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“Para os não nascidos”1:

a peça-suicídio de Sarah Kane

Lara Luiza Oliveira Amaral2

Resumo: Virginia Woolf escreve uma carta antes de ir em direção ao rio com os
bolsos cheios de pedras. Sylvia Plath anota o número do telefone de seu psiqui-
atra em cima da mesa próxima ao fogão. Sarah Kane escreve sua última peça
antes de retirar os cadarços para se enforcar. 4.48 Psychosis se torna uma es-
pécie de “bilhete suicida” deixado por Kane antes do seu ato final. Pretende-
mos, neste trabalho, analisar não somente a autoaniquilação, tema central da
peça, como também a sua relação com as teorias do pós-drama e a influência
do lirismo na escrita e a imersão na interioridade da personagem. Para tanto,
utilizaremos teóricos como Lehmann (2007) e Sarrazac (2012) para a teoria
do drama; Alvarez (1999) para o suicídio; Lang (2015) para os estudos sobre
Kane e seu contexto de escrita; dentre outros.
Palavras-chave: Sarah Kane; 4.48 Psychosis; suicídio; dramaturgia.

Para uma pessoa dentro da redoma de vidro, vazia e imóvel


como um bebê morto, o mundo inteiro é um sonho ruim.
(A redoma de vidro, de Sylvia Plath)

1 Referência ao
1. Quatro horas, quarenta utiliza os próprios cadarços para o trecho “Eu escrevo
para os mortos/
e cinco minutos: silêncio seu suicídio, a proximidade entre o para os não nasci-
dos”, da peça 4.48
ato e a escrita da peça possibilita Psychosis, de Sarah
Kane.
Diante do início silencioso, da an- pensarmos 4.48 Psychosis como
2 Mestre em Letras-
gústia de uma resposta que não uma “peça-suicídio”. O uso do ter- Estudos Literários
chega, esperando o grito final que mo “peça-suicídio” se justifica, pela UEM. Contato:
laraluizaolivei-
não foi ouvido, lemos a última peça além da ideia de “última nota” ou ra@gmail.com.

de Sarah Kane. Internada em um um “bilhete de adeus” da autora 3 Escrita em 1999,


Psychosis 4.48 foi
hospital psiquiátrico após uma ten- para com o mundo (seja literário, encenada somente
tativa de suicídio, a jovem drama- seja “real”), no modo como a peça em 2000, após a
morte da autora. A
turga (1971-1999) parece exorci- atua: uma tentativa de representa- primeira encena-
ção ocorreu no dia
zar a si mesma naquela que seria a ção – dolorosa e cruel – da experi- 23 de junho de
2000, no Theater
sua peça final, 4.48 Psychosis3. Da- ência suicida. Por isso, neste traba- Upstairs de Lon-
do o fato que, em 1999, pouco de- lho, analisamos o autoaniquilamen- dres, sob direção de
James McDonald ,
pois de terminar de escrever, Kane to e sua relação com a forma teatral e elenco era com-
posto por Daniel
aproveita um intervalo entre as en- tão destoante de Sarah Kane. Evans, Jo McInnes e
Madeleine Pot-
fermeiras e, presa em um banheiro, A obra completa da autora é ter(cf. KANE, 2001,
u compo p. 204).

ISSN: 1984-1124 Criação & Crítica, n. 23, abr/2019, p. 103-119

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“Para os não nascidos”: a peça-suicídio de Sarah Kane
(Lara Luiza Oliveira Amaral)

composta por cinco peças: Blasted vinda de tais influências, veremos


(1995), Phaedra’s Love (1996), que, em 4.48 Psychosis, Sarah Kane
Cleansed (1998), Crave (1998) e vai para além da desconstrução da
4.48 Psychosis (2000), além de um estrutura. A identificamos como
roteiro de filme chamado Skin “peça-suicídio” pois ela busca na
(1997)4, organizados posterior- própria fragmentação de sua estru-
mente no livro Complete Plays tura uma forma de autoaniquila-
(2001). Em seu ápice, 4.48 Psycho- mento. A seguir, evidenciaremos
sis abole todas as características algumas características de Kane em
pressupostas de uma peça de teatro sua peça final, tais como a influên-
tradicional: os personagens não são cia do pós-drama, o lírico no drama
definidos, os sujeitos de suas peças e o mundo fechado do suicídio.
permanecem sem descrição ou in-
dicações que os caracterizem; os
cenários perdem sua delimitação; as 2. Quatro horas, quarenta
rubricas se resumem a frases curtas e seis minutos: a escotilha
evidenciando o silêncio entre diálo- aberta
gos soltos. O texto parece ter sido
montado a partir de fragmentos de Para iniciarmos a discussão sobre
uma mente conturbada, de memó- o pós-drama, voltemos, rapidamen-
rias e traumas recortados e colados te, ao drama moderno. De acordo
sem manter uma sequência. Não há com Peter Szondi, em Teoria do
lógica, os fatos se mesclam com re- drama moderno, o que caracteriza-
cordações, o texto se entrecorta por ria a crise do drama seria o avanço
espaços em branco. Rupturas mar- do épico na forma dramática, como
cadas por cinco traços (- - - - -) que- bem sumariza Pasta Júnior em seu
bram a narrativa e parecem indicar estudo sobre o livro de Szondi:
a fina linha a ser mutilada pela gi-
lete. O núcleo do confronto, que caracte-
Vale a ressalva de que o método riza a crise da forma dramática, en-
utilizado por Kane para a organiza- contra-se na crescente separação de
ção de sua forma teatral, tão desto- sujeito e objeto – cuja conversão re-
cíproca era a base da absolutez do
ante do teatro tradicional, não é al- drama –, separação que mais e mais
go inédito. Nas peças de Samuel se manifesta nas obras, principal-
Beckett, por exemplo, é possível mente pela impossibilidade de diá-
identificar a desconstrução da es- logo e pela emersão do elemento
trutura dramática: os cenários de- épico. De certo modo, seria possível
saparecem ou se resumem ao mí- descrever a Teoria do drama mo-
derno como a história do lento e
4 Os anos entre
nimo, os personagens perdem suas inexorável avanço do elemento épi-
parênteses dizem características, o enredo é fragmen- co no seio da forma dramática [...].
respeito à primei-
ra encenação de tado. Tais características também se Neste avanço da “épica encoberta
cada uma das
peças, e não
encontram, de certo modo, nas pe- da matéria”, o próprio diálogo é
necessariamente ças pertencentes ao chamado “tea- progressivamente tomado por fun-
ao ano da publica- ções épicas, tributárias da cisão de
ção. tro do absurdo”, distorcendo a es-
sujeito e objeto, quando não se ma-
trutura tradicional do drama. Ad- nifesta, paradoxalmente, como in-
vinda de tais influências, veremos sultamento lírico ou até, como é o
Criação & Crítica,que,
n. 23,em 4.48 p.
abr/2019, Psychosis,
103-119 Sarah Kane ISSN: 1984-1124
caso de Tchékhov, literalmente co-
vai para além da desconstrução da mo um diálogo com um surdo. Co-
estrutura. A identificamos como “peça-104 locado sistematicamente em con-
suicídio” pois ela busca na própria frag- fronto com a pureza dialógica de seu
Morrer pelas próprias mãos: Literatura e Suicídio

nifesta, paradoxalmente, como in- sim sobre esse vínculo desfeito, e o


sultamento lírico ou até, como é o faz (e como poderia ser diferente?)
caso de Tchékhov, literalmente co- a partir de um completo retalha-
mo um diálogo com um surdo. Co- mento dos enunciados formais –
locado sistematicamente em con- rapsódico remete, especialmente em
fronto com a pureza dialógica de francês, àquilo que é mal engendra-
seu próprio modelo – na qual se do, que é formado por fragmentos,
manifesta a centralidade das rela- daí o rapsodo ser o artífice por ex-
ções intersubjetivas –, o drama mo- celência do drama no mundo con-
derno, rondado pelo solilóquio e pe- temporâneo (SARRAZAC, 2012, p.
la mudez, pela objetificação e pela 7).
reificação, dá testemunho, em sua
própria crise formal, de um estado Seguimos do retalhamento à fra-
de coisas que Adorno chamaria de gmentação excessiva das peças pós-
“a vida danificada” (PASTA JÚNIOR, dramáticas, suas distorções de es-
2001, p. 14-15).
trutura, personagens borrados e
Apenas de forma a introduzirmos cenários abolidos. Tais característi-
o campo teórico do teatro moderno, cas podem ser confirmadas por Sér-
notemos que a crise se dá justamen- gio Carvalho, na apresentação do
te no confronto com o modelo esta- livro Teatro pós-dramático, de
belecido, que se vê insuficiente para Hans-Thies Lehmann, que enfatiza:
descrever “a vida danificada”, como “a tendência ‘pós-dramática’ seria
coloca Adorno, do homem moder- uma novidade histórica não apenas
no. Se o diálogo de surdos de por razões formais, mas também
Tchekhov, ou as descrições oníricas pela negação estética dos padrões
de Strindberg, ambos do fim do sé- de percepção dominantes na socie-
culo XIX e início do século XX, já dade midiática” (CARVALHO,
nos colocavam frente à cisão entre o 2007, p. 7). Assim, mencionado
homem e o mundo, hoje estamos brevemente algumas das caracterís-
literalmente frente ao abismo. Na ticas do pós-drama, identificaremos
tentativa de alcançar o outro lado, como elas são representadas por
de criar estruturas seguras, temos Sarah Kane em sua peça.
como saída o retorno para o eu: a Vale ressaltar o contexto em que
estrutura se desfaz, estamos diante vivia Kane durante seu momento de
da nossa própria cisão. Nessa dire- produção. Partindo dos estudos de
ção caminham as reflexões de Sar- Peter Lang, Cruel Britannia: Sarah
razac em Léxico do drama moderno Kane’s Postmodern Traumatics, po-
e contemporâneo, salientando que demos ter uma ideia do que ficou
temos hoje conhecido como a geração “cruel
britannia”: os dramaturgos advin-
a noção de um dramaturgo-rapsodo dos da era Thatcher sentiam-se mo-
(remeto à Rapsódia), ou seja, aquele tivados a escrever sobre as suas ex-
que diante da separação consuma- periências e, utilizando-se da “sua
da, da total consciência de que o voz de protesto”, de violência e rai-
vínculo entre homem e mundo se va, ficaram reconhecidos pelo ter-
perdeu, opta justamente por não
mais escrever sobre o mundo, mas mo “cruel britannia” (cf. LANG,
ag 2015, p. 13). Assim, em forma de
ISSN: 1984-1124 protesto, Kane estaria
Criação criticando
& Crítica, em p. 103-119
n. 23, abr/2019,
suas peças temas como sexualidade,
105 abusos, doenças mentais e a medicina.
Não somente os temas convalidam a sua
“Para os não nascidos”: a peça-suicídio de Sarah Kane
(Lara Luiza Oliveira Amaral)

2015, p. 13). Assim, em forma de in-yer-face”. Indo contra aquilo


protesto, Kane estaria criticando em que é esperado pela audiência, esse
suas peças temas como sexualidade, teatro seria justamente aquele que
abusos, doenças mentais e a medi- atiraria “no rosto” da plateia as su-
cina. Não somente os temas conva- jeiras do mundo contemporâneo5.
lidam a sua voz de protesto, como a Assim, complementa Lang, esse esti-
própria estrutura dos seus textos. lo “oferece uma crítica moral às
Ainda sobre o pós-dramático, Car- doenças modernas, evitando apre-
valho ressalta: sentar soluções fáceis para as ques-
tões sociais/culturais que Kane vê
Não se trata apenas de um novo tipo como problemáticas – consumo ex-
de encenação delirante, mas de um cessivo, violência, violência sexual e
modo de utilização dos signos tea- exploração em geral, para citar
trais que, ao pôr em relevo a pre-
sença sobre a representação, os pro- apenas alguns” (LANG, 2015, p.
cessos sobre o resultado, gera um 16)6. Uma mente suicida, depressi-
deslocamento dos hábitos percepti- va e completamente angustiada,
vos do espectador educado pela in- exposta aos nossos olhos, foi o jeito
dústria cultural. É pelo modo deses- de Kane atirar frente à nossa face
tabilizador do trânsito entre palco e muitas das dores que nos recusamos
plateia que essa potência se efetiva
(CARVALHO, 2007, p. 15). a enxergar, seja em nós ou nos ou-
tros.
O choque do leitor, ou especta- O espaço de 4.48 Psychosis é a
dor, consumará a ideia de protesto própria mente de um sujeito angus-
que tais artistas queriam transmitir. tiado. Desse modo, qualquer rubri-
Não há mais cenas calculadas para ca descritiva seria impossível: esta-
não assustar ou com cortes específi- mos diante do desespero, da angús-
cos a fim de dissimular algum fato. tia, do eu atormentado em seu mais
5 Não somente o A intenção é justamente desestabili- íntimo. No pós-drama, a fragmen-
“mundo contem-
porâneo” contem- zar. Confirma isso a explicação de tação do espaço é recorrente, como
pla o uso do
método in-yer-
Lehmann: “não mais necessaria- ressalta Lehmann: “o espaço se tor-
face. Já em Genet, mente se comunica um significado na uma parte do mundo, decerto
Jarry e Artaud era
possível identificar de A (palco) para B (espectador), enfatizada, mas pensada como algo
essa necessidade
de atirar ao públi- mas dá-se por meio da linguagem que permanece no continuum do
co a face “suja” do
mundo.
uma transmissão e uma ligação real: um recorte delimitado no tem-
‘mágicas’, especificamente teatrais” po e no espaço, mas ao mesmo tem-
6 Tradução nossa:
“does in fact offer (LEHMANN, 2007, p. 246). Pertur- po continuação e por isso fragmen-
a moral critique of
modern ills, while bados, nós leitores, e os espectado- to da realidade da vida” (LEH-
avoiding present-
ing easy solutions
res frente à encenação, sentimos a MANN, 2007, p. 268). Em 4.48
to the so- falta dessa “ligação” entre os pon- Psychosis, a vida fragmentada se
cial/cultural
issues that Kane tos, e o choque se torna ainda maior traduz através das memórias da
sees as problemat-
ic – excessive quando os temas se voltam para a personagem, seja nos momentos em
consumerism,
chronic violence,
violência. que o “eu dramático” descreve seus
sexual violence É por isso que tais dramaturgos, possíveis diálogos com uma pessoa
and exploitation
in general to name assim como Kane, também ficaram amada, ou de angústias durante o
but a few”.
conhecidos pela expressão “teatro período de internamento em hospi-
in-yer-face”.. tais psiquiátricos. A ideia de memó-
Criação & Crítica, n. 23, abr/2019, p. 103-119 ria aparece também noISSN: 1984-1124
estudo de
Sarrazac, que considera a possibili-
106 dade do pós-dramático ser “um tea-
tro sem memória ou cuja memória
Morrer pelas próprias mãos: Literatura e Suicídio

tais psiquiátricos. A ideia de memó- da personagem, confirmando o que


ria aparece também no estudo de postula Lehmann sobre a existência
Sarrazac, que considera a possibili- de uma “temporalidade flutuante,
dade do pós-dramático ser “um tea- uma incerteza quanto à sucessão da
tro sem memória ou cuja memória narrativa” e, ainda de acordo com o
será necessariamente fragmentada” autor, o tempo pode ser marcado
(SARRAZAC, 2012, p. 147). A pró- por “repetições obsessivas, aparente
pria personagem de Kane confirma inação, inversão de causa e efeito,
tais fatos: “e a minha mente é o te- extremos de prolongamento ou de
ma desses fragmentos confusos” aceleração, saltos temporais e sur-
(KANE, 2017, p. 11). O mais pró- presas chocantes” (LEHMANN,
ximo que podemos chegar de uma 2007, p. 294). Peter Lang confirma
possível identificação cênica, espe- a ideia de Lehmann e evidencia o
cialmente em relação ao cenário, caráter repetitivo da peça de Kane,
são os momentos em que é mencio- que “cria o efeito de retrocesso
nada a escotilha, por exemplo: temporal da peça, se repetindo, ou
de ficar preso a um momento parti-
A escotilha abre cular da memória, ou experiência
Luz forte
emocional. É um ponto para o qual
Uma mesa duas cadeiras nenhuma a personagem continua a voltar
janela porque não há outro lugar para on-
de ir” (LANG, 2015, p. 190-191)7.
Aqui estou eu Em muitos momentos da peça, pa-
e lá está meu corpo recemos estar novamente no início
(KANE, 2017, p. 31). dela, com os questionamentos rode-
ados de silêncios, e mesmo a ideia
Não há mudança na fonte ou
da escotilha é retomada. As “ações”
qualquer outra indicação que sirva
se repetem, os desesperos voltam a
de pista para o que será necessário
atormentar a personagem, como
ser realizado durante a encenação.
aquele pensamento inquietante que
A escotilha, interpretada como me-
vai e volta como em um ciclo vici-
táfora, remete à ideia de que inva-
ante:
dimos uma mente conturbada e, vez
ou outra, uma “luz” entra e a “sa- A escotilha abre
nidade” tenta reorganizar os frag- Luz forte 7 Tradução nossa:
mentos soltos de angústia, aproxi- “creates the effect
of the play’s
mando a sua estrutura da forma a televisão fala temporality back-
cheia de olhos tracking, repeat-
comum dos dramas – mas é insufi- ing itself, or of
ciente e, por isso, falha, mais uma os espíritos da visão being stuck a
particular moment
vez. e agora estou com tanto
in memory, or
emotional experi-
Notemos que, assim como o espa- medo ence. It as a point
to which the
ço, o tempo também é diluído e fra- character contin-
gmentado. Não há uma sequência Eu estou vendo coisas ues to return
because there is
lógica dos fatos, as ações se desen- Eu estou ouvindo coisas nowhere else to
Eu não sei quem eu sou go”.
cadeiam conforme as lembranças
da personagem, confirmando o que língua pra fo-
ISSN: 1984-1124
postula Lehmann sobre a existência de Criação & Crítica, n. 23, abr/2019, p. 103-119
ra
uma “temporalidade flutuante, pen-
107 samento interrompi-
do (KANE, 2017, p.
“Para os não nascidos”: a peça-suicídio de Sarah Kane
(Lara Luiza Oliveira Amaral)

língua pra fora ferível “negar”: as angústias de um


pensamento interrompido paciente em um quarto de hospital,
(KANE, 2017, p. 26). as dores de amor não correspondi-
Neste trecho, a fragmentação do do, as inseguranças do corpo: “Eu
tempo e espaço resulta na fragmen- não consigo superar minha solidão,
tação do sujeito: a escotilha reflete o meu medo, meu nojo./ Eu sou gor-
divórcio com o mundo e, conse- da./ Eu não consigo escrever./ Eu
quentemente, ele começa a ver e não consigo amar” (KANE, 2017, p.
ouvir coisas, até o momento em que 8). A falta de caracterizações físicas
não sabe mais quem é. Se antes ele da personagem parece aprofundar
não alcançava o mundo e teve de a ligação clara que estabelecemos
voltar para si mesmo, hoje ele não com ela durante a leitura. O pro-
consegue mais se encontrar – ou nome pessoal da primeira pessoa do
montar seus fragmentos, nos reme- singular, o eu claramente marcado
tendo a Lehmann novamente: “Na e angustiado em todas as sentenças,
modernidade, o sujeito – e com ele atinge o leitor que declina o verbo
o espelhamento intersubjetivo pelo para a sua própria pessoa.
qual ele podia constantemente se Presas no escuro desse eu angus-
aprofundar – perde a capacidade de tiado, as palavras se esgotam. Não é
integrar a representação a uma possível continuar com a estrutura
unidade” (LEHMANN, 2007, p. formal, não há letra que se encaixe
297). De forma inversa, entende- para descrever aquilo que se sente.
mos que o estilhaçamento do eu Como uma nova cor dada à palavra
torna qualquer outra categoria, antiga, o lírico vem para (re)colorir
como o tempo e o espaço, fragmen- o pesadelo da personagem de Kane.
tada e difusa, assim como a própria
personagem. Atinge-se o ponto au-
ge da fragmentação quando a fra- 3. Quatro horas, quarenta
gmentação atinge o enredo. A lin- e sete minutos: abismo do eu
guagem não é mais suficiente em
sua forma simples, é preciso deses- Logo de início, o texto de Sarah
tabilizar, também, a sua ordem e Kane causa estranhamento por se
estrutura. Essa busca pela autono- parecer muito mais com um poema
mia de uma linguagem e o choque concreto do que a uma peça de tea-
linguístico em consequência é o que tro de fato, o que leva Lang a con-
Lehmann chama de “poética teatral cluir: “Psicose 4:48 se lê menos co-
da perturbação” (cf. LEHMANN, mo uma peça do que um poema em
2007, p. 248), o que remete às pa- prosa destinado à performance in-
lavras de Lang sobre o teatro “in- terpretativa” (LANG, 2015, p.
yer-face”, sendo justamente um es- 177)8. As falas parecem jogadas
8 Tradução nossa: tilo que nos perturba. Sarah Kane, sobre o papel, os espaçamentos
“4.48 Psychosis
reads less like a
ao abordar o tema do suicídio e da brincam com o texto, as rupturas
play than a prose depressão, e o modo como descreve marcadas por traços indicam a li-
poem intended for
interpretative a “ajuda” médica, traz para a cena nha do corte, o uso de números ora
performance”.
aquilo que, em muitos casos, é pre- ordenados, ora soltos pela página,
ca ac
Criação & Crítica, n. 23, abr/2019, p. 103-119 ISSN: 1984-1124

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Morrer pelas próprias mãos: Literatura e Suicídio

simbolizam o efeito dos medica- sos épicos (aliás, dede as tragédias


mentos, a inserção de uma “imita- gregas), busca-se uma ampliação
ção” de um prontuário médico re- das referências críticas e teóricas
presenta as consequências dos tra- para obter visão mais abrangente da
multiplicidade da atual produção
tamentos. A autora utiliza da estru- dramática. Para isso, há que deslo-
tura formal e a retorce, descontrói car certos hábitos na análise de pe-
cada pedaço e deixa, apenas em al- ças teatrais, como o de apenas reco-
guns momentos, travessões indi- nhecer a presença do lírico na lin-
cando diálogos com um possível guagem das réplicas, na tessitura do
médico que nunca chega a ser diálogo. Isso implica dizer que o as-
pecto a ser aqui enfatizado é o papel
mencionado concretamente. Isso do lírico como tendência estrutu-
porque, como apontam Stuchi e Li- rante das várias instâncias da com-
ma em “‘Tão sempre a mesma ho- posição dramatúrgica, no desenho
ra’: 4.48 Psicose e o suicídio no tea- das situações, no singular modo de
tro contemporâneo”: “o texto tran- ação das personagens imersas num
sita entre o dramático, o lírico e o processo de subjetivação (MENDES,
2015, p. 9).
épico, expondo o funcionamento de
uma identidade em processo de de- Assim, entendemos que o épico
sagregação, vagueando entre a lu- não é substituído pelo lírico, mas
cidez e a psicose” (STUCHI; LIMA, que este se apresenta como uma das
2017, p. 477). Nesse momento, melhores formas de representar o
pretendemos evidenciar como o processo de subjetivação no pós-
elemento lírico, inserido no dramá- drama. Não somente no teatro, ve-
tico, reforça a interioridade e subje- mos que o lírico também invadiu,
tivação na peça de Sarah Kane. Para com maior intensidade, os roman-
isso, utilizaremos como base princi- ces de hoje. Os denominados “ro-
pal os estudos de Cleise Furtado mances líricos” carregam a mesma
Mendes, em A ação do lírico na subjetivação que estruturam os no-
dramaturgia contemporânea. Cita- vos dramas. Nas teorias do romance
do por Stuchi e Lima, e elencado lírico, autores como Freedman
como uma das principais caracte- (1972), Gullón (1984) e Tofalini
rísticas da crise do drama moderno (2013) referem-se à liricização da
por Szondi, o elemento épico é dis- narrativa em decorrência do mer-
cutido também por Mendes, que gulho interior dos personagens. Isso
ressalta: porque, quanto mais próximo do
Não se pretende aqui, substituir o
íntimo, menos as palavras conse-
épico pelo lírico no horizonte do guem expressar aquilo que é neces-
drama, repetindo formulações de sário ser dito, e assim, a poesia vem
caráter teleológico, como se a cres- preencher as lacunas da prosa. As
cente liricização que se constata nos demais categorias se tornam afluen-
textos atuais sinalizasse algum tipo tes do grande tema do eu, por isso
de “pós-modernidade” ou “pós- não se faz mais necessária uma de-
dramaticidade” no âmbito da dra-
maturgia ou apontasse uma supera- limitação específica de um espaço,
ção da forma dramática. Sem des- tempo ou personagens. Estamos à
conhecer a importância dos recur- mercê das vontades de um persona-
sos ge
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“Para os não nascidos”: a peça-suicídio de Sarah Kane
(Lara Luiza Oliveira Amaral)

gem em seu íntimo, que escolhe, àqueles já mencionados por Leh-


vez ou outra, o que quer mostrar ou mann e Sarrazac sobre o pós-
não para os seus ouvintes. Porque o drama, como a repetição. Nesse
mais importante não é mais o que ponto, notemos que a autora com-
lhe rodeia, ou quem, mas sim ex- plementa inserindo a ideia de “flu-
pulsar – muitas vezes retomando a xo lírico”. Para um melhor enten-
ideia do fluxo de consciência – os dimento de como o lírico atua na
vazios que o assolam. repetição, tomemos como exemplo
Dando sequência aos estudos de um trecho da peça de Kane:
Mendes, ressaltamos uma marca já
comentada nas discussões sobre o abstração até o ponto do
pós-drama: a dissolução dos traços
formais do teatro. Para isso, ela cita inagradável
inaceitável
alguns autores reconhecidos pela ininspirável
inserção da subjetivação: “Thomas impenetrável
Bernhard, Bernard-Marie Koltès,
Marguerite Duras, Wajdi Moua- irrelevante
wad, Sarah Kane, Matëi Visniec, Jon irreverente
Fosse, Enrique Buenaventura, Juan irreligioso
impenitente
Mayorga, para citar apenas alguns
já amplamente reconhecidos pela desagradar
crítica especializada” (MENDES, deslocar
2015, p. 10, grifos nossos). Dentre desincorporar
tantos, Sarah Kane se faz presente e, desconstruir
a partir das características elenca- (KANE, 2017, p. 22).
das por Mendes, podemos afirmar A repetição volta a aparecer, mas
como a força do lírico atua em sua diferentemente dos trechos da esco-
obra. De acordo com a autora, o tilha mencionados acima. A ideia de
lírico se caracteriza no drama atra- um poema vai além da sua aparên-
vés do cia fragmentada, chega ao ritmo e
predomínio da função poética sobre som das palavras selecionadas, pro-
a representativa na linguagem; uni- jetando a impressão de uma anáfo-
ão de som e sentido, com ênfase na ra. Nota-se que cada palavra vem
música das palavras; fusão de sujei- acompanhada de um prefixo de ne-
to e objeto de percepção; subjetiva- gação (in-, i- ou des-). Não sem
ção de espaço e tempo; presença da
repetição como recurso de fazer
propósito, a negativa influencia na
perdurar o fluxo lírico, com uso de ideia de “abstração” que inicia o
estribilhos e variações temáticas; re- trecho. Toda essa “falta” nas pala-
cusa da lógica sintática, com predi- vras, o seu reverso, seria conse-
leção por construções paratáticas quência das atitudes da medicina
(com partes coordenadas, livres de na tentativa de “curar” sua “doen-
hierarquia), entre outros (MENDES,
2015, p. 9-10).
ça”. Todas as suas características
seriam reduzidas e negadas, trans-
Alguns dos tópicos elencados por formando-a, assim, na abstração
Mendes podem ser relacionados completa de um eu que não existe
aqu mas. Antes que os traços esparsos
Criação & Crítica, n. 23, abr/2019, p. 103-119 cortem o “poema” de Kane,ISSN: 1984-1124
o fim
do trecho confirma a ideia de abs-
110 tração:
Morrer pelas próprias mãos: Literatura e Suicídio

mais. Antes que os traços esparsos dessa produção o predomínio da


função poética sobre a referenciali-
cortem o “poema” de Kane, o fim dade; a fragmentação do diálogo co-
do trecho confirma a ideia de abs- tidiano em emissões que parecem
tração: surgir aleatoriamente, aos poucos
permitindo a eclosão de sentidos e
obscuro até o ponto do terminando por alcançar um efeito
curioso a partir de réplicas esparsas,
Verdadeiro Certo Correto silêncios ou vozes paralelas; a per-
Alguém ou qualquer um manência das situações como que
Cada todo tudo suspensas no tempo e no espaço,
sem progressão dramática; o pro-
afogando em um mar de lógica cesso de subjetivação que isola as
esse estado monstruoso de personagens, dissolve o clássico
paralisia conflito e transforma suas enuncia-
ções em feixes de monólogos ou
fluxos de reminiscências, fazendo
ainda doente que a linguagem adquira inequívo-
(KANE, 2017, p. 24). ca força lírica (MENDES, 2015, p.
10-11).
Cinco traços espaçados quebram
a narrativa que segue com um Presa no labirinto de si mesma, as
prontuário médico indicando os imagens ao redor aparecem como
remédios a serem tomados e suas borrões e se perdem. É por isso que
consequências. Mas ressaltemos os diálogos parecem aleatórios e
aqui, novamente, a desordem da desconexos, os silêncios invadem ao
estrutura, o jogo com as palavras e mesmo tempo em que gritos de pa-
o fim do excerto, ainda mais distan- lavrões são proferidos pela perso-
te que o restante, indicando que a nagem e as falas de um eu para si
situação continua intransponível mesmo percorrem páginas e pági-
apesar de tudo. As tentativas falhas nas como se estivesse a recitar um
de cura, a volta recorrente, faz com longo poema. No início da peça,
que Lang caracterize a peça de Ka- após um “diálogo de silêncios”, o
ne como um “pesadelo constante” trecho seguinte reafirma a ideia de
(cf. LANG, 2015, p. 21). A persona- uma mente conturbada, presa em
gem permanece presa nesse pesade- seu próprio pesadelo: “uma consci-
lo e a luz que atravessa a escotilha ência consolidada reside em um
continua fraca e longínqua. O ciclo obscuro salão de banquetes perto do
vicioso do desespero não indica a forro de uma mente cujo chão se
saída mais próxima a não ser o bri- desloca como dez mil baratas quan-
lho fraco no corte da gilete escon- do se entra um feixe de luz”; a es-
dida. cotilha foi aberta, a sanidade tenta
Mendes observa que as “referen- entrar, “como se todos os pensa-
cialidades” são dissolvidas pela fun- mentos se unissem em um instante
ção poética no texto de dramatur- de acordo corpo não mais expulso
gos como Kane: como se as baratas compreendes-
sem uma verdade que ninguém
São elementos comuns a boa parte mais pronunciasse” (KANE, 2017,
ac p. 6), mas o sentido continua perdi-
ISSN: 1984-1124 do nas palavras soltas
Criação de Kane.
& Crítica, n. 23, abr/2019, p. 103-119

111
“Para os não nascidos”: a peça-suicídio de Sarah Kane
(Lara Luiza Oliveira Amaral)

p. 6), mas o sentido continua perdi- 2017, p. 9-10). A dor do antes


do nas palavras soltas de Kane. Uma atinge o agora na fala da persona-
consciência em fluxo que não per- gem, mas nenhuma ação foi, de fa-
mite a ordenação dos pensamentos, to, colocada em cena.
as baratas invadem o banquete das Essa constante de dor, desespero
palavras e devoram a linha que as e angústias não ditas leva Lang a
controlava formalmente. Mendes concluir que “Kane assim faz uma
ressalta a ideia de que, com a inser- conexão artística entre suas articu-
ção do elemento lírico e “ao criar a lações teatrais e técnicas pós-
sua própria ‘língua’, o teatro é ca- modernas de representação de uma
paz de magnificar toda a complexi- experiência traumática, criando um
dade existente nos usos da lingua- gênero único e quase completa-
gem” (MENDES, 2015, p. 12). Re- mente negligenciado de teatro do
ordenamos a sintaxe de forma a trauma” (LANG, 2015, p. 26)9. O
criar uma ponte, uma ligação frágil incessante lembrar de uma dor car-
que seja, entre o subjetivo e a ex- rega o trauma em suas formas,
pressão verbal. transformando a peça, como um
Ainda de acordo com a autora, o todo, em uma representação do
reflexo da dissolução do tempo e trauma em si (cf. LANG, 2015, p.
espaço revela também uma quebra 189). Dessa forma, a inserção do
na ação: “a própria ideia de ação lírico se faz necessária, pois estaria
merece ser revisada nesse contexto, mais “vinculada à vida interior das
para compreender também a errân- personagens, à estase da ação, a so-
cia do eu lírico no palco subjetivo” lilóquios em que a linguagem está
(MENDES, 2015, p. 12-13). A per- vocacionada à expressão de temas
sonagem vaga pelo tablado de ma- ‘intimistas’ e como tais mais afeitos
deira sem saber para onde fugir, se à problemática do indivíduo isolado
deve permanecer parada em uma do que às grandes questões político-
cadeira ou apenas ouvir a gravação sociais” (MENDES, 2015, p. 13). O
de uma voz que dita todos os seus lírico insere uma característica mais
pensamentos íntimos em um cená- “intimista” ao texto – o que Mendes
rio escurecido. Isso porque nenhu- complementa ao fim de seu artigo:
ma ação é de fato descrita na peça “não significa o fechamento dos
de Kane. As lembranças de atos pas- segredos de uma individualidade e
9 Tradução nossa: sados se misturam com o presente, o isolamento da temática social,
“Kane thereby
makes an artistic
os remédios tomados em sequência mas antes o abrir-se da intimidade
connection be- não foram engolidos no exato mi- das personagens para o espetáculo
tween her theatri-
cal articulations
nuto do agora, foi antes, e será mais do mundo” (MENDES, 2015, p. 14-
and postmodern tarde, na hora final que ainda não 15).
techniques of
representation of chegou. As ações pincelam a narra- Em um percurso inverso, note-
traumatic experi- tiva borrando os tempos: “e alguma mos que a inserção do lírico no
ence, creating a
unique yet almost coisa me toca naquele lugar ainda drama, transformando a peça de
completely over- soluçante e uma ferida de dois anos Kane em um longo poema em pro-
looked genre of a
theatre of trau- atrás abre como um cadáver e uma sa, resvala nas teorias do pós-drama
ma”. vergonha enterrada faz tempo ber- e na desconstrução de suas estrutu-
ra sua dor podre decadente” (KANE, ras formais: tempo, espaço, perso-
2017, p. 9-10). A dor do antes atinge o nagens, ação. ISSN: 1984-1124
Criação & Crítica, n. 23, abr/2019, p. 103-119
agora na fala da personagem, mas nenhu-
ma ação foi, de fato, colocada em cena.
112
Morrer pelas próprias mãos: Literatura e Suicídio

nagens, ação. O suicídio, foco cen- trancando-se num encardido cubí-


tral de 4.48 Psychosis, atua não so- culo alugado e ficar olhando dia
mente como tema, mas transforma- após dia, como o Bartleby de Mel-
se na peça em si. A “peça-suicídio” ville, para uma parede cega diante
de Sarah Kane vai além das falas em da janela” (ALVAREZ, 1999, p.
angústia da personagem que anseia 105). Na peça de Sarah Kane, inva-
a morte e atinge sua forma. A estru- dimos o mais profundo da persona-
tura formal corriqueira não é mais gem, enxergamos assustados a ânsia
suficiente para alcançar a angústia de morte que pulsa de acordo com
do eu que sofre; a personagem quer o soar do relógio.
dizer o que está além da fala, dos Os estudos literários sobre o sui-
cenários, da rubrica. Dessa forma, cídio ainda caminham timidamente,
Kane abole toda e qualquer forma- sendo poucos os trabalhos publica-
lidade em uma tentativa de repre- dos até o momento. Inversa é a re-
sentação do autoaniquilamento. corrência do fato na literatura: seja
em romances, peças ou poemas, o
ato suicida é frequente em diversos
4. Quatro horas, quarenta e oito autores, e em momentos vários da
minutos: a redoma suicida literatura. No teatro, por exemplo, o
suicídio aparece com grande recor-
A imagem da Redoma de Vidro rência. Em uma rememoração rápi-
deu nome ao romance da escritora da das obras de Shakespeare, temos
Sylvia Plath, no qual a autora relata os clássicos Romeu e Julieta, Lady
o mundo fechado do suicídio de Macbeth, Cleópatra, Ofélia, Otelo,
uma jovem em seus vinte anos. dentre outros, como personagens
Quase como um alter ego de si suicidas. Alvarez faz uma ressalva
mesma, Plath reconta a sua própria nesse ponto: mesmo com grande
tentativa de suicídio na mesma ida- quantidade, o suicídio continua
de. Em 4.48 Psychosis, adentramos ainda a ser um ato muito distante
a redoma de Kane, onde ressoa o da representação em cima do palco:
alarme do relógio que anuncia: é a “o sofrimento de um herói trágico,
hora. distanciado e enobrecido pelo dra-
Amigo de Sylvia Plath, A. Alvarez ma poético, fica literalmente a um
escreveu um livro sobre o suicídio e mundo de distância do suicídio fora
a literatura. Na contramão dos de- do palco, que raramente é trágico,
mais estudiosos do tema, tais como nunca é grandioso e na maior parte
Durkheim (1897) e Marx (1846), o das vezes é sórdido, deprimente,
autor se distancia da ideia “social” confuso” (ALVAREZ, 1999, p. 159).
do suicídio e volta-se para o eu. Em Em uma comparação com as demais
O deus selvagem: um estudo do sui- peças citadas por Alvarez (os clássi-
cídio, Alvarez ressalta o “mundo cos de Shakespeare, por exemplo),
fechado do suicida” como um das 4.48 Psychosis parece se aproximar
forças motrizes para o estudo do mais do que o autor consideraria
tema: “o suicida cria sua própria como “o suicídio fora do palco”, já
sociedade: fechar-se para as pessoas que Kane retrata com particular
trancando-se num encardido cubí- intimidade o tema
ISSN: 1984-1124 Criação & Crítica, n. 23, abr/2019, p. 103-119
culo alugado e ficar olhando dia
após dia, como o Bartleby de Melville,
para uma parede cega diante da janela”113
(ALVAREZ, 1999, p. 105). Na peça de
“Para os não nascidos”: a peça-suicídio de Sarah Kane
(Lara Luiza Oliveira Amaral)

intimidade o tema – seja pelo uso de mórias da personagem internada. O


um personagem sem identidade modo como ela se refere aos médi-
(nome, sexo, ou demais caracterís- cos e medicamentos é sempre ácido
ticas); seja pelo uso recorrente do e ressentido, ressalta Lang: “Os per-
pronome pessoal “eu”; ou, até sonagens de Kane estão também
mesmo, sua aproximação biográfi- expressando sua raiva e desapon-
ca. tamento com o fracasso do sistema
A peça é estruturada a partir do médico em ajudar sua doença men-
ato suicida. A desestabilização do tal” (LANG, 2015, p. 202)10. A de-
eu, a fragmentação das categorias, pressão é, até hoje, uma incógnita
refletem o caos de um personagem para médicos e psiquiatras. O avan-
em seus momentos finais. O título ço da medicina, mesmo que lento,
traz a hora da morte, e é confirma- já fez com que, diferentemente de
da pela própria personagem logo de Sylvia Plath, Kane não passasse pelo
início: “Às 4:48/ quando o desespe- “tratamento” de eletrochoques para
ro vem/ eu vou me enforcar” (KA- “curá-la” de sua “doença”. Porém,
NE, 2017, p. 8). Presa desde a es- intoxicada pelos inúmeros remédios
trutura a esse mundo fechado, a tomados, vemos que ainda há muito
obsessão pela morte se torna per- a evoluir até que, de fato, se com-
turbadora: “a impermeabilidade a preenda o que é o ser humano em
tudo que é alheio ao mundo fecha- seu mais obscuro eu. A recorrência
do da autodestruição pode gerar do tema em ambas as autoras revela
uma obsessão tão excêntrica, abso- a sua própria visão diante da medi-
luta e psicótica, que a morte em si cina: não mais como uma fonte de
acaba se tornando uma questão se- “cura” ou “salvação”, médicos e
cundária” (ALVAREZ, 1999, p. 128, seus tratamentos são apresentados
grifos nossos). Ao mesmo tempo em como vilões que, muitas vezes, pa-
que o suicídio aparenta ser a única recem apenas reforçar a situação
saída possível, ainda ouvimos os desoladora daqueles em agonia.
gritos de relutância da personagem A personagem, presa entre as pa-
que luta para permanecer viva: “eu redes brancas desse mundo esterili-
não desejo a morte/ nenhum suici- zado de hospitais e clínicas psiquiá-
da jamais desejou” (KANE, 2017, p. tricas, se sente como um animal em
46). Esse jogo antitético entre bus- exposição para que os demais, em
car a morte e, ao mesmo tempo, lu- seus alvos jalecos, possam vir ob-
tar pela vida, se torna ainda mais servá-la sem pudor, analisá-la, co-
frequente diante da “ajuda” médi- mo o grande problema que “ainda”
ca, como ressaltaremos a seguir. não foi “consertado”:
10 Tradução nossa:

“Kane’s characters Dr. Isso e Dr. Aquilo e Dr. Queéisso


are also express- que estava só passando e pensou em
ing their anger 4.1. Dr. Isso e Dr. Aquilo e entrar para dar uma zoada também.
and disappoint-
ment at the failure Dr. Quéisso Queimando em um túnel quente de
of the medical desânimo, minha humilhação com-
system to help pleta conforme eu tremo sem razão
their mental A violência parece atingir o ápice e tropeço nas palavras e não tenho
illness”.
quando nos voltamos para as me- nada a dizer sobre a minha ‘doença’
mórias da personagem internada.
Criação & Crítica, n. 23, abr/2019, p. 103-119 ISSN: 1984-1124

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Morrer pelas próprias mãos: Literatura e Suicídio

que de qualquer forma significa sa- vamos fazer a lobotomia química,


ber que não há qualquer razão em vamos desligar as funções mais al-
nada porque eu vou morrer. E eu tas do meu cérebro/ e talvez eu te-
travada por aquela suave voz psi-
quiátrica da razão que me diz que nha um pouco mais de capacidade
existe uma realidade objetiva na de merda pra viver” (KANE, 2017,
qual meu corpo e mente estão jun- p. 22). De acordo com Chramosilo-
tos. Mas eu não estou e nunca esti- vá, “4.48 Psychosis traz a questão
ve. Dr. Isso faz uma anotação e Dr. da psicofarmacologia, que é cada
Aquilo tenta um murmúrio simpáti- vez mais premente na sociedade
co. Me observando, me julgando,
cheirando o fracasso aleijado va- atual – pessoas são muitas vezes
zando da minha pele, meu desespe- prescritas desnecessariamente a vá-
ro arranhando e um pânico devora- rios tipos de drogas (pílulas para
dor me encharcando enquanto eu dormir, antidepressivos, medica- 11 Elizabeth Wurt-
pasmo horrorizada diante do mun- mentos para ansiedade) das quais zel, em sua auto-
do e me pergunto por que todo elas podem se tornar viciadas”
biografia intitula-
da Prozac Nation
mundo está sorrindo e me olhando (1994), aborda a
com um secreto entendimento da (CHRAMOSILOVÁ, 2013, p. 33- influência dos
minha dolorosa vergonha (KANE, 34)12. Assim, controladas medica- medicamentos nos
tratamentos para
2017, p. 10). mente, as cápsulas coloridas descem depressão durante
os anos 90, sendo
em quantidades absurdas defor- o auge do Prozac
como uma das
Vista como um problema a ser mando seu corpo, descritas metodi- melhores drogas
solucionado, como aquela que não camente no prontuário médico da para a “doença”.
A ideia de “des-
conseguiu “abstrair” de si mesma personagem: configurar” uma
pessoa para que
seu próprio lodo, a vergonha a de- ela se adeque
àquilo que lhe é
sespera. Os médicos, com seus no- Sintomas: Não está comendo, não exigido social-
mes omitidos através de uma brin- está dormindo, não está falando, mente (faculdade,
não tem desejo sexual, em desespe- relacionamentos,
cadeira com suas demais especiali- amigos) faz com
ro, quer morrer. que se transforme
dades, são o grande alvo: “médicos cada vez mais em
um ser automáti-
inescrutáveis, médicos sensatos, Diagnóstico: dor patológica. co, robótico, e
médicos estranhos, médicos que perca a sua iden-
tidade, como
você pensaria serem as porras dos Sertralina, 50mg. Insônia agravada, descreve a prota-
ansiedade grave, anorexia (perda de gonista-autora a
pacientes se não te provassem o partir da sua
contrário, [...] oferecem curas quí- peso 17kgs) aumento dos pensa- própria experiên-
mentos, planos e intenções suicidas. cia.
micas para angústia congênita e Interrompido após hospitalização. Tradução nossa:
12
livram os rabos uns dos outros” “4.48 Psychosis
(KANE, 2017, 10-11). A medicação Zopiclona, 7,5mg. Dormiu. Inter- brings up the issue
of psychopharma-
é apontada como a salvação para rompido após erupções cutâneas. cology, which is
uma mente doente, cada pílula co- Paciente tentou sair do hospital con- more and more
lorida com uma função de matar tra ordens médicas. Detida por três pressing in today’s
society – people
enfermeiros com o dobro do seu are often pre-
uma parte do eu que estaria matan- tamanho. Paciente ameaçadora e scribed unneces-
do a si mesmo, até o momento em não cooperativa. Pensamentos para- sarily various
que o eu inteiro é morto e lhe resta noicos – acredita que a equipe do kinds of drugs
(sleeping pills,
uma casca oca, vazia, perfeitamente hospital está tentando envenená-la antidepressants,
cabível no quebra-cabeça do mun- (KANE, 2017, p. 24). anxiety medica-
tion) that they can
do apático moderno11: “Ok, vamos even become
lá, vamos aplicar os medicamentos/ O uso de “sertralina” a faz per- addicted to”.

vamos fazer a lobotomia química, der 17kgs, quando, em sequência,


ISSN: 1984-1124
vamos desligar as funções mais al- Criação & Crítica, n. 23, abr/2019, p. 103-119
tas do meu cérebro/ e talvez eu te-
nha um pouco mais de capacidade115
de merda pra viver” (KANE, 2017, p.
“Para os não nascidos”: a peça-suicídio de Sarah Kane
(Lara Luiza Oliveira Amaral)

der 17kgs, quando, em sequência, - ME.


lhe é administrado “Lofepramina, PERGUNTA.
70mg, aumentada para 140mg, de- POR QUE.
pois 210mg. Ganho de peso 12 kgs.
(Um silêncio longo.)
Perda de memória recente” (KANE,
2017, p. 26, grifos nossos). Sem - Por que você cortou seu braço?
grandes resultados, lhe dão “Citra- - Porque é bom pra porra. Porque a
lopram, 20m. Tremores matutinos. sensação é fodida de maravilhosa
Sem outras reações” (KANE, 2017, (KANE, 2017, p. 18).
p. 26, grifos nossos). Após a inter-
Vemos as voltas incessantes de
rupção de lofepramina e citalo-
um diálogo que parece querer es-
pram, o próximo remédio é o Pro-
capar do foco principal. Ainda há o
zac “20mg, aumentado para 40mg.
medo de tocar na ferida, o sangue
Insônia, apetite instável (perda de
pode voltar a jorrar, e estancar aca-
peso 14kgs)” (KANE, 2017, p. 26,
ba sendo cada vez mais difícil.
grifos nossos). Por mais algumas
Mesmo com o fio e a agulha em
páginas temos a descrição minucio-
mãos para um possível acidente, os
sa de seus medicamentos e resulta-
médicos retraem-se diante do corte
dos. A cada nova medicação, uma
recém-aberto. É melhor prevenir
nova deformação. Ainda que se tra-
que ela fale, que nos detalhe mini-
te de um texto literário, sabemos do
mamente a vida dentro da redoma
perigo dos medicamentos em exces-
de que parece nunca ter saído: “pa-
so e seus efeitos colaterais – o que
ra eles, o ato não é nem irrefletido,
nos faz retomar a ideia de Chramo-
nem operístico, e nem tampouco
silová, que ressalta: “a peça toma
uma prova de óbvio desequilíbrio,
uma posição forte contra isso,
mas sim uma espécie de vocação
apontando o problema de os médi-
insidiosa. Uma vez dentro desse
cos administrarem quantidades ri-
mundo fechado, a pessoa tem a im-
dículas e irracionais de drogas a um
pressão de que nunca houve um
paciente, em vez de tentarem outros
tempo em que ela não fosse suicida”
possíveis meios de tratamento pri-
(ALVAREZ, 1999, p. 130). Kane
meiro” (CHRAMOSILOVÁ, 2013, p.
tranca sua personagem nas paredes
33-34)13. Em um momento de pos-
translúcidas da redoma, revivendo
sível diálogo com um psiquiatra,
um pesadelo constante, criando um
identificamos, ainda, uma espécie
teatro do trauma – uma peça-
13Tradução nossa: de “fuga” da medicina em querer
“the play takes a suicídio.
strong stand entender o real motivo por trás das
against it by ações da personagem:
pointing out the
problem of doctors 4.2. Às 4:48 eu vou me enforcar
administrating Por que você não me pergunta por
ridiculous and que?
unreasonable
Por que eu cortei meu braço? Logo no início da peça, a perso-
amounts of drugs
to a patient in-
nagem alerta: “Às 4:48/ quando o
stead of trying - Você gostaria de me contar? desespero vem/ eu vou me enfor-
other possible
courses of treat-
- Sim. car/ ao som da respiração do meu
ments first”. - Então conta. amado” (KANE, 2017, p. 8). Cons-
- ME. ma
Criação & Crítica, n. 23, abr/2019, p. 103-119 ISSN: 1984-1124

116
Morrer pelas próprias mãos: Literatura e Suicídio

tantemente somos relembrados do flashback ou o prenúncio de um ato


horário para seu ato final. É às futuro? Após tal descrição, as falas
4:48h que a sanidade vem, mas não perdem sua extensão, cada vez mais
acalenta: “Assim que passar, vou as frases são resumidas a palavras:
estar perdida de novo,/ um fanto- “Era tudo o que eu tinha/ Engoli-
che fragmentado, uma idiota gro- do/ Cortada/ Enforcada/ Está aca-
tesca” (KANE, 2017, p. 30). Con- bado” (KANE, 2017, p. 42-43).
forme avançamos a leitura, as men- Desse modo, notamos que o suicídio
ções vão se tornando mais breves e invade a estética da peça, influenci-
curtas: “Às 4:48/ Eu vou dormir” ando o modo como Kane (d)escreve
(KANE, 2017, p. 34). Até que chega as angústias finais de sua persona-
o momento em que a sanidade volta gem.
a assolá-la e ela sabe que o fim está Momentos após a ingestão dos
cada vez mais próximo: remédios mencionados pela perso-
nagem, ela diz: “escuridão acon-
Às 4:48 chegante/ que encharca meus
a hora feliz olhos” (KANE, 2017, p. 43). Além
quando a clareza vem
da metáfora de angústia e solidão, a
escuridão aconchegante escuridão também pode ser reflexo
que encharca meus olhos da overdose antes mencionada. As
(KANE, 2017, p. 43). páginas seguintes se tornam uma
espécie de fluxo de consciência, ou
Os espaçamentos entre as linhas as impressões de alguém que está,
se tornam mais frequentes e longos. lentamente, perdendo a sua própria
As frases perdem suas continuações, consciência:
se embaralham em uma página ca-
da vez mais vazia. Lemos as últimas Meu grande final
partes da peça de Sarah Kane como Ninguém fala
um anúncio do fim: a morte se Me valide
aproxima. Assim como muitos, a Me testemunhe
Me veja
personagem recorre à figura divina Me ame
em seus momentos finais: “Querido minha última submissão
Deus, querido Deus, o que eu fa- minha última derrota
ço?/ Tudo o que eu sei/ é neve/ e (KANE, 2017, p. 44).
negro desespero” (KANE, 2017, p.
42). Não encontra conforto, ou A personagem anuncia: “o último
mesmo respostas, por isso já anun- período/ o último ponto final”
cia o seu próximo ato a fim de evi- (KANE, 2017, p. 44). A morte apa-
tar que os médicos a analisem, mais rece: “na morte você me abraça”
uma vez: “Eu vou contar como (KANE, 2017, p. 45), e a persona-
morri/ Cem Lofepramina, quarenta gem confessa: “eu não desejo a
e cinco Zopiclona, vinte e cinco morte/ nenhum suicida jamais de-
Temazepam, e vinte Melleril” (KA- sejou” (KANE, 2017, p. 45). Relem-
NE, 2017, p. 42). A ação é descrita, bramos Alvarez, mencionado ante-
mas não é representada: seria um riormente, a comentar que o suici-
flashback ou o prenúncio de um ato da, muitas vezes, não deseja a mor-
futuro? Após tal descrição, as falas
ISSN: 1984-1124 te. O mundoCriação
fechado do suicídio
& Crítica, – o p. 103-119
n. 23, abr/2019,
perdem sua extensão, cada vez mais pesadelo constante de Sarah Kane, a
as frases são resumidas a palavras:117 redoma de Sylvia Plath – impede
“Era tudo o que eu tinha/ Engoli- que o indivíduo se liberte dessa ob-
“Para os não nascidos”: a peça-suicídio de Sarah Kane
(Lara Luiza Oliveira Amaral)

cida, muitas vezes, não deseja a das próprias mãos para cometer o
morte. O mundo fechado do suicí- autoaniquilamento, a peça de Sarah
dio – o pesadelo constante de Sarah Kane vai, por meio da própria es-
Kane, a redoma de Sylvia Plath – trutura, se autoconsumindo até o
impede que o indivíduo se liberte momento último de desaparecimen-
dessa obsessão psicótica autodestru- to completo. As cortinas abertas tal-
tiva. A peça se encaminha para seu vez reflitam apenas a luz branca e
último ato: forte dos holofotes de um palco va-
zio. Atinge-se o ápice da fragmen-
me veja desaparecer tação e descontruímos tempo, espa-
me veja ço, personagem e linguagem.
desaparecer A literatura da dor, da angústia,
me veja da morte, da experiência íntima do
me veja autor com o seu texto, é aquela que
invade e atordoa, que atormenta e
enlouquece. Há aquele que talvez a
veja renegue, fuja para um caminho
(KANE, 2017, p. 45). menos doloroso, busque outros te-
mas. Isso porque, no fundo, ao ler
Falas breves, um último pedido. obras como a de Sarah Kane, fica-
Há cada vez menos o que ler, o de- mos expostos, nus, diante da nossa
saparecimento das palavras é metá- própria imensidão. E nem sempre é
fora para o eu que morre ali. A úl- fácil se olhar no espelho do íntimo
tima página concretiza o ato: “por sem querer fugir. Não mais obscu-
favor abram as cortinas” (KANE, recidos, somos invadidos pela luz
2017, p. 46), escrito ao final da fo- clara que se alastra pelas páginas
lha. O suicídio é o início e o fim: ao distorcendo as sentenças. Aguar-
se matar, a personagem pede que as damos, sentados nas poltronas não
cortinas sejam abertas e que o espe- mais confortáveis do teatro, que al-
táculo comece. O desaparecer é o go aconteça e liberte o nó da gar-
seu final, mas é também um come- ganta. Buscamos o ponto final, mas
ço. Desse modo, alcançamos a ideia nos encontramos em um
de “peça-suicídio”: assim como a (re)começo: a luz clara cega o pú-
personagem necessita utilizar-se blico ao abrir as cortinas.
asc

“To the Unborn”: Sarah Kane’s suicide-play


Abstract: Virginia Woolf writes a letter before going into the river with her pockets full of stones.
Sylvia Plath writes the telephone number of her psychiatrist in a note and puts it on the table near
the stove. Sarah Kane writes her last play before taking off her shoelaces to hang herself. 4.48
Psychosis becomes a kind of “suicide note” left by Kane before her final act. In this work, we
intend to analyze not just the self-annihilation, central theme of the play, but also its relation with
the post-drama theories and the influence of lyricism on the act of writing and the immersion in

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Morrer pelas próprias mãos: Literatura e Suicídio

the interior of the character. Therefore, we will use theoretical bases such as Lehmann (2007)
and Sarrazac (2012) for drama theories; Alvarez (1999) for suicide; Lang (2015) for studies
about Kane and her writing context; among others.
Keywords: Sarah Kane; 4.48 Psychosis; suicide; drama.

Referências

ALVAREZ, A. O deus selvagem: um estudo do suicídio. Trad. Sonia Moreira. São


Paulo: Companhia das Letras, 1999.
CARVALHO, Sérgio. Apresentação. In: LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-
dramático. Trad. Pedro Süssekind. São Paulo: Cosac & Naify, 2007, p. 7-16.
CHRAMOSILOVÁ, Martina. Beyond the Suicidal Despair: An Analysis of Sarah Ka-
ne’s 4.48 Psychosis. Brno, Masaryk University, 2013.
KANE, Sarah. Psicose 4:48. Trad. Willian André e Lara Luiza Oliveira Amaral. Onli-
ne (arquivo digital disponível em literaturasuicidio.wordpress.com), 2017.
LANG, Peter. Cruel Britannia: Sarah Kane’s Postmodern Traumatics. Switzerland:
International Academic Publishers, 2015.
LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. Trad. Pedro Süssekind. São Paulo:
Cosac & Naify, 2007.
MENDES, Cleise Furtado. A ação do lírico na dramaturgia contemporânea. Revista
Aspas, v.5, n.2, p. 6-15, 2015.
PASTA JÚNIOR, José Antonio. Apresentação. In: SZONDI, Peter. Teoria do drama
moderno (1880-1950). Trad. Luiz Sérgio Repa. São Paulo: Cosac & Naify Edições,
2001, pp. 9-20.
SARRAZAC, Jean-Pierre (org). Léxico do drama moderno e contemporâneo. Trad.
André Telles. São Paulo: Cosac & Naify, 2012.
STUCHI, Marina, LIMA, Ricardo. “Tão sempre a mesma hora”: 4.48 Psicose e o sui-
cídio no teatro contemporâneo. In: Anais do 1º Encontro Nacional de Diálogos Lite-
rários: um olhar para as poéticas contemporâneas. Campo Mourão: UNESPAR, feve-
reiro/2017, p. 475-481.

Recebido em: 30/11/2018


Aprovado em: 04/04/2019

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