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ARTIGO

O USO DE METÁFORAS EM TERAPIA NARRATIVA:


FACILITANDO A CONSTRUÇÃO DE NOVOS
SIGNIFICADOS

THE USE OF METAPHOR IN NARRATIVE THERAPY: MAKING EASY THE


CONSTRUCTION OF NEW MEANINGS

VALÉRIA NICOLAU RESUMO: Na busca por compreender o uso de ABSTRACT: In the quest for understanding the
PASCHOAL metáforas em conversações terapêuticas, reali- use of metaphors in therapeutic conversations,
zamos entrevistas com quatro terapeutas narrati- we conducted interviews with four narrative
Psicóloga clínica, terapeuta
familiar e de casal pela PUC-
vos. Procedemos então a uma análise de discur- therapists. Then we carried out a speech analysis
SP, membro do International so com ênfase na poética social (Shotter, 2000), with emphasis on social poetics (Shotter, 2000),
Certificate in Collaborative ressaltando momentos marcantes na conversa highlighting arresting moments in conversation
Practice pelo Interfaci –SP, com os participantes. A metáfora foi considerada with the participants. The metaphor was consi-
mestranda em psicologia elemento essencial por todos os terapeutas entre- dered an essential element for all therapists inter-
clínica pela PUC-SP vistados. Consistente com a teoria, encontramos viewed. Consistent with the theory, we found out
que as metáforas fizeram-se presentes em todos that the metaphors were present at all times of
MARILENE GRANDESSO os momentos do processo terapêutico. Dentre as the therapeutic process. The advantages of their
vantagens do seu uso, destacamos: oferecer um use include the following: to provide a language
Doutora em psicologia
recurso de linguagem para o cliente narrar suas feature for the client to tell stories on his own way;
clínica, professora e
histórias à sua própria maneira; facilitar o enten- to facilitate the understanding of the therapist; to
supervisora do curso
dimento do terapeuta; facilitar o relato de experi- facilitate the reporting by the client of difficult ex-
de terapia familiar e de
casal do NUFAC-PUC-SP, ências difíceis pelo cliente; ampliar possibilidades periences; and to expand existential possibilities,
fundadora e coordenadora do existenciais pela construção de novas narrativas. through the construction of new narratives.
INTERFACI – Polo formador
em Terapia Comunitária, PALAVRAS-CHAVE: metáfora, terapia narrativa, KEYWORDS: metaphor, narrative therapy, chang-
coordenadora do Certificado mudança de significado, histórias, conversação ing meaning, histories, therapeutic conversation.
Internacional em Práticas terapêutica.
Colaborativas junto com o
Houston Galveston Institute,
coordenadora de formação
em terapia narrativa pelo
Interfaci. Metáforas e psicoterapia têm andado juntas desde muito tempo. Dentre as pri-
meiras referências que podemos encontrar, Andolfi, Angelo, Menghi e Nicolò-
-Corigliano (1984) ressaltaram diferentes usos de metáforas em sessões de te-
rapia, tais como: apropriar-se de alguma metáfora trazida pela família; tornar o
sintoma da família uma metáfora; empregar imagens que lhe vinham à mente
de forma metafórica como parte da conversação; ou mesmo, fazer uso de obje-
tos com sentido metafórico em sessão. Em outra publicação, Andolfi e Angelo
(1989, p. 63) apresentam as metáforas como uma forma de jogo no contexto da
terapia, permitindo um envolvimento lúdico a partir do qual família e terapeuta
poderiam “viajar em níveis metafóricos” para outros territórios de investigação,
embalados pela propriedade imagética de jogos compreendidos como metáforas.
É interessante notar que, na ocasião em que surgiram os primeiros modelos sis-
têmicos de terapia familiar, a metáfora era usada estrategicamente, como uma
espécie de recurso técnico usado com um propósito definido, muitas vezes como
Recebido em 27/12/2013
forma de provocações pelas quais o terapeuta desperta sua capacidade de indagar.
Aprovado em 15/01/2014

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Ao longo do tempo, com o advento do marcos de sentido. Por outro lado, as O uso de metáforas em
pensamento da pós-modernidade no metáforas são transversais às idades e terapia narrativa: facilitando 25
a construção de novos
campo da terapia, o uso de metáforas contextos, fazendo parte de nossa prá- significados
Valéria Nicolau Paschoal
foi ganhando novos sentidos. tica, seja com crianças, adolescentes e Marilene Grandesso
As terapias baseadas nas ideias pós- adultos, tanto nas terapias individuais
-modernas não estão voltadas para a como nas de família ou comunidade.
busca de um conhecimento universal Quando se apresentam como uma for-
que possa servir, por exemplo, para ma de brincar com palavras ou obje-
diagnosticar uma família. Seu foco tos, pode tornar a sessão mais lúdica,
está em compreender os significados permitindo que se fale de coisas mui-
atribuídos à experiência vivida a partir tas vezes difíceis de serem ditas de ma-
de uma pluralidade de ideias e vozes. neira mais leve. Durante as conversa-
De acordo com o pensamento da pós- ções terapêuticas, na qual as metáforas
-modernidade, a realidade é compre- se fazem presentes, percebemos que os
endida como construída nas relações clientes ampliam seu repertório e con-
e na linguagem, e há uma infinidade seguem explicar de outra forma o que
de realidades possíveis, dependendo estão vivenciando, possibilitando a
de quantos forem os envolvidos em ressignificação e construção de novas
descrever ou narrar uma experiência e preferidas histórias.
ou acontecimento. Enquanto postura Geralmente, temos utilizado me-
epistemológica, o terapeuta destitui- táforas, enquanto terapeutas, quando
-se do lugar de “especialista”, adotando alguma imagem ou história nos vêm à
uma postura de não-saber (Ander- mente ao escutar nossos clientes, ofe-
son & Goolishian, 1992). Terapeuta recendo uma possiblidade de sentido
e clientes navegam juntos no espaço para apreciação dos envolvidos no
aberto da terapia, buscando caminhos processo. Por outro lado, a metáfora,
possíveis para novos entendimentos muitas vezes, é oferecida pelos clien-
para os dilemas da vida, e ampliando tes espontaneamente ou em resposta a
as possibilidades de construção de no- alguma pergunta-convite que lhe faze-
vas narrativas que abram alternativas mos enquanto terapeuta. Nesses casos,
existenciais. Tal postura descentraliza podemos abrir conversações a partir
o poder das mãos do terapeuta, valori- da metáfora trazida ou construída por
zando o cliente como um “expert”, de- eles no momento.
tentor de um saber local e um conhe- A partir dessas considerações, pro-
cimento insider. Contudo, terapeutas e pusemo-nos a estender nossa compre-
clientes, nos seus distintos posiciona- ensão sobre o uso da metáfora para
mentos no processo da terapia, detêm além de nossa experiência particular.
uma expertise – o terapeuta, na organi- Assim, realizamos uma pesquisa qua-
zação dos contextos conversacionais; e litativa tendo por objetivo investigar o
o cliente, no território da experiência uso de metáforas durante as sessões de
vivida. terapia narrativa, prática com a qual
Na nossa prática clínica, as metá- nos identificamos. Uma de nossas in-
foras têm se apresentado como ferra- dagações referia-se a como poderiam
mentas auxiliares na conversação te- as metáforas construir possiblidades
rapêutica. Entendemos seu uso como nas diferentes modalidades conver-
um recurso útil para a construção de sacionais das práticas narrativas? Se-
significados para a experiência e pos- riam elas bons recursos para facilitar
siblidades de construção de novos os processos de externalização do

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problema, as conversas de reautoria, metafórica, dada a sua aplicabilida-
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ou conversações andaime, conversas de no campo do sentido em relação
de remembrança e cerimônias de de- à narrativa apresentada. Assim, uma
finição? Nosso objetivo foi explicitar situação drástica e inesperada vivida
o uso da metáfora na terapia narrati- poderia ser nomeada por um cliente,
va em geral, nos distintos processos por exemplo, como um tsunami. De
conversacionais que esta abordagem acordo com Grandesso, a qualidade
organiza. Partimos de um pressuposto metafórica pode ser compreendida
de que, ao construir uma metáfora, ou como (...) “uma qualidade de trans-
mesmo tomar como metáfora algum portar o significado de um contexto
recurso já existente (como contos, para outro contexto, caracterizando,
músicas, anedotas, ou outros), o clien- portanto, um como se, mas de forma
te pode concretizar seu entendimento implícita” (Grandesso, 2000, p. 143), e
de algum problema como externo a assim, acaba possibilitando a criação
si mesmo e visualizar possíveis alter- de uma nova unidade de sentido.
nativas para a situação em que se en- O referencial teórico assumido nes-
contra, favorecendo a construção de te trabalho foi a terapia narrativa, no
novos significados. Foi nossa intenção que se refere à teoria e prática, tendo o
ouvir outros terapeutas e expandir construcionismo social como contex-
nosso entendimento. to epistemológico. Além de ser uma
prática com a qual nos identificamos,
consideramos que esta abordagem
METÁFORA: UMA FIGURA DE amplia as possibilidades de desenvol-
LINGUAGEM A SERVIÇO DA TERAPIA vimento de novas histórias, da mesma
maneira que as metáforas o fazem,
Podemos compreender a metáfora apresentando-se particularmente útil
como uma figura de linguagem, um para os propósitos deste estudo. A pró-
tropo, pelo qual uma palavra ou ex- pria palavra “narrativa”, já se apresenta
pressão é emprestada de um contexto como uma metáfora para essa prática
para dar sentido a outro, favorecen- de terapia que associa a vida com his-
do a construção de campos de inte- tórias narradas, considerando que as
ligibilidade com novas unidades de narrativas organizam a experiência
sentido. Muito presente na literatura, vivida e que, a cada relato de uma his-
quando realizam sua função, metá- tória vivida, um novo relato vai sendo
foras falam por si, prescindindo de possível, envolvendo o relato anterior
explicações. Esse é o caso do título e indo além. Usando essa analogia do
do poema de Fernando Pessoa “Meu texto, considerando que a terapia nar-
pensamento é um rio subterrâneo” rativa caracteriza um contexto para
(Pessoa, 1995), em que a expressão rio reescritura das vidas e relações, White
subterrâneo constrói um sentido para (1988a) propôs uma terapia de méri-
a palavra pensamento. Nas terapias to literário. A busca de reconstrução
pós-modernas, dada sua ênfase sobre de significados pelo favorecimento
a linguagem e o significado, a narra- da reautoria de histórias alternativas
tiva dominante sobre a problemática é um dos caminhos da Terapia Nar-
vivida por um cliente pode ser subs- rativa, e se dá pela busca de histórias
tituída e/ou complementada por uma subordinadas às histórias dominantes
palavra carregada de significado, uma saturadas de problema, convidando as
história, ou outro tipo de construção pessoas que buscam por terapia não só

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a narrarem suas histórias, mas a cons- convidem novas descrições, abrindo e O uso de metáforas em
truírem histórias preferidas organiza- enriquecendo histórias estreitas, bus- terapia narrativa: facilitando 27
a construção de novos
das por novos significados. cando significados nas contradições e significados
Valéria Nicolau Paschoal
novas possibilidades nas exceções, la- Marilene Grandesso
cunas e aberturas para novos enredos.
UM POUCO DE TEORIA Seguindo por esses novos caminhos,
as histórias tornam-se mais densas,
A terapia narrativa desenvolvida por complexas e ganham novos significa-
Michael White e David Epston (1993) dos, permitindo novas maneiras de
pode ser compreendida como uma organização da vida. Este conceito de
prática construcionista social, que histórias ralas ou finas e histórias ri-
parte do princípio que a realidade é cas ou grossas, Michael White tomou
socialmente construída na linguagem emprestado de Geertz um antropólo-
e nos relacionamentos. Está baseada go americano que ressaltava também
na ideia de que construímos histórias a importância do conhecimento local,
carregadas de significados que mol- dos símbolos da cultura.
dam nossa história passada, nosso As histórias são relatos sobre even-
presente e futuro, e que os sentidos e tos ligados em sequências no tempo,
significados para as experiências vivi- organizados em torno de um enredo/
das, nascem nas relações. O outro está trama pelos quais procuramos dar
sempre presente nos relatos de vida, sentido à existência (Morgan, 2007).
seja de forma implícita ou explícita, Uma vez construída uma história do-
legitimando histórias ricas sobre com- minante, ela cria um campo de senti-
petências e autoria ou sustentando do que passa a moldar a vida, a visão
histórias estreitas e ralas sobre restri- de si mesmo e os relacionamentos.
tas possiblidades. O propósito da tera- Como uma espécie de ímã linguístico
pia narrativa, dado seus pressupostos, (Grandesso, 2010; 2011), narrativas
define-se como construir um contex- dominantes selecionam os aspectos
to conversacional de modo ajudar o da experiência que serão notados e in-
cliente a reescrever de forma “rica” corporados às histórias narradas como
histórias alternativas com detalha- argumentos corroboradores dos enre-
mento sobre acontecimentos, crenças, dos e identidades dos protagonistas.
propósitos, aprendizados e valores, Eventos que não se encaixam nas his-
entrelaçadas com as vidas das pessoas, tórias dominantes são negligenciados.
contribuindo para uma nova visão de Assim, as formas de vida possíveis
si mesmo e da vida. são ampliadas ou restringidas por
Do ponto de vista da conversação esses significados privilegiados em
terapêutica, a terapia narrativa convi- detrimento de outros, presentes nas
da o terapeuta a atentar para a lingua- narrativas dominantes.
gem e palavras usadas pela pessoa ao Um dos pontos que consideramos
relatar suas histórias, dilemas e proble- marcantes na terapia narrativa refere-
mas pelos quais buscam por terapia. -se ao alcance dos relatos para além
Palavras são como “pacotes” a serem do dito. Conforme ressalta Derrida,
abertos; compreendem vários signi- todo dito remete a um não-dito (Der-
ficados, que são diferentes para cada rida, 1995). A busca de compreensão
pessoa (Grandesso, 2000). O terapeuta pelo “ausente, mas implícito” (White,
narrativo contribui na abertura desses 2012; Grandesso, 2011) incita o tera-
“pacotes”, fazendo suas perguntas que peuta narrativo a ficar atento ao dito

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e convidar o cliente para compartilhar a experiência é muito mais rica do que
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o implícito, embora ausente, no seu qualquer possiblidade narrativa que
discurso dominante manifesto. O pro- podemos fazer sobre ela, portanto,
cesso de questionamento na terapia como pano de fundo, muitas linhas
narrativa, tomando o dito como porta de história são possíveis além da que
de entrada, favorece que as histórias se apresenta como dominante. Portan-
narradas se estendam no tempo e no to, sempre há histórias negligenciadas
espaço, ajudando o cliente a colocar que, convidadas para serem colocadas
em linguagem aspectos que, muitas em linguagem, favorecem novas nar-
vezes, seriam negligenciados pelo rela- rativas organizadoras de esperançosas
to oficial sobre os dilemas que as pes- possiblidades existenciais. Ao ganhar
soas vivem. Ao narrar, por exemplo, a visibilidade, histórias subordinadas ao
história de um problema, perguntas discurso dominante, permitem cons-
pelo ausente, mas implícito, podem fa- truir novas narrativas de vida e de ma-
vorecer novas narrativas sobre formas nifesto sentido de agência.
de superação, habilidades e competên- Novos significados e novas nar-
cias presentes. rativas de identidade emergem das
Todo problema narrado traz em si histórias subordinadas, apresentando
pelo menos duas linhas de histórias – as pessoas como agentes, conforme
a história do problema e a história da resgatam memórias e convidam rela-
forma de vida restringida ou ultrajada tos de experiências de competência e
pela situação adversa ou dilemática autoria. Novas histórias estão sempre
que a pessoa vive. Portanto, podemos, abertas a revisão, à medida que, con-
enquanto terapeutas, favorecer não forme ressalta Bruner (1994), nenhum
apenas o relato das histórias sobre o relato é completo, uma vez que sempre
problema, mas, também, as histórias se apresentam lacunas e contradições
das expectativas de vida almejadas que que possibilitam novos relatos e des-
estão sendo impedidas ou restringidas crições mudando o sentido presente
pelo problema, dos valores negados para incluir novas disposições afetivas.
pela situação adversa e também pe- As histórias apresentam-se sempre
las formas de resistência encontradas abertas para novas possibilidades de
pela pessoa diante dos desafios que o construção narrativa e, portanto, para
problema presente apresenta. Relatos nova organização das experiências vi-
de acontecimentos singulares, aque- vidas e, assim, novos sentidos de iden-
les que não se encaixam na história tidade. Nisto nos apoiamos enquanto
dominante saturada de problema, si- terapeutas narrativas ao buscarmos
tuados nos cenários da ação e do sig- pelas histórias de competência e de su-
nificado são as portas de entrada para peração, que as histórias dominantes
terapeuta e clientes, em ação conjunta, saturadas de problemas, geralmente
começarem a construir histórias al- ocultam. Cumpre ressaltar também
ternativas mais ricas e libertadoras. E que todo esse processo de transforma-
assim, de um jeito aparentemente sim- ção se dá na linguagem:
ples – mas na realidade parte de um
processo complexo de reconstrução de [...] dependemos da linguagem para
significados –, palavras são mudadas gerar nossas próprias narrativas,
e transmutadas no contexto de novas mesmo que canônicas, para conferir
descrições pelo resgate de histórias ne- um sentido à nossa existência. Como
gligenciadas. Como diz Bruner (1994) seres humanos, estamos sempre

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envolvidos em gerar um sentido para construídos pela pessoa acaba não O uso de metáforas em
nossas vidas, e fazemos isso interpre- tendo existência para ela (Grandes- terapia narrativa: facilitando 29
a construção de novos
tando a nós mesmos e ao mundo à so, 2011, p. 102). significados
Valéria Nicolau Paschoal
nossa volta, dentro do nosso sistema Marilene Grandesso
de linguagem e dos campos de senti- Para White (2012), diferentes ma-
do em que vivemos. Daí a importân- pas de mundo trazem diferentes in-
cia da linguagem, uma vez que sen- terpretações da realidade. O autor
tido, compreensão e entendimento só compreende que os problemas das
podem se dar no campo definido por pessoas são decorrentes da maneira
ela (Grandesso, 2000, p. 187). como atribuem significados aos fatos
da vida. Os significados atribuídos aos
A questão da busca de sentido para acontecimentos da vida são derivados
o que nos acontece faz parte de nossa das histórias que construímos e essas
existência em todos os tempos, como histórias determinam a maneira como
seres humanos. Buscamos dar algum passamos a estabelecer as diferenças
sentido às experiências vividas, pro- entre o que se apresenta como signi-
curamos organizá-las de uma maneira ficados privilegiados e o que é deixado
que seja significativa para nós, tornan- periférico ou fora de nossas narrativas,
do o nosso mundo compreensível e entendidos como significados subju-
dando continuidade às narrativas de gados. A história dominante apresenta
identidade pelas quais nos reconhe- uma força contextual, conforme de-
cemos como pessoas. White (2012) limita um território em que apenas o
afirma que geralmente as pessoas atri- que se encaixa com os eventos privile-
buem significados ao fatos da vida, por giados pela narrativa adquire visibili-
meio de histórias sobre a experiência dade. Cumpre ressaltar que construir
e que estas dão forma às suas vidas e significados pelas histórias narradas
relações. As pessoas constroem e dão apresenta-se como uma construção
significado à sua experiência cons- social da qual fazem parte as audiên-
truindo histórias e estas oferecem os cias significativas com as quais as pes-
argumentos que constroem os relatos soas compartilham suas vidas. Nesse
de suas vidas. Este é um processo em sentido, White (2012) considera que
aberto, uma vez que as histórias, con- as identidades são associações de vida,
forme o dissemos, podem sempre ser uma vez que não construímos nossas
reconstruídas: histórias sobre quem somos e como é
nossa vida no isolamento.
Assim, para Michael, os significa- A prática narrativa, portanto, de
dos que são atribuídos aos aconte- acordo com esses pressupostos teó-
cimentos da vida, construídos con- ricos, abarca a busca de elementos
tinuamente ao longo da existência, novos, revisitando, a convite do te-
decorrem dos mapas de mundo que rapeuta, estas experiências negligen-
a própria pessoa elabora. A forma ciadas, como portas de entrada para
como um acontecimento encaixa- expansão das histórias, pela inclusão
-se nos mapas de mundo – ou seja, de novas perspectivas, eventos alter-
nas pautas já conhecidas pela pessoa nativos, para a reconstrução dos sig-
no contexto da experiência vivida – nificados e ampliação das possibili-
determina a sua compreensão. Da dades existenciais. Os problemas que
mesma forma, um acontecimento as pessoas vivem são sustentados por
que não se encaixa nos mapas já ideias, crenças, princípios e práticas da

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cultura mais ampla. Esses problemas alternativa para expressar o conheci-
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são embasados em “verdades” dadas do e familiar de uma maneira nova e
como certas, que são as histórias ra- rica de sentido. Uma música, palavra,
las das vidas das pessoas que, muitas desenho, história, dentre outras possi-
vezes, não se lembram dos contextos bilidades, pode ocupar o cenário para
de origem e evolução e, até mesmo, representar uma situação ou signifi-
que são construídas. Esta terapia nos cado vivido, de outra forma. Alves, a
chama atenção para o fato que a vida é propósito do uso de metáforas em te-
multihistoriada, ou seja, vivemos mui- rapia, considera que as metáforas “São
tas histórias ao mesmo tempo, há vá- ferramentas que contém mensagens
rias histórias sobrepostas e nenhuma poderosas para auxiliar o paciente a
história está completa. Assim, sempre encontrar novas perspectivas e alter-
há a possibilidade de re-escritura das nativas para sua vida” (Alves, 1999, p.
histórias saturadas de problema. 64). Essa autora enaltece a comunica-
Em síntese, o trabalho com a tera- ção metafórica, afirmando que um sig-
pia narrativa traz a ideia de libertar as nificado pode ser transmitido de ma-
pessoas da influência limitante de his- neira mais fácil pelo uso de metáforas,
tórias dominantes, estreitas e ralas que do que pela comunicação direta.
constroem visões negativas de si mes- Anderson e Goolishian (1992) afir-
mas, em que aparecem inadequadas, mam que os problemas psicológicos
frágeis para lidarem com os problemas aparecem, mudam e desaparecem,
de suas vidas. Essa terapia objetiva a conforme mudam o vocabulário e as
reescritura das vidas de forma “rica”, descrições do terapeuta. Assim, as te-
buscando por histórias alternativas orias funcionam como lentes para a
com detalhes sobre acontecimentos, construção de significado que estru-
crenças, propósitos, aprendizados e turam a conversação terapêutica. De
valores das pessoas. acordo com Grandesso (1997), as te-
Durante a conversação terapêutica, orias do terapeuta pós-moderno têm
o diálogo favorece um recorte diferen- sua utilidade, na medida em que per-
te do evento narrado, no qual novas mitem aberturas para novos significa-
compreensões sobre os fatos da vida e dos na conversação, e que sejam mais
uma nova narrativa de identidade são libertadores. A utilização da metáfora
possíveis. Assim como quando empre- é uma forma rica de mudar o vocabu-
gamos uma metáfora para caracterizar lário dos clientes e possibilitar abertu-
uma situação vivida. Construída a par- ras para novos significados.
tir da narrativa do cliente, seu alcance As metáforas teóricas, de acordo
segue na direção de novos significados com Grandesso (1997), fornecem uma
e, portanto, de uma nova compreen- moldura para os terapeutas constru-
são da experiência. Partimos do pres- írem um sistema de inteligibilidade
suposto de que as metáforas são úteis que organize sua prática. Cada teoria
aliadas nesse processo de construção e vai lidar com suas próprias metáfo-
ressignificação. ras, presentes nas linguagens utiliza-
das para apresentar e compreender as
histórias dos clientes e de seus proble-
METÁFORAS E PSICOTERAPIA mas. Neste estudo procuramos com-
preender como as metáforas surgem
O uso de metáforas em psicoterapia, durante a conversação terapêutica
consiste no emprego de uma versão (não as teóricas, mas as que surgem

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da conversação); como são apresenta- de uma metáfora. Explica que a te- O uso de metáforas em
das pelos clientes, ou pelo terapeuta, rapia implica em uma “jornada”, em terapia narrativa: facilitando 31
a construção de novos
possibilitando a criação de uma nova que se chegará a destinos que não po- significados
Valéria Nicolau Paschoal
unidade de sentido; e como isto con- demos prever (terapeuta ou clientes), Marilene Grandesso
tribui para transformações significa- por rotas não previamente pensadas
tivas para as vidas e relações. Antes ou mapeadas. Assim, em terapia, te-
de apresentarmos a investigação que mos a oportunidade de sermos trans-
realizamos, vamos considerar os con- portados para outros lugares na vida
textos conversacionais próprios da Te- em que histórias são enriquecidas,
rapia Narrativa no que se refere ao uso são contadas de uma maneira dife-
de metáforas. rente do que eram contadas no início
da jornada. Isto nos conduz a novas
paisagens, convida o fator surpresa e
METÁFORAS E TERAPIA NARRATIVA toca a nossa emoção. No processo te-
rapêutico, as novas narrativas surgem
O contexto conversacional favoreci- a convite das perguntas do terapeuta.
do na terapia narrativa, conforme o Cada pergunta, um novo horizonte.
apresentamos até aqui, propõe-se a Poder parar para desfrutar as novas
considerar aspectos negligenciados da paisagens... do zoom para a tela pano-
experiência que permitam a amplia- râmica, a mudança de foco permite-
ção do olhar e uma nova compreensão -nos experimentar novos sentidos e
sobre as vidas e relações das pessoas construir significados até então não
que procuram a terapia. Compreende- pensados. Contudo, o uso da metáfo-
mos que o uso das metáforas contri- ra da história por Michael White, data
buem justamente para essa função de dos primeiros anos da década de 1980,
ampliação de alternativas existenciais quando o autor explorava as ideias de
pela introdução de um novo sentido à Bateson sobre “restrições” e “redun-
antiga história. dâncias” como conceitos para com-
A terapia narrativa pode ser vista preender como essas restrições trans-
como uma prática que oferece às famí- formavam os eventos em descrições
lias, casais, pessoas ou comunidades, (White, 2001). Contudo, incentivado
uma oportunidade para envolverem-se por Cheryl White e David Epston, sua
ativamente na construção de sua própria preferência pela metáfora narrativa
realidade. Na terapia, o intangível torna- tornou-se determinante para sua prá-
-se tangível, à medida que são explora- tica, dada a sua dimensão temporal e
das qualidades impensadas, implicando por sua mobilidade, conforme os rela-
liberdade, responsabilidade e constru- tos de vida são compreendidos como
ções. Nesse processo de construção das em constante desenvolvimento. A me-
suas possibilidades, os clientes recons- táfora narrativa oferece uma compre-
troem a sua narrativa de identidade e ensão para como os eventos das vidas
assim, a si mesmos. Esses significados das pessoas são ligados em sequências
presentes nas novas histórias podem or- no tempo e, na terapia proposta por
ganizar novos entendimentos da expe- Michael White;
riência vivida e, portanto, convidar no-
vas possibilidades existenciais, outras [...]” a metáfora narrativa no desen-
possíveis formas de vida. volvimento da prática terapêutica
O próprio Michael White (2007) convida-nos a pensar sobre como
definiu a terapia narrativa por meio podemos encorajar as pessoas a

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fazerem o que elas fazem rotineira- a revisitarem o “clube de sua vida”,
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mente – colocar os eventos de suas reintegrando pessoas significativas da
vidas em linhas de história – mas, vida e que estão distantes, rebaixando
em relação a alguns dos eventos mais alguns associados e mesmo banindo
negligenciados de suas vidas. Isto outros, conforme o lugar de importân-
abre possiblidades para o posterior cia que ocupam na vida das pessoas.
desenvolvimento de práticas terapêu- Durante estas conversações, White
ticas mais de-centradas do terapeuta (2012) ressalta a importância de pes-
e centradas nas habilidades de cons- soas significativas que influenciaram
truir significados das pessoas que e influenciam a construção da nossa
nos consultam. Esta tem sido uma identidade. Guiado pela metáfora do
das maiores atrações da metáfora “dizer olá”, por exemplo, no trabalho
narrativa para mim (White, 2001, p. com pessoas em luto, White (1988b)
135). fazia perguntas que possibilitavam a
abertura para as pessoas reivindica-
Podemos encontrar uma variedade rem suas relações com a pessoa que-
de usos de metáforas favorecidos nas rida que partiu. Esse reposicionamen-
diferentes formas de conversação tera- to em relação à morte de uma pessoa
pêutica. Nas conversações de externa- querida, possibilitou um certo alívio,
lização, as metáforas estão presentes diante da dificuldade em aceitar o ar-
principalmente no momento de ob- rebatamento de uma pessoa significa-
jetificar o problema, separando-o da tiva na história pessoal da cliente. Por
pessoa. Michael ressalta que a pessoa meio de seu trabalho com pessoas en-
é a pessoa e o problema é o problema. lutadas, White (2012) ressalta como a
Partindo de uma visão não essencia- conversação terapêutica caminha para
lista do self, a palavra externalização diferentes lugares, dependendo da me-
foi escolhida por favorecer a compre- táfora que o terapeuta é guiado. Neste
ensão de processo de desconstrução trabalho, o autor explica sua utilização
de uma visão da pessoa como sendo o da metáfora do “dizer olá”, em contra-
problema e a compreensão do proble- posição com a do “dizer adeus”. Para
ma como uma circunstância da vida. ele, “dizer olá” tem um poder de cons-
Já nas conversações de reautoria, truir possibilidades de vida despatolo-
o terapeuta estimula o cliente no de- gizantes e ampliadoras de possibilida-
senvolvimento de outras conclusões des, que não se mostram presentes na
de identidade positivas e a metáfora metáfora do “dizer adeus”.
pode ser muito útil para este fim. O Há um outro contexto da prática
processo de busca de novos significa- narrativa em que metáforas são par-
dos, durante as conversas de reauto- ticularmente importantes – o uso de
ria, faz surgir novos relatos a partir da testemunhas externas nas sessões
identificação de algum acontecimento como formas de cerimônias de de-
extraordinário que contradiz a história finição. Inspirado também por Bar-
dominante. bara Myerhoff, Michael considera a
Nas conversações de remembrança importância das audiências para dar
(White, 2012), Michael White valeu-se visibilidade a realizações, qualidades e
da metáfora da vida como um clube, valores presentes na vida dos clientes
inspirado no trabalho da antropóloga que, de outra forma permaneceriam
Barbara Myerhoff. Conversações de na invisibilidade. Na inclusão de teste-
remembrança convidam as pessoas munhas externas, ou seja, a presença

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de audiências especiais para contribuir pessoas, a partir da figura da ár- O uso de metáforas em
para a escritura de histórias mais ricas, vore como metáfora. Esta meto- terapia narrativa: facilitando 33
a construção de novos
White (2012) oferece um guia norte- dologia divide-se em quatro eta- significados
Valéria Nicolau Paschoal
ador da escuta para as testemunhas. pas: A árvore da vida; A floresta Marilene Grandesso
Palavras ou expressões que tocaram da vida; Quando as tempestades
a testemunha enquanto ouviam a en- chegam; Certificados e músicas.
trevista com o cliente, são enrique- Na primeira parte do processo
cidas por imagens ou metáforas que – Árvore da vida –, o terapeuta
surgiram durante a escuta do relato na pede para que cada pessoa de-
entrevista em andamento. Esse pedi- senhe uma árvore significativa
do fundamenta-se na possiblidade de da infância, em que cada parte
construção de sentidos para além da desta árvore representará um
palavra falada, favorecendo uma dupla aspecto da vida da pessoa: ra-
escuta – a do que está sendo dito do ízes representam as tradições
ponto de vista do conteúdo temático e origens – étnicas, religiosas,
manifesto e a do que pode estar sendo lugares de onde vem, dentre
dito, ausente, mas implícito, capturado outros; o solo no qual a árvore
como um sentido possível pelas pala- está plantada, local para serem
vras, imagens ou metáforas da teste- registradas ou desenhadas as
munha. Como parte da cerimônia de atividades nas quais as pessoas
definição, a testemunha externa ao ser estão envolvidas no dia-a-dia;
entrevistada pelo terapeuta renarra o o tronco estimula as pessoas a
que ouviu da pessoa que está em tera- falarem sobre suas habilidades
pia, compartilhando suas metáforas, e valores; os galhos significam
imagens, sons, cheiros que lhe vieram as esperanças, sonhos e desejos
à mente enquanto escutavam o relato. das pessoas em relação ao seu
Na terapia narrativa, as metáforas futuro; as folhas da árvore re-
também estão muito presentes nas presentam as pessoas importan-
práticas de narrativas coletivas. Den- tes na vida sejam elas vivas ou
borough (2008) nos apresenta algumas mortas, ou, até mesmo, animais
metodologias usadas e criadas por ele de estimação, personagens his-
e por outros terapeutas narrativos para tóricos, líderes ou outros; e as
ajudar pessoas, grupos e comunidades frutas representam os presentes
a lidarem com suas dificuldades. A “A que foram dados para a pessoa.
Árvore da Vida”, “O Time da Vida”, “A Agregada a esta metodologia,
Pipa da Vida” são alguns dos recursos as sementes convidam a se pen-
que podem ser utilizados em contextos sar no que a pessoa quer deixar
comunitários para favorecer, pelo uso como sua contribuição, uma es-
de metáforas, a construção de conver- pécie de transcendência.
sações transformadores (Denborough, A segunda parte da meto-
2008; Ncube, 2006). Neste trabalho, dologia – A floresta da vida –,
damos destaque a duas dessas práticas: favorece que cada pessoa seja
1. “A Árvore da Vida” é uma abor- incluída num contexto coleti-
dagem que permite se trabalhar vo, favorecendo o “comunitas”,
com situações traumáticas, mas a unidade na diversidade a que
não apenas nessas, com ênfase David Denborough faz menção,
nas competências, habilidades, citando Victor Turner (Den-
propósitos na vida e valores das borough, 2008). Já na próxima

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etapa – Quando chega a tempes- por meio de celebração dos gols,
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tade – as pessoas são convida- bem como sobre desafios e me-
das a identificar e falar sobre as tas na vida, na forma de gols a
dificuldades que enfrentam, re- serem marcados ou de estraté-
fletindo metaforicamente sobre gias para driblar os problemas.
os riscos que as árvores e flores- Da mesma forma, na escritura de
tas enfrentam nas tempestades “Documentos coletivos”, uma outra
que sofrem e a maneira como o metodologia criativa para trabalhos,
fazem. Pelo uso dessa metáfora especialmente, mas não somente, com
das “tempestades na floresta”, grupos e comunidades, Denborough
situações difíceis e traumáticas (2008) ressalta a importância da ela-
podem ser narradas sem o ris- boração da narrativa do documento de
co de retraumatizar. Finalmen- uma forma que favoreça ressonâncias
te, na última parte do processo na comunidade de leitores. O autor
– Certificados e músicas – são entende que um documento eficaz, é
celebradas as conquistas das aquele que permite que sejam ativadas
pessoas com entrega de certi- nas mentes das pessoas que ouvem
ficados, elaboração de cartas e ou leem, imagens, cheiros, sons, pai-
músicas, com o objetivo de que sagens, figuras e metáforas, como as
os participantes sejam reconhe- ressonâncias que possam construir fa-
cidos em suas capacidades e miliaridades entre vidas que até então
habilidades. seguiam separadas.
2. Já na metodologia “O Time da Aqui no Brasil, algumas metodo-
Vida”, a metáfora usada é a do logias semelhantes foram desenvol-
esporte, em que vão sendo fei- vidas por Adriana Müller – “Ritmos
tas reflexões e paralelos entre da Vida” (Müller, 2012, 2013) e por
os participantes em um jogo Ana Luiza Novis e Lúcia Helena Ab-
de futebol e a vida da pessoa. É dalla – “A Despensa da Vida” (Novis &
como se a vida fosse uma par- Abdalla, 2012, 2013). Em “Ritmos da
tida ou um campeonato de fu- Vida”, Adriana recorre à metáfora dos
tebol. Faz-se um paralelo entre instrumentos musicais para trabalhar
as pessoas significativas para a em situações individuais ou coletivas.
vida da pessoa e suas narrati- A música é utilizada como um meio
vas de identidade e os diferen- para acessar a história dominante das
tes posicionamentos (goleiro, pessoas e construir uma história alter-
defesa, ataque), outros jogado- nativa, possibilitando a transformação
res, técnico, reservas, gandula, do sintoma (o problema) em sintonia
bandeirinha, o campo, hino do reconectando-se com o que é impor-
time, torcedores, os melhores tante na vida, construindo relatos de
gols, entre outros. Esta proposta vida com uma harmonia própria das
reflexiva convida a construir o sinfonias. As pessoas fazem o desenho
time da vida, com pessoas ocu- de um instrumento musical que gos-
pando as diferentes posições – tam, são convidadas a refletir sobre
quem está no seu gol, por exem- qual o tipo de música que elas tocam
plo, quem defende/protege seus com este instrumento e qual seria a
objetivos? Por meio desta metá- reação da plateia ao ouvir sua músi-
fora, também pode-se falar so- ca. Em aplicações coletivas, os instru-
bre as conquistas e habilidades mentos são colocados lado a lado, para

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formarem uma “orquestra”, em que o era nossa intenção compreender como O uso de metáforas em
desafio é: como todos poderão tocar o uso de metáforas poderia: facilitar a terapia narrativa: facilitando 35
a construção de novos
seus instrumentos em sintonia? Uma criação de novos significados em te- significados
Valéria Nicolau Paschoal
“orquestra tentando entrar em sinto- rapia narrativa; auxiliar o processo de Marilene Grandesso
nia” é a forma metafórica de se falar externalização e conversas de reauto-
sobre um grupo que lida com alguma ria; e como metáforas estavam sendo
dificuldade. O trabalho finaliza-se utilizadas nas sessões terapêuticas, de
com a elaboração de um documento uma forma geral. Essas entrevistas fo-
coletivo (Denbrough, 2008) e a com- ram realizadas após autorização e as-
posição de uma música. sinatura do Termo de Consentimento
Na metodologia de prática narrati- Livre e Esclarecido (TCLE) e o projeto
va coletiva “A Despensa da Vida”, de- foi submetido à apreciação e aprova-
senvolvida por Novis e Abdalla (2012, do pela Plataforma Brasil, pela reso-
2013), a metáfora utilizada foi a da lução 466 de 12 de dezembro de 2012
doença como uma “visita inesperada” (CAAE: 09110912.7.0000.5482). A re-
que chega à casa da pessoa sem avisar. alização desta investigação foi constru-
Por meio desta metodologia, busca-se ída a partir de conversações dialógicas
resgatar a autoria das pessoas que se realizadas em forma presencial com
sentem reféns do problema, quando um dos participantes e, com os demais,
estão enfrentando graves doenças. A de forma virtual por Skype com grava-
autonomia da pessoa é resgatada, pois ção de voz. A partir das entrevistas re-
novas conversas vão sendo estabeleci- alizadas, fizemos uma organização dos
das, favorecendo a construção de his- significados presentes nos relatos dos
tórias alternativas que envolvam novas entrevistados, valendo-nos da poética
formas de a pessoa se relacionar com a social como forma de construir inteli-
sua doença. gibilidade para o que decorreu de nos-
Estas metodologias, cuja propos- sas conversações (Shotter, 2000).
ta, em si, já é metafórica, são ótimas
oportunidades para pessoas falarem
sobre suas habilidades e desenvolve- Participantes
rem histórias mais ricas.
Os participantes desta pesquisa foram
quatro terapeutas que se reconheciam
OUVINDO TERAPEUTAS NARRATIVOS como praticantes da abordagem narra-
SOBRE O USO DE METÁFORAS: tiva e que diziam, a priori, utilizarem-se
NOSSA INVESTIGAÇÃO de metáforas nas suas conversas com
seus clientes.
Para desenvolvermos esta pesquisa,
usando uma metodologia qualitativa,
entrevistamos quatro terapeutas que se Participaram da pesquisa:
apresentavam e se reconheciam como
terapeutas narrativos. O convite foi fei- Terapeuta 1: Psicóloga clínica, mestre
to para uma entrevista dialógica para em psicologia do desenvolvimento
verificar se, e como estavam usando pela UFES. Trabalhava principalmente
metáforas no seu trabalho clínico, e na abordagem da terapia familiar sis-
como compreendiam o seu efeito para têmica e práticas narrativas. No campo
os clientes e o processo terapêutico. da terapia narrativa, desenvolveu uma
Dentre os nossos objetivos específicos, metodologia coletiva.

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Terapeuta 2: Psicóloga clínica e para conversas possíveis em relação
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hospitalar, terapeuta de família, expe- aos propósitos desta investigação, por-
riente no trabalho com pacientes por- tanto, não eram perguntas para busca
tadores de doenças crônicas. Iniciou de dados. Além disso, muitas pergun-
seus estudos em Terapia Narrativa em tas surgiram de dentro da própria con-
2000. Em 2010, elaborou junto com versação, uma vez que o diálogo foi a
uma colega, a terapeuta 3 apresentada nossa principal ferramenta. Perguntas
a seguir, uma metodologia narrativa. foram para nós convites para uma con-
Terapeuta 3: Psicóloga clínica e te- versa em espaço aberto num sentido
rapeuta familiar. Possui experiência Deleuziano, ou seja, um disparador
no atendimento a pacientes com aco- para uma conversa com ponto de par-
metimentos orgânicos agudos e crôni- tida, mas, sem uma rota definida para
cos. Envolvida com a abordagem nar- seguir adiante, a não ser as sugeridas
rativa, criou junto com uma colega, a pelos objetivos deste trabalho.
terapeuta 2 acima, uma metodologia Realizamos ao todo três entrevistas:
narrativa coletiva que busca resgatar uma com a Terapeuta 1, uma com o
a autoria dessa pessoa que sente-se re- Terapeuta 4 e uma com as Terapeutas
fém da doença. 2 e 3, conjuntamente, para verificar se
Terapeuta 4: Psicólogo, mestre e e como as metáforas estavam sendo
doutor em psicologia clínica, terapeu- úteis no seu trabalho. As Terapeutas 2
ta comunitário, terapeuta de família e e 3 foram entrevistadas juntas por tra-
casal. Desenvolve diversos projetos so- balharem em dupla terapêutica com
ciais. Tem experiência em atendimen- seus clientes e por terem elaborado
to psicoterapêutico de adolescentes, uma metodologia narrativa que enfa-
adultos, casais e famílias. tiza o uso da metáfora.
Duas entrevistas foram feitas por in-
termédio do Skype (devido à distância
Instrumentos e procedimento geográfica das entrevistadas) e uma, re-
alizada no consultório do terapeuta en-
Uma vez que nossa investigação está trevistado. Com as informações levanta-
inserida num contexto paradigmático das nas entrevistas, fizemos uma análise
pós-moderno e construcionista social, do discurso com ênfase na poética social
optamos pela busca de inteligibilida- conforme definida por Shotter (2000),
de a partir de conversações abertas, buscando por momentos marcantes
utilizando-nos, como instrumento de nas conversas que tivemos com os par-
pesquisa, de entrevistas de base dia- ticipantes. Assim, depois de realizadas e
lógica. Contudo, por se tratar de uma transcritas as entrevistas, buscamos res-
conversação propositada, alguns eixos saltar pontos marcantes como unidades
temáticos serviram-nos de pontos de de sentido, surgidas durante a conver-
entrada. Apoiadas no arcabouço teó- sação com os participantes (Guanaes,
rico que embasa a terapia narrativa, 2006). Tentamos compreender de que
partimos de alguns questionamentos forma a metáfora estava sendo utilizada
básicos para a elaboração de perguntas nas sessões terapêuticas, como isso fazia
disparadoras que pudessem nos ajudar sentido para os terapeutas e possivel-
a compreender o sentido das metáforas mente para seus clientes.
na prática desses terapeutas. Tomadas A análise de discurso, segundo Ca-
como forma de gerar informações, es- regnato e Mutti (2006) trabalha com o
sas perguntas configuravam aberturas sentido do discurso – com a busca de

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efeitos de sentido pela interpretação –, e elemento essencial no processo tera- O uso de metáforas em
não pelo seu conteúdo. De acordo com pêutico, fazendo-se presente nas di- terapia narrativa: facilitando 37
a construção de novos
Guanaes (2006), uma análise pela poéti- versas formas de conversações da te- significados
Valéria Nicolau Paschoal
ca social envolve um processo de produ- rapia narrativa que realizavam. Tendo Marilene Grandesso
ção de sentidos baseado na perspectiva em vista as questões que nortearam
construcionista social. Uma investiga- este trabalho, após a leitura e arranjo
ção baseada na poética social objetiva das informações levantadas nas con-
descrever os processos de discurso e de versas com os participantes, construí-
relação de produção de sentido. mos algumas unidades de sentido que
se destacaram das falas dos entrevis-
Na prática da poética social, a pesqui- tados e as organizamos em temas que
sa emerge como um processo vivo de nos pareceram significativos:
construção e reconstrução de sentidos 1. facilitando a conversa terapêuti-
de mundo, que tem por objetivo a cria- ca por meio de metáforas;
ção de estratégias retóricas que permi- 2. tornando a conversa mais lúdi-
tam a abertura a novas possibilidades ca e facilitando que se fale de
de compreensão dos eventos investiga- coisas difíceis;
dos (Guanaes, 2006, p. 97). 3. possibilitando a nomeação
das experiências vividas e dos
Esta análise enfoca a importância do sentimentos;
pesquisador na produção de sentidos, 4. compreendendo o contexto do
pois será ele quem dará forma ou sen- cliente;
tido aos momentos marcantes que se 5. facilitando a mudança e a cons-
destacaram da conversa, no seu enten- trução de novos significados –
der. Na poética social, busca-se o inu- sendo autor da própria história;
sitado, o desconhecido e singular, não 6. trabalhando com a metáfora
os padrões ou repetições. Assim, o pes- que faz sentido para o cliente; e
quisador procura “construir relações 7. postura do terapeuta narrativo.
ou conexões criativas entre os eventos Passamos, a seguir, a considerar cada
estudados e outros aspectos da vida um desses temas como campos de sen-
social, ampliando as possibilidades de tido a partir dos quais podemos cons-
descrevê-los” (Guanaes, 2006, p. 97). truir nosso entendimento sobre o uso
Guiadas pela prática de análise pela de metáforas para o terapeuta narrativo.
poética social, buscamos organizar os
dados obtidos nas entrevistas em mo-
mentos marcantes pelo seu ineditismo 1. Facilitando a conversa terapêutica
ou singularidade, voltando nossa aten- por meio de metáforas
ção para eventos que destacamos como
possibilidades de ampliação da cons- Em alguns momentos, a metáfora foi
trução de unidades de sentido significa- percebida pelos terapeutas como fa-
tivas para os propósitos neste trabalho. cilitadora do diálogo terapêutico, em
que uma vez aberto o “pacote” da me-
táfora, por meio de conversações sobre
COMPREENDENDO AS METÁFORAS seu sentido e significado, economiza-
NA PRÁTICA DOS TERAPEUTAS va-se tempo. Ao expressar-se por meio
de uma metáfora que já fora apresen-
Os quatro terapeutas entrevistados tada na conversa, cliente e terapeuta já
consideraram a metáfora como um sabiam sobre o que estavam falando e

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não precisavam explicar ou contextua- A metáfora foi vista pelos terapeu-
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lizar novamente, não sendo necessário tas, de acordo com esse relato da Tera-
voltar no texto previamente construí- peuta 2, como um recurso que facilita
do sobre aquela metáfora. e amplia a conversa, trazendo o lúdi-
co e podendo favorecer o prazer da
“Ela encurtava um tempo de conver- conversa.
sa... Então esse modo de comunicar
particular, quanto menor ele for e
mais informação ele passar, melhor 3. Possibilitando a nomeação
é essa metáfora, porque é exatamen- das experiências vividas e dos
te uma coisa pequena que transmi- sentimentos
te uma ideia enorme, que diz tudo”
(Terapeuta 3). A metáfora também foi apontada pe-
los terapeutas, como uma maneira rica
Aqui, podemos perceber a ideia da de as pessoas poderem expressar suas
metáfora como algo que “diz tudo”, experiências vividas e sentimentos de
como um uso econômico da lingua- uma maneira própria.
gem como ferramenta que ajuda a co-
municar tópicos complexos com pou- ... então é muito mais tranquilo você
co esforço de elaboração. falar do Parkinson como “doutor tre-
melique”, do que como Parkinson,
sabe, essa coisa do diagnóstico, ele
2. Tornando a conversa mais lúdica além de ser fechado e pesado, ele é
e facilitando que se fale de coisas fechado mesmo, ele é estreito, ele te
difíceis deixa sem muitas opções de saída,
a não ser aquelas predeterminadas
Os terapeutas relataram que a metá- pela medicina ou pela tecnologia. E
fora trazia uma nova maneira de se na hora que você então dá um ou-
falar sobre assuntos difíceis, duros, tro nome, que a pessoa da um outro
tornando a conversa mais leve e lúdi- nome, né, porque é ela que está con-
ca. Ressaltaram que o lúdico era inclu- vivendo com aquilo, ela que consegue
ído na conversação pelo terapeuta, de nomear melhor. Então na hora que a
maneira cautelosa, para que o cliente pessoa dá um nome, aquilo fica mais
não se sentisse desrespeitado no seu suave, porque, então, “já que eu dei
sofrimento. um nome, eu também posso dar um
“... porque inclusive, é uma forma tratamento, eu também posso dar
muito mais fácil, muito mais delica- uma solução pra isso... eu não fico
da, de você falar de situações muito mais refém de uma prática que vem
dramáticas. Porque se você pontua e do outro”, do tratamento que vem
fala de uma forma literal, não poéti- do outro, do diagnóstico que vem do
ca, é muito difícil às vezes de a pessoa outro, de uma medicação que vem
ouvir, ela não vai ter espaço suficiente do outro, ou uma terapia que vem
pra ouvir aquilo num bom lugar. Mas do outro, é como se ele se tornasse,
se você começa a trabalhar isso usando um problema que eu conheço a ponto
a metáfora, usando um texto poético, de poder dar um nome pra ele, e
pra conversar sobre uma questão tão portanto, se eu conheço, eu consigo
difícil, você facilita essa conversa” (Te- arrumar as minhas formas de lidar
rapeuta 2). com ele (Terapeuta 1).

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Essa nova maneira de se falar sobre Assim como afirmam Combs e Fre- O uso de metáforas em
os problemas, reforça o sentimen- edman (1990), os terapeutas entrevista- terapia narrativa: facilitando 39
a construção de novos
to de agência das pessoas, de autores dos acreditam que a metáfora possibilita significados
Valéria Nicolau Paschoal
da própria vida e possibilita com que ao cliente comunicar algo para além dos Marilene Grandesso
revejam a relação que mantém com níveis verbal e não verbal, permitindo
seus problemas, pois podem lidar que o terapeuta se conecte com ele em
com aquilo que conhecem (com o que outras dimensões de sentido.
nomearam).

5. Facilitando a mudança e a
4. Compreendendo o contexto do construção de novos significados –
cliente sendo autor da própria história

Os terapeutas trouxeram a ideia de que A metáfora foi apontada diversas vezes


uma metáfora transporta o significado como uma das maneiras para as pes-
de um contexto para outro, possibi- soas se legitimarem como autoras da
litando que o terapeuta compreenda própria história, reescrevendo-a em
também os sentimentos do cliente em narrativas mais libertadoras e gerando
relação à história contada, porque ele um contexto propício para a mudança
mesmo pode experienciar tais senti- terapêutica.
mentos quando é tocado por uma me-
táfora, sendo transportado para outro Você tem uma conversa que amplia
contexto. o tempo inteiro, que legitima como
a pessoa construiu os entendimentos
E tem uma outra característica, em dela e estimula ela a construir no-
geral, as metáforas, elas são pala- vos entendimentos. E você o tempo
vras “pacotes” que te transportam todo convida essa pessoa a lembrar
pra universos muito ricos. (...) Eu que ela é autora da vida dela, por-
acho que a tarefa do terapeuta é se que você sai do lugar do que sabe,
transportar para esses lugares que do especialista, e dá a essa pessoa
as metáforas convidam. Eu acho a autoridade de ser a grande espe-
que ele tem que se transportar com cialista, e essa é uma conversa to-
seu cliente, com a sua família, pra talmente original (...). Então é uma
esses lugares, pra ele ir fazendo, ir mudança de conversa total, é um
tecendo essas compreensões que as outro paradigma, é uma outra posi-
metáforas abrem (...) e elas me fa- ção (Terapeuta 2).
cilitam muito! Porque ela implica
em menos esforço intelectual, va- Portanto, dado que a metáfora,
mos dizer assim. É como se quando como unidade de sentido, apresenta-se
a metáfora surge, eu pudesse pen- como pessoal, o sentido de autoria é
sar menos no que está sendo dito, favorecido. Alguns terapeutas também
e apreciar mais no sentido de estar enfocaram a possibilidade de a pró-
junto com meu cliente... (...) Mas pria terapia ser concebida como uma
como a metáfora me chama pra um leitura e escrita de textos. E conforme
lugar mais existencial e vivencial, novas leituras vão se dando, novas
então isso facilita muito. Facilita interpretações e uma nova escritura
pelo livre trânsito no diálogo com o surgem, completamente idiossincrá-
cliente (Terapeuta 4). ticas. Por meio de conversas criativas,

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cria-se uma história inédita, em que o história, quando a metáfora é sugerida
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cliente é o autor. pelo terapeuta.

6. Trabalhando com a metáfora que 7. Postura do terapeuta narrativo


faça sentido para o cliente
Todos os terapeutas narrativos enfa-
Com relação às metáforas, os terapeutas tizaram a questão da postura do tera-
enfatizaram a necessidade de serem usa- peuta, não somente como uma ques-
das com cuidado, sempre questionando tão de ordem teórica, mas algo mais
se o cliente concorda em continuar por íntimo, construído ao longo de muito
este caminho, e trabalhar com a metáfo- estudo e tempo.
ra que faça sentido para o cliente.
Agora não é porque é uma coisa sim-
Ah, ajuda bastante, desde que a ples, que ela é fácil... ela requer mes-
metáfora seja ... é importante que mo um cuidado com a forma com
venha do cliente, ou se você sugerir, o que você fala, com o jeito... é uma
tenha muita conexão com o cliente, postura, sabe? Eu acho que a terapia
então eu acho que esse é um cuidado narrativa não é algo que pode estar
que a gente precisa ter (...). Se a gen- só na cabeça, não é só um conceito,
te traz uma metáfora nossa, “nos- é uma mudança de postura sua, en-
sa, achei super legal essa metáfora, quanto terapeuta, de realmente não
vou levar pra fulano” e isso não faz aceitar a ideia de que um problema
sentido, vai ser a mesma coisa que possa ser maior do que uma pessoa.
um diagnóstico, vai limitar, não vai Então eu acho que essa postura, essa
ter a possibilidade de ampliar, de indignação que você fica por dentro
crescer, de expandir, vai continu- mesmo, faz com que você fale mais,
ar sendo tão limitante quanto um pergunte mais, se conecte mais com
diagnóstico. Então essa questão de a pessoa do que com o problema. Isso
ser algo que faça sentido, que seja não é uma coisa racional, é uma coi-
significativo para o cliente é muito sa que acontece na linguagem. (...)
importante (...) Então é isso, a gen- Eu acho que é uma coisa que vem
te não pode impor belas metáforas. muito de dentro (Terapeuta 1).
Não é algo que vem pronto, que vem
de fora... é algo, sem sombra de du- O terapeuta narrativo conforme
vida, construído ali na relação do este relato da Terapeuta 1, trabalha
cliente com o terapeuta e que a gente com muita sensibilidade, criatividade,
tem que tomar cuidado pra ser algo respeito e cuidado. Convém lembrar,
que seja significativo para aquela conforme Michael White afirma, que o
pessoa, porque aí ela funciona! (Te- terapeuta tem uma posição descentra-
rapeuta 1). da e influente durante as conversações
terapêuticas (White, 2012). Assim, o
Assim, os terapeutas reforçaram a terapeuta legitima seus clientes como
postura de não-saber do terapeuta pós- os especialistas de suas próprias vidas.
-moderno, pois é o cliente que conhe- O terapeuta é influente, no sentido de
ce sua própria história, e é ele quem vai criar perguntas que permitam que as
eleger uma metáfora como significati- histórias sejam ricamente descritas e
va, ou aceitar sua aplicabilidade à sua de construir contextos conversacionais

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distintos. O terapeuta tem muita res- e clientes co-constroem a terapia e a O uso de metáforas em
ponsabilidade ao ser introduzido nos relação terapêutica, e, neste lugar de terapia narrativa: facilitando 41
a construção de novos
contextos de intimidade dos clientes. encontro pelo diálogo, novos selves e significados
Valéria Nicolau Paschoal
Começando por honrar a história das novos mundos tornam-se possíveis. Marilene Grandesso
pessoas que o procuram, o terapeu- Podemos ressaltar, a partir das con-
ta segue politicamente posicionado, versas com os participantes desse es-
trabalhando a serviço do empodera- tudo que a terapia narrativa, no uso
mento e sentido de agência, a favor da que faz das metáforas, pode favorecer
reautoria de vidas e identidades. Ao a construção de significados e a reor-
embarcar numa jornada singular com ganização das histórias do cliente em
seus clientes, respeitando seus saberes, narrativas mais libertadoras, na qual ele
coloca-se como uma parceiro para fa- tem o papel de autor. Metáforas estão
vorecer mudanças, ajudando-os a re- muito presentes nos distintos momen-
escrever suas histórias. tos de conversações da terapia narrativa
e em distintas formas. A começar, como
enfatizamos anteriormente, pelas metá-
CONSIDERAÇÕES FINAIS foras teóricas pelas quais construímos
nosso entendimento das histórias das
Quando começamos esta investigação, pessoas que nos procuram (Grandesso,
era minha intenção (Valéria) pensar 2001). Como afirma Morgan (2007, p.
em escrever sobre o uso de metáforas 14), quando embarcamos numa nova
em terapia com famílias. A primeira jornada com um cliente: “Não há cami-
ideia era fazer uma compilação de his- nho ‘certo’ a percorrer – simplesmente
tórias, poemas e outras formas meta- diversos rumos possíveis a escolher.”
fóricas de comunicação, que pudessem Cada passo, um novo horizonte, enfa-
ser usadas em determinados momen- tizando que cada pergunta feita por um
tos da terapia e para determinados ca- terapeuta narrativo, abre caminhos pos-
sos. Desde nossas primeiras conversas síveis na jornada terapêutica.
em parceria enquanto autoras deste Acreditamos que a metáfora pode
projeto, compreendi (Valéria) que isso ampliar o conhecido, tornando fami-
não faria sentido no contexto das tera- liar o até então desconhecido e não-
pias pós-modernas, com as quais nos -familiar. Mas também, ao longo desta
identificamos. Seria como elaborar um investigação, pudemos compreender
“manual” para o uso de metáforas em os riscos de encantamento com a me-
terapia, em que o terapeuta estaria sen- táfora usada, numa espécie de cegueira
do posicionado como um expert, que que não permite enxergar além daquela
escolheria a metáfora que o cliente pre- figura criada no contexto terapêutico.
cisaria naquele determinado momen- Metáforas, como formas de linguagem,
to. Obviamente, isso não só não faria não refletem a “realidade” do cliente,
sentido, como não seria útil numa prá- da forma como um espelho reflete uma
tica organizada pelo diálogo. imagem, devendo ser compreendida
Como nos lembra Schnitman e como uma construção social dentre jo-
Fuks (1994), a terapia não trata de gos de linguagem possíveis.
corrigir um déficit, mas de possibili- Chegamos ao final dessa jornada
tar a criação de contextos para que os com a sensação de transportarmos uma
clientes acessem suas possiblidades “maleta”, repleta de histórias, que po-
e encontrem um lugar de autores de dem ter seu sentido compreendido por
sua própria vida. Assim, terapeutas diferentes tropos: das letras de música,

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anedotas, piadas, desenhos, até outras Andolfi, M., Angelo, C., Menghi, P., &
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formas possíveis de metáfora. Usá-las Nicolò-Corigliano, A. M. (1984). Por
para depois “esquecê-las” – assim como trás da máscara familiar: um novo
as teorias – para simplesmente (e não fa- enfoque em terapia da família. Porto
cilmente) poder estar em contato com a Alegre: Artes Médicas.
pessoa que vem nos procurar buscando Andolfi, M., & Angelo, C. (1989). Tempo
ajuda, na instigante tarefa de construir e mito em psicoterapia familiar. Por-
novos sentidos. Falar de forma mais lú- to Alegre: Artes médicas.
dica, dizer muito com pouco, permitir a Caram, C., & Matos, G. (2002). Contos
autoria da própria história, criar cone- e metáforas em terapia. Belo Hori-
xões entre os participantes, muitas são as zonte: Grupo Passarela.
formas de vida favorecidas por metáfo- Bruner, J. (1994). Realidad mental
ras, além de ampliar as possibilidades de y mundos posibles, los actos de la
compreensão entre clientes e terapeutas. imaginación dan sentido a la ex-
Independentemente de qual metá- periência. Barcelona: Gedisa.
fora, de qual história utilizar, qual será Caregnato, R., & Mutti, R. (2006). Pesqui-
a mais ou menos viável, o importan- sa qualitativa: análise de discurso ver-
te é que faça sentido para o cliente e sus análise de conteúdo. Texto Con-
que ele queira caminhar nesta direção. texto Enfermagem, 15 (4), out-dez.
Dessa forma, a metáfora poderá ser Combs, G., & Freedman, J. (1990).
um elemento importante na organi- Symbol, story and ceremony: using
zação da conversa terapêutica sobre as metaphor in individual and family
vivências do cliente, no surgimento de therapy. New York: W. W. Norton.
uma nova narrativa mais libertadora, e Denborough, D. (2008). Práticas nar-
na geração de um contexto que possi- rativas coletivas: trabalhando com
bilite mudanças a partir de novos sig- indivíduos, grupos e comunidades
nificados construídos. que vivenciaram traumas. Adelaide:
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