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Pulsional Revista de Psicanálise, Anos XIV/XV, nos 152/153, 7-18

Psicanálise e mitologia grega

Lazslo Antonio Ávila

O s mitos são o nada que representa tudo. A psicanálise deve demais aos
gregos, principalmente para a sua mitologia. Os mitos são a Cornucópia
onde Freud encontrou inúmeros de seus principais protótipos, desenvolvidos em
suas brilhantes metáforas, e base para inúmeros conceitos centrais da
psicanálise. Neste artigo nosso objetivo é descreve os seguintes “mitos
psicanalíticos”: o Édipo, o Falo e a Castração, a Horda Primitiva, as
Protofantasias, a Cena Originária, o Narciso, a Pulsão, Eros, Tânatos, e
finalmente, o Inconsciente – o verdadeiro eixo mítico da psicanálise.
Palavras-chave: Mitologia, psicanálise, mitologia grega, Freud

M yths are the nothing that represents everything. Psychoanalysis owes much
to the Greeks, especially in relation to their mythology. Myths are the
cornucopia where Freud found several of his main prototypes, developed in his
brilliant metaphors and presented as the basis for many of the central concepts
of psychoanalysis. Our aim in this paper is to describe psychoanalytical myths,
such as those of Oedipus, the Phallus and Castration, the Primal Horde, Primal
Phantasies, the Primal Scene, Narcissus, the Instincts, Eros, Thanatos and, finally,
the Unconscious, which is the truly central myth of psychoanalysis.
Key words: mythology, psychoanalysis, Greek mythology, Freud
8 Pulsional Revista de Psicanálise

mitologia constitui um manancial Em sua obra magistral, “Totem e tabu”,


A inesgotável de alegorias, parábolas, Freud (1995: 21) defende essencialmen-
representações de atos, afetos e formas te o mesmo ponto de vista da permanên-
de vinculação que alimentam incessante- cia do ancestral em nós:
mente a imaginação dos povos. Tal
O caminho percorrido pelo homem da Pré-
como a mítica Cornucópia, podemos re- história em seu desenvolvimento nos é co-
tirar permanentemente de suas riquezas, nhecido pelos monumentos e utensílios
sem jamais a esgotar. Muito mais do que que nos legou, pelos vestígios de sua arte,
apenas fantasias, nos mitos residem as de sua religião e de sua concepção da vida,
formas originárias, a partir das quais o que chegaram até nós diretamente ou
homem discute o significado de suas transmitidos pela tradição nas lendas, nos
ações e os sentidos que atribui à sua mitos e nos contos, e pelas sobrevivências
construção do mundo. de sua mentalidade, que podemos voltar a
Para Mircea Eliade (1972), o mito “for- encontrar em nossos próprios usos e cos-
tumes. Além disso, este homem da Pré-his-
nece os modelos para a conduta huma-
tória é ainda, em certo sentido, contempo-
na, conferindo, por isso mesmo,
râneo nosso.
significação e valor à existência”. Para o
grande mitólogo romeno, O mito e todos os aspectos culturais que
a ele podem ser associados, mas princi-
... compreender a estrutura e a função dos
mitos nas sociedades tradicionais não sig- palmente as tradições de cada povo, são
nifica apenas elucidar uma etapa na histó- o sedimento comum dos processos inte-
ria do pensamento humano, mas também rativos entre os grupos humanos que
compreender melhor uma categoria dos organizam ancestralmente as experiên-
nossos contemporâneos. (Ibid.: 8) cias que serão, a cada tempo histórico,
realizadas pelos agentes concretos, indi-
Ions, em seu History of Mythology
víduos, famílias, agrupamentos e socie-
(1997: 6), declara que os mitos
dades. Espécie de fundo coletivo de
... situam-se caracteristicamente no passa- vivências, por meio de suas tradições e
do distante e nebuloso. Freqüentemente mitos, cada coletividade transmite seus
originado em tempos arcaicos quando as modos de organização subjetiva, seus
tradições que mantinham as pessoas uni- padrões interativos, seus processos de
das em famílias e comunidades maiores,
vinculação intersubjetiva, seus moldes de
eram transmitidas oralmente. Deviam ser
configuração das formas em que se po-
apresentados como histórias boas e memo-
ráveis, para sobreviver, mantendo seu ape- derá “ser”, em cada formação social, um
lo geração após geração, talvez vivendo “indivíduo” daquela cultura.
suas vidas em condições alteradas. O nú- Para a psicanálise, o mito é tudo. Essa
cleo da história sobreviveria, embora ela frase pode parecer pretensiosa, arrogan-
pudesse ser elaborada para se adaptar a te, exagerada, mas ela é simplesmente a
novas necessidades sociais. essência da verdade. (Existe essência?
Psicanálise e mitologia grega 9

Existe verdade? – o mito é a matéria viva para a edificação da ciência do incons-


que permite fazer estas questões, e é sua ciente.
condição de formulação). Os mitos perpassam toda a psicanálise.
Fernando Pessoa dizia que o símbolo é Procuraremos apresentar as inúmeras
o nada que é tudo. Assim é o mito em ocorrências dos temas mitológicos na
psicanálise: nada, tudo, essência, expres- obra freudiana, apontando para sua ori-
são, matéria, conteúdo, propósito, fon- gem, condições de ocorrência, etapas de
te, recurso, origem, alcance, intenção, desenvolvimento conceitual e realização
fenômeno, tradução, impossibilidade, na narrativa. Não pretendemos ser
solo, horizonte, criação, devaneio... exaustivos e provavelmente cometere-
A vida é só um sonho, dizem os poetas. mos injustas omissões, mas nosso pro-
Quem valorizou mais o sonho, do que a pósito é o de re-instaurar o trânsito
psicanálise? Quem pôs no sonho mais profícuo entre a tradição mitológica he-
substância, mais realidade, do que o pen- lênica e essa nova Odisséia que é a psi-
sar analítico? Onde Freud foi buscar sua canálise.
inspiração senão no sonho, e no sonho O Mito Fundamental: O grande e trágico
maior da humanidade, seus mitos? rei Édipo constitui o núcleo da teoria
Joseph Campbell (1993: 42) expressa freudiana. Para o criador da psicanálise,
maravilhosamente esta conexão: o complexo de Édipo é o “kern
komplex”, o complexo nuclear da perso-
... o sonho é uma experiência pessoal da- nalidade, e a principal dimensão a ser in-
quele profundo, escuro fundamento que dá
vestigada em qualquer tratamento
suporte às nossas vidas conscientes, e o
mito é o sonho da sociedade. O mito é o
analítico. O Édipo de Sófocles é ator-
sonho público, e o sonho é o mito privado.
mentado porque lhe foi vaticinado que
assassinaria seu pai e se casaria com sua
Para a psicanálise, desde Freud, a mito- mãe. Jocasta o desafia: “Quem, em so-
logia grega tem representado o grande nhos, não sonhou em se deitar com sua
repositório onde podemos buscar mode- mãe?” O rei, poderoso e impotente, tan-
los que organizem descrições teóricas, to mais realiza seu destino quanto mais
sustentem imagisticamente hipóteses, dele foge. E quando concretiza seu fado,
permitem articulações com os fenôme- ergue-se gigantesco sobre sua dor: cego,
nos clínicos e assegurem constructos enxerga mais que nunca; majestoso, se
para a investigação metapsicológica. exila em terras estrangeiras e alheias.
Freud asseverava que a mitologia era Humano, profundamente humano, assu-
uma das matérias imprescindíveis para a me sua condição perante os deuses im-
formação dos psicanalistas. Mas é inter- placáveis.
namente à própria obra escrita do funda- O tema do Rei Édipo percorre toda a
dor da psicanálise, que podemos rastrear obra freudiana, mas, curiosamente, não
a imensa importância da mitologia grega recebeu nenhuma grande expressão es-
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crita, enquanto um trabalho dedicado para si aquela que foi feita só para ele.
exclusivamente ao complexo e todos Que é dele e de mais ninguém. Esse al-
seus desdobramentos. No entanto, com- guém, pai terrível, é capaz de tudo para
parece em diferentes obras como: A in- mantê-la só para si. Ele a exige. Ele a
terpretação dos sonhos (1900), “Três monopoliza. Ele a tiraniza. Ele a impede
ensaios sobre a teoria da sexualidade” de entregar-se para o filho. Ele a domi-
(1905), “Contribuições à psicologia do na e a obriga a amá-lo. Ele a convence
amor” (1912), “Totem e tabu” (1912), a fazer coisas terríveis, entregar-se para
“Psicologia das massas e análise do ego” ele. Ele a toma, a usa, a ama. Ele, esse
(1921), “A dissolução do complexo de pai todo-poderoso, a quer como mulher.
Édipo” (1924), “O ego e o id” (1923), E o filho é seu rival. Luta de Titãs se
“Algumas conseqüências psíquicas da arma. Pai e filho na arena. Do combate
diferença sexual anatômica” (1925), terrível só pode sair um vencedor.
“Inibição, sintoma e angústia” (1926), O Complexo de Electra. Esse complexo
“As conferências introdutórias” (1917) e não existe. Proposto por Jung, foi rejei-
as “Novas conferências” (1933) etc. tado por Freud, que concebia o mesmo
Talvez o mito de Édipo seja o fio de complexo de Édipo tanto para os meni-
Ariadne para quem percorre o labirinto nos, como para as meninas. Assim, o
das mais de duzentas obras publicadas que existe é complexo de Édipo femini-
por Freud. Devemos discutir esse com- no. Naturalmente, nas mulheres o com-
plexo atentando para sua expressão no plexo é mais complexo. Mais rico, mais
masculino e no feminino: intrincado, mais instigante. A mulher
O Complexo de Édipo. Um menininho olha ama outra mulher, sua mãe. Quer tudo
sua mãe se penteando. Nenhuma outra dela, sua beleza, sua força, seu fascínio,
mulher parece tão bela como aquela, ne- seu marido. Percebe, com inquietante
nhuma se iguala àquela em graça, em certeza, que aquele ser que gera é um
possibilidade de amor, em reserva de poço. Poço dos desejos, poço da vida,
proteção carinhosa, em abismos de ter- poço dos prazeres, poço de dor, poço
nura. Quer essa mulher, quer tanto e tão dos possíveis. A pequena mulher rivali-
profundamente que seu sentimento não za com a mãe. A quer para si, e quer
cabe dentro dele. Quer possuí-la, quer suplantá-la. De repente percebe (veja-se
conhecê-la, quer fundir-se nela, quer a seguir uma descrição disso) que essa
controlá-la, quer satisfazê-la, quer mer- mulher é castrada, como ela. Volta-se
gulhar nela. Sonha acordado e dormindo imediatamente para o pai. Passa a desejá-
com ela. Devaneia. Deseja. Anseia. Seu lo e a desejar ser desejada por ele. Quer
amor é ciumento e possessivo e logo a boneca, o filho e o órgão mágico que
descobre o que está no seu caminho. produz filhos. Quer ser mulher e mãe.
Existe alguém. Existe um ser odiado e Feminiliza-se. Aprende as manhas, as
temido que se interpôs e reclama toda artimanhas e a arte de ser a mulher-fon-
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te, a mulher-terra, aquela que dá, ori- e Febe de áurea coroa e Tétis amorosa.
gem. E após com ótimas armas Cronos de curvo
O Mito do Falo e da Castração: No início, pensar,
diz Hesíodo, Urano, pai poderoso e cruel, filho o mais terrível: detestou o florescen-
devorava cada um dos filhos que Géa, a te pai.
(...)
Terra, lhe dava. Um dia esta esconde
Veio com a noite o grande Céu, ao redor da
Cronos, deus do Tempo, que assim que
Terra
se torna forte, luta contra e irá castrar Desejando amor sobrepairou e estendeu-se
seu pai, assumindo seu lugar. Assume a tudo. Da tocaia o filho alcançou com a
também sua arrogante egolatria e engo- mão
le os filhos que Réa, a Terra, concebe. esquerda, com a destra pegou a prodigio-
Essa também esconde um filho e Zeus, sa foice
forte um dia, o enfrenta e o castra com longa e dentada. E do pai o pênis
uma foice de ouro. Zeus dá início, então, ceifou com ímpeto e lançou a esmo para trás.
ao Ciclo dos Olimpianos, os deuses do (Hesíodo, 1992: 113 segs.)
Olimpo. Freud mostrou as conexões da
O Complexo de Castração. Nos homens
castração com a vida mental dos meni-
esse poderoso complexo é o que auxilia
nos e das meninas, falou, para fúria dos
o menino a renunciar à mãe. Abandona
seus contemporâneos e de muitos pós-
a mãe, para encontrar a mulher. Median-
teros, que a castração é o que organiza
te seu amor por si mesmo, e a essa par-
a identidade sexual. O falo, e não o pê-
tezinha tão poderosa e valorizada,
nis, é o organizador da sexualidade. A
consente em ceder a mãe ao pai e a pre-
anatomia é o destino, diz o helênico
servar-se inteiro. Narciso re-encontrado,
Freud.
mas excluído do paraíso, vai em busca
Terra primeiro pariu igual a si mesma de sua identidade. Herói que perambula
Céu constelado, para cercá-la toda ao redor pela Grécia de sua juventude, exilado do
e ser aos Deuses venturosos sede irresva- lar, em busca da aventura que o afirmará
lável sempre. como homem. Quem se castra simboli-
Pariu altas Montanhas, belos abrigos das camente pode partir liberto. Pode procu-
Deusas rar-se.
ninfas que moram nas montanhas frondo-
O complexo de castração nas mulheres
sas.
desencadeia-se pela descoberta da dife-
E pariu a infecunda planície impetuosa de
ondas
rença sexual anatômica. A menina olha o
o Mar, sem o desejoso amor. Depois pariu menino, se olha, compara ambos os cor-
do coito com Céu: Oceano de fundos re- pos. Vê nele uma coisa externa, interes-
moinhos sante, produtora de prazer e de inusitada
e Coios e Crios e Hipérios e Jápeto vida própria. Olha para si e vê a gruta,
e Téia e Réia e Têmis e Memória que ainda não sabe que é um poço. É a
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caixa de Pandora. Perplexa, pensa ter to mítico deve se processar: é o festim


sido ludibriada, traída, arrancada desse de comunhão onde os filhos devoram ri-
atributo. Não percebe ainda que nela, em tualmente o corpo do pai. Com essa in-
seu interior, está o seu prêmio, sua es- corporação-assimilação todos se
sência. Seu complexo a lança na resolu- igualam, se irmanam em culpa e em pro-
ção de seus sentimentos edípicos. Deixa jeto, fazem-se portadores dos mesmos
a mãe e volta-se para o pai. Será frustra- temores e das mesmas esperanças; criam
da nessas duas buscas. Será, como o a sociedade.
menino, excluída. Então se voltará para Diz Freud:
si, se re-descobrirá e imaginará a si pró-
A justiça social significa que recusamos
pria como a Cornucópia da vida. Mas para nós mesmos muitas coisas para que
deve encontrar o homem, deve estar no também os demais tenham que renunciar a
mundo, deve doar-se para receber. Deve elas, ou, o que é o mesmo, para que não
fazer-se mulher, não incompleta-castra- possam reclamá-las. Esta reivindicação de
da, mas incompleta-completante: é por igualdade é a raiz da consciência social e
isso que a mulher é o amor. do sentimento do dever (...) Assim, pois, o
Importante trabalho de Freud sobre o sentimento social repousa na transforma-
assunto é “A cabeça da Medusa”, de ção de um sentimento primitivamente hos-
1922, além, é claro, do caso do peque- til em um laço positivo da natureza de uma
no Hans (“Análise de uma fobia em um identificação. A massa se apresenta, pois,
menino de cinco anos”, 1909). como uma ressurreição da horda primitiva.
O Mito da Horda Primitiva: Freud conce- Assim como o homem primitivo sobrevive
beu uma fantasia mitológica para as ori- virtualmente em cada indivíduo, também
gens da humanidade. Baseado em toda massa humana pode reconstruir a hor-
da primitiva. (Freud, 1921: 1586 – tradução
Darwin, descreveu a família humana
minha)
das priscas eras: um macho poderoso é
cercado de fêmeas e de filhotes. Ciu- A seguir, esse genial criador estabelece
mento e tirânico, monopoliza todas as o fio de continuidade do homem indivi-
mulheres para si, e condena seus filhos dual com a grande coletividade humana,
à abstinência e à submissão. Um dia es- assentando a base mítica onde repousa a
tes se revoltam, lutam contra o pai, o matéria-prima da conformação psíquica
vencem em terrível luta, e o matam. Mas de cada sujeito humano:
o remorso os persegue, e o medo de que
Haveremos, pois, de deduzir que a psicolo-
todos passem a lutar contra todos os gia coletiva é a psicologia humana mais
leva ao primeiro contrato social: os filhos antiga. Aquele conjunto de elementos –
devem criar a comunidade de irmãos: que isolamos de tudo o referente à massa
iguais em direito, solidários na distribui- para construir a psicologia individual – não
ção das mulheres e na criação das leis. se diferenciou da antiga psicologia coleti-
Para que isso aconteça um grande even- va senão mais tarde, muito lentamente, e
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ainda hoje em dia só parcialmente. (Ibid.: Estruturas fantasmáticas típicas (vida in-
1589 – tradução minha) trauterina, cena originária, castração, sedu-
ção) que a psicanálise descobre organizan-
Na mitologia grega não encontramos um
do a vida fantasmática, sejam quais forem
exato paralelo com o mito da horda pri- as experiências pessoais dos indivíduos: a
mitiva, mas sem dúvida essa forma de universalidade destes fantasmas explica-
organização social era a que os cultos se, segundo Freud, pelo facto de consti-
gregos supunham que prevalecia nos tuírem um patrimônio transmitido filoge-
povos bárbaros fora da Hélade. Por neticamente. (Laplanche & Pontalis, 1976:
exemplo, na “Odisséia”, Homero descre- 486-7)
ve que os ogros eram devoradores de
As protofantasias são uma idéia maravi-
carne humana, e por isso desconheciam
lhosa: há algo estruturante, anterior ao
qualquer lei, qualquer ordem social. Edith
Hamilton, em sua magistral Mitologia, ser humano individual, algo que o mode-
também acentua que o sacrifício huma- la como o destino para os gregos. Esse
no, seguido de devoração, era a mais alta algo o impulsiona, o obriga, o conforma:
ofensa que se poderia infringir a quem essa constituição que o homem traz des-
quer que fosse, inclusive e principalmen- de que nasce é, ao mesmo tempo, aqui-
te, aos deuses. Estes puniam ao ofensor lo que é sua liberdade, sua afirmação.
não apenas com sua própria vida, mas Seremos os escultores desse barro com
pelas gerações vindouras, podendo atin- o qual somos feitos.
gir os descendentes até da quinta gera- Mircea Eliade pensa as origens do mito
ção. Foi o que se deu com Tântalo, rei em simetria:
da Lídia, que lançou sua casa real em O indivíduo evoca a presença dos persona-
desgraça. (Hamilton, 1983, “A casa dos gens dos mitos e torna-se contemporâneo
Átridas”, p. 357 e segs.) deles. Isso implica igualmente que ele dei-
O Mito das Protofantasias: No umbigo do xa de viver no tempo cronológico, passan-
inconsciente se abrigam certas fantasias do a viver no Tempo primordial, no Tempo
muito arcaicas, são as Urphantasien, as em que o evento teve lugar pela primeira
protofantasias. São elas: a fantasia do vez. É por isso que se pode falar no “tem-
assassinato do pai (que tanto remete ao po forte” do mito: é o Tempo prodigioso,
complexo de Édipo quanto ao mito da “sagrado” em que algo de novo, de forte e
de significativo se manifestou plenamente.
horda primitiva), a fantasia da sedução
Reviver esse tempo, reintegrá-lo o mais fre-
da mãe (obviamente, aquelas mulheres
qüentemente possível, assistir novamente
todas deviam buscar atrair outros ma- ao espetáculo das obras divinas, reencon-
chos, e não há Édipo sem uma Jocasta), trar os Entes Sobrenaturais e reaprender
o mito da Cena Primária, o mito da vi- sua lição criadora é o desejo que se pode
vência do feto no interior do útero e o ler em filigrana em todas as reiterações ri-
Mito da Castração. Laplanche e Pontalis tuais dos mitos. Em suma, os mitos reve-
as descrevem da seguinte forma: lam que o mundo, o homem e a vida têm
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uma origem e uma história sobrenaturais, e siado, assombrado, governa nossas fan-
que essa história é significativa, preciosa e tasias de origem. Freud a concebeu, ini-
exemplar. (Eliade, 1972: 22) cialmente, como uma encenação que
O Mito da Cena Primária: No início há procura dar conta de vivências infantis
sempre uma relação. É de uma relação traumatizantes, porque a criança não é
que nasce tudo o que vive. Na origem do capaz de lidar com a angústia emergen-
ser humano está a relação sexual. Em te frente à sua sexualidade, e projeta so-
sua origem mítica há também uma rela- bre seus pais seus fantasmas de
ção sexual mítica, fundante. Para os ín- concepção, nascimento e vida sexual.
dios Yanomami existiam dois gêmeos Ao longo de sua obra, Freud vai desen-
primordiais, e um teve que copular na volver a noção da cena primária como
barriga da perna do outro para poder dar um dos organizadores básicos da se-
xualidade infantil. Assim, a encontramos
origem a todos os homens. Na mitologia
nos escritos de 1908, sobre as teorias
grega é o céu e a terra se conjugando
sexuais infantis, sobre a curiosidade se-
em abraço amoroso.
xual, e exploração das diferenças sexuais
Sim bem primeiro nasceu Caos, depois anatômicas, e posteriormente em diver-
também sos outros trabalhos. Mas é no caso clí-
Terra de amplo seio, de todos sede irresva- nico “O homem dos lobos” (1918) que
lável sempre, encontraremos o mais dramático relato
Dos imortais que têm a cabeça do Olimpo
da importância crucial da cena originária
nevado,
para a constituição de aspectos do psi-
E Tártaro nevoento no fundo do chão de
amplas vias,
quismo infantil e da organização da neu-
E Eros: o mais belo entre Deuses imortais, rose. O pequeno paciente, quando tem
(...) apenas um ano e meio, semidesperta em
Réia submetida a Cronos pariu brilhantes seu berço e presencia seus pais no enlace
filhos: amoroso. A curiosa posição em que se
Héstia, Deméter e Hera de áureas sandálias, encontra o casal lança o menino em de-
O forte Hades que sob o chão habita um vaneios excitados que, mais tarde, con-
palácio jugando-se às suas pulsões pré-genitais,
Com impiedoso coração, o troante Treme- formarão uma estrutura complexa, onde
terra o pai será representado como um lobo,
E o sábio Zeus, pai dos Deuses e dos ho- sexualizado e temido, fonte de fobia e de
mens, fascinação, e revivescência de estruturas
Sob cujo trovão até a ampla terra se abala.
totêmicas, herdadas filogeneticamente. O
(Hesíodo, 1992: 111 e 131)
desvendamento da recordação dessa
Na psicanálise, a cena primária ou origi- cena é o que permitirá ao homem-lobo a
nária é o pai e a mãe no ato amoroso que reconstrução de sua história e o levanta-
nos gerou. Esse ato imaginado, fanta- mento da configuração de sua vida fan-
Psicanálise e mitologia grega 15

tasmática. mesmo para Eco... Para ele, tudo está


Saber da origem é saber do lugar que se em si mesmo, o próprio cosmos, que é
ocupa na Terra. Os mitos devem auxiliar a beleza, se concentra naquela imagem.
o indivíduo nessa procura. Afirma Elia- Como “Sua majestade, o bebê”, ele é o
de (1972: 18): “Conhecer os mitos é todo, ele é todo em si mesmo. Por isso
aprender o segredo da origem das coi- ele é fatal. É o mergulho sem fim em um
sas” e mais adiante: Mim que nega ao outro.
Freud deu tratamento excepcional ao
... o mito se refere sempre a uma “criação”,
narcisismo. Desde seu “Introdução ao
contando como algo veio à existência, ou
como um padrão de comportamento, uma narcisismo”, de 1914, Freud passa a
instituição, uma maneira de trabalhar foram atentar para a dimensão essencial que o
estabelecidos: essa é a razão pela qual os Eu desenvolve desde um primeiro tem-
mitos constituem os paradigmas de todos po mítico, em que vive um narcisismo
os atos humanos significativos. (p. 22) primário, onde este Eu se confunde com
o próprio mundo, até o lento despreen-
Na História da mitologia se relata que,
dimento dessa totalidade de um Eu, que
universalmente, o homem sempre tem
vai então re-investir sua libido neste ob-
acreditado em seres ideais que os guia-
jeto privilegiado que é o si-próprio. Ar-
riam: mazenador de libido, torna-se então o
Tais divindades possuem características Eu, o administrador dessa energia, para
humanas: têm pais e filhos, pertencem a a disposição de seus “interesses”. O
agrupamentos familiares. Um importante equilibrista ego necessita desse aporte
papel da mitologia é reforçar e justificar re- para ser capaz de lidar com seus três se-
lações de poder e liderança. (Ions, 1997: 7) nhores: a realidade, as pulsões e o su-
Para a psicanálise, essa mitologia é tam- per-Ego.
bém re-criada por cada pequeno ser hu- O Mito da Pulsão: Freud dizia que o con-
mano, quando elabora sua própria visão ceito de pulsão era “nossa mitologia”. A
de suas origens, através de uma mitolo- pulsão é misteriosa, insinuante, inefável.
gia pessoal. Trata-se de construção pes- Não se deixa apreender porque habita
soal, altamente singularizada porque uma fronteira: a da psique com o corpo.
fruto da organização interna do sujeito: Não se pode propriamente dizer que ela
suas fantasias, desejos, temores, anseios. é psicossomática, porque isso a conver-
Freud a descreveu em “Romances fami- teria em algo que “é”. Ela é, propriamen-
liares”, de 1909. te, mítica: está no interstício, está
O Mito de Narciso: À beira de um lindo “entre”, é habitante dos desvãos, dos
lago curva-se aquele cuja beleza as pró- meandros, da representação. É força
prias ninfas admiram e anseiam. Enamo- porque age, mas não se vê. É imperio-
rado de si mesmo, Narciso não tem sa e pulsante. Inquieta e inquietante. É a
olhos para ninguém, nem ouvidos, nem força viva que nos habita e faz viver.
16 Pulsional Revista de Psicanálise

Joseph Campbell, indagado sobre a Em O poder do mito, lê-se:


possibilidade do surgimento de novos Eu penso na mitologia como a pátria das
mitos, dizia: Musas, as inspiradoras da arte, as inspira-
Mitos e sonhos vêm do mesmo lugar. Vêm doras da poesia. Encarar a vida como um
de tomadas de consciência de uma espécie poema, e a você mesmo como o participan-
tal que precisam encontrar expressão te de um poema, é o que o mito faz por
numa forma simbólica. E o único mito que você. (Campbell, 1993: 57)
valerá a pena cogitar, no futuro imediato, é
Freud, como Platão, dará enorme rele-
o que fala do planeta, não da cidade, não
vância a Eros. Após tê-lo considerado
deste ou daquele povo, mas do planeta e
de todas as pessoas que estão nele. Esta é como o principal adversário da necessi-
a minha idéia fundamental do mito que está dade, o eleva à categoria de governante
por vir. único das pulsões de vida e do Eu, ar-
rostado apenas por seu terrível comple-
E, então, acrescenta: mento: a morte.
E ele lidará com aquilo com que todos os O Mito da Morte (Tânatos): A morte é um
mitos têm lidado – o amadurecimento do mito poderoso. Irmã do sono, rainha do
indivíduo, da dependência à idade adulta, esquecimento. Para Freud, Eros e Tâna-
depois à maturidade e depois à morte; e tos enfrentam-se em luta titânica por
então com a questão de como se relacionar todo o sempre. “Nascemos devendo
com esta sociedade, com o mundo da na- uma morte à natureza”, ele gostava de
tureza e com o cosmos. É disso que os mi-
citar. Na psicanálise toda a vida mental
tos têm falado desde sempre, e é disso que
é entendida como um amálgama de vida
o novo mito terá de falar. (Campbell, 1993:
com morte. A morte é entropia e anula-
33)
ção. A morte é a tendência irreversível
O Mito de Eros: O onipresente Eros é to- de toda matéria vivente. É a “pulsão si-
mado diretamente da mitologia grega lenciosa” ecoando em todo ato da vida,
para a plena contemporaneidade psica- inclusive na pulsão do conhecer.
nalítica. É ele mesmo, o deus belo, ca- No Vocabulário da psicanálise, encon-
prichoso, vingativo, poderoso. O deus tramos que um dos principais motivos
que tudo une, e que em seu projeto in- que levaram à criação da noção da pul-
cessante de agregação perturba a tudo são de morte foram os misteriosos me-
que está separado, e que quer repousar canismos da compulsão à repetição:
em diferença e distinção. Eros não pou-
A tomada em consideração, nos mais di-
pa ninguém, revolve, agita, atravessa, versos registros, dos fenômenos de repe-
conduz, derruba, ergue aos céus e lan- tição, que dificilmente se deixam reduzir à
ça aos infernos. Governa até mesmo aos busca de uma satisfação libidinal ou a uma
deuses, mas cai em suas próprias arma- simples tentativa de dominar as experiên-
dilhas e ama suas criações. cias desagradáveis. Freud vê neles o sinal
Psicanálise e mitologia grega 17

do “demoníaco”, de uma força irreprimível, re-elaborada das épocas arcaicas, da


independente o princípio de prazer e sus- existência e do caráter perturbador do
ceptível de se lhe opor. A partir dessa no- inconsciente para o homem de hoje:
ção, Freud é levado à idéia de um caráter
regressivo da pulsão, idéia que, seguida Dionísio encarna, segundo a bela fórmula
sistematicamente, o leva a ver na pulsão de de Louis Gernet, a figura do Outro. Seu pa-
morte a pulsão por excelência. (Laplanche pel não é o de confirmar e confortar,
& Pontalis, 1976: 530) sacralizando-a, a ordem humana e social.
Dionísio põe essa ordem em questão; des-
A pulsão de morte é também a grande pedaça-a, revelando pela sua presença um
responsável pela neurose do destino e, outro aspecto do sagrado, não regular, es-
por esse título, podemos verificar o im- tável e definido, mas estranho, inapreensí-
bricamento da tradição grega com a psi- vel e desorientador. Único deus grego
canálise. dotado de um poder de maya, está além de
O Mito do Inconsciente: O mais belo mito todas as formas, escapa a todas as defini-
da psicanálise. A-temporal, invisível, ções, reverte todos os aspectos, sem se
indivisível, onipresente, arquipotente. deixar encerrar em nenhum. Ao modo de
Criador de tudo que é humano. Base da um ilusionista, joga com as aparências, eli-
mente, operador dos desejos, maquinis- mina as fronteiras entre o fantástico e o real.
ta das realizações. Teia de todas as rela- Ubíquo, não está nunca onde está, está
ções inter, intra e transpessoais. Aranha sempre presente, ao mesmo tempo, aqui,
tecelã. Mito primevo que parteja todos alhures e em parte nenhuma. Quando apa-
os mitos. Alimento das lendas, do folclo- rece as categorias precisas, as oposições
nítidas confundem-se, fundem e passam
re, das tradições. Alma dos poetas. Lín-
umas nas outras: o masculino e o feminino
gua comum a todos os homens.
aos quais se aparenta, juntos; o céu e a
Diz Freud:
terra que une, inserindo, quando surge, o
Assim, o mito constitui o passo com o qual sobrenatural em plena natureza, exatamen-
o indivíduo emerge da psicologia de grupo. te no meio dos homens; o jovem e o velho,
O primeiro mito foi seguramente de ordem o selvagem e o civilizado, o distante e o
psicológica, o mito do herói. (Freud, 1921: próximo, o além e o aqui unem-se nele e por
172) ele. Mais ainda: ele apaga a distância que
separa os deuses dos homens, os homens
Encontramos no belo livro daquele que é
dos animais. (...) De um a outro as frontei-
considerado talvez o principal mitólogo ras bruscamente apagam-se ou são elimi-
da atualidade, Jean Pierre Vernant, uma nadas numa proximidade em que o homem
passagem descritiva do tremendo alcan- encontra-se como que arrancado de sua
ce do deus Dionísio para a alma grega. existência cotidiana, de sua vida ordinária,
Esse texto, muito embora essa não seja despossuído de si mesmo, transportado
absolutamente a intenção do autor, pare- para um longínquo alhures. (Vernant, 1992:
ce representar à perfeição uma descrição 83-84)
18 Pulsional Revista de Psicanálise

A psicanálise deve tudo à mitologia. ____ (1914). Introdução ao narcisismo.


Cada análise pessoal é uma jornada nos Op.cit. v. XIV.
mitos. Buscamos no inconsciente que ____ (1917). Conferências introdutórias
nos funda a matéria de que somos for- sobre psicanálise. Op.cit. v. XV.
mados. Dizia Shakespeare: “Somos ____ (1918). História de uma neurose in-
feitos da mesma matéria que os so- fantil (O homem dos lobos). Op.cit. v. XVII.
nhos”. Diz perenemente a mitologia: o ____ (1920). Além do princípio do prazer.
homem é um participante da grande Op.cit. v. XVIII.
aventura e da grande tragédia de ser um ____ (1921). Psicologia de grupo e aná-
lise do ego. Op.cit. v. XVIII.
poeta, um herói, um semi deus, um
____ (1922). A cabeça da Medusa.
semibicho, um ser que vive um destino
Op.cit. v. XVIII.
maior que ele mesmo e que, preso a seus
____ (1923). O ego e o id. Op.cit. v. XIX.
medos e limitações, pode, contudo, con-
____ (1924). A dissolução do complexo
vencer os deuses imortais a com ele de Édipo. Op.cit. v. XIX.
conviverem. „ ____ (1925). Algumas conseqüências
REFERÊNCIAS psíquicas da diferença sexual anatômi-
ca. Op.cit. v. XIX.
CAMPBELL, J. O poder do mito. São Paulo: ____ (1926). Inibição, sintoma e angús-
Palas Athena, 1993. tia. Op.cit. v. XX.
ELIADE, M. Mito e realidade. São Paulo: ____ (1933). Novas conferências intro-
Perspectiva, 1972. dutórias. Op.cit. v. XXII.
FRAZER, J. O ramo de ouro. São Paulo: Cír- ____ (1921). Psicologia de las masas y
culo do Livro, 1986. analisis del yo. Madrid: Biblioteca
FREUD, S. (1900). A interpretação dos so- Nueva, 1973. v. III.
nhos. E.S.B. Rio de Janeiro: Imago, HAMILTON, E. Mitologia. Lisboa: Editora
1995. v. IV. Quixote, 1983.
____ (1905). Três ensaios sobre a teoria HESÍODO. Teogonia – A origem dos deuses.
da sexualidade. Op. cit. v. VII. Estudo e tradução de J.A.A. Torrano.
____ (1907). O esclarecimento sexual das São Paulo: Iluminuras, 1992.
crianças. Op. cit. v. IX. IONS, V. History of Mythology. London:
____ (1908). Teorias sexuais infantis. Op. Chancellor Press, 1997.
cit. v. IX. LAPLANCHE, J. & PONTALIS, J.-B. Vocabulá-
____ (1909). Romances familiares. Op. cit.
rio da psicanálise. Lisboa: Moraes
v. IX.
Editores, 1976.
____ (1909). Análise de uma fobia em
VERNANT, J.P. Mito e religião na Grécia
um menino de cinco anos. Op.cit. v. X.
Antiga. Campinas: Papirus, 1992.
____ (1912). Totem e tabu. Op.cit. v. XIII.

Artigo recebido em junho/2001


Versão aprovada em novembro/2001

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