Filosofias da hora
e
Filosofia perene
Edições G R D
São Paulo
1990
Capa: Traço de Roberto R. Rocha
ÍNDICE
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fia perene, como veremos mais detidamente adiante. Ocupou- olhar inquiridor como um campo de Agramante, onde im-
se de alguns temas políticos como a questão da pena de perava a luta de todos sem possibilidade de encontro nem de
morte e o conceito de democracia. diálogo?
Monsenhor Emílio Silva exerceu ainda atividade do- Nesse instante é que toma contato com a obra de Angel
cente. Regeu cursos na antiga Faculdade Nacional de Filo- Amor Ruibal: Los problemas fundamentales de Ia filosofia
sofia, da Universidade do Brasil (1948-1950) e, durante mui- y dei dogma (1914) e Los problemas fundamentales de Ia
tos anos, lecionou na Pontifícia Universidade Católica do Filologia Comparada (1904-1906). Ruibal aponta-lhe um ca-
Rio de Janeiro. Tornou-se professor emérito e decano da minho, o da filosofia perene, e sugere alguns marcos do pro-
Faculdade de Direito da Universidade Gama Filho e cate- cesso de sua constituição.
drático de Filosofia Geral na Universidade do Estado da Gua-
A idéia de que haveria um critério segundo o qual
nabara (atual UERJ). Nesta apresentou duas teses para con-
poder-se-ia incorporar novas verdades ao legado da filosofia
curso: Filosofias da hora e filosofia perene (livre docência,
grega, preservado e reestruturado pela Escolástica, tinha sido
1962) e Nova fundamentação metafísica da ordem moral
(cátedra, 1963). Viajou muito para pronunciar conferências sugerido por Agostino Steuco (1497/1548), também conhe-
em universidades do México, Itália, França e Estados Unidos. cido como Steuchus Augubinus, pela referência à sua cidade
de origem (Gubbio), numa obra publicada em 1540. Popu-
Revelou-se também um grande estudioso da cultura es- larizada mais tarde por Leibniz (1646/1716), essa idéia aca-
panhola, tendo dedicado estudos a Menendez Pelayo, Una- bou perdendo o seu vigor pela tendência da neoescolástica,
muno, ao senequismo ibérico, à cultura medieval galego- iniciada no século passado e florescente no presente, de iden-
portuguesa, etc. Graças a isto foi nomeado membro titular tificá-la pura e simplesmente com o tomismo.
do Instituto de Cultura Hispânica, de Madrid, e recebeu a
O contato com essa problemática deixa entusiasmado ao
comenda da "Ordem de Isabel, Ia Católica". Integra também
jovem prelado. Amor Ruibal mostrava-lhe que nem tudo esta-
o Instituto Brasileiro de Cultura Hispânica, sediado no Rio
de Janeiro. va perdido. Eis como descreve o novo estado de espírito:
"Foi sobretudo sua criteriologia filosófica o que mais
Sua paixão pelos livros levou-o a constituir uma biblio-
teca com cerca de 70 mil volumes, entre os quais muitas me impressionou. Descontente com as tediosas e fáceis expo-
raridades bibliográficas. sições e análises dos sistemas que mais agitaram a mentali-
dade moderna, topava de repente com um robustíssimo pen-
No período de sua formação, o jovem padre Emílio en- sador que, possuidor de assombrosa e universal cultura e
contrava-se em grande perplexidade diante da falta de uni- conhecendo as grandes criações do pensamento segue-as em
dade e da dispersão vigente nas filosofias moderna e contem- seus meandros e descobre-lhes a filiação e recíprocas cone-
porânea. Na biografia intelectual que elaborou a pedido do xões. Amor capta em sua gênese e segue a trajetória de cada
Padre Stanislavs Ladusans — por este incluído em sua obra sistema, percorrendo com os próprios pensadores o caminho
Rumos da filosofia atual no Brasil, em auto-retratos, São mental por eles trilhado, a fim de descobrir-lhes a índole e
Paulo, Loyola, 1976, Emílio Silva, auto-retrato filosófico, estrutura nos menores matizes e poder assim apreender, com
págs. 171-220 — diz que então se colocava a seguinte ques- justeza, o que de positivo ou de inconsistente encerra cada
tão: "Como vencer essa crise e adentrar-se, com ânimo deci- um. Que prazer mental, que satisfação para qualquer espí-
dido e sereno, pelos arraiais de uma disciplina que, mesmo rito sequioso da verdade ver como o grande Mestre, defron-
exercendo um fascinante atrativo, só se apresentava ao meu tando-se com o positivismo e com o idealismo romântico
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à minha vontade, orientaram as minhas atividades noutras
penetra por assim dizer no interior de ambos os sistemas e direções. Todavia, nunca desisti de meu propósito e muito
vai direto aos seus pontos de vista capitais. Mas não pára tenho meditado o problema metafísico, dentro da esfera filo-
aí, pois, servindo-se logo dos mesmos pressupostos lógicos
sófica."
e metafísicos dos autores estudados, coloca-os em constante
contradição interna e os conduz com inflexível dialética ao Nos sessenta anos desde então transcorridos, Monsenhor
aniquilamento do próprio sistema. Emílio jamais perdeu de vista o seu projeto original. Averi-
guou detidamente o significado metafísico do existencialismo
Subjugado pelo amplo panorama de sua concepção cien- e do neopositivismo, a fim de avaliar se não atenderiam à
tífica e pela mágica de sua dialética, adentrei-me logo no
pretendida restauração metafísica. Sua conclusão seria nega-
estudo de toda a sua obra.
tiva e, no que respeita à primeira das correntes, a apresen-
Amor Ruibal, antes da formulação de suas doutrinas taria no II Congresso Nacional de Filosofia, realizado em
pessoais, estuda e torna objeto de sua acertada crítica todos Curitiba em 1953, na comunicação intitulada "Para uma de-
os grandes sistemas filosóficos, assestando rudes golpes tanto finição do existencialismo".
no platonismo como no aristotelismo, no idealismo em suas Muito escreveu sobre Angel Amor Ruibal, entregando
variadas modalidades como no empirismo, não saindo nin-
à publicação os seguintes ensaios: "Amor Ruibal, metafísico"
guém ileso de suas investidas.
(Pontevedra, 1931); "En torno a unos inéditos de Amor
De modo particular, submete a severo exame o esquema Ruibal" (Salamanca, 1969); "Recordando ei Maestro" (Ma-
metafísico aristotélico-escolástico; peça por peça o vai des- drid, 1969) "No centenário de um sábio, Amor Ruibal"
montando e fazendo ver quanto de artificioso e inconsistente (São Paulo, 1969); e recentemente "Amor Ruibal, genial
encerra na grande maioria de suas afirmações capitais. renovador de Ia filosofia cristiana", Homenaje a Mons.
A conclusão que era mister deduzir parecia-me óbvia O. N. Derisi, Buenos Aires, 1988.
e veio-me sem tardar à mente: a Metafísica tradicional ne-
cessita, não apenas de uma revisão, mas sim de uma com- O tema da filosofia perene aparece na mencionada tese
pleta reformulação; partindo de método mais apropriado, de livre docência, concluída em 1962 (Filosofias da hora e
cumpre reedificá-la sobre novas bases. filosofia perene). Igualmente no referido autoretrato, apa-
recido em 1976, traça um amplo painel do caminho a se-
A idéia empolgou-me e, sem reparar na pequenez e na
guir para alcançar o que denomina de "unidade orgânica
desproporção de minhas forças para um tal empreendimento,
objetiva dos ramos do saber filosófico". Acredita sobretu-
comecei a tomar apontamentos e orientar minhas pesquisas
do ter solucionado satisfatoriamente a complexa relação
no intuito de escrever uma Ontologia em novos moldes, na
entre a condição de católico e a de filósofo. Resumindo-a,
qual aproveitasse todas as sugestões do pensamento reno-
teria oportunidade de afirmar: "Enfim, acho que se, por um
vador e originalíssimo do Mestre de Compostela".
lado, o pensador cristão há de sentir-se plenamente livre no
O jovem padre Emílio freqüentou o mestre e dispôs-se vasto campo das ciências e da especulação racional, sem que
a completar a sua obra, levando em conta, como diz, "que a sua fé religiosa obste esta liberdade, desde que se mova
a parte construtiva do seu sistema correlacionista não che- sempre com amor puro e irrestrito à verdade; por outro, o
gou o autor a publicá-la". Ruibal morreria logo depois. A par pensador cristão, no que sob alguns aspectos oferece como
disto, informa Monsenhor Emílio: "Não cheguei então a redi- prolongamento das aquisições da razão filosófica, poderá
gir a por mim suspirada e planejada ontologia. Exigências
da vida, viagens ao exterior e circunstâncias diversas, alheias
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prestar inestimáveis benefícios — como já se verificou em
épocas passadas — ao edifício comum da sabedoria humana."
De sorte que o livro que ora se entrega ao público —
graças ao empenho de Gumercindo Rocha Dorea, outra per-
sonalidade movida por uma grande vocação, neste caso a
vocação editorial — representa meditação de muitas déca-
das. Trata-se da obra de um erudito mas sobre a qual o
leitor se debruçará com prazer. Monsenhor Emílio Silva está
longe de ser um erudito seco, tratando-se na verdade de alma PREFÁCIO *
bondosa, capaz de cultivar enormes afeições. Expressando
aqui o voto de seus inúmeros amigos e admiradores, espera-
mos tê-lo ainda por muitos anos em nosso convívio. "A nova edição deste livro saúda o novo século". Assim
Vitória, janeiro de 1990. começava Frederico Paulsen o prólogo da quinta edição de
sua Ética, mas, em seguida a tão eufórico cumprimento,
Antônio Paim estampa, melancólico, este testemunho: "O começo do século
XIX assinalou-se pelo império das idéias, o começo do século
XX assinala-se pelo império da força".1
Paulsen escrevia nos anos mais prósperos que desfrutou
a Europa e quando a mais irrestrita liberdade política, tanto
de palavra como acadêmica, imperava em quase todas as
nações. Qual teria sido sua reação se sobrevivera e presen-
ciara as grandes guerras européias e as tremendas convulsões
sociais que hoje agitam a tantos povos?
O que mais surpreende no caso, porém, é a surpresa de
Paulsen. Que outra coisa podia ele esperar do magistério
que a maioria dos filósofos do século XIX, ele mesmo inclu-
sive, vinha exercendo? Eles abdicaram da verdade. Nosso
século chegou ao rompimento definitivo com o caráter dog-
mático da Revelação e com a filosofia escolástica que se
aferrava à existência de verdades absolutas. "A mentalidade
histórico-genética do "saeculum historicum" tomou o lugar
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daquelas instâncias, renunciou à posse de verdades absolutas: que o Ocidente desorientado derivasse e ainda continue por
"só se dão verdades relativas, não há verdades eternas".2 caminhos de arbitrariedade e violência. Com efeito, se o ho-
Não querendo admitir nem mesmo a certeza das verdades mem está convicto de que a verdade das coisas é um pro-
da fé, afirma que esta "não se apoia em provas ou demons- duto de sua vontade ou do seu entendimento, se não admite
trações racionais, não vem do entendimento, senão do cora- que este há de se submeter a uma ordem objetiva do ser,
ção e da vontade".3 independente da vontade humana, nestas condições sua cos-
Na própria obra de cujo prólogo copiamos as primeiras movisão será apenas imagem, projeção, imaginação subjetiva
palavras deste escrito, insurge-se Paulsen contra a; manuten- do mundo, sem a menor garantia de verdade objetiva. Tal
ção de um sistema educativo que, nascido há séculos num subjetivismo é, no fundo, um perfeito ceticismo, ruína de
meio intelectual inteiramente diferente, "se acha em muitos toda verdade. Como poderá edificar-se sobre tal alicerce mo-
pontos em aberta contradição com as realidades e doutrinas vediço uma forma de vida estável?
mais aceitas em nosso tempo".4 O que ele visava era a refor- As nações do Ocidente, e já agora, após as duas grandes
ma do ensino, precisamente no terreno doutrinário, revisão Guerras Mundiais, o mundo todo, está passando momentos
das doutrinas básicas do Cristianismo: fora o sobrenatural, de trágica ansiedade, os povos vivem desde há bastantes
a Bíblia, os dogmas religiosos e tudo mais estranho ao anos em perpétua soçobra, na mais angustiosa incerteza, pois
homem hodierno! as filosofias dominantes não são de molde a gerar e manter
Essas idéias e princípios não eram algo peculiar a Paul- a solidez das instituições e das-relações sociais e contribuir
sen. Se, de início, escolhi seu nome, foi porque ele, melhor eficazmente para estabelecer a paz na ordem das nações.
que qualquer outro, excetuando talvez a Eucken5, reflete a Neste nosso trabalho, que intitulamos: FILOSOFIAS
mentalidade reinante na Europa em começos do presente DA HORA e FILOSOFIA PERENE, pretendemos, após
século. À vista de tais princípios e doutrinas, não admira uma sucinta exposição das filosofias vigentes em nossos dias,
demonstrar a radical ineficácia ou insuficiência da maior parte
delas, para responder às autênticas exigências da consciên-
2. Em Immanuel Kant, cit. por Josef Donat, em Die Freiheií
der Wissenschaft, Ein Gang durch das moderne Geistesleben, 2." ed., cia contemporânea, e dilucidar as possibilidades que se
Innsbruck, 1912, p. 57-58. abrem para o bem-estar do mundo nos princípios e doutri-
3. Paulsen, Einleitung in die Philosophie, 32.ª ed., Stuttgart und nas que integram a chamada filosofia perene.
Berlin, 1920, p. 269.
4. Paulsen, System der Ethik, p* 228.
5. Rodolfo Eucken, vítima também do agnosticismo e deso-
rientação filosófica e religiosa do seu século, não esconde o desa-
lento que essa situação lhe produz: "Wir sind am Grundstock unseres
Lebems und Wessens kre geworden, es hat sich uns inmitten aller
Aufhellung nach aussen hin der Sintí unseres Daseins verdunkelt,
wir treiben wehrlos dahin, ohne zu wissen wohin" (o grifo é meu).
Geistesprobleme und Lebensfragen, Leipzig, 1918, p. 145. Para
tais dubiedades e angústias Eucken, também como Paulsen e tantos
outros, não divisa mais remédio que a substituição dos valores tra-
dicionais de nossa cultura e a «forma completa do Cristianismo.
Seus inveterados preconceitos racionalistas anuviavam-lhe a vista e
lhe impediam verificar que é precisamente o Cristianismo que nos
oferece perfeita e natural solução para os tremendos problemas da
nossa origem, natureza e destino eterno.
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PE. GÜÍLLERMÔ VÁZQÜEZ NÜ5ÍEZ
Mestre benemérito que iniciou
e encorajou o Autor em seus estudos filosóficos, é autor de
notáveis trabalhos sobre a Teologia espanhola no sec. XVI.
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Capítulo I
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