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Por Antonio Zago Fotos de Madalena Schwartz Com os ossos encontrados nas praias e nos campos Fredy Keller vai inventando animais fantasticos, personagens de pesadelo, proximos da mitologia medieval. O acervo de suas esculturas é um zool6; maravilhoso. Depois de ter sido académico por mais de 20 anos, Fredy passou bruscamente para a ultravanguarda da arte. Isso aconteceu em 1971, com a descoberta do ‘osso como veiculo estético. jico do 80/A arte fantéstica de todos os tempos Ignoramos 0 sentido do dragdo, como ignoramos o sentido do universo. Exis- te porém algo em sua imagem que con- corda com a imaginacdo dos homens, € assim o dragao surge em latitudes € idades diferentes. Jorge Luis Borges ‘EL libro de los Seres Imaginarios” enta_e obstinadamente, com seus I movimentos moles porém precisos, aquele animal saia de um pequeno ontficio da caverna escura, Era todo branco e, apesar de sugerir sutilmente a for- ma humana, era inumano e ainda ndo tinha sido classificado por zoélogo algum. Nem o rigor de Aristételes ou a imaginagio assus- tada de um camponés medieval poderia do- téclo de vida. E no entanto ele vivia (ou pelo menos existia). Estava ali e se com- portava com certa naturalidade apesar da atmosfera rarefeita. Nao possuia pele. Ou ‘melhor, sua pele confundia-se com os 0ss0s formando uma s6 unidade cartilaginosa. As articulagdes cram perfeitas, Um pouco si- métricas demais. E era exatamente a si tria que The dava o equilfbrio necessicio para andar, saltar, nadar ¢ até voar se ne- cessirio fosse. Primeiro surgiu a cabega. De macaco? Impossivel, tinha antenas de lagos- ta, Gatos, cachorros ¢ outros animais do- ésticos também estavam fora de cogitagio. E impossivel domesticar a natureza enlou- quecida: ¢ 0 terremoto, o vuleio, 0 furacio, espanto s6 aumentou quando apareceu 0 esto do corpo vazado, onde a auséncia dos Srgiios vitais era total. Casco de tartaruga, és de galinha, asas de morcego, mandibu- las de cavalo, vértebras de baleia, tudo per- feitamente ajustado em um tinico animal mistetioso, desprovido de coragio, pulmées © visceras. Mas 0 mistério maior esta no fato de que esse mesmo bicho — que a na- tureza esqueceu de criar — tenha. surgido de um pesadelo do escultor Fredy Keller ¢ se tornado uma realidade conereta, palpivel © artista vai alinhando suas pecas'e a0 mes- ‘mo tempo construindo o zoolégico do mara- vilhoso onde o belo estético nao tem mais lugar. Uma preocupacao humana, demasiadamente humana Fredy Keller € 0 dnico escultor do Brasil (¢ talvez do mundo) a trabalhar exclusiva- ‘mente com ossos. Nao que ele procure um pedaco conveniente de 0ss0 e vai esculpindo até surgir uma for- ma. Nao. Isso seria entalhe. Arte popular. Apesar da pobreza do material, o trabalho de Fredy € muito mais sofisticado. A maté- riacprima de sua arte é encontrada de graga nas praias © nos campos ou enviada por igos que conhecem suas preferéncias. Esses ossos recebem um tratamento quimico que completa e garante a limpeza, Nao exi te 0 menor perigo de deterioragio, mau cheiro ou contaminagdo. E claro que essa apenas uma fase do trabalho, pois a li peza principal tem inicio ao ar livre, com as formigas ¢ urubus. Depots de limpos esses ossos vio para a grande mesa de trabalho do seu ateli Quando a chegar e a cidade inteira estiver dormindo no mais completo silencio, Fredy estard trabalhando. Ele dorme de dia ¢ trabalha de noite. Na hora do lobo. E quando os fantasmas povoam sua imagi- nagio. E também quando ele estuda os ossos, des- eobrindo reentrincias, acentuando curvatu- ras, disfarcando pontas, perfurando, parafu- Beis A che dem anlo einai Os ossos de Fredy Keller/81 no corpo de um inseto ¢ as vérlebras de uma anta vai formar a cabeca de um pais saro. Se ele usasse a cabeca de um boi para representar a cabeca de um boi, nao teria inventado nada. A genialidade do artista esti em saber deslocar o objeto, dando-Ihe novas fung6es, novas significacoes. trabalho principal da composi¢io do ob- Jetivo consiste em descobrir todas as possi- Dilidades de cada um dos ossos, estudando as concordancias entre curvas ¢ retas. De- pois, ele passa a explorar os vaos, os vazios, (08 espagos negatives, procurando evitar a ‘massa compacta ¢ sugerir maior leveza obra. Depois de montar todos os ossos com ara- mes, pinos, armagdes de ferro e cola plis- tica, Fredy pinta a escultura com diversas miios de tinta branca opaca. Branca para fio interferir na forma, opaca para evitar reflexos. E por isso que seus animais imaginérios, por mais terriveis que parecam, nio assus- tam. Acima de tudo eles s4o_ univers Atemporais, De maquetes e de banquetes foi surgindo uma arte forte Mesmo trabalhando ossos de animais ¢ in- vyentando apenas figuras de bichos, seu tra- balho visa o homem. Sua preocupagio é estritamente humana. Vemos 0 glutio, o in- vejoso, 0 lascivo, Alguns s40 bonitos, outros feios, uns até ridiculos. Mas, apesar de ins6- litos, so todos hhumanos, demasiadamente ‘humanos, ‘Mas para chegar a0 osso foram vinte anos de trabalho silencioso, timido, ininterrupto. Fredy nasceu em Siio Paulo, no ano de 1932 fe, apesar de nio ser religioso, costuma fri- sir que “isso aconteceu no dia de Natal” Mesmo tendo sido criado em um ambiente de amor e respeito pela arte (sua mie Irene, de familia tradicional, ¢ pintora; seu pai Frederic, rico comerciante suigo & colecio- nador, ¢ a familia sempre cultivou a ami- zade de alguns grandes nomes da_pintura brasileira), Fredy s6 viria estudé-la depois de adulto “Todos seus estudos foram feitos no Macken- ze, Primirio, gindsio, comércio. Uma vez formado, foi trabalhar em uma firma espe- ializada em maquetes. Participou da cons- tuugio de maquetes de virias obras impor- tantes: Feira do 4.° Centenario de Sao Pau- Jo, Edificio Itsia, Hospital Emilio Ribas, Refinaria de Cubatao. Quando a firma encerrou suas atividades, Fredy foi trabalhar no comércio para o qual tinha sido formado. Nao dew certo e, em 1969, foi trabalhar com o pai em artes’ gré- ficas. Isso durou apenas um ano. Em 1970, com 38 anos de idade, Fredy per- eebeu que estava perdendo a visao. Consul- catarata, A doenga evoluiu de tal forma que fem poucos meses ele jé estava com apenas 20% da visio. Impossibilitado de exercer qualquer atividade comercial, Fredy foi fa- ze o que mais amava: escultura. Mas ele no era principiante. Aos dezoito anos, depois de observar a mie trabalhando ‘com cerimica, resolveu tentar também. Deu certo. Dois anos depois ele jf estava traba- Thando o bronze debaixo da sombra imensa de Rodin que ele sempre amou. ‘© menino rico, de motorista na poria, sem problemas, fazia esculturas extremamente Gramaticas, Os amigos, claro, eram todos, entusiastas. Insistiram para que ele se ins- crevesse no Salio Paulista de Belas-Artes Fredy recusou, pois nio via possibilidade sequer de ser ‘iceito. Sem que ele soubesse, Os ossos de Fredy Keller/83 © pai foi até o salio ¢ inscreveu alguns tra balhos do filho. Ele foi aceito ¢ passou a expor regularmente. Sua escultura sempre foi absolutamente aca- démica, com alguns deslizes expressionistas Ele era um escultor de fim de semana, A revolugio s6 viria em 1971, com a profis- sionalizagio. Certa noite, durante um banquete, ele ficou surpreso com a beleza da curvatura de um sso de galinha, Pensou que seria interes sante junté-lo a um outro, mais reto, e fa zer uma escultura, No executou 0 projei imediatamente. Ficou na idéia. Algumas semanas depois, na fazenda do ir- mio, descobriu o esqueleto de uma vaca que ele gostava muito, Juntou tudo dentro de um saco ¢ levou para casa. Foi assim {que surgiu sua primeira escultura com ossos. Era um inseto gigantesco, um animal ins lito. Fredy percebeu entao que estava dando vida a personagens fantésticos de algum pesadelo. Na segunda escultura ele jé estava misturan- do ossos de diversos animais. Seu entusiasmo feta tio grande que, em poucos meses, j possuia um acervo de dezessete esculturas acabadas. Por outro lado ninguém mais acreditava em seu trabalho, Ou melhor, nenhum entusiasta do seu trabalho anterior. Foi quando sur- giu o critico Olney Kruse, trazido pelo seu cunhado, para conhecer suas novas escul- turas, Para Olney, “o que mais surpreende nna obra de Fredy Keller € a passagem brus- ca do academismo para a vanguarda total Depois de ter sido académico por mais de duas décadas, esse escultor tornou-se um ar- tista para daqui a cem anos”. Olney Kruse €0 verdadeiro descobridor de Fredy Keller © 0 entusiasmo do critico transformou-se em ‘um artigo de pégina inteira no Jornal da 24/A arte fantéstica de todos os tempos | Era 0 comeco de tudo. Fredy foi apresentado para Malvina, dona da Galeria Portal, que mar- cou uma exposigio — junto com Walter Lewy — para o ano seguinte. Essa exposigio niio se realizou. © ano de 1972 foi o mais terrivel na vida do escultor. Apés longa e dolorosa agonia, seu filho, de apenas treze anos de idade, morreu de leucemia, Alguns meses depois seu casamento também terminaria, Era 0 fim de tudo. A angtistia ¢ 0 abandono teriam acabado com Fredy, no fosse a sibia intervencio do seu amigo, o pintor surrealista Walter Lewy. No momento oportuno Walter apa- rece com um convite para uma exposicao que se realizaria em 1973 na Galeria Do- cumenta, Fredy deveria apresentar trinta trabalhos. Foi a salvacio. O escultor passo’ fa trabalhar com uma dedicacio tao furio € apaixonada que a mostra 36 poderia ter ‘© sucesso que teve Além de Walter Lewy ¢ Olney Kruse, o pin- tor Takaoka também foi muito importante na vida de Fredy. Grande incentivador, foi seu mestre de desento. Voltando ao bronze e ao rebuscamento Apesar de a maioria dos criticos concorda: rem que a escultura de Fredy é uma revo- luco, para ele, a descoberta do osso foi apenas o primeiro paso ¢ nfo o tltimo. Durante toda sua fase académica, que du- rou mais de vinte anos, Fredy trabalhou principalmente o bronze. Depois, em 1971 cle descobriu o asso como vefculo estético por exceléncia, Hoje ele estii entrando em uma terceira fase que denomina de dsseo- metilica, O proceso € praticamente 0 mes- mo. $6 que, antes da montagem final, & tirado um molde em cera dos ossos, sobre 0 {qual seré fundido o bronze, Essa fase ainda € experimental. Paralelamente ele continua desenvalvendo seus trabalhos apenas com ‘Ao mesmo tempo em que atinge essa ter- ceira fase no tratamento do material, Fredy também chega a uma terceira fase em sua concepedo estética. No principio, ele sempre procurau o rebuscado para conseguir efeitos ficeis, como qualquer principante, Ao des- cobrir_o osso, Fredy descobriu também o luxo da simplicidade, Isso ja era uma evo- lugio. Hoje ele afirma estar voltando ao Os ossos de Fredy Keller/35 tebuseado, 6 que agora intencionalmente. Esse € 0 verdadeiro amadurecimento do artista Fredy Keller trabatha fora de qualquer es- quema comercial. Alguns artistas comecam © desenvolvimento da arte cheios de idea- lismo, querendo fazer arte independente, de vanguarda. Depois, aos poucos, vao fazendo concessdes até chegarem & comercializagao. Finalmente admitem a possibilidade de se ficar rico com a arte, esquecendo que “nem mesmo a necessidade do pio justifica a pros- tituigdo da arte (Jbunuel)? Como Fredy nas- eu rico, ele pode fazer arte sem prosti tuit-se. Na verdade, a matéria-prima da sua arte € to barata que ele nem precisaria de ddinheiro para desenvolvé-la. Bastaria seu talento e imaginagao. E ainda o critico Olney Kruse quem acres- centa: “Fredy Keller nunca se deu aos mo- dismos e sua arte nunea foi concessiva. Ele est na ultravanguarda da arte, Por isso é quase_ impossivel defini-o. Isso porém_ no impede que ele seja duplamente marginali- zado: em primeiro lugar ele é escultor em uum pais que considera a escultura — a0 ado do desenho © da gravura — uma arte menor (preconceito cultural); em segundo lugar ele desenvolve uma temética fantés- tica, préxima do surrealismo, quando esse tipo de arte s6 agora comeca a set reco- hecido no Brasil” Uma arte bem tipica do Terceiro Mundo Walter Lewy, falando do trabalho de Fredy, diz. que “como toda invengdo medieval, suas esculturas $0 mOrbidas, € a gente percebe 4 morte, como se a peste espreitasse pelas esquinas e muros da cidade, Apesar de nio possuirem uma concepedo otimista do mun- do, suas pegas sto dotadas de um certo hu- mor. E um humor muito seletivo. Trata-se do mais fino humor negro”. Foi o pintor Rebolo quem definiu as esculturas de Fredy como “representagoes de uma morte gaiata’. Ficou. Essa representagio da morte brincalhona dentro de um clima denso e sufocante, de- monstra o parentesco de Fredy com os pin- tores Bosch e Brueghel, que foram suas maiores influéncias depois de Rodin, Uma revisio da mitologia medieval, com execugio universalista, sem deixar de ser marcada- mente latino-americana, O requinte do marmore e a sofisticagio do aco polido foram deixados nas galerias mo- fadas da_pretensiosa Europa. Fredy tem consciéncia do poder do seu trabalho, Esse poder é contraditério como tudo que emana da América Latina. Esculpir ossos, com a invengao de Fredy, € compor sinfonias para latas ou eserever’ romances experimental para uma populagio analfabeta. Sio as con- teadigdes possiveis do Tereciro Mundo. © oso € gratuito. Basta sair para o mato © seguir a pista dos urubus. Onde cles esti- verem, ali estard a matéria-prima da arte. A pobreza do 0380 € total. E quando Fredy se pergunta: “Por que es- culpir 0 mérmore, se o ventre de nossa terra recusou-se a fornecé-lo? Como trabalhar ar- tisticamente 0 ago e o ferro quando nossa indiistria € to recente?” A arte popular sempre usou a mad dante do nosso tertitorio; 0 barroco Aleija- dinho levou as iltimas consegiiéncias 0 seu trabalho, retirando da pedra-sabao tudo que la podia oferecer. © escultor Fredy Keller foi mais longe ain- da: escolheu seu material nas praias © nos campos, sem precisar derrubar iirvores, ma tar animais ou destruir montanhas.

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