronização era o que permeava nos


móveis presentes na sala de visita. A aparência desse cômodo era determinada pelas
normas culturais de civilização da época e pelo o que estava a venda nas casas
comerciais da região. Por mais que alguns membros da elite fortalezense desejassem

bengalas e sobrecasacas com cores escuras eram trajes que sempre estavam presentes, embora o clima
tropical exigisse outra roupagem.
131
Esses eram utilizados para a iluminação de residências, à base de óleo ou gás inflamável, em fins do
século XIX e princípios do século XX. Eram artefatos que tinha utilidades em toda a residência e nas ruas
da cidade. “Antes desse período, as ruas da cidade ficavam às escuras quando o sol se punha, e para
mover-se de um lugar para outro os habitantes teriam de empregar velas, lamparinas e candeeiros...”
(SILVA FILHO, 2004, p. 87).
132
Esses eram estrategicamente posicionados para dar a impressão de profundidade e contextualização do
espaço. O espelho era responsável em ampliar o espaço fazendo com que as pessoas tivessem a impressão
de estarem em um local muito maior.
133
A mobília teria que representar principalmente a personalidade da mulher, essa e a casa estavam
imbricadas. A esposa do dono da casa que não conseguisse mostrar seu caráter através do lar seria taxada
de pouco feminina (FORTY, 2007).
112

estabelecer uma originalidade total em suas salas, eles se viam limitados pelas ofertas
do mercado. Um dos objetos presente na sala de visita que exibia muito bem a
personalidade e a padronização era o piano.

Durante a segunda metade do século XIX apenas as famílias ricas tinham


condições de obter um artefato cultural como o piano. Ele era símbolo de distinção
social e também refletia o bom gosto artístico das famílias. Era ao redor desse
instrumento que as pessoas se reuniam para escutar o suntuoso artefato. Suponhamos
que os diversos saraus literários que ocorriam na casa de Juvenal Galeno e os encontros
sociais no sobrado do Dr. José Lourenço134 eram guiados ao som de um belo piano
(figura 8).

(Figura 26 - Piano RUD-IBACH-SOHN 1900 Piano de armário medidas: 137x137x64 cm) 135

Observando a imagem acima percebemos a influência alemã nos artefatos da


casa. O piano mostrado foi produzido na fábrica alemã Ibach. Essa é uma produtora

134
Esse possuía dois pianos (Arquivo Público do Ceará, COF. Inventário de José Lourenço de Castro e
Silva, Fortaleza, 1874).
135
Fonte: Catálogo de objetos da Casa Juvenal Galeno. Documento produzido recentemente pelo atual
diretor da casa Juvenal Galeno, o Sr. Antônio Galeno, o qual ele denomina de inventário. Porém, trata-se
de uma espécie de catálogo de todos os objetos que constam na Casa Juvenal Galeno.
113

tradicional alemã que sua fundação remonta do final do século XVIII. É a mais antiga
fábrica de pianos europeia e encontra-se em funcionamento até hoje.
O piano estava presente na maior parte dos inventários do período estudado e
também era bastante descrito nas obras literárias que tentavam descrever a Fortaleza do
século XIX:

Ah! meu caro amigo — interrompeu o abundante Lucas, vendo o que se


passava — você cuidava que isto aqui era o Rio de Janeiro? Há de topar
serviço! Isto está um país adiantadíssimo!... Além do calçamento, do
encanamento de água, da iluminação a gás, — contava nos dedos — do
palácio da Assembléia, do novo sistema de carroças, das casas pela marca da
Câmara, temos pianos em todas as salas, e a instrução do belo sexo! Você
pega uma dessas flores do paraíso terrestre, principalmente se tiver sido
educada pelas Irmãs de Caridade, corta a língua que nem maracanã, canta que
nem sabiá, lê como um doutor, e sabe que nem vigário! Que pensa? —
findava ele, de mãos nos quadris, refratário ao arzinho de riso do Centu e a
franca risada da menina (PAIVA, 1961, p. S/N)136.

Nessa passagem literária observamos o diálogo entre dois personagens que


acabam estabelecendo uma comparação entre Fortaleza e o Rio de Janeiro. Na conversa
é colocado o calçamento, o encanamento de água, a iluminação a gás, o novo sistema de
carroças como elementos que marcam uma sociedade civilizada. Mas o mais
interessante para nós é a colocação do piano como componente de civilização. Para os
dois personagens o fato de uma família ter um piano marcava a sua entrada no processo
civilizador capitalista.
E segundo os personagens da obra A afilhada (e das outras obras literárias
trabalhadas nessa pesquisa137), no final do século XIX, o piano já era artefato
obrigatório na sala de visita. “Nenhum interior burguês era completo sem ele; todas as
filhas diletas eram obrigadas a praticar escalas sem fim naquele instrumento”
(HOBSBAWM, 2012, p. 352). Fato esse comprovado na medida em que foram
analisados os inventários post-mortem do período: “Declarou o inventariante que por
morte de sua mulher ficou em seu casal um piano usado que foi avaliado por dusentos
mil reis”138, “Declarou mais a mesma inventariante que por morte de seu marido ficou
em seu casal um pianno novo que os avaliadores avalliarão por dusentos e cincoenta mil
136
As referências da obra A afilhada foram retiradas de um acervo digital. Disponível:
http://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?id=143033; acessado em 13/07/2017 as 08:21.
137
As obras, com as suas respectivas datas dos enredos, são: A Normalista (CAMINHA, 1895), 1886, A
Fome (TEÓFILO, 1979), 1880, A Afilhada (PAIVA, 1952), 1882, O Sismas (PÁPI JUNIOR, 1898),
1880, A Divorciada (COTILDE, 1996), 1880, e Mississipi (BARROSO, 1961), 1880.
138
Arquivo Público do Ceará, COF. Inventário de Emília Fausta de Castro Medeiros, Fortaleza, 1876.
114

reis”139 e “Declarou mais a mesma inventariante haver ficado em seu casal por morte de
seu marido um pianno velho que os avalliadores avalliarão por cento e cincoenta mil
reis”140
As transcrições dos dois inventários abordados no parágrafo anterior nos mostra
a presença de pianos nas residências da elite da capital cearense. O segundo e o último
inventário analisado acima pertencem ao Dr. José Lourenço. Esse possuía dois pianos,
sendo um novo e outro velho. Esses dois inventários somados a imagem do piano
alemão de Juvenal Galeno (junto com a análise dos inventários das duas penúltimas
décadas do século XIX) nos mostram que a elite fortalezense estava consumindo pianos
importados.
Entendemos que o piano era um artefato que além de transmitir uma
diferenciação por meio do poder aquisitivo também tinha um status relacionado com o
gosto cultural. A diferenciação por meio da cultura se dava na compra de quadros
artísticos, livros, espetáculos musicais que se configuravam em produtos de luxo, etc.
Para se desfrutar de determinados objetos culturais era preciso, além de um poder
aquisitivo, ter um “gosto apurado”. É através da cultura que a elite vai traçar uma
diferenciação entre os educados e os leigos, esses últimos que poderiam até ser capazes
de comprar determinado artefato, mas não saberiam usufruir da arte (OLIVEIRA,
2009).
O piano e sua relação com a arte concretizava a ideia de um artefato eterno e
belo. Duas características principais da expansão do capitalismo durante o século XIX,
pois para esse sistema econômico consolidar a sua expansão foram necessários aspectos
concretos, belos, sentimentais e rotineiros. Esse instrumento musical abordava todas
essas características:

Nada era mais espiritual do que a música, mas a forma característica em que
ela entrava no lar burguês era o piano, um aparato excessivamente grande,
rebuscado e caro, mesmo quando reduzido – para o benefício de uma camada
mais modesta aspirante a valores burgueses – às dimensões mais mensuráveis
de um piano vertical (pianino) (HOBSBAWM, 2012, p.352).

Muitos outros objetos que representam um gosto refinado pela arte estavam
presentes no cotidiano das residências141. A presença de quadros, livros, estantes para

139
Arquivo Público do Ceará, COF. Inventário de José Lourenço de Castro e Silva, Fortaleza, 1874.
140
Arquivo Público do Ceará, COF. Inventário de José Lourenço de Castro e Silva, Fortaleza, 1874.
141
Inclusive nos lares de Juvenal Galeno e do Dr. José Lourenço, pois esses eram intelectuais.
115

livros, escrivaninhas, estatuas gregas e medalhões mostram hábitos que não eram tão
comuns em uma sociedade que a maioria da população era analfabeta e excluída do
progresso142.

(Figura 27: Estantes de madeira com seis divisórias internas e duas portas com vidros. Medidas:
270x155x31cm.)143

(Figura 28- Escrivaninha em carvalho, cadeira em carvalho, com assento em palhinha e encosto de
madeira. Medidas: 163x18x65cm) 144

Observando os objetos que remontavam a intelectualidade de Juvenal Galeno,


notamos o seu desejo incondicional pela literatura. As sete estantes que pertenciam ao
poeta cearense nos mostram a imensidão que era sua biblioteca, pois todas essas eram

142
Segundo Tómaz Pompeu de Souza Brasil (1863), durante a década de 1880 apenas 16% da população
cearense era letrada ou semi-alfabetizada e 84% eram analfabetos.
143
Fonte: Catálogo de objetos da Casa Juvenal Galeno. Documento produzido recentemente pelo atual
diretor da casa Juvenal Galeno, o Sr. Antônio Galeno, o qual ele denomina de inventário. Porém, trata-se
de uma espécie de catálogo de todos os objetos que constam na Casa Juvenal Galeno.
144
Idem.
116

destinadas para guardar livros. Os seus inúmeros livros acentuavam a sua posição social
e a sua interação com a intelectualidade. Como Juvenal Galeno viajava e tinha contato
com as demais províncias do Brasil é bem possível que em suas estantes existissem
muitas obras de cunho nacional e internacional.
Por ser um escritor e valorizar a literatura esses objetos citados acima (com
exceção do piano) ficam presente em um cômodo especifico que era a biblioteca. A
prática de escrever cartas (um dos poucos meios de comunicação do período) fez surgir
a necessidade da escrivaninha. Esse objeto era utilizado exclusivamente para escrita
(seja uma carta ou até mesmo um livro no caso de Juvenal Galeno) e para a leitura,
então as pessoas que possuíam eram alfabetizadas. Outros objetos (imagens a baixo)
relacionado a arte e a intelectualidade deveriam estar localizados também na sala de
visita.

(Figura 29 – Estátua grega da Deusa da Inspiração. Representando a música. Medidas: 124x43x43cm) 145

145
Idem.
117

(Figura 30 – Medalhão do perfil de Victor Hugo (1802-1885). Medidas: 37cm)146

(Figura 31: Busto de mármore de Johann Wolf Gang Von Goethe. Medidas: 60x40x28cm) 147

Os dois bustos de mármores (Johann Wolf Gang Van Goethe e Friedrich


Von Schiller) e os dois medalhões (Victor Hugo e Léon Gambeta) que estavam
presentes na casa do poeta mostram as suas principais influências políticas e literárias.
Fazendo uma relação entre essas esculturas e as diversas estantes de livros do escritor
cearense podem supor que em sua biblioteca estava presente obras da literatura francesa
e alemã.

146
Idem.
147
Idem.
118

As três últimas figuras mostradas (busto, medalha e estátua) nos faz perceber
que no final do século XIX ainda existia um gosto pelo Neoclassicismo. Pensadores
contemporâneos sendo representados em produções artísticas de influência greco-
romana. Objetos concretos artísticos que além de transmitir gosto cultural e intelectual
também exibia a vontade do proprietário por uma singularidade e de colecionar
relíquias. Isso nos faz refletir sobre a vontade da elite fortalezense em dotar
individualidade levando a uma espécie de fetichismo da mercadoria.
Esses tipos de objetos culturais provavelmente só estariam presentes em
residências das famílias bastadas e que tivessem alguma atividade intelectual. No caso
de artefatos artísticos com teor neoclássico não encontramos nada parecido nos
inventários analisados. Já no caso de estantes foi possível identificar algumas nos
documentos pesquisados: “Declarou mais o mesmo inventariante haver ficado em seu
casal por morte de sua mulher um guarda livros que os avaliadores avalliarão por
quarenta mil reis” 148. Até mesmo com vidraças:

Declarou mais a mesma Inventariante que por morte de seu marido ficou em
seu casal uma estante envidraçada que os avaliadores avaliarão por vinte mil
reis.
Declarou mais a mesma inventariante que por morte de seu marido ficou em
seu casal uma estante, pequena, envidraçada que os avaliadores avaliarão por
dose mil reis. 149

A utilização do vidro em alguns móveis das residências cearenses mostra a


inserção da região no processo civilizador. O vidro era um material caro e de difícil
acesso no século XIX (ainda mais na área da mobiliaria). Essa substância sólida aderida
aos artefatos domésticos proporcionava sofisticação e charme, conferindo um aspecto
luxuoso e moderno no ambiente residencial.
Assim como o piano esses artefatos domésticos eram utilizados como objetos
de distinção social através da cultura. Obter e saber utilizar esses utensílios eram
determinantes para pertencer a uma elite intelectual cearense. Essas peças do mundo
intelectual pertencentes a Juvenal Galeno refletem o seu trabalho e sua experiência.
Condições que o tornavam reconhecido no meio social, cultural e político.
Outro objeto que estava presente na sala de visita era a cadeira de palhinha
(figura 15). Esse artefato estava situado nesse ambiente de recepção junto com o

148
Arquivo Público do Ceará, COF. Inventário de Mariana Cabral de Gouveia Miranda, Fortaleza, 1874.
149
Arquivo Público do Ceará, COF. Inventário de João d´ Araújo Costa Mendes, Fortaleza, 1875.
119

escabelo ou canapé. Esses dois assentos de diferentes formas eram produzidos com
madeira de jacarandá. Eram mobílias que possuíam presença obrigatória no
compartimento responsável em receber as visitas.

(Figura 32: Cadeira de madeira com assento e encosto de palhinha jacarandá. Medidas: 94x44x42cm.) 150

Na casa de Juvenal Galeno percebemos ao todo 8 cadeiras e na do Dr. José


Lourenço estava presente seis dúzias de cadeiras, cinco sofás e uma marquesa (SILVA
FILHO, 2007). Essa grande quantidade nos faz perceber a vontade que os anfitriões
tinham em receber os seus convidados e principalmente de passar uma boa impressão à
sociedade.
A forma como os objetos eram colocados na sala se referiam muito a um
caráter de diferenciação social. O mobiliário em sua maioria era de jacarandá, principal
madeira utilizada na época, e havia cadeiras para todos os presentes. A arrumação dos
móveis eram colocados em U, assento com braços para o chefe da casa, contornado pelo
sofá canapé ou cadeiras de palhinha sem braços, encontramos também sofás e cadeiras

150
Fonte: Catálogo de objetos da Casa Juvenal Galeno. Documento produzido recentemente pelo atual
diretor da casa Juvenal Galeno, o Sr. Antônio Galeno, o qual ele denomina de inventário. Porém, trata-se
de uma espécie de catálogo de todos os objetos que constam na Casa Juvenal Galeno.
120

dispostas em duas fileiras paralelas e, na extremidade, a cadeira com braço indicava a


posição a ser ocupada pelo patriarca da casa, que teria ao seu lado a companhia da
esposa (ABRAHÃO, 2008).
Os diversos tipos de assento presentes no cômodo da frente era o que
caracterizava a sala de visita. A diversidade era o que marcava a composição desses
assentos, pois notamos cadeiras de palhinha, cadeiras austríacas, cadeiras americanas,
cadeiras inglesas, cadeiras francesas151, cabriolet152, cadeiras de balanço,
espreguiçadeiras, canapé153 (sofá ou marquesa). Essas eram construídas de muitos tipos
de madeiras: jacarandá, nogueira, pinho, mogno, pau d arco, cedro, amarillo e angico
(nos inventários do final do século XIX já começamos a notar cadeiras até mesmo de
ferro). Os formatos delas também variavam muito, pois tínhamos cadeiras com 4 ou 3
pés e com braços ou sem. Em relação ao conforto tínhamos assento e espaldas com
estofados (couro154,algodão e palha) ou sem, fazendo a pessoa sentar-se na própria
madeira.
A utilização de assentos por uma sociedade determinava a sua anexação
num mundo civilizado (a simples propriedade de uma cadeira distinguia a pessoa dos
demais), pois o simples fato de sentar no chão para uma conversa ou para fazer uma
refeição eram hábitos taxados de selvagens e anti-higiênicos (muitas famílias pobres
realizavam suas refeições no chão). A cadeira de melhor qualidade era destinada ao
dono da casa e ela representava status. O assento com estofado e braços logo
identificava quem tinha mais poder em um determinado recinto.
Estudando os inventários post-mortem do período podemos observar a
declaração de grande quantidade de cadeiras de diversos tipos, materiais e formas:

Declarou a inventariante ter ficado em seu casal por falecimento de


seu marido, hua mobília de jacarandá em bom uso, constando de hum sofá,
dois consolos, quartoze cadeiras sendo duas de braços, que os avalliadores
avalliarão por dosentos mil reis.
Declarou mais a mesma inventariante que por falecimento de seu
marido ficou em seu poder dez cadeiras francesas de palinha e já bastantes
uzadas, que os avalliadores avalliarão por dois mil reis cada hua.

151
As primeiras cadeiras curvilíneas e arredondadas foram criadas e vendidas na França. Depois todo
assento que seguiram essas características que ficaram conhecidas por essa nomenclatura (DEJEAN,
2012).
152
Tipo de poltrona preferida na Europa durante o século XVIII, caracterizado por suas espaldas
circulares e sinuosas (DEJEAN, 2012)
153
Canapé surgiu na França durante a idade moderna. Foi um objeto derivado das duchesse e chaise
longue (espécies de diva). Foi o primeiro assento que teve a capacidade de suportar duas pessoas.
(DEJEAN, 2012).
154
Principalmente de marroquim – couro curtido de bode ou de cabra.
121

Declarou mais a mesma inventariante que por falecimento de seu


marido ficou em seu poder oito cadeiras americanas uzadas que os
avalliadores avalliarão cada huma por dois mil.
Declarou mais a mesma inventariante que por falecimento de seu
marido ficou em seu puder duas cadeiras de balanço, americanas, e já velhas
que os avalliadores avalliarão por cinco mil reis cada hua.
Declarou mais a mesma inventariante que por morte de seu marido
ficou em seu poder hua marquesa velha que os avalliadores avalliarão por
oito mil reis. 155
Na maior parte dos documentos analisados notamos que a mobília de jacarandá
prevalece sobre os demais tipos. Grande número de cadeiras e a presença de pelo menos
um sofá é algo obrigatório nas residências do período. Cadeiras com braços, por
demonstrar status, era algo a ser destacado nos inventários. Marquesas, cadeiras de
balanços e cadeiras americanas também eram objetos presentes. O que mais nos chama
atenção são as cadeiras francesas de palhinha.
Notamos uma hibridização cultural realizada na composição desse último
artefato citado. Confirmamos a presença de cadeiras com design Francês (curvilíneas e
arredondadas), mas com assentos e espaldas de palhinha156. Ou seja, o desenho e a
forma eram a partir de uma cultura importada, mas o material do conforto era regional.
Esse, mesmo sendo menos confortável era mais utilizado devido à questão financeira.
Mesmo assim ainda encontramos cadeiras com estofados (principalmente as cadeiras
austríacas). “a sala de visita era um mimo com a sua mobília mignon de assento
estufado, piano, quadros do paganismo, bibelots...” (CAMINHA, 1999, p. 67).
Nessa sala de visita em estudo percebemos que era necessária uma grande
quantidade de objetos de inúmeros tipos, formas e origens. A regra para a “exposição”
desses artefatos nesse cômodo era que demonstrassem requinte, valor, suntuosidade,
erudição, civilização e conforto (não só dos artefatos, mas da arquitetura do espaço
como um todo). Tudo que refletisse o oposto dessas características teria que ser
camuflado pelos anfitriões:

A impressão mais imediata do interior burguês de meados do século é a de


ser demasiadamente repleto e oculto, uma massa de objetos, frequentemente
escondidos por cortinas, almofadas, tecidos e papéis de paredes, e sempre
muito elaborados, qualquer que fosse seu material. Nenhum quadro sem uma
moldura dourada, ornamentada, entalhada ou mesmo coberta de veludo,
nenhuma cadeira sem tecido de proteção, nenhuma peça de tecido sem borla,
nenhuma peça de madeira sem o toque do torno mecânico, nenhuma
superfície sem algum tecido ou objeto repousando em cima (HOBSBAWM,
2012, p. 350).

155
Arquivo Público do Ceará, COF. Inventário de Joaquim Carneiro de Souza e Azevedo, Fortaleza,
1874.
156
Também identificamos cadeiras com designe inglês, mas com estofados de palhinha.
122

O que Hobsbawm chama de interior burguês seria os lares das famílias da elite
europeia durante meados do século XIX. Residências que se preocupavam a cima de
tudo exibir de maneira concreta a expansão e consolidação do capitalismo. Ambientes
que simbolizavam status, riqueza, sucesso e que marcavam a família no estrato social
dito superior.
Fortaleza com o objetivo de inserção no processo civilizador capitalista guiava-
se (na medida de sua realidade) por esse lar burguês descrito por Hobsbawm. A
intenção da elite local era estabelecer uma sala de visita semelhante as das residências
do velho continente. Ou seja, um cômodo que respeitasse as regras de civilização da
época que exigiam suntuosidade, conforto e higiene. Características que podemos ver
nas descrições literárias do período:

Daí, o Visconde imaginava-se no silêncio da sala de visitas, em cujo âmbito


seria justiça que Antônia viesse a dominar. Encamisada, pelas horas de luar, a
vidraçaria aberta, em alvíssimas rendas perpassadas de fitinhas cor-de-rosa,
como seria romântico. Ele devia tê-la como esposa, ali, onde as cortinas
transpareciam levemente arregaçadas, meio velando os pudores do recinto,
presilhadas em maçanetas de doirado fusco. Os elegantes consolos negros,
sobre o mármore das lápides em branco, seriam uns túmulos insaciáveis a
encher de cálidas recordações. Antônia rolaria nos tapetes onde correm
árabes a cavalo perseguindo corças; veria o invisível arfar dos ramalhetes nos
jarros cor de creme, ouvindo o tlimtlim dos pingentes tocados de luar e de
brisa no grosso candelabro que desce dos florões do estuque. De dia, havia de
arrastar o longo vestido branco, fazendo sala, e das paredes forradinhas de
verde com colunas de trigo dourado, e dos grandes espelhos beirados de
caixilhos de talha, que sorriem de luz, e da vidraria de cristal, e de tudo,
manaria um fino sabor de nobreza. Nos devassamentos de sol matutino, como
um gato mimoso de nariguinho de pitanga e lacinho ao pescoço prendendo
um guizo, ela deitaria nas alfombras empalidecidas. Ostentaria valor inesti-
mável, fronteiro ao dela, o retrato que ora inda existia entre as duas janelas;
despenhado para o espaço, habitando numa moldura vistosa, em grande
uniforme de galo pimpão de crista alevantada, oferecido pelos oficiais da
guarda nacional ao Ilustríssimo Senhor Coronel Comandante Superior,
naquele tempo Afrodísio Pimenta Carne-Viva, pelos seus merecimentos e
amor à pátria. As pupilas da pintura, muito abugalhadas haviam de estar
pregadinhas constantemente, nas do retrato da Antônia. E a esposa, tarde
viria dar bons dias ao sol, e cedo bateria as portas e almejava boa noite às
estrelas (PAIVA, 1961, p. S/N).157

Acima do sofá inclinavam-se os retratos do casal Góis de Oliveira,em


grandes molduras, e as bolas de torçal verde caíam de cada quadro,nos
ângulos superiores, como duas melenas. O papel cor-de-rosa com floreios de
veludo e avivamentos doirados, na parede, ia bem com as sensações de um
amante. As bandeirolas e as portas, muito alvinhas, coma indiferença da
matéria inerte, e o botão azul dos trincos, pareciam prestes a dar entrada
a alguém, e esse alguém o oficial temia que fosse a prima.

157
As referências da obra A afilhada foram retiradas de um acervo digital. Disponível:
http://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?id=143033; acessado em 13/07/2017 as 08:21.
123

O assoalho ocultava-se aqui pelo tapete, e ali aplainava-se com asua


alternativa aurinegra de tábuas de pau-cetim e de acapu. Um soprozinho de ar
fazia tinirem ao de leve os pingentes do candelabro que descia do florão do
estuque. Encaixilhados em jacarandá subiam dois espelhos rente à parede,
bilateralmente à porta do corredor, reproduzindo porções da quadra. Uma
mesa octogonal aparava a luz cheia, dos bicos de gás, no centro, e por sobre
os bordados a lã, da coberta que a forrava, diversas preciosidades jaziam,
como fossem o álbum de retratos, uma corbelha de cartões, duas brochuras, e,
bem de frente para o oficial, que se empertigava no sofá, o retrato de Maria
das Dores, num quadrozinho de metal. O boné ele o havia posto ao pé de si;
mas começou a entender que isto era matutice. Depó-lo sobre a mesa. De pé,
no meio da sala, estava mais senhor de si, e podia passar os minutos menos
tolamente, percorrendo o álbum, folheando as brochuras, ou coisa que o
valha. Estas eram romances (PAIVA, 1961, p. S/N).158

Nessas duas passagens observamos descrições das salas de visita do final do


século XIX. Notamos a presença de tapetes, vidraçarias, ornamentação nas maçanetas,
forros em paredes, molduras em retratos, bolas de torçal, bordados de lã e papeis de
parede159. Todos esses adereços eram responsáveis em garantir um maior requinte para
o espaço ocultando o que causasse repugnância. Tapetes eram responsáveis em esconder
o assoalho e os papeis de parede ocultavam a arquitetura nua. As cores escolhidas dos
forros das paredes tinham como objetivo difundir harmonia e higiene.

A escarradeira também estava presente nas salas de visitas das famílias, mas
vale salientar que sua presença era maior durante as primeiras décadas do século XIX,
já que na segunda metade o mesmo começou a sumir desse compartimento da casa. A
retirada das escarradeiras das salas se deve à mudança de hábitos da sociedade que, com
o tempo, já não tinha uma enorme necessidade de escarrar.

Determinado objeto ou desapareceu das maiorias dos lares ou apenas se


“retirou” para cômodos mais privados, pois o costume de escarrar, junto com a
escarradeira, deixou de ser um símbolo de prestigio e passou a ser um costume
higiênico. Assim nos afirma Norbert Elias:

Em 1859, "escarrar a todo momento é um habito repugnante". Apesar disso, e


pelo menos nas residências, a escarradeira como utensílio para controlar esse
hábito, de acordo com o padrão em evolução de delicadeza, ainda conserva
grande importância no século XIX. Cabanes, em 1910, lembra-nos que, tal
como outros utensílios (ct. Exemplo L), ele evoluiu lentamente, passando de
objeto de prestígio para utensílio privado. Aos poucos, também, esse
utensílio tona-se dispensável. Em grandes segmentos da sociedade ocidental,

158
As referências da obra A afilhada foram retiradas de um acervo digital. Disponível:
http://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?id=143033; acessado em 13/07/2017 as 08:21.
159
Em outra descrição literária, citada no primeiro capítulo (página 42), da sala de visita também foi
possível perceber: cadeiras estofadas, tapete francês, molduras douradas, cortinadas de seda branca
franjados de ouro e papel de parede azul-celeste com flores douradas.
124

ate mesmo a necessidade de escarrar ocasionalmente parece ter desaparecido


de todo. Um padrão de delicadeza e moderação semelhante ao que Della
Casa conhecia apenas da leitura de escritores antigos tempo em que "povos
inteiros... viveram com tanta moderação. .. e se conduziram com tanto decoro
que escarrar tornou-se inteiramente dispensável para eles" (Exemplo F), fora
mais uma vez atingido. (ELIAS, 1994.p. 159)

O hábito de escarrar foi sendo modificado no Ocidente durante o tempo. Durante


a Idade Média era um costume, ou melhor, era uma necessidade escarrar com
frequência. A única restrição ou controle estabelecido durante a Idade Média era que
não escarrasse por cima ou em cima da mesa. No período pós-Idade Média o controle
sobre determinado costume torna-se maior, pois começa a exigir que após a escarrada se
pise no esputo ou então utilize um lenço para absorvê-lo.

No século XIX, como foi dito, o hábito de escarrar com frequência se torna
repugnante se efetuado em público. Aos poucos percebemos que, com o passar do
tempo os manuais de etiquetas dos países europeus vão ficando mais rigorosos e tentam
controlar o costume de escarrar. Um controle que se dá através de uma sociogênese e de
uma psicogênese, pois a restrição a esse hábito acontece por medo de serem
discriminadas por outras pessoas ou em muitas vezes por um controle interno existente:

Tabus e restrições de vários tipos acompanham a expectoração de catarro,


como de outras funções corporais, em muitas sociedades, tanto "primitivas"
como “civilizadas". O que as distingue é o fato de que, nas primeiras, eles são
sempre mantidos por medo de outras pessoas, ou seres, mesmo que
imaginários - isto e, por controles externos - ao passo que, nas ultimas, são·
transformados mais ou menos completamente em controles internos. As
tendências proibidas (por exemplo, a tendência para escarrar) desaparecem
em parte da consciência, sob pressão desse controle interno, ou, como
poderia ser também chamado, do superego e do "habito de previsão". O que
sobra na consciência como motivação da ansiedade e alguma consideração de
longo prazo. Assim, em nossa época o medo de escarrar, e os sentimentos de
vergonha e repugnância nos quais isto se expressa, concentram-se na ideia
mais precisamente definida e logicamente compreensível de certas doenças e
suas "causas", e não em tomo da imagem de influencias mágicas, deuses,
espíritos, ou demônios. Mas a serie de exemplos mostra também com grande
clareza que a compreensão racional das origens de certas doenças, do perigo
do esputo como transmissor, não e a causa primaria do medo e da
repugnância nem a mola propulsora da civilização, a força por trás das
mudanças no comportamento no tocante ao hábito de escarrar (ELIAS,
1994.p. 160)

Analisando a escarradeira, notamos a introdução de um objeto nas famílias


fortalezenses do século XIX. Um objeto que em sua maioria era de origem inglesa e que
demonstra muito bem a sofisticação até em um simples hábito de escarrar.
125

Em Fortaleza durante o final do século XIX ainda era fácil encontrar citações de
escarradeiras nos inventários post-mortem. Embora as historiografias europeias e
brasileiras afirmem que no ocidente alguns objetos (como escarradeira, oratórios e baús)
já teriam desaparecidos dos lares do final dos oitocentos. No Ceará esses artefatos
(mesmo nas casas das elites) ainda estavam bastantes presentes.

Na sala de visita ainda encontrava-se presente o oratório. Durante o século


XIX era muito comum a utilização desse artefato nas residências das famílias cearenses.
Na maioria das habitações eles estavam presentes nas salas de visitas e em outras
encontravam-se em lugares mais reservados. Nesse objeto religioso estavam presentes
eventuais relíquias e alguns santos de devoção do proprietário.

(Figura 33: Oratório de madeira com porta e laterais de vidro. Medidas: 130x70x35) 160

A utilização de oratórios remonta ao período colonial. Era uma tendência de


construir recantos particulares de oração. Em muitos casos através desses oratórios as

160
Fonte: Catálogo de objetos da Casa Juvenal Galeno. Documento produzido recentemente pelo atual
diretor da casa Juvenal Galeno, o Sr. Antônio Galeno, o qual ele denomina de inventário. Porém, trata-se
de uma espécie de catálogo de todos os objetos que constam na Casa Juvenal Galeno.
126

salas de visita eram utilizadas como um espaço de realização de orações e culto ao


sagrado. Esses locais de sociabilidade eram realizados pelos anfitriões com seus
convidados durante o período colonial, ou seja, quando não se encontravam capelas.
Assim nos mostra Antonio Otaviano Vieira Júnior: “Estas imagens poderiam compor a
mobília das ricas casas em especial a sala dessas residências que, na ausência de
capelas, serviam como lugar de oração e culto ao sagrado” (VIEIRA, 2004, p. 80).

Os oratórios demonstravam uma apropriação familiar de ritos religiosos, na


medida em que o controle e a prática devocional estavam diretamente vinculadas ao lar.
Os santos cultuados estão ligados de certa maneira aos moradores da casa e fruto das
promessas que seus proprietários fazem de forma direta a estes santos. Embora esse
artefato remontasse ao periodo colonial, ainda percebemos a sua presença nas
residencias fortalezenses da segunda metade do século XIX.

Além do oratório, na casa de Juvenal Galeno, encontramos outros objetos do


seu cotidiano que representavam o passado colonial.

(Figura 34: Baú de madeira com tranca e puxadores de ferro. Medidas: 76x121x60) 161

161
Idem.
127

(Figura 35: Rede de algodão. Medidas: 380x 250cm)162

A rede, o baú e o oratório são objetos que representam características


regionais e resquícios do passado colonial cearense. Notamos que mesmo com a
importação de camas a rede ainda era (e ainda é) muito presente nas residências, seja
nos lares das famílias pobres como também nas ricas. Esse objeto regional era utilizado
como cama, sofá, cadeira e até mesmo como meio de “transporte”. Existiam redes
requintadas ou não, dependendo das condições financeiras do proprietário. Elas
poderiam ser adornadas com varandas e marfim. Esse utensílio cearense era utilizada
principalmente devido a sua versatilidade, pois era um artefato produzido com matéria
prima regional e simples de guardar e transportar (VIEIRA, 2004).

Os baús também possuíam presença constante nas habitações cearenses. A


maioria eram feitas de madeiras de pinho, angico ou jacarandá. Esse artefato tinha como
função guardar diversos bens (rede, talheres, roupas, documentos escrito etc) e facilitava
o transporte de objetos em geral. A presença desse utensílio nos faz perceber que ainda
era muito pouca a presença de armários e guarda-roupas (principalmente nas casas da
população menos abastada).

A sala de jantar, assim como a sala de visita, também era um local destinado
ao convívio com o público. Era nesse espaço que aconteciam os jantares familiares.
Durante os banquetes a mesa deveria estar ornamentada com cristais, pratarias,
porcelana, travessas, sopeiras, molheiras, cremeiras, serviços de chá e café com
monogramas ou brasões. Os saberes desse ritual eram liderados pela esposa do anfitrião,
essa passaria todo o seu conhecimento de sociabilidade e recepção para as filhas. Ela

162
Idem.
128

que escolhia o menu (o cardápio era detalhado seguindo uma ordem que iam desde a
entrada à sobremesa. Constando bebidas,cigarros e charutos). Esses inúmeros cuidados
no jantar não era por simples etiqueta, pois nesses momentos, também realizavam
investimentos, reforçavam laços antigos e iniciavam acordos comerciais e políticos.

Notamos uma “igualdade” entre os sexos nesse compartimento. Nos jantares


em família a senhora posiciona-se à direita de seu marido. Todos os arranjos da mesa
como organização dos pratos, guardanapos, copos, a escolha do cardápio principal e da
sobremesa eram liderados pela anfitriã. Observamos aparelhos de chá feito de prata em
muitos inventários do período. Esses eram compostos por colheres, facas, bule,
manteigueira, leiteira, açucareira etc. As anfitriãs os utilizavam quando recebiam suas
amigas para o “ritual do chá”. Costume esse que estava sendo incorporado pelas
famílias brasileiras desde o inicio do século XIX (FREIRE, 2001). No inventário post-
mortem do Dr. José Lourenço podemos observar objetos de jantar composto de vidro,
prata e porcelana:

PRATA
Declarou a Inventariante haver ficado em seu casal por morte de seu marido
uma dusia de colheres de sopa, novas, juntando cento e trinta oitavas por
dusentos mil a oitava, trinta e seis mil reis que sai a margem 36.000.
Declarou mais a mesma Inventariante que por morte de seu marido ficou em
seu casal vinte e uma colheres para soupa, velhas que os avalliadores
avalliarão por dusentos reis a oitava e pesarão tresentos e vinte e quatro
oitavas importando em sessenta e quatro mil e oitocentos reis que sai fora
64.800. Declarou mais a mesma Inventariante haver ficado em seu casal por
morte de seu marido duas colheres de tirar sopa que os avalliadores avalliarão
em dusentos reis cada oitava e pensarão noventa oitavas que saiu por desoito
mil reis que sai fora 18.000. Declarou mais a mesma Inventariante haver
ficado em seu casal por morte de seu marido ficou em seu casal duas colheres
grandes para tirar arroz pesando setenta oitavas que os avalliadores avalliarão
por dusentos reis a oitava que importão em quartose mil reis que sai a
margem 14.000. Declarou mais a mesma Inventariante que por morte de seu
marido ficou em seu poder uma concha para assucar pesando seis oitavas que
os avalliadores avalliarão por dusentos reis a oitava mil e dusentos reis que
sai fora a margem 1:200. Declarou mais a mesma Inventariante que por
morte de seu marido ficou em seu casal onse colheres para cha pesando
cincoenta e quatro oitavas que os avalliadores avalliarão por dusentos reis a
oitava que importa des mil e oitocentos reis que sai fora 10.800.

Decalrou mais a mesma inventariante haver ficado em seu casal por morte de
seu marido um copo e uma salva pequena de prata pesando cento e vinte seis
oitavas que os avalliadores avalliarão por dusentos reis a oitava que importão
em vinte cinco mil e dusentos mil que sai a margem 25.200. Declarou mais a
dita Inventariante haver ficado em seu casal por morte de seu marido um
paliteiro de prata pesando quarenta e tres oitavas que os avalliadores
avalliaram por dusentos reis a oitava que importa em oito mil e seiscentos
reis que sai a margem 8.600. Declarou mais a mesma Inventariante que por
morte de seu marido ficou em seu casal quatro colheres quebradas pesando
43 digo quarenta e tres oitavas que os avalliadores avalliarão por dusentos
129

reis a oitava que importa em oito mil e seiscentos mil que sai fora 8.600.
Declarou mais a mesma Inventariante haver ficado em seu casal por morte de
seu marido uma salva grande pesando cento e setenta e duas oitavas que os
avalliadores avalliarão por dusentos reis a oitava que importa em trinta e
quatro mil e quatrocentos reis que sai fora a margem 34.000. Declarou mais
a mesma Inventariante haver ficado em seu poder por morte de seu marido
uma dúzia de talheres de ébano com prata pesando trinta e quatro oitavas que
os avalliadores avalliarão por dusentos mil a oitava que importa em desesseis
mil e oitocentos que sai fora 16.800.
LOUÇAS E VIDROS
Declarou a Inventariante que por morte de seu marido ficou em seu poder
um aparelho de cristal para sobre-mesa que os avalliadores avalliarão por
sessenta mil reis que sai fora 60.000. Declarou mais a mesma Inventariante
que por morte de seu marido ficou em seu casal um aparelho de louça cor de
rosa para jantar que os avalliadores avalliarão por mil reis que sai fora
30.000. Declarou mais a mesma Inventariante que por morte de seu marido
ficou em seu casal um aparelho verde para louças que os avalliadores
avalliarão por quinse mil reis que sai por fora 15.000. Declarou mais a
mesma Inventariante que por morte de seu marido ficou em seu casal
desesseis cálices que os avalliadores avalliarão por oito mil reis que sai fora
8.000.163

. Notamos diversos objetos de prata, louça e vidro que eram utilizados nos
jantares sociais realizados pelo anfitrião Dr. José Lourenço. Entre os objetos de prata
temos colheres, concha, uma salva grande e paliteiro. Observamos especificidades nas
colheres que davam o caráter civilizatório e a utilização de salva grande. Esse último
utensílio era uma espécie de bandeja para taças, copos ou outros objetos. Entendemos as
salvas de prata como um artefato (entre tantos) que concretizava a segregação entre
criados e patrões. Já que segundo as regras de etiqueta os criados nunca poderiam dar
alguma coisa com as mãos aos patrões e visitantes, por isso, sempre era recomendado a
utilização de uma bandeja (de preferência de prata) (FORTY, 2007).

Entre os objetos de vidro e louça temos aparelho de cristal para sobremesa,


louças cor de rosa para jantar e dezesseis cálices. A reflexão a ser realizada aqui é em
relação a separação de objetos destinados ao jantar e os artefatos para servir a
sobremesa164. Essa divisão nos permite identificar a produção de um cardápio com
origem francesa (entrada, prato principal e sobremesa). Que pelo visto as famílias de
Fortaleza estavam seguindo essa etiqueta parisiense.

Nesse e em outros inventários analisados notamos que os inventariantes só


descreviam objetos de jantar que fossem constituídos de prata, vidro ou porcelana. Se
esses artefatos fossem de outro material não interessava a descrição desses. Os objetos

163
Arquivo Público do Ceará, COF. Inventário de José Lourenço de Castro e Silva, Fortaleza, 1874.
164
E alertamos para a necessidade que o inventariante teve em especificar a utilização das louças.
130

que eram descritos nesses documentos teriam que possuir algum valor, até porque essa
relação de bens acontecia para a realização do cálculo do patrimônio do proprietário.
Então, notamos que os objetos de prata, cerâmica, vidro e porcelana além de indicar
civilização165 também refletiam riqueza, status e poder (diferente do que acontecia com
as peças de jantares fabricados de estanho ou barro166).

Outra forma de diferenciação através das louças era a inserção de


monogramas nelas. Esses eram marcas (geralmente letras iniciais do seu nome) dos
proprietários que indicavam posse. A utilização de monogramas remonta ao período do
império em que muitas famílias aristocráticas, que possuíam títulos nobiliárquicos,
faziam questão de grifar seus brasões nos utensílios do jantar. Com o passar do século
XIX esse costume tornou-se versátil e foi apropriado pelas famílias abastadas. Podemos
perceber essas marcas nas louças e talheres do escritor Juvenal Galeno:

165
Aqui nos referimos que a simples utilização de um talher, ao invés de comer com a mão, já
demonstrava civilização. Se esse fosse de prata, cerâmica ou vidro diferenciava ainda mais. Entendemos
que quando utilizamos objetos de prata, cerâmica e vidro como marcadores de civilização, além do valor
financeiro desses, também estamos colocando a questão higiênica. Já que as normas médicas (que
estavam lado a lado com as normas de civilização) do período asseguravam que objetos de barro ou
estanho nunca se livravam da sujeira.
166
Essas em sua maioria eram destinadas aos criados ou as famílias pobres da região.
131

(Figura 36: Faqueiro de prata com o dístico “M.C.T.S”)167

167
Fonte: Catálogo de objetos da Casa Juvenal Galeno. Documento produzido recentemente pelo atual
diretor da casa Juvenal Galeno, o Sr. Antônio Galeno, o qual ele denomina de inventário. Porém, trata-se
de uma espécie de catálogo de todos os objetos que constam na Casa Juvenal Galeno.
132

(Figura 37: Conjunto de louças de porcelana. Louças com dístico “M.C.T.S”)168

O faqueiro e o conjunto de louças que pertenceram a Juvenal Galeno


possuíam os seguintes dísticos: “M.C.T.S”. Essas letras representavam as quatros
iniciais do nome da mãe do poeta que era: Maria do Carmo Theóphilo e Silva. As
louças e os talheres antes de serem do escritor pertenciam a sua mãe e ela deixou de
herança para ele. Notamos a colocação de objetos de porcelana e prata com patrimônios
e heranças. Artefatos que tinham a necessidade de serem marcados para indicar posse e
de serem perpetuados pelas próximas gerações da família.

Ao analisar os talhares utilizados pelas famílias, conseguimos perceber um


modelo de civilização que atravessou o atlântico através dos manuais de etiquetas. É
fácil notar que as famílias da capital cearense já tinham o costume de utilizar diversos
talheres nas refeições ao longo do dia. E que para eles o fato de observar pessoas usando
apenas as mãos para comerem lhes causava repugnância.

168
Idem.
133

No ocidente, o processo civilizador representado através do uso dos talheres


durante a refeição aconteceu de maneira gradual. Entre os períodos da Idade Média,
Moderna e Contemporânea169 as mudanças foram as seguintes: nos primeiros tempos as
pessoas utilizavam apenas as mãos para ingerir os alimentos (sem nenhuma regra
estabelecida)170, num segundo momento as regras exigiam a utilização do guardanapo e
num período mais recente passou a existir a necessidade da utilização de talheres. E se
durante a Idade Média e o início da Moderna as pessoas utilizavam pratos e talheres de
maneira coletiva, durante a transição do antigo regime para a Idade Contemporânea isso
foi modificado:

Ate mesmo as formas dos utensílios da mesa - pratos, travessas, faca, garfos
e colheres - dai em diante nada mais fazem do que variar temas do século
XVIII e precedentes. Por certo ha ainda muitas mudanças em detalhes. Um
exemplo e a diferenciação dos utensílios. Em muitas ocasiões, não só os
pratos são trocados depois de cada tipo de comida, mas também os utensílios.
Já não basta comer apenas com a faca, garfo e colher, em vez de se usarem as
mãos. Cada vez mais na classe alta, um implemento especial e usado para
cada tipo de comida. Colheres de sopa, facas de peixe e facas de carne são
postas em um dos lados do prato. Garfos para horas d'oeuvre, peixe e carne,
no outro. Do ludo oposto ao conviva ficam o garfo, a colher ou a faca -
segundo o costume do país - para os doces. E para as sobremesas e frotas
outros implementos são trazidos. Todos esses utensílios tem forma e funções
diferentes. São ora maiores, Ora menores, quando não mais redondos ou mais
pontudos. Mas, examinando-se bem, nota-se que na realidade não
representam nada de novo. Eles, também, são variações do mesmo tema,
diferenciações dentro do mesmo padrão. E só em alguns pontos - acima de
tudo, no uso da faca - começam a aparecer inovações lentas que transcendem
o padrão já adotado. Mais tarde teremos algo a dizer sobre isto (ELIAS,
1994, p. 114).

Notamos que com o passar do tempo também são estabelecidas regras de


etiquetas para utilização dos talheres e utensílios. Os dois objetos não podiam mais ser
usados de maneira coletiva, mas sim individual. E também nascera uma especificidade
desses, pois era determinado o tipo de alimento ou refeição que poderia ser utilizado
determinado prato e talher (uma dúzia de colheres de sopa novas, vinte uma colheres de
sopa velhas, duas colheres para tirar sopa, duas colheres grandes para tirar arroz, uma
concha para açúcar, onze colheres para chá).

169
“..em primeiro lugar, a fase medieval, com certo clímax no f1orescimento da sociedade feudal e
cortes, assinalada pelo hábito de comer com as mãos. Em seguida, uma fase de movimento e mudança
relativamente rápidos, abrangendo aproximadamente os séculos XVI, XVII e XVIII, na qual a compulsão
para uma conduta refinada a mesa pressiona constantemente na mesma direção, na de urn novo padrão de
maneiras a mesa.” (ELIAS, 1994, p. 114)
170
Mesmo ainda utilizando a mão para pegar os alimentos começou a surgir regras de como se deve
utiliza-la. Se no início poderia utilizar todos os dedos para a obtenção da comida, depois o ideal era
utilizar apenas o polegar e o indicador (ELIAS, 1994).
134

Em Fortaleza, durante o século XIX, ocorria uma modificação gradual dos


hábitos a mesa. No início do século apenas famílias aristocráticas faziam o uso de
talheres e pratos, mas a partir de 1860 com o crescimento econômico da região mais
famílias (ainda do ciclo das elites) passaram a utilizar colheres, garfos, facas, travessas,
salvas e louças, seguindo os padrões de etiquetas do velho mundo. Nas três últimas
décadas do período, segundo as fontes levantadas, uma maior parte da população já
fazia o uso de talheres e pratos em seus jantares, mesmo que esses objetos fossem
fabricados com barro e estanho.

Entendemos que quanto melhor fossem as condições financeiras das famílias


mais elas seguiam os códigos de etiquetas colocados pela cultura do capitalismo. Nos
inventários analisados a presença de pratas e louças, com funções específicas nas
refeições, era mais encontrada em proprietários doutores, escritores, políticos e barões:

LOUÇA E VIDROS

Declarou o inventariante haver ficado em um casal digo ficado por morte de


seu pai um aparelho de porcellana dourado para jantar constando de dez
dusias de pratos, seis ditos cobertos, seis ditos travessas, avaliado tudo por
quarenta mil reis, que vai a margem 40:000. Declarou mais haver ficado um
aparelho de porcellana dourado para chá, constando de vinte e quatro casais
de chicaras e jarros, tijella, prato, dois bules, uma manteigueira e uma
leiteira, avaliado por dez mil reis, que vai fora 10:000. Declarou mais haver
ficado duas fructeiras de vdro avaliados por dois mil reis que vai a margem
2:000. Declarou mais haver ficado quatro pratos de vidro para queijo
avaliados por quatro mil reis que vai fora 4:000. Declarou mais haver ficado
diversas peças de louça e vidros de uso, que forão avaliadas todos por dez mil
reis, que vai fora 10:000.171

Nesse inventário do Barão de Santo Amaro podemos perceber aparelho de


porcelana para jantar (com pratos e travessas), aparelho de porcelana para chá (com
xícaras, jarros, tigelas, pratos, bules, manteigueira, e leiteira), fruteiras de vidro e pratos
de vidros para queijos. Objetos específicos para o uso do jantar, para o ritual do chá,
para colocar a manteiga, o leite, as frutas e para o queijo. Essa individualização e
especialização dos talheres, utensílios e pratos aconteceram devido as questões
higiênicas172 e também morais173.

171
Arquivo Público do Ceará, COF. Inventário do Barão de Santo Amaro, Fortaleza, 1884.
172
O fato de cada pessoa utilizar um talher, de utilizar uma colher ou concha especifica em cada refeição
da mesa representava o medo de doenças contagiosas.
173
A questão de utilizar talheres ao invés de comer com as mãos além de representar as preocupações
com questões de saúde também mostrava a repugnância que a sociedade passou a ter ao ver pessoas com
hábitos taxados de selvagens.
135

No compartimento da residência destinado ao jantar, além notarmos a


utilização inúmeras louças, utensílios e talheres, também podemos observar a presença
de mobílias. Analisando os inventários, as obras literárias e os periódicos conseguimos
identificar os seguintes móveis da sala de jantar: mesa elástica de jantar174, consolos175
(Figura 18), jarros (Figura 19), relógios, cadeiras de guarnição, guarda louça176 e
armários de vidro.

(Figura 38: Mesa aparadora de madeira com tampa de mármore. Medidas: 89x105x44cm) 177

174
Essa poderia ser simples, grande com gaveta ou com molas.
175
Objeto que estava situado tanto na sala de jantar como na sala de visita. Ele servia para ser posto jarros
em cima ou qualquer outro objeto que transmitisse o status dos anfitriões.
176
Também chamado de aparadores ou étagere.
177
Fonte: Catálogo de objetos da Casa Juvenal Galeno. Documento produzido recentemente pelo atual
diretor da casa Juvenal Galeno, o Sr. Antônio Galeno, o qual ele denomina de inventário. Porém, trata-se
de uma espécie de catálogo de todos os objetos que constam na Casa Juvenal Galeno.
136

(Figura 39: jarro de porcelana inglesa de 1887. Medidas: 34x12x12cm.) 178

(Figura 40: aparador de madeira com tampo de mármore. Espelho e portas com vidro. Divisórios em
madeira e vidro. Medidas: 190x116x156cm) 179

O guarda louça estava para sala de jantar como o piano para a sala de visita.
Era um objeto obrigatório nesse compartimento da casa. Nele eram guardados e
expostos os cristais, porcelanas, aparelhos de prata que os anfitriões utilizavam no

178
Idem.
179
Idem.
137

jantar. A exposição dos objetos valiosos no étagere evidenciavam a vontade dos


proprietários em mostrarem a sua personalidade e seu poder econômico.

A cristaleira pertencente ao Juvenal Galeno (figura 40) era localizada em sua


sala de jantar exibindo seus talheres e pratos debatidos anteriormente no texto. O
aparador de louça era um objeto que apenas as famílias abastadas poderiam obter, pois o
seu valor era relativamente caro e só adquiria esse artefato quem realmente possuísse
um suntuoso aparelho de jantar de porcelana ou prata para ser exibido.

O guarda louça surgiu com o intuito de armazenar louça. No geral eram peças
grandes de madeiras, sem vidros, nada elegante e que ocupavam a maior parte do
cômodo (uma espécie de baú ou cômoda). Com o objetivo de elaborar um móvel mais
elegante que guardasse as pratarias, louças e cristais e que ao mesmo tempo também
deixassem expostos esses objetos, acabaram criando o bufê (DEJEAN, 2012).
Entendemos que a sala de jantar com seus objetos estabeleciam regras,
hábitos, costumes que refletiam a inserção das famílias abastadas de Fortaleza no
Processo Civilizador Capitalista. Artefatos como os aparelhos de jantar, o guarda louça
e a mesa concretizavam muito bem as diferenças sócias estabelecidas. Assim como os
inventários e os objetos museológicos nos mostram isso, as descrições literárias também
fazem esse papel:

Dos extremos do cano meio descido, paralelo à toalha, sobre o serviço de


chá, os dois bicos de gás, nas mangas de vidro em forma de meio globo,
clareavam suficientemente, sobretudo à calva do desembargador, à direita
dos bigodes do Visconde que honrava a cabeceira da mesa. O pente de
tartaruga marchetado e duas pastas grisalhas, o riso e parlapatice ocasional,
não punham dúvida de que à esquerda assentava Fabiana. Um reflexo
doloroso na fala, uma sombra, uma colateral melodia como se com os sons
primordiais marchassem harmonicamente outros sons, davam a entender
Maria das Dores, a morena, ao lado da Fabiana. Fronteiros a ela, o
Cunegundes, redator de A Oportunidade, e mais o Major Secundino,
comerciante, barbaçudo e circunspecto. Antônia acoitava-se vizinho à Maria,
e era um pedaço de latão arejado junto a uma obra de lei.
O Lucas seguia-se a Antônia, e chamava-lhe sempre Antonina, à maneira dos
portugueses.
Parecia um repasto de luxo, a notar pelo bule de prata. Havia bolos, pão-de-
ló, vários queijos, torradas, carnes frias, pastéis. A manteigueira, o
açucareiro, e a fruteira do centro, de grande custo. É que ali andou mão de
Maria das Dores.Pela primeira vez, esta coadunou-se com a mãe. O diabo
entrou-lhe. Tomou uma tal aversão pelo primo, com a simples idéia de que
ele a enganava, que o sangue materno, como os cururus da beira da lagoa,
entrou a berrar-lhe naquela noite do sentimento. Resolveu conquistar o
Visconde. Este fidalgo estava caidinho pela Antônia, e por isso, olhava, ria e
falava para o lado delas, e a Maria tomava que isso era consigo, pois um
138

Visconde não ia lá se ocupar deveras com a filha do cego João de Paula


(PAIVA, 1961, p. S/N).180
.

E seguiu apressadamente para a sala. Daí a pouco, entretanto, Maria voltou


de novo à sala de jantar, e desta vez abriu o guarda-louça demorando-se a
procurar, certamente, o que não guardara. Aquilo era instintivo. De repente,
rolou em cima uma taça de porcelana, e os pedacinhos espalharam-se no
tijolo. A Fabiana acudiu imediatamente lá de dentro, como bom rondante ao
apito, ao baque demorado e sonoro (PAIVA, 1961, p. S/N).181.

O Desembargador conduzia para dentro uns figurões, a tomarem alguma


coisa. A sala de jantar estava preparadinha para banquete, atravessada de um
lado a outro pelo corpo da mesa, posta e profusamente servida. O Lucas
tomara conta das bebidas, muito solícito, fazendo a Ângela, que viera
expressamente por amor da sua antiga sinhá-moça Bem-Bem, sair de um a
um com a bandeja de copos, ou com a licoreira de prata (PAIVA, 1961, p.
S/N).182.

Com essas três citações colocada da obra “A Afilhada” podemos concluir de


fato quais eram os objetos que estavam presentes na sala de jantar e quais eram suas
relações com as pessoas. Notamos uma mesa longa com varias cadeiras e bastante
decorada com objetos do jantar (diversos determinando a individualização, moralidade e
higiene exigida pelo processo civilizador capitalista) e toalhas para cobrir a mesma
(mostrando a ocultação e ornamentação do que não fosse considerado civilizado). O
assento com braços, estofado e posicionado na cabeceira da mesa destinado ao chefe da
família (e no seu lado esquerdo sua esposa) reflete as diferenciações entre os gêneros e
o poder exercido pelo patriarca. E o guarda louça envaidecendo a riqueza do anfitrião e
confirmando a sua inserção na civilização mundial.
Os quartos e alcovas, diferente das salas estudadas anteriormente, eram
cômodos destinados à privacidade. Nesses compartimentos, só era permitida a entrada
dos próprios moradores ou de seus escravos. Os objetos que estavam presentes nesses
aposentos eram: cama (em sua maioria francesa), cômodas, guarda-roupas, guarda-
vestidos, baús, redes, cadeiras, toucador, penteadeira, lavatório, escarradeira, oratórios e
jarros e bacias para o toilete.

180
As referências da obra A afilhada foram retiradas de um acervo digital. Disponível:
http://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?id=143033; acessado em 13/07/2017 as 08:21.
181
As referências da obra A afilhada foram retiradas de um acervo digital. Disponível:
http://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?id=143033; acessado em 13/07/2017 as 08:21.
182
As referências da obra A afilhada foram retiradas de um acervo digital. Disponível:
http://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?id=143033; acessado em 13/07/2017 as 08:21.
139

Os dormitórios eram o centro da vida privada, local de intimidade levantado


com o objetivo de ser um isolamento (reclusão) dentro da própria residência. Entre os
membros da família proprietária os que possuíam o direito de aposentos exclusivos
eram apenas o casal, dono da casa, e a filha quando se tornava adolescente. Crianças
eram instaladas em qualquer ambiente da casa, pois não possuíam um ambiente
específico183. E os aposentos dos fundos, próximo a cozinha e no quintal, eram
destinados aos criados que dormiam nesse ambiente de maneira coletiva.
O aposento de dormir talvez seja o principal símbolo da inserção das famílias
no processo civilizador capitalista, pois a sua história no ocidente é marcada por uma
transição do aspecto público para o privado184. Nos primeiros séculos da Idade Moderna
as pessoas dormiam em ambientes abertos a todos que frequentavam ou moravam na
casa (para ser ter uma ideia, a cama não ficava fixada em nenhum cômodo da
residência). Já entre os séculos XVIII e XIX (principalmente nas cidades europeias) o
hábito de dormir torna-se algo privado e cria-se a necessidade da construção de um
cômodo especifico para essa reclusão (DEJEAN, 2012).
Individualismo, reclusão, conforto e privacidade são as principais características
do quarto de dormir moderno. Com o transcorrer da história do ocidente as pessoas
começaram a não desejar mais passar vinte quatro horas vivendo em um aspecto
cerimonial. Em oposição a um espaço que sempre estava destinado as cerimônias, ao
público, a vida “teatral”, ao autocontrole e policiamento constante surge o quarto de
dormir. Espaço aconchegante, íntimo, privado e que garantisse uma boa noite de sono.
Nas habitações modernas o quarto obteve um local considerável na residência.
Um ambiente que foi cada vez mais especializado, individualizado e privatizado. No seu
sentido intimo o dormitório moderno foi criado pela cortesia burguesa, sobretudo pela
elite francesa que estabeleceu o chambre à coucher como espaço destinado ao sono e
também como mais um compartimento que refletisse o caráter e os costumes dos
anfitriões (PERROT, 2011).
A privacidade do quarto também estava relacionada com o pudor estabelecido
pelo cristianismo. Entre os motivos levantados anteriormente que levaram a construção

183
A noção de infância zelada e protegida idêntica a que temos hoje ainda não tinha sido concretizada no
final do século XIX (pelo menos no Ceará). A criança ainda era tratada com um adulto em miniatura.
Esse sentimento em relação a criança só vai ser completamente modificado no início do século XX
devido as intervenções médicas e higienistas (BITTENCOURT, 2013).
184
Aqui entendemos o individualismo como uma as principais características do processo civilizador
capitalista ocidental. A prática da individualização é mais presente e forte no ocidente do que nas nações
orientais (PERROT, 2011).
140

de um ambiente reservado (conforto, privacidade, individualismo etc.), também


podemos inserir o desejo de esconder o exercício da sexualidade. A visão cristã do sexo,
aliada com a moral e a higiene, exigiu cada vez mais um ambiente destinado as relações
sexuais185. O casamento moderno, constituído pelo amor burguês, já estava gerando
pares que se juntavam numa relação de amor e aliança política financeira. Se antes os
donos da residência dormiam em quartos separados, agora (com uma sexualidade
melhor compartilhada) requeria-se um local para dois (o quarto conjugal).
O quarto individual da jovem da casa era bem mais controlado, pelos
princípios cristãos e morais da sociedade oitocentista, do que os demais ambientes. A
igreja aliada com médicos criaram o discurso de uma senhorita que poderia sempre estar
sendo atormentada por seus impulsos sexuais e amorosos. A partir disso tem-se a
necessidade de um compartimento intimo que fosse ao mesmo tempo claustral e
protetor. É nesse ambiente que a senhorita passava a maior parte de sua vida, guardava
seus pertences e refletia sobre seus desejos. Uma pessoa de fora nunca deveria entrar no
quarto da senhorita sem permissão, quem dirá sentar-se na cama da mesma (ato
considerado indecente para a época). Assim, identificamos esse cômodo como um local
repleto de religiosidade, moral e isolado como um tabernáculo (muitos chegando a não
ter nem mesmo janelas como as alcovas).
A privacidade estabelecida no quarto pode ser percebida inclusive nos objetos
que faziam parte desse espaço. A cama é o principal móvel que encontramos presente
nesse compartimento. Aliás, é esse artefato domestico que determina que aquele espaço
da residência seja o dormitório. O leito, mesmo quando ainda não estava situado numa
parte específica do lar, já determinava a intimidade do proprietário. Quando esse objeto
se fixou nem um local específico para o sono marcou o progresso da privacidade. A
cama também surge da repulsa das pessoas pelas emanações das outras. O coletivo,
cada vez mais, perde espaço para o individual na sociedade moderna.
O leito individual reflete a vontade da individualização e privacidade da
sociedade do século XIX. Devido a questões morais, religiosas e higiênicas (suporte
essenciais do processo civilizador) surgiu a necessidade da criação de um objeto que
garantisse o repouso isolado das demais pessoas. O leito garantiria a privação das
relações sexuais respeitando as exigências cristãs. E também amenizaria as infecções de

185
Aqui podemos notar a cultura cristã como um dos principais pilares do Processo Civilizador
Capitalista.
141

doenças que aconteciam por contágio quando muitas pessoas dormiam no mesmo
espaço.
As camas mais utilizadas pela população eram as que possuíam apenas uma
cabeceira, essas eram chamadas de camas francesas. Por serem “leve, móvel, mais
barata, facilmente transportável, de fácil acomodação por ter ângulos retos, estrado
metálico e material simples” (PERROT, 2011, p. 74) elas eram consumidas pela maior
parte das famílias. Analisando os inventários das famílias de Fortaleza podemos
identificar o consumo de algumas:

Uma cama francesa de angico avaliada por cinqüenta mil reis que sai a
margem 50:000.
Um lavatório= toilet, de magno com pedra de mármore avaliada por cento e
vinte mil reis, que vai fora 120:000.
Uma meia commoda de jedro usada por dez mil reis que vai a margem
10:000.
Um guarda-vestido de amarillo avaliado por trinta mil reis que vai a margem
30:000.
Um guarda-roupa de angico para homem avaliado por vinte e cinco mil reis
que vai a margem 25:000.186

Os objetos descritos acima pertenciam ao filho e a nora do Barão de Santo


Amaro. Notamos que as camas francesas estavam presentes principalmente nas famílias
que estavam inseridas na elite local. Nos documentos analisados a presença desse objeto
pouco apareceu e quando identificarmos foi em domicílios de pessoas que eram
escritores, doutores, coronéis, comerciantes ou que ainda possuíam títulos
nobiliárquicos. Na região cearense (especialmente as pessoas menos abastadas) é
notória a preferência pela utilização da rede, pois era um objeto barato que possuía
diversas funções. 187
Guarda-roupas, guarda-vestidos, cômodas e baús estavam presentes nos
dormitórios com o objetivo de armazenamento. Os últimos tinham predominância
quando ainda não existia o consumo de guarda-roupas, guarda louças, cristaleiras e
armários. Eram muito utilizados devido a sua fácil locomoção (excelente em um
período em que as famílias não se fixavam). Mas, mesmo assim, a preferência era pelos
que possuíam maiores dimensões, pois assim os proprietários conseguiriam colocar as

186
Arquivo Público do Ceará, COF. Inventário de Antônio Nunes Teixeira de Mello e Maria Firmina
Teixeira de Mello, Fortaleza, 1882.
187
Nos inventários dificilmente eram descritas as redes, pois nesse tipo de documento os inventariantes se
preocupavam apenas com artefatos valiosos. É importante salientar aqui que muitas pessoas também
costumavam dormir nas marquesas ou canapés.
142

roupas sem a necessidade de serem dobradas ou uma maior quantidade louças, cristais e
documentos (DEJEAN, 2012).
A cômoda surge como uma espécie de baú com gavetas. Esse objeto era
sinônimo de conveniência, pois graças a sua invenção foi possível a organização das
coisas em categorias, cada qual em uma gaveta. Esse pequeno adereço, que distinguia a
cômoda do baú, fez com que as pessoas não tivessem mais a necessidade de tirar tudo (e
depois colocar tudo) quando se procurava uma roupa, louça ou documento que estava
no fundo do baú. Posteriormente, com o surgimento do guarda-louça e dos armários, a
cômoda restringiu a sua função apenas no armazenamento de roupas (DEJEAN, 2012).
Podemos notar uma linha cronológica entre o baú, cômoda, guarda-roupas,
armários e guarda louças. O primeiro é como se fosse a origem de todos os demais
citados. A medida que as cidades cresceram financeiramente, as famílias da elite
passaram a consumir mais produtos, esses por sua vez passaram a exigir outros objetos.
Em Fortaleza, a partir da década de 1860, podemos notar o aumento do consumo de
louças, roupas e livros. Foi a compra desses produtos ligados aos padrões culturais do
processo civilizador que fez com que apenas um simples baú não suportasse mais tantas
mercadorias diversificadas. Então, foi necessária a consumação de um objeto especifico
para a louça188, um para os livros e outro para as roupas189.
.Sem a necessidade de locomoção constante e com o surgimento de um espaço
especifico para a intimidade tem-se a necessidade de objetos maiores e luxuosos para o
armazenamento dos pertences. Guarda-roupas com dimensões que iam do chão ao teto
começaram a serem fabricados e utilizados pelas famílias abastadas do período (quando
esse não suportava tudo se utilizavam também as cômodas).190
No guarda-vestidos191 notamos a especificação de sua utilização, pois
começamos a ver objetos de armazenamentos destinados exclusivamente para vestidos
ou roupas femininas. Ainda tendo como base o inventário do filho do Barão de Santo
188
Em relação ao guarda-louça entendemos que era preferível colocar os objetos valiosos (como cristais,
porcelanas, talheres e louças) em um artefato que armazenasse e ao mesmo tempo deixasse exposto para
os demais convidados vessem o poder aquisitivo de determinada família.
189
O próprio crescimento da indústria da moda produzindo cada vez mais roupas e adereços fez
necessário que toda família tivessem um móvel muito maior e especifico para o armazenamento das
vestimentas.
190
Nas famílias bastadas, durante o período estudado, já se faziam o consumo de guarda roupas, como por
exemplo, no inventário do Dr. José Lourenço que tem a descrição de quatro guarda-roupas (SILVA
FILHO, 2007).
191
Nas famílias pobres as roupas eram guardadas nos baús ou ficavam suspendidas em uma corda
(SILVA FILHO, 2007).
143

Amaro podemos identificar um guarda-vestidos e um guarda-roupa exclusivo para


homem. Refletindo sobre esses dois móveis notamos a utilização desses como
elementos de distinção de gênero.
Outro objeto que estava presente em um quarto, e também tinha como marca a
divisão entre gêneros, era a penteadeira ou toucador. Móvel essencialmente feminino e
inventado simultaneamente com o quarto de dormir privado. Essa mobília, assim como
a cama, exibe a modificação da noção de intimidade durante a modernidade. Se antes do
século XIX (especificamente no Brasil) as mulheres se arrumavam (pentear, colocar
joias e se maquiar) em qualquer espaço da casa, durante esse século surgiu tanto o
espaço apropriado como também o artefato doméstico especifico.
Era na penteadeira que a mulher se arrumava antes de sair do seu quarto no
raiar do dia. Nas gavetas do toucador que era guardado os acessórios de beleza, vidros
de perfumes, escovas, frascos, jarras, bacias e saboneteiras. Esses três últimos podem
ser identificados entre os pertences de Juvenal Galeno:
144

(Figura 41 - Jarra, bacia e saboneteira de louça alemã. Conjunto Franzant Mehlem-


Germany)192

Na casa de Juvenal Galeno identificamos quatro unidades desse conjunto


alemão que provavelmente estariam localizadas em diferentes espaços da residência,
como quartos e sala de jantar. Esses artefatos eram bastante necessários numa
sociedade que ainda não possuía sistema de encanamento. Notamos que um dos motivos
que levaram a sociedade a modificar seus comportamentos foi a questão higiênica.
Analisando essas louças de fabricação alemã notamos que sua utilização significava
muito mais do que uma função higiênica, pois esses objetos possuíam função simbólica
que representava status e pertencimento a um circulo social restrito. Assim como
Norbert Elias também pensamos que as modificações comportamentais não foram
motivadas apenas por motivos higiênicos, mas também por questões sociais de
distinções (ELIAS, 1994).

O último cômodo a ser trabalhado é a cozinha. Esse compartimento estava nos


fundos da residência e constantemente encontrava-se separado do lar inserido no
quintal. Era o espaço destinado a preparação dos alimentos. Geralmente era um local
que possuía dois metros por três. Nele estavam sempre presente mesas longas
destinadas a manufaturas dos alimentos e um pote contendo água para os moradores
beberem. Outro objeto obrigatoriamente encontrado era o fogão de chapa, esse era
fabricado de maneira artesanal, possuía quatro bocas, era colocado em cima da
construção de alvenaria (cerca de um metro) e produzia calor através das lenhas
(CAMPOS, 2007).

Outros objetos presentes nesse ambiente de cozer eram: panelas (de ferro e
argila), tachos, caçarolas, frigideiras penduradas em pregos, grelhas feitas de folhas de
flandres (ferro estanhado ou esmaltado), tabuleiro para aquecer ovos, armários de
parede, vasilhas ( de ágata e alumínio), pilão, colheres de pau, potes (tanto com água
para o consumo como para a limpeza dos pratos), funil para encher linguiças, moinhos
para café, facas para descascar e tornear batatas, fôrmas para cortar raízes e massas,

192
Fonte: Catálogo de objetos da Casa Juvenal Galeno. Documento produzido recentemente pelo atual
diretor da casa Juvenal Galeno, o Sr. Antônio Galeno, o qual ele denomina de inventário. Porém, trata-se
de uma espécie de catálogo de todos os objetos que constam na Casa Juvenal Galeno.
145

seringas para massas, espremedeira de limões, filtro etc (CAMPOS, 2007). Notamos
que era uma grande quantidade de objetos existente na cozinha e que todos eram
destinados a produção das refeições e que possuíam origens regionais rurais.

Na província cearense, durante o final do século XIX, a produção alimentícia


ainda era realizada dentro das residências. Com o objetivo de separar um local
especifico para a preparação das comidas foi estabelecida a cozinha, que era localizada
no quintal das casas. Se antes o animal era colocado por inteiro na mesa de jantar e só
ali seria trinchado, no período em foco a carne já chega à mesa trinchada. A separação
que acontece é a de colocar a cozinha como local de produção e a sala de jantar como
ambiente de consumo.

A modificação dos hábitos e costumes que seriam destinados à mesa e dos que
estariam direcionados a cozinha aconteceram em todo o ocidente e tiveram os mesmos
motivos:

O fato de desaparecer gradualmente o costume de colocar na mesa grandes


pedaços de animal para serem trinchados liga-se a muitos fatores. Um dos
mais importantes talvez seja a redução gradual do tamanho da unidade
familiar, como parte do movimento de famílias mais numerosas para famílias
menores; em seguida, ocorre a transferência de atividades de produção e
processamento, como fiação, tecelagem e abate de animais, da casa para
especialistas, artesãos, mercadores e fabricantes, que as desempenham
profissionalmente enquanto a família torna-se basicamente uma unidade de
consumo (ELIAS, 1994. p. 127).

Segundo Elias, as transformações que ocorreram nos costumes à mesa no


ocidente aconteceram de forma gradual e por motivos morais e higiênicos. A primeira
razão de não se encontrar mais o animal inteiro nos jantares deve-se ao surgimento da
família nuclear (composição de família bem menor que a dos séculos anteriores). A
segunda é a necessidade de separação da produção do consumo, já que nos países
europeus trabalhados por Elias (durante o século XIX) a criação de animais e seu abate
não aconteciam em residências domesticas, mas sim em comércios especializados. O
último motivo faz referência as questões psicológicas, pois o autor acredita que as
mudanças sociais geraram modificações nas mentalidades fazendo com que o hábito de
servir ou cortar um animal inteiro no jantar na frente dos anfitriões causasse
repugnância social.

Diferente das cidades europeias, em Fortaleza a produção dos alimentos ainda


era realizada em muitas habitações (mesmo nas mais abastadas). No final do século
146

XIX, ainda não se tinha uma separação totalmente determinada entre produção e
consumo, essa só começou a se concretizar no século XX193. Embora pudéssemos ver
alguns anúncios de jornais divulgando a venda de carnes em comércios específicos
ainda era muito comum a criação194 e o abate de animais sendo realizadas em muitas
residências domésticas: “O galinheiro era situado em seguida à puxada, cujo último
compartimento era a cozinha” (PAIVA, 1961, p. S/N)195. Além da domesticação de
animais, a parte dos fundos da casa também era destinada a plantações de frutas e
verduras que eram vendidas nas ruas da cidade:
As cinco horas da manhã o tio Raimundo já está de pé. Dorme ao fundo do
quintal, em um casinholo de palha, sob o tamarindeiro. Levanta-se, desarma a
rede, faz o pelo-sinal, de pé, na porta da cabana, olhando para o lado do
Nascente, e resmunga a sua oração à Senhora do Rosário. Toma o seu gole de
cana, e sai a colher as verduras para a venda do dia. Prepara tudo muito bem,
os molhos de coentro, os mercados de couve, pimentas de cheiro, malaguetas
e outras, a hortelã, a alface, os tomates e os limões por modos que em
chegando, Mãe Zefa, de caminho, já com alguns produtos que apruma na
cabeça, não tem mais do que pegar mais esse contigente para o seu comércio,
e largar-se. A Dona Fabiana confia grandemente no tio Raimundo. Se há
bananas maduras, ou alguma outra fruta do quintal, que tudo ele
superintende, como sapoti, maracujá, groselha, romã, graviola, mamão e
mesmo goiaba, ele prepara o tabuleiro e manda o moleque Joaquim pela rua.
Um dia Angela foi empenhar-se com ele para sair também com um tabuleiro,
e levou umas cipoadas. Taciturno e severo, sempre do voto da senhora, só
achava bom aquilo que ela achava, embora fosse ruim (PAIVA, 1961, p.
S/N)196.

Através dessa passagem da obra podemos notar o escravo Raimundo


colhendo frutas do quintal da casa de sua patroa Dona Fabiana para vender nas ruas de
Fortaleza. A partir dessa ficção conseguimos estabelecer uma relação com os reais
costumes da camada social abastada da capital cearense durante a segunda metade do
século XIX. Entrelaçando os códigos de posturas já trabalhados na pesquisa com essa
passagem literária exposta acima podemos chegar a conclusão que na capital
fortalezense até mesmo boa parte da elite utilizava o quintal e a cozinha para a

193
Diferente das cidades europeias a separação entre produção e consumo que ocorria em Fortaleza ainda
era dentro das próprias residências. Ou seja, cozinha e quintal como lugar de produção e sala de jantar
como local de consumo.
194
Embora os códigos de postura fortalezenses de 1860, 1870 e 1879 proibissem esses hábitos
considerados rurais (CAMPOS, 1988). Para o governo da capital cearense o conceito de civilização era
justamente o oposto de práticas rurais.
195
As referências da obra A afilhada foram retiradas de um acervo digital. Disponível:
http://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?id=143033; acessado em 13/07/2017 as 08:21.
196
As referências da obra A afilhada foram retiradas de um acervo digital. Disponível:
http://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?id=143033; acessado em 13/07/2017 as 08:21.
147

produção, criação e plantação. E os alimentos produzidos nesse espaço eram tantos


consumidos pela própria família como também comercializados nas feiras citadinas.

Na mesma citação colocada anteriormente também é descrita as condições de


moradia dos criados. Esses ocupam um compartimento separado da casa revestido de
palha e pedaços de árvores. Dormem em palhas, redes ou no próprio chão de terra. A
segregação entre patrão e criados além de acontecer através das condições de liberdade,
de vestimentas, das condições financeiras, da alimentação, também ocorriam a partir da
arquitetura e objetos dos espaços residenciais:

... e transfigurava-se aquela camarinha imunda, em fantasiosos comparti-


mentos do Purgatório. A corda de roupa, que lhes era o guarda-vestidos; as
redes amarelentas entrouxadas entre os cordões do punho do armador; o vão
do telhado, fusco pelas fumaradas do fogão vizinho; o tijolo catingoso do
mijo dos molecotes; o bodum que recendia com um enjôo de panos abafados:
a triste indecência daquelas mulheres sem direito de amar; os cafundós de sob
o vasto leito de couro cru; os velhos trastes imprestáveis que os senhores
botavam pr'aí; desaparecia tudo na integra da impressão auricular. Duas
velinhas de vintém, pregadas no tampo das malas, alumiavam parcamente a
caixa de cedro, feita pelo cabra Teodoro, suspensa na parede forrada,
apinhada de santos, entre os quais pompeava o S. Benedito de beiço
vermelho e grandes olhos limpos, com um resplendor de níquel. E Antônia,
estirada na cama de couro, de vestido preto, com a sua tez, cujas imperfeições
apagavam-se na penumbra, e aqueles cabelos dourados, estava mesmo uma
pintura. Entrasse ali agora o Afrodísio! Aquele para quem ela se sentia de
todo inclinada! Sonhava desposá-lo (PAIVA, 1961, p. S/N)197.

Nesse outro trecho da obra A afilhada observamos as condições materiais do


compartimento residencial destinado aos criados. Local no quintal próximo a cozinha,
telhado fusco e paredes com odores da urina das crianças que realizavam suas
necessidades fisiológicas nos tijolos. E os objetos eram caixas de cedro, uma corda de
roupa para guardar os vestidos, redes e cama de couro. Então, reparamos que a distinção
entre patrões e criados também acontecia através dos locais da habitação destinados a
cada um como também a partir dos objetos utilizados pelos mesmos.198

Na segunda metade do século XIX (acreditamos que até a década de 1950) a


cozinha, mesmo nas casas das elites da capital cearense, não era um ambiente ligado

197
As referências da obra A afilhada foram retiradas de um acervo digital. Disponível:
http://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?id=143033; acessado em 13/07/2017 as 08:21.
198
A caracterização de uma arquitetura rústica e não higiênica dos cômodos destinados aos criados era
para reforçar a distinção entre esses e os patrões. Era através da cultura material que a elite tentava deixar
mais tangível a ideia de que os empregados, negros libertos e escravos eram inferiores e menos
civilizados.
148

com o luxo e o requinte. Enquanto encontrávamos essas características nas salas já


estudadas, na cozinha acontecia justamente o oposto. Comparado com os outros
cômodos da habitação sua área era muito inferior, a pintura dava um aspecto sombrio
(por mais que fosse pintada com cores claras que demonstravam limpeza, ela ficava
escura devido a fumaça que sai do fogão a lenha) e os objetos representavam apenas sua
função de produção (CAMPOS, 2007).

É bem verdade que não encontramos relatos sobre a constituição das cozinhas
do sobrado do Dr. José Lourenço e da casa de Juvenal Galeno. Em seus inventários não
tem descrição dos objetos que estavam presentes em suas cozinhas, até porque nesse
tipo de documento as pessoas costumavam relatar apenas os artefatos que
representavam valor econômico. Então, por falta de documentos, tentamos descrever
esse ambiente com seus objetos através dos estudos de memorialistas. Com isso,
podemos perceber a divisão civilizadora da casa, pois enquanto vemos todo o decoro da
sala de jantar e de visita, também notamos os atos produtivos no ambiente de cozer que
causavam repugnância as regras de etiqueta estabelecidas.

Então, nesse último capítulo sairmos de uma análise panorâmica das


residências e partimos para uma reflexão de duas habitações específicas. Relacionamos
os ciclos sociais de Juvenal Galeno e do Dr. José Lourenço com suas posições nas elites
da capital. Concluímos que os objetos também constroem a personalidade de seus
usuários, pois a história dos homens esta imbricada com os artefatos. Analisamos as
estruturas arquitetônicas dos dois lares e seus objetos. A partir dessas habitações
conseguimos entender as funções dos cômodos, dos objetos e o papel desses na inserção
da elite fortalezense no processo civilizador capitalista.

Portanto, o intuito desse capítulo foi apresentar a casa e seus objetos como
aspectos concretos da inserção da cidade de Fortaleza no processo civilizador.
Analisamos os compartimentos da casa e percebemos como o capitalismo e a influência
cultural europeia modificou as funções desses. Conseguimos perceber no final do século
XIX ambientes domésticos destinados a vida pública e outros a vida privada. Em
relação aos objetos presentes nas residências também foi possível refletir sobre as
transformações deles. Esses artefatos foram sendo modificados (ou surgindo novos)
com o intuito de transmitir conforto, suntuosidade, eternidade, status e higiene. Assim,
foi possível entender o cotidiano de Fortaleza através da cultura material da população.
149

5. CONCLUSÃO

Entre os séculos XVIII e XIX, no continente europeu, podemos notar o


desenvolvimento do capitalismo a partir da Revolução Industrial e do Imperialismo. Se
no primeiro acontecimento citado temos a consolidação desse sistema econômico, no
segundo podemos perceber a sua expansão. É durante o oitocentos que todo o processo
de produção capitalista é mercantilizado. Cada vez mais, os capitalistas tentam a
qualquer custo reduzirem os gastos com a produção para poderem lucrar mais. A
redução dos gastos com a fabricação dos produtos industrializados acabou afetando toda
a cadeia econômica, inclusive no mercado consumidor (ocorrendo uma diminuição no
consumo). Devido a isso a solução encontrada para sanar esse problema foi a expansão
do universo de compradores.

O objetivo estabelecido entre as principais potências econômicas europeias,


durante o século XIX, foi buscar incorporar novas regiões mundiais no processo
econômico do capitalismo. Com o aprimoramento das navegações, surgimento do navio
a vapor, invenção do telégrafo e construções de ferrovias foi possível a concretização do
objetivo de inserir as nações mais afastadas às zonas centrais.

No inicio do Imperialismo a inserção das outras regiões do mundo ocorreu


através da oferta de matérias-primas e mão de obra. Só depois, com a chegada de
estrangeiros (sobretudo europeus) nas regiões do continente americano, africano e
asiático, que essas regiões “periféricas” do capitalismo passaram a consumir os produtos
industrializados do velho mundo. Foram os agentes capitalistas responsáveis em criar a
necessidade do consumo das mercadorias europeias nessas outras regiões. Assim,
percebemos que foi necessária a vertente econômica e ideológico-cultural do
capitalismo para a sua expansão. Além de produzir mercadorias e realizar comércio,
também foi necessária a criação de várias necessidades.

Os agentes capitalistas, junto com os governos regionais, estabeleceram um


modelo de civilização. Esse tinha como padrão a Europa e foi “imposto” nas zonas
periféricas através das reformas sociais, urbanas e pelo consumo de mercadorias. A
urbanização e a higienização das cidades periféricas ocorreram com intuito de inserir
estas no processo civilizador capitalista.
150

O Brasil passou a ter suas relações comerciais, com as nações europeias,


intensificadas a partir de 1860. É nesse período que observamos a instalação de casas
comerciais estrangeiras (inglesas, francesas e alemãs) no país, essas se dedicavam a
importação de produtos europeus e exportação de matérias-primas. É nesse contexto
econômico que notamos a importância das capitais brasileiras que possuíam porto
marítimo e realizavam comércio direto com as principais nações europeias.

Fortaleza tornou-se centro econômico da província cearense em 1860. Nessa


segunda metade do século XIX ocorre um grande desenvolvimento econômico da
capital devido principalmente a sua produção algodoeira que era exportada para a
Inglaterra. É nesse período que visualizamos reformas no porto, alargamento das ruas,
construções de estradas de ferro, ordenamentos e surgimento de logradouros públicos,
iluminação á gás carbônico, construção de sobrados e instalação de várias firmas
comerciais estrangeiras.

Em 1860 já tínhamos cerca de 80 casas comerciais estrangeiras situadas na


capital cearense. Dessas a maior parte eram inglesas e francesas, as primeiras tinham
como objetivo principal a importação de produtos industrializados e manufaturados
enquanto as filiais francesas se dedicavam à entradas de artigos de luxo. Estes, por sua
vez, vão acabar influenciando muito na maneira de se vestir, de comer, de andar, de se
comportar à mesa, de receber uma visita em sua residência, de dormir, de cozinhar e de
beber.
Os objetos importados modificaram até mesmo a estrutura das casas. É nesse
período que começamos a observar residências compartimentadas com ambientes
específicos para determinadas funções. As salas destinadas a recepção e ao convívio
com o público visitante, os quartos ou alcovas com a função de garantir a privacidade
dos moradores e a cozinha e o quintal tinham a atribuição da produção das refeições
(também era o local das atividades que causavam repugnância quando realizadas em
público).
Pianos, canapés, consolos, guarda-louças, mesas ornamentadas, cadeiras
austríacas, espelhos grandes e candelabros eram objetos que mostravam as condições
financeiras, o status e a posição social do anfitrião. Eram como se fossem vitrines que
atraiam a atenção dos convidados e que também ditavam moda. Talheres, escarradeiras,
pratos com monogramas, porcelanas, pratas, louças e aparelhos de jantar exibiam a
151

civilidade de determinada família. E mostravam que os hábitos de comer com a mão, no


chão tinham acabado pelo menos para a elite.
Analisando os inventários e os objetos museológicos foi possível identificar
quais eram os objetos domésticos que estavam sendo utilizados pelas famílias da elite
de Fortaleza. E a partir da historiografia, dos diários dos viajantes e da literatura da
época conseguimos entender a importância desses objetos no cotidiano das famílias e
como esses eram utilizados como marcos civilizatórios. Foram nessas fontes que
observamos valores, tipos, materiais, origem, proprietários e conseguimos ver as
transformações da cidade a partir da cultura material.
Pode-se concluir a partir dessa pesquisa que é possível sim entender as
transformações sociais, econômicas, políticas e culturais da cidade de Fortaleza através
da cultura material. Nessa pesquisa compreendemos que os objetos domésticos não
possuem apenas valores funcionais, mas também distintivos e simbólicos na medida em
que conseguimos notar suas relações com as pessoas. E foi através dessa relação que
também pudemos identificar a inserção de Fortaleza no processo civilizador capitalista.
Será possível que através da utilização de um artefato doméstico poderíamos estudar
uma sociedade? Perceber a sua inserção no capitalismo? Que a partir da origem, da
produção, do consumo e de quem possuía essas mercadorias poderíamos entender o
processo civilizador capitalista em Fortaleza? Foram essas indagações que espero ter
respondido nessa pesquisa.
152

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FONTES

1. Instituições Pesquisadas:

- Biblioteca Púbica Governador Menezes Pimentel (Setor de Obras Raras) – Fortaleza


- Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC) – Fortaleza
- Casa de Juvenal Galeno – Fortaleza
- Museu do Ceará – Fortaleza

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4. Documentos Oficiais

- Códigos de Posturas dos anos de 1865, 1870 e 1879 (Biblioteca Pública Governador
Menezes Pimentel).
- Inventários Post-Mortem (1871-1893) do Cartório dos Órfãos de Fortaleza (Arquivo
Público do Ceará).
- Periódicos: O Cearense, Jornal do Ceará, Tribuna Comercial, O Diário, Jornal do
Comércio e Jornal Pedro II (Biblioteca Pública Governador Menezes Pimentel).
- Relatórios dos Presidentes da Província do Ceará (Biblioteca Pública Governador
Menezes Pimentel).

4. Catálogos e Relatórios

- Catálogo de objetos da Casa Juvenal Galeno


- Catálogo do Museu do Ceará. Museu do Ceará./ Associação dos Amigos do Museu do
Ceará (organização), Fortaleza: SECULT, 2010.
- Catálogo do Museu do Ceará. Museu do Ceará. São Paulo: Banco Safra, 2012.

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