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15.

O ARROMBADOR APOSENTADO
O. HENRY (1862-1910 | Estados Unidos)

William Sidney Porter, mais conhecido como 0. Henry, é, até hoje,


um dos contistas mais estimados do leitor americano. Terno e lírico,
com suas Páginas da Vida (título de um filme baseado nas suas
histórias), mas sobretudo humorista, Henry também escreveu contos
sobre o submundo do Oeste e de Nova York de sua época. Tinha
conhecimento de causa: chegou a ser preso por um desfalque, quando
trabalhava num banco. Preso, depois de ter fugido, é claro.
Experiência que o levou a muitos personagens e a muitas histórias.
Como a deste arrombador aposentado e a do assassino "cheio de
bazófia", que vamos em seguida conhecer.

Um guarda veio até a sapataria da prisão, onde Jimmy Valentine, como


sempre assíduo ao trabalho, costurava sapatos, e o escoltou até a
administração. Ali, o diretor entregou-lhe o indulto que o governador assinara
naquela manhã. Ele cumprira quase dez meses de uma sentença de quatro
anos. Não pensara em ficar ali mais três meses. Quando um homem, que tem
do lado de fora tantos amigos como Jimmy Valentine, "entra em cana", quase
não vale a pena cortar-lhe os cabelos.
- Bem, Valentine - disse o diretor -, você vai sair amanhã. Tome jeito e
faça alguma coisa de sua vida. No fundo, você não é uma má pessoa. Pare de
arrombar cofres e viva dentro da lei.
- Eu? - disseDEMO : Purchase from www.A-PDF.com to remove the watermark
Jimmy surpreso. - Mas nunca arrombei um cofre em toda a
minha vida.
- Ah, não! - o diretor riu. - Claro que não. Mas deixe ver, como é mesmo
que você foi condenado por aquele trabalho em Springfield? Foi por que não
conseguiu provar um álibi para não comprometer uma amiga da mais alta
sociedade? Ou foi só o caso de um júri preconceituoso e bitolado que não foi
com a sua cara? É sempre uma coisa ou outra que acontece com vocês
"inocentes".
- Eu, diretor? - disse Jimmy, no seu candor exemplar. - Como? Se nunca
estive em Springfield?
- Escolte-o de volta, Cronin - sorriu o diretor -, e arranje roupas de rua
para ele. Pode abrir a sua cela às sete da manhã e leve-o até o registro. Pense
bem no meu conselho, Valentine.
P-s sete e um quarto da manhã seguinte, Jimmy estava de volta ao
escritório do diretor. Vestia um terno malfeito, roupas prontas e uns sapatos
que rangiam, fornecidos pelo Estado a seus hóspedes compulsórios na hora
da dispensa.
Um funcionário entregou a ele um bilhete de trem e uma nota de cinco
dólares, com o que a sociedade esperava que ele se reabilitasse, tornando-se
um cidadão próspero e honesto. O diretor lhe deu um charuto e apertou sua
mão. No livro de saídas foi anotado: "Valentine, 9762 - Indultado pelo
governador." E Jimmy Valentine saiu para o sol.
Sem dar atenção aos pássaros que cantavam, às árvores verdes balançando
seus ramos ao vento, nem ao perfume das flores, Jimmy foi direto para um
restaurante. Ali provou a primeira das doces alegrias da liberdade na forma
de uma galinha ensopada e uma garrafa de vinho branco, seguida por um
charuto, um pouco melhor do que aquele que lhe dera o diretor. Dali andou
com calma até a estação. Jogou uma moeda no chapéu de um cego que estava
na porta e tomou seu trem. Três horas de viagem o levaram a uma
cidadezinha perto dos limites do estado. Foi ao café de um certo Mike Dolan
e apertou a mão de Mike, que estava sozinho atrás do balcão.
- Desculpe se não pôde ser antes, Jimmy, meu garoto - disse Mike. - Mas
tivemos o contratempo daquele protesto de Springfield, e o governador quase
volta atrás. Tudo bem?
- Tudo - disse Jimmy. - Você está com minha chave?
Pegou a chave e subiu para o andar de cima, onde abriu a porta do quarto
dos fundos. Tudo permanecia como deixara. No chão ainda estava um botão
de Ben Price, que fora arrancado do colarinho do eminente detetive, quando
subjugaram Jimmy para prendê-lo. Puxando uma cama de armar, Jimmy fez
escorregar um painel da parede e tirou dali uma mala coberta de poeira.
Abriu-a e contemplou com amor o mais perfeito jogo de ferramentas de
arrombador de todo o Leste. Um jogo completo, feito de um aço
especialmente temperado, o que havia de mais moderno em brocas, gazuas,
tenazes, braçadeiras, pés-de-cabra e puas, mais duas ou três novidades
inventadas pelo próprio Jimmy, e que eram o seu orgulho. Gastara mais de
novecentos dólares para mandar fazê-las em. .. Bem, onde fazem estas coisas
para a profissão.
Meia hora mais tarde, Jimmy desceu e passou pelo café. Vestia agora
roupas elegantes e bem cortadas e levava na mão sua mala limpa e sem
poeira.
- Alguma coisa em mira? - perguntou Mike Dolan, bem-humorado.
- Eu? - perguntou Jimmy com espanto. Não estou entendendo. Sou o
representante comercial das "Indústrias Reunidas de Fechaduras &
Dobradiças SA", de Nova York.
A declaração deliciou de tal modo a Mike, que Jimmy foi obrigado a
tomar um milk-shake com ele. Nunca bebia "destilados".
Uma semana depois que "Valentine, 9762" fora posto em liberdade,
arrombaram um cofre, com elegância e maestria, em Richmond, Indiana, sem
nenhuma pista que indicasse o autor do trabalho. Míseros oitocentos dólares
foi tudo o que levaram. Duas semanas depois disso, em1.ogansport, um cofre
com um patenteado e avançado sistema antifurto fora aberto como se fosse
um queijo, ao som de mil e quinhentos dólares em espécie; títulos e metais
não foram tocados. Aquilo começou a despertar o interesse dos "pega-
ladrões". Então, foi a vez de um velho cofre de banco, em Jefferson City,
entrar em atividade e lançar pela cratera uma erupção de papel moeda no
valor de cinco mil dólares. As perdas agora eram grandes o bastante para
levar o problema a um profissional do nível de Ben Price. Comparando
dados, encontrou-se uma extraordinária semelhança nos métodos. Ben Price
investigou os locais e foi ouvido dizendo:
- Têm a assinatura de "Dandy" Jimmy Valentine. Ele já voltou ao
trabalho. Olhem para este cilindro de combinações, arrancado como se fosse
um rabanete em terra fofa. Só ele tem ferramentas capazes de fazer isto. E
vejam com que limpeza o trabalho foi feito. Jimmy nunca precisa de mais de
um furo. Sim, acho que quero ter uma conversa com o Mr. Valentine. Da
próxima vez, ele completará sua sentença, sem nenhuma história de indulto,
nem liberdade condicional.
Ben Price conhecia os hábitos de Jimmy. Estudara-os quando trabalhara
no caso de Springfield: distância entre os trabalhos, rapidez na fuga, nenhum
cúmplice e um fraco pela boa sociedade - hábitos que o fizeram escapar com
sucesso da retribuição devida. Espalhou-se que Ben Price estava no rastro do
arrombador, e outros proprietários de cofres sentiram-se mais tranqüilos.
Uma tarde, Jimmy Valentine e sua mala desceram da conexão postal, em
Elmore, uma cidadezinha a oito quilômetros da estrada de ferro, no interior
do Arkansas. Jimmy, parecendo um atlético universitário do último ano de
volta ao lar, caminhou pela calçada até o hotel.
Uma jovem atravessou a rua e passou por ele na esquina, entrando por
uma porta sobre a qual estava escrito "Banco de Elmore". Jimmy olhou em
seus olhos, esqueceu quem era, e transformou-se em outro homem. Ela
baixou os olhos e corou de leve. Jovens com a aparência e o estilo de Jimmy
eram escassos em Elmore.
Jimmy encontrou um menino bem à vontade nos degraus do banco, como
se fosse um dos acionistas, e começou a indagar sobre a cidade, alimentando
a conversa com algumas moedas de dez centavos. Daí a pouco, a garota saiu
do banco, ignorando com um ar de superioridade o rapaz com a mala, e
seguiu seu caminho.
- Aquela moça não é a Srta. Polly Simson? - perguntou Jimmy,
manipulando a resposta.
- Não! - disse o menino. - É Annabel Adams, o pai dela é o dono do
banco. Que é que você veio fazer em Elmore? A corrente do seu relógio é de
ouro? Quero comprar um buldogue. Vai me dar mais uma moeda?
Jimmy foi para o Hotel Planters e alugou um quarto como Ralph D.
Spencer. Encostado no balcão da portaria, deu ao atendente alguns dados
biográficos. Disse que estava em Elmore procurando um local para
estabelecer um negócio. Quantas sapatarias havia na cidade? Pensava em
abrir uma sapataria. Será que havia espaço para mais uma?
O rapaz estava impressionado com as roupas e com os modos de Jimmy.
Considerava-se, ele mesmo, um modelo de elegância para a juventude local,
mas agora, vendo Jimmy, percebia as próprias limitações. Enquanto tentava
se instruir na forma em que Jimmy administrava suas cartas, concedia
cordialmente as informações.
Sim, havia muito espaço no negócio de sapatos. Na verdade, não havia
uma sapataria na cidade, o armazém local vendia alguns calçados. Esperava
que o Sr. Spencer decidisse se estabelecer em Elmore. O comércio, em
qualquer ramo, era bom, as pessoas em Elmore eram sociáveis, e a cidade,
agradável de se viver.
O Sr. Spencer pensava em passar uns dias ali e estudar a situação. Não,
não era necessário chamar o menino, levaria ele mesmo a mala até seu
quarto, era muito pesada.
Ralph Spencer - fênix surgido das cinzas de Jimmy Valentine, cinzas
resultantes de um súbito ataque de paixão - se fixou em Elmore. Abriu sua
sapataria, conseguiu uma boa clientela, e prosperou.
Socialmente era também um sucesso. Fez vários amigos e realizou o que
desejava seu coração. Conheceu Annabel Adams, cativado cada vez mais por
seu charme.
Depois de um ano, a situação do Sr. Ralph Spencer era a seguinte:
conseguira o respeito de toda a comunidade, sua sapataria florescia, e ele e
Annabel estavam noivos e se casariam em duas semanas. Adams, o típico
banqueiro do interior, trabalhador e desconfiado, aprovava o casamento. O
orgulho que inspirava em Annabel era quase tão grande quanto o amor que a
moça sentia por ele. Era já como um membro da família, tanto na casa do Sr.
Adams, quanto na casa da irmã casada de Annabel.
Um dia Jimmy sentou-se para escrever esta carta, que enviou ao endereço
de confiança de um de seus velhos amigos em St. Louis:

Meu velho,

Queria encontrá-lo no local do Sullivan, em Little Rock, na próxima


quarta-feira, às nove horas da noite. Preciso que você resolva algumas
pequenas coisas para mim, e também quero dar-lhe de presente meu
jogo de ferramentas. Sei que você as apreciará - não poderia fazer
outras iguais nem com mil dólares. Billy, eu me aposentei do velho
negócio, há um ano. Tenho uma boa loja, uma vida honesta, e vou me
casar daqui a duas semanas com a melhor garota do mundo. Esta é a
única vida, Billy - a vida honesta. Não tocaria no dinheiro de outra
pessoa agora, nem por um milhão de dólares. Depois do casamento,
penso vender meu negócio e ir para o Oeste, onde serão menores as
chances de ver meu passado se levantar contra mim. Billy, ela acredita
em mim e não a decepcionaria por nada no mundo. Não deixe de estar
no Sully, quarta-feira, porque preciso vê-lo. Levarei as ferramentas.

Seu velho amigo, Jimmy

Na segunda-feira à noite, depois que Jimmy escrevera esta carta, Ben


Price entrou sem chamar atenção em Elmore num carro alugado. Girou pela
cidade e, na sua maneira discreta, descobriu o que queria saber. Da drogaria,
em frente à Sapataria Spencer, Price pôde ver bem o rosto de Ralph D.
Spencer.
- Vai se casar com a filha do banqueiro, não é mesmo, Jimmy? - disse
Price a si mesmo. - Não sei não.
Na manhã seguinte, Jimmy tomou o café da manhã na casa dos Adams. Ia
a Little Rock, naquela manhã, para encomendar seu terno de casamento e
comprar um presente para Annabel. Seria a primeira vez que deixaria a
cidade desde que viera para Elmore. Um ano já se passara desde seu último
"trabalho", e achava que já podia se aventurar no mundo lá fora.
Depois do café, foram para o centro juntos, num grande grupo familiar - o
Sr. Adams, Annabel, Jimmy e a irmã casada de Annabel com suas duas filhas
pequenas, de cinco e nove anos. Foram até o hotel, onde Jimmy ainda vivia, e
ele subiu a seu quarto para pegar sua mala. Depois foram para o banco. Lá
estava a charrete com o cavalo de Jimmy e Dolph Gibson, que ia levá-lo até a
estação de trem.
Entraram todos na sala do banco, de teto alto sustentado por vigas de
carvalho -Jimmy inclusive, o futuro genro de Adams era bem-vindo em toda
parte. Os funcionários se mostraram felizes em ver e cumprimentar o elegante
e simpático jovem que ia se casar com a senhorita Annabel. Jimmy pousou
sua mala no chão, e Annabel, transbordante de felicidade e alegria,
brincando, colocou na cabeça o chapéu do noivo e pegou sua mala.
- Não fico bem de vendedor? - disse Annabel. - Meu Deus, Ralph, como
isto pesa! Parece cheia de barras de ouro.
- Uma quantidade de ferros para sola, que vieram por engano - disse
Jimmy com presença de espírito. - Vou devolvê-los, e levando comigo não
gasto com o frete. Estou ficando econômico.
O Banco de Elmore havia colocado um cofre novo, e o Sr. Adams, que
estava muito orgulhoso, quis mostrá-lo a todos. Não era grande, mas era a
última palavra em segurança, com uma porta que se fechava com três trancas,
acionadas simultaneamente por uma única maçaneta, e funcionava com um
mecanismo de tempo. O Sr. Adams explicou seu funcionamento ao Sr.
Spencer, que, embora não parecesse entender muito bem da coisa, mostrava
um gentil interesse. As duas meninas, May e Agatha, estavam encantadas
com o metal polido, o relógio e os mecanismos engraçados.
Enquanto estavam nisto, Ben Price, que entrara no banco pouco depois
deles, apoiara os cotovelos no balcão, e olhava a cena por entre as barras.
Dissera ao caixa que não desejava nada, estava apenas esperando por um
conhecido.
De repente as mulheres gritaram. Sem que os adultos percebessem, May,
a menina de nove anos, de brincadeira, trancara Agatha no cofre. Depois
disto, fechara a maçaneta e girara o cilindro de combinações, como vira seu
avô fazer.
O velho banqueiro correu para a maçaneta e tentou mexê-Ia.
- A porta não pode ser aberta - gemeu. - O relógio ainda não foi ajustado,
nem a combinação foi registrada.
A mãe de Agatha começou a gritar de novo, histérica.
- Quietos! - disse o Sr. Adams, levantando a mão tremula. - Fiquem todos
quietos. Agatha! - gritou o mais alto que pôde. - Ouça o vovô - durante o
silêncio que se seguiu, ouviram a menina se debatendo em pânico no escuro
interior do cofre.
- Minha querida! - gritou a mãe. - Ela vai morrer de medo. Abram esta
porta! Arrombem! Vocês, homens, não podem fazer nada?
- A pessoa capaz de abri-lo, mais próxima daqui, está em Little Rock -
disse o Sr. Adams em voz trêmula. - Meu Deus, Spencer, que é que nós
vamos fazer? A menina não pode esperar muito tempo, não existe ar
suficiente lá dentro; além do mais, terá convulsões àe medo.
A mãe de Agatha, desesperada, começou a esmurrar a porta; alguém sem
pensar sugeriu dinamite. Annabel olhou para Jimmy com seus olhos grandes
e cheios de angús-
tia, mas onde ainda não havia desespero. Uma mulher sempre acha que
nada é impossível para o homem que adora.
- Você não pode fazer alguma coisa, Ralph? Por favor, tente.
Ele a olhou com um estranho sorriso nos lábios, um sorriso suave que
estava também em seus olhos.
- Annabel, dê para mim a rosa que está usando.
Mal acreditando no que ouvira, Annabel soltou do alfinete o botão que
levava no peito do vestido. Jimmy colocou a flor no bolso do colete, tirou o
paletó e arregaçou as mangas. Naquele momento, morria Ralph D. Spencer, e
Jimmy Valentine tomava seu lugar.
- Afastem-se da porta, todos vocês - ordenou curto.
Colocou sua mala na mesa e a abriu. Daquele momento em diante, parecia
inconsciente da presença de qualquer outra pessoa. Alinhou com rapidez e
ordem seus instrumentos, estranhos e brilhantes, enquanto assoviava para si
mesmo como fazia sempre que trabalhava. Num profundo silêncio, os outros
o observavam como enfeitiçados.
Em um minuto, sua broca comia o metal da porta. Em dez minutos -
quebrando seu próprio recorde -, a porta estava aberta.
Agatha, quase desmaiando, mas salva, foi recolhida pelos braços da mãe.
Jimmy Valentine vestiu seu paletó e caminhou para a porta. Enquanto ia
embora, pensou ouvir de longe uma voz que um dia conhecera chamar
"Ralph!". Mas não hesitou.
Na porta, um homem grande apareceu no seu caminho.
- Olá, Ben! - disse Jimmy, ainda com seu estranho sorriso. - Finalmente
me encontrou. Vamos embora, não acho que faça mais nenhuma diferença
agora.
Mas aí, Ben Price teve uma atitude muito inesperada.
- Desculpe, mas acho que está enganado, senhor Spencer - disse ele. - Não
creio que já nos conheçamos. Aquele parece que é seu carro que está lhe
esperando.
E Ben Price deu-lhe as costas e caminhou devagar pela rua.

Tradução de Octávio Marcondes


16. CHAMADA DA PRIMEIRA PÁGINA
O.HENRY

Metade desta história se encontra nos arquivos do Departamento


de Polícia; a outra metade faz parte da memória de uma redação de
jornal.

Uma tarde, duas semanas depois que o milionário Norcross fora morto em
seu apartamento durante um assalto, o assassino, passeando tranqüilamente
pela Broadway, esbarrou com o detetive Barney Woods:
- É você, Johnny Kernan? - perguntou Woods, que era míope, há uns
cinco anos.
- Eu mesmo - respondeu Kernan, caloroso. - Ora, se não é Barney Woods,
meu velho conhecido de São Jô! Como é que é? O que é que você está
fazendo aqui no Leste? Aquelas circulares agora trazem você tão longe?
- Estou em Nova York há alguns anos - disse Woods. - Sou detetive da
polícia.
- Bem, bem! - disse Kernan, transpirando felicidade e sorrisos, enquanto
apertava carinhosamente o braço do detetive.
- Vamos entrar no Muller's - disse Woods - e procurar uma mesa
tranqüila. Precisamos conversar.
Faltavam alguns minutos para as quatro. A maré humana, que invadia
tudo ao final do trabalho, ainda não fora liberada, e os dois encontraram um
canto vazio no café. Kernan, bem vestido e um pouco espalhafatoso, cheio de
autoconfiança, sentou-se em frente aos olhos vivos e ao bigode claro do
pequeno detetive, vestido num terno pronto de lã grosseira.
- Que é que está fazendo agora? - perguntou Woods. - Você saiu de São
Jô um ano antes de mim.
- Estou vendendo ações de uma mina de cobre - disse Kernan. - Talvez
abra um escritório aqui. Bem, bem! Então o velho Woods é um detetive em
Nova York. Você sempre teve uma inclinação para isso. Trabalhou para a
polícia de São Jô, depois que saí de lá, não é mesmo?
- Seis meses - disse Woods. - Mas queria te fazer uma pergunta, Johnny.
Tenho acompanhado sua carreira de perto, desde aquele trabalho que você fez
no hotel, em Saratoga, mas nunca soube que usasse um revólver antes. Por
que matou Norcross?
Kernan concentrou o olhar por alguns momentos na rodela de limão
dentro de seu copo, então levantou os olhos para encarar o detetive com um
sorriso radioso e malandro.
- Como foi que adivinhou, Barney? - perguntou com admiração. - Juro
que pensava ter feito um trabalho limpo e liso como uma cebola descascada.
Será que deixei algum fio desamarrado em algum lugar?
Woods colocou sobre a mesa um lápis de ouro, desses que se usam na
corrente do relógio.
- É aquele que lhe dei de presente no último Natal que passamos em São
Jô. Ainda tenho o pote para sabão de barbear que você me deu. Encontrei isso
num canto debaixo do tapete no quarto de Norcross. Preciso avisá-lo, Johnny:
muito cuidado com tudo que você diz. Fomos grandes amigos no passado,
mas tenho que cumprir meu dever. Você vai para a cadeira elétrica por
Norcross.
Kernan riu.
- Minha sorte ainda não me abandonou - disse ele. - Quem poderia pensar
que o velho Barney estava na minha captura!
Sua mão escorregou para dentro do paletó. Num segundo, Woods tinha
um revólver encostado em suas costelas.
- Guarde isso - disse Kernan franzindo o nariz. - Estou só investigando
uma coisa. Aha! Um alfaiate pode mesmo arruinar um homem. O bolso do
meu colete está furado. Naquele dia, tirei o lápis da corrente e coloquei no
bolso, com medo que se arranhasse. Guarde sua arma, Barney. Vou lhe
contar por que tive de atirar em Norcross. Aquele idiota veio atrás de mim no
corredor apontando uma porcaria de um 22 para minhas costas. A senhora
Norcross foi um amor. Ficou ali, deitada na cama, vendo seu colar de
diamantes de doze mil dólares desaparecer, sem dizer um ai; e no final,
implorou como um mendigo para que lhe devolvesse um anel que era um fio
de ouro com uma pedrinha que não podia valer três dólares. Acho que ela se
casou com o velho pelo dinheiro. Mas não é que, ainda assim, elas se agarram
às pequenas lembranças do perdedor? Havia ainda seis anéis, dois broches e
um relógio chateleine. Uns quinze mil dólares, devo conseguir pelo lote.
- Eu o avisei para que não falasse - disse Woods.
- Oh, tudo bem - disse Kernan. - Está em minha mala no hotel. Agora vou
lhe dizer por que estou contando tudo isso. É porque não corro risco. Estou
falando com um homem que conheço bem. Você me deve mil dólares,
Barney Woods, e mesmo que quisesse me prender, suas mãos se recusariam
fazê-lo.
- Não me esqueci - disse Woods. - Você contou vinte notas de cinqüenta
sem dizer uma palavra. Ainda vou lhe pagar um dia. Aqueles mil dólares me
salvaram. . . Bem, estavam colocando meus móveis na rua quando cheguei
em casa.
- E assim - continuou Kernan - sendo você Barney Woods, de nascença
reto como um trilho e obrigado, por isso, a jogar um jogo limpo, não pode
levantar um dedo para prender um homem para quem está devendo. No meu
ramo de negócios, conhecer as pessoas é tão importante quanto conhecer
fechaduras "Yale" e trincos de janelas. Agora, fique quieto um instante,
enquanto eu chamo o garçom. Nos últimos dois anos tenho andado com uma
sede que começa a me preocupar. Se algum dia for preso, o sortudo do tira
que me pegar vai ter que dividir o mérito com a velha birita. Por isso, nunca
bebo em serviço. Mas depois de terminar um trabalho posso sentar-me com
meu velho amigo Barney e me permitir um gole com a consciência tranqüila.
Que é que você bebe?
O garçom trouxe as bebidas e os deixou de novo a sós.
- Você tem razão - disse Woods, pensativo, enquanto rolava nos dedos o
pequeno lápis de ouro. - Vou ter de deixá-lo escapar. Não posso prendê-lo. Se
tivesse pago minha dívida. .. mas não paguei, e isso resolve a questão. Fico
numa situação complicada, Johnny, mas não há nada que possa fazer. Você
me ajudou uma vez e sou obrigado a fazer o mesmo.
- Eu sabia disso - disse Kernan, levantando seu copo com um sorriso
aberto de auto-satisfação; - sou bom de julgar o caráter dos outros. À saúde
de Barney, porque. . . "o Barney é um bom companheiro".
- Acho - continuou Barney com calma, como se pensasse em voz alta -
que se tivéssemos nossas contas acertadas, nem todo o dinheiro que existe
nos bancos de Nova York seria o bastante para livrá-lo de minhas mãos esta
noite.
- Tenho certeza - disse Kernan. - Por isso sabia que não corria perigo com
você.
- A maioria das pessoas - continuou o detetive - tem um certo desprezo
pelo trabalho que faço. Não o classificam entre as artes e ofícios nobres. Mas
sempre senti um orgulho ingênuo por ele. E é isso que me pesa agora. Parece
que antes de tudo sou um homem e só depois um policial. Tenho de deixá-lo
ir, e depois terei que me demitir. Acho que posso conseguir outro trabalho. O
pagamento de seus mil dólares vai atrasar ainda mais, Johnny.
- Não se preocupe com isso - disse Kernan, com um ar majestoso. - Por
mim, esqueceria essa dívida se não soubesse que você jamais aceitaria tal
coisa. Foi sorte minha aquele dia em que você precisou desse empréstimo.
Mas vamos esquecer o assunto. Parto amanhã de manhã para o Oeste no
primeiro trem. Conheço um lugar ali onde posso negociar as jóias do
Norcross. Beba, Barney, e esqueça seus problemas. Vamos nos divertir
enquanto a polícia quebra a cabeça tentando resolver o caso. Tenho uma sede
digna do Saara esta noite. Mas nas mãos, nas mãos extra-oficiais, do meu
velho amigo Barney, não posso nem mesmo sonhar com um tira.
E então, enquanto o dedo rápido de Kernan continuava a apertar a
campainha, mantendo ocupado o garçom, seus pontos fracos - uma vaidade
tremenda e um egoísmo arrogante - começaram a se mostrar. Contou, história
após história, o sucesso de suas rapinas, os planos engenhosos e os crimes
infames, e mesmo Woods, com toda a familia-ridade que tinha com
delinqüentes, começou a sentir crescer dentro de si uma onda de frio desgosto
e indignação contra aquele que um dia fora seu amigo e benfeitor.
- Estou fora do caso, é claro - disse Woods afinal. - Mas aconselho você a
desaparecer por algum tempo. Os jornais podem se interessar pelo caso
Norcross. A cidade vive uma epidemia de assaltos e assassinatos este verão.
Essas palavras provocaram em Kernan uma súbita explosão de raiva
magoada e vingativa.
- Para o inferno com os jornais - rosnou. - O que é que se lê neles afinal
além de se vangloriar e de fazer suborno em letras garrafais? Vamos supor
que eles peguem o caso, que é que isso quer dizer? É facílimo enganar a
polícia; e os jornais, o que fazem? Eles mandam um monte de retardados
mentais, que chamam de repórteres, à cena; e eles se apressam a ir para o bar
mais próximo e, enquanto tomam umas cervejas, batem umas fotos da filha
do dono do bar, em traje de noite, para imprimir no dia seguinte como a
noiva de um cara que mora no décimo andar, que acha que ouviu alguma
coisa no andar de baixo na noite do assassinato. Isso é o mais próximo que os
jornais conseguem chegar da identidade do criminoso.
- Bem, eu não sei - disse Woods, num tom de reflexão. - Alguns jornais
fizeram bons trabalhos nesse sentido. Veja o Morning Mars, por exemplo.
Levantaram duas ou três boas pistas e acabaram descobrindo os culpados,
depois que a polícia já havia dado tais pistas como falsas.
- Vou lhe mostrar - disse Kernan, se levantando e enchendo o tórax. - Vou
lhe mostrar o que penso dos jornais em geral, e do seu Morning Mars em
particular.
A pouco mais de um metro da mesa onde estavam, havia uma cabine
telefônica. Kernan entrou na cabine, sentou-se e pegou o telefone, deixando a
porta aberta. Encontrou um número no catálogo e pediu a ligação à
operadora. Woods continuou sentado, olhando para aquele rosto frio e
vigilante colado ao fone; ouvindo as palavras que saíam daqueles lábios,
finos e truculentos, torcidos por um sorriso de desprezo.
- É do Morning Mars?... Quero falar com o editor-chefe ... Bem, diga que
é alguém com i nformações sobre o assassinato de Norcross.
"É o editor?. .. Tudo bem... Aqui fala o assassino de Norcross... Espere!
Não desligue; não sou o seu maluco de plantão. .. nenhum perigo disso.
Estava aqui discutindo o crime com um detetive amigo meu. Matei o velho às
2h30 da manhã, duas semanas atrás. .. Tomar uma bebida com você? Necas,
melhor deixar as piadas para seu humorista. Você não é capaz de distinguir
um trote do maior furo de reportagem que já se ofereceu a essa chatice de
pasquim que vocês editam? Sim, é isso aí, um superfuro... mas você não pode
esperar que lhe dê pelo telefone meu nome e endereço... Por quê? Porque
ouvi dizer que vocês são especialistas em resolver crimes misteriosos demais
para a polícia. .. Necas, isso não é tudo, queria dizer também que acho esse
seu jornaleco podre e mentiroso, tão capaz de descobrir um assassino ou
assaltante inteligente quanto um vira-lata cego. .. Não, não é da redação de
um jornal rival, você está falando com a realidade. Eu fiz aquele trabalho, e
as jóias de Norcross estão em minha mala no - 'o nome do hotel não pode ser
revelado no presente momento' - ... você reconhece a frase, não é mesmo?
Achei que sim. É uma que vocês usam sempre. Deixa você um pouco
inseguro, não é mesmo?, o misterioso assassino chamando no telefone o seu
grande e todo-poderoso órgão da imprensa livre, defensor da lei e da ordem,
do bom governo e da justiça, para lhe dizer que, na verdade, seu jornal não é
mais que um impotente saco de peidos? Corta essa... Você não é tão idiota
assim ... Sabe que não sou uma comédia, posso dizer pelo seu tom de voz...
Escute, vou lhe dar uma prova. O segundo botão da camisola da senhora
Norcross estava quebrado. Notei isso enquanto tirava o anel de seu dedo.
Pensei que era um rubi. .. Se os mongolóides de seus repórteres fizeram seu
trabalho direito, você sabe que tenho razão. Pare com isso! Não vai
funcionar."
Kernan virou-se para Woods e disse com um sorriso diabólico:
- O cara está uma fera. Agora acredita em mim. Não cobriu bem o fone
com a mão e ouvi quando dizia a alguém que chamasse a operadora num
outro aparelho para descobrir o número de onde estou chamando. Vou lhe
dizer mais uma e depois escapamos.
"Alô!. .. Sim eu continuo aqui. Você não achou que eu iria fugir com
medo desse trapo de jornal, subornado e vira-casaca, não é mesmo? Vai me
ver na prisão dentro das próximas 48 horas? Quando é que você vai parar
com essas piadas? Olhe, é melhor deixar gente grande em paz e ir cuidar de
fofocas e acidentes de trânsito que são mais sua área, volte a escrever sobre
sujeira e escândalos que é como você sabe ganhar a vida. Adeus, velho. . .
Pena que não tenha tempo para fazer uma visita a seu sanctum asinorum,
onde tenho certeza estaria bastante seguro. Tra-Iá!"
- Ele esta tão louco de raiva quanto o gato que perdeu seu rato - disse
Kernan, desligando o telefone e saindo da cabine.
"E agora, Barney, meu velho, vamos ver um show e nos divertir até que
seja hora razoável de ir para a cama. Para mim, bastam quatro horas de sono,
depois o trem para o Oeste."
Jantaram num restaurante da Broadway. Kernan estava feliz da vida.
Gastou dinheiro como um príncipe de opereta. Mais tarde, foram ao teatro
ver um fantástico musical e depois fizeram uma ceia com champanhe, e
Kernan estava no auge de sua complacência. Às três e meia, a madrugada os
encontrou numa mesa de canto num café aberto a noite toda. Kernan
continuava a se vangloriar, monótono e repetitivo; Woods, triste e pensativo,
refletia sobre o fim de seus dias como agente da lei. Mas, enquanto refletia,
em seus olhos de repente brilhou uma luz especulativa.
- Será que é possível? - disse para si mesmo. - Eu me pergunto, será que é
possível?
E então, fora do café, o relativo silêncio do amanhecer começou a ser
quebrado por gritos fracos e distantes, gritos que mais pareciam vagalumes
de som, uns mais altos, outros mais baixos, aparecendo e desaparecendo entre
o ruído dos carros de leite e dos poucos passantes. Gritos agudos eram,
quando próximos, gritos conhecidos; levavam diversas mensagens aos
ouvidos daqueles milhões de adormecidos da grande cidade, que acordava
para ouvi-los.
Gritos que carregavam em seu pequeno volume o peso das lágrimas e dos
risos do mundo, sua delícia e seu cansaço. Para alguns, escondidos sob a
proteção efêmera do manto da noite, traziam os horrores da luz do dia; para
outros, envoltos na felicidade do sonho, anunciavam um amanhecer que viria
mais escuro que a noite. Para tantos daqueles ricos, trariam talvez a notícia de
que não era mais deles o que lhes pertencera enquanto brilhavam as estrelas;
para os pobres, traziam, como sempre, um outro dia.
Por toda a cidade, começavam os gritos, claros e sonoros, anunciando as
mudanças provocadas pelo escorregar de uma engrenagem na maquinaria do
tempo; dividindo entre os adormecidos à mercê do destino suas devidas
porções de vingança, lucro, dor, recompensa e maldição que um novo
número no calendário trouxera. Apesar de agudos, os gritos carregavam um
lamento, como se aquelas jovens vozes sentissem pena de carregar em suas
mãos irresponsáveis tanto mal e tão pouco bem.
Era assim que ecoava pelas ruas da cidade a transmissão dos últimos
decretos dos deuses, o grito dos pequenos jornaleiros - a chamada da primeira
página. Woods jogou uma moeda ao garçom e disse:
- Compre o Morning Mars.
Quando o jornal chegou, ele olhou rapidamente a primeira página, e,
então, rasgou uma folha de sua agenda e começou a escrever nela com o
pequeno lápis de ouro.
- Quais são as novas? - bocejou Kernan. Woods passou a ele o pedaço de
papel:
Ao The New York Morning Mars,
Favor pagar a John Kernan a quantia de mil dólares de recompensa que
me é devida por sua prisão e condenação. Barnard Woods.
- Imaginei que eles poderiam fazer uma coisa assim -- disse Woods --
quando você fez a chamada para provocá-los daquele jeito. Agora, Johnny,
você tem de vir comigo até o distrito.

Tradução de Octávio Marcondes

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