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O ARROMBADOR APOSENTADO
O. HENRY (1862-1910 | Estados Unidos)
Meu velho,
Uma tarde, duas semanas depois que o milionário Norcross fora morto em
seu apartamento durante um assalto, o assassino, passeando tranqüilamente
pela Broadway, esbarrou com o detetive Barney Woods:
- É você, Johnny Kernan? - perguntou Woods, que era míope, há uns
cinco anos.
- Eu mesmo - respondeu Kernan, caloroso. - Ora, se não é Barney Woods,
meu velho conhecido de São Jô! Como é que é? O que é que você está
fazendo aqui no Leste? Aquelas circulares agora trazem você tão longe?
- Estou em Nova York há alguns anos - disse Woods. - Sou detetive da
polícia.
- Bem, bem! - disse Kernan, transpirando felicidade e sorrisos, enquanto
apertava carinhosamente o braço do detetive.
- Vamos entrar no Muller's - disse Woods - e procurar uma mesa
tranqüila. Precisamos conversar.
Faltavam alguns minutos para as quatro. A maré humana, que invadia
tudo ao final do trabalho, ainda não fora liberada, e os dois encontraram um
canto vazio no café. Kernan, bem vestido e um pouco espalhafatoso, cheio de
autoconfiança, sentou-se em frente aos olhos vivos e ao bigode claro do
pequeno detetive, vestido num terno pronto de lã grosseira.
- Que é que está fazendo agora? - perguntou Woods. - Você saiu de São
Jô um ano antes de mim.
- Estou vendendo ações de uma mina de cobre - disse Kernan. - Talvez
abra um escritório aqui. Bem, bem! Então o velho Woods é um detetive em
Nova York. Você sempre teve uma inclinação para isso. Trabalhou para a
polícia de São Jô, depois que saí de lá, não é mesmo?
- Seis meses - disse Woods. - Mas queria te fazer uma pergunta, Johnny.
Tenho acompanhado sua carreira de perto, desde aquele trabalho que você fez
no hotel, em Saratoga, mas nunca soube que usasse um revólver antes. Por
que matou Norcross?
Kernan concentrou o olhar por alguns momentos na rodela de limão
dentro de seu copo, então levantou os olhos para encarar o detetive com um
sorriso radioso e malandro.
- Como foi que adivinhou, Barney? - perguntou com admiração. - Juro
que pensava ter feito um trabalho limpo e liso como uma cebola descascada.
Será que deixei algum fio desamarrado em algum lugar?
Woods colocou sobre a mesa um lápis de ouro, desses que se usam na
corrente do relógio.
- É aquele que lhe dei de presente no último Natal que passamos em São
Jô. Ainda tenho o pote para sabão de barbear que você me deu. Encontrei isso
num canto debaixo do tapete no quarto de Norcross. Preciso avisá-lo, Johnny:
muito cuidado com tudo que você diz. Fomos grandes amigos no passado,
mas tenho que cumprir meu dever. Você vai para a cadeira elétrica por
Norcross.
Kernan riu.
- Minha sorte ainda não me abandonou - disse ele. - Quem poderia pensar
que o velho Barney estava na minha captura!
Sua mão escorregou para dentro do paletó. Num segundo, Woods tinha
um revólver encostado em suas costelas.
- Guarde isso - disse Kernan franzindo o nariz. - Estou só investigando
uma coisa. Aha! Um alfaiate pode mesmo arruinar um homem. O bolso do
meu colete está furado. Naquele dia, tirei o lápis da corrente e coloquei no
bolso, com medo que se arranhasse. Guarde sua arma, Barney. Vou lhe
contar por que tive de atirar em Norcross. Aquele idiota veio atrás de mim no
corredor apontando uma porcaria de um 22 para minhas costas. A senhora
Norcross foi um amor. Ficou ali, deitada na cama, vendo seu colar de
diamantes de doze mil dólares desaparecer, sem dizer um ai; e no final,
implorou como um mendigo para que lhe devolvesse um anel que era um fio
de ouro com uma pedrinha que não podia valer três dólares. Acho que ela se
casou com o velho pelo dinheiro. Mas não é que, ainda assim, elas se agarram
às pequenas lembranças do perdedor? Havia ainda seis anéis, dois broches e
um relógio chateleine. Uns quinze mil dólares, devo conseguir pelo lote.
- Eu o avisei para que não falasse - disse Woods.
- Oh, tudo bem - disse Kernan. - Está em minha mala no hotel. Agora vou
lhe dizer por que estou contando tudo isso. É porque não corro risco. Estou
falando com um homem que conheço bem. Você me deve mil dólares,
Barney Woods, e mesmo que quisesse me prender, suas mãos se recusariam
fazê-lo.
- Não me esqueci - disse Woods. - Você contou vinte notas de cinqüenta
sem dizer uma palavra. Ainda vou lhe pagar um dia. Aqueles mil dólares me
salvaram. . . Bem, estavam colocando meus móveis na rua quando cheguei
em casa.
- E assim - continuou Kernan - sendo você Barney Woods, de nascença
reto como um trilho e obrigado, por isso, a jogar um jogo limpo, não pode
levantar um dedo para prender um homem para quem está devendo. No meu
ramo de negócios, conhecer as pessoas é tão importante quanto conhecer
fechaduras "Yale" e trincos de janelas. Agora, fique quieto um instante,
enquanto eu chamo o garçom. Nos últimos dois anos tenho andado com uma
sede que começa a me preocupar. Se algum dia for preso, o sortudo do tira
que me pegar vai ter que dividir o mérito com a velha birita. Por isso, nunca
bebo em serviço. Mas depois de terminar um trabalho posso sentar-me com
meu velho amigo Barney e me permitir um gole com a consciência tranqüila.
Que é que você bebe?
O garçom trouxe as bebidas e os deixou de novo a sós.
- Você tem razão - disse Woods, pensativo, enquanto rolava nos dedos o
pequeno lápis de ouro. - Vou ter de deixá-lo escapar. Não posso prendê-lo. Se
tivesse pago minha dívida. .. mas não paguei, e isso resolve a questão. Fico
numa situação complicada, Johnny, mas não há nada que possa fazer. Você
me ajudou uma vez e sou obrigado a fazer o mesmo.
- Eu sabia disso - disse Kernan, levantando seu copo com um sorriso
aberto de auto-satisfação; - sou bom de julgar o caráter dos outros. À saúde
de Barney, porque. . . "o Barney é um bom companheiro".
- Acho - continuou Barney com calma, como se pensasse em voz alta -
que se tivéssemos nossas contas acertadas, nem todo o dinheiro que existe
nos bancos de Nova York seria o bastante para livrá-lo de minhas mãos esta
noite.
- Tenho certeza - disse Kernan. - Por isso sabia que não corria perigo com
você.
- A maioria das pessoas - continuou o detetive - tem um certo desprezo
pelo trabalho que faço. Não o classificam entre as artes e ofícios nobres. Mas
sempre senti um orgulho ingênuo por ele. E é isso que me pesa agora. Parece
que antes de tudo sou um homem e só depois um policial. Tenho de deixá-lo
ir, e depois terei que me demitir. Acho que posso conseguir outro trabalho. O
pagamento de seus mil dólares vai atrasar ainda mais, Johnny.
- Não se preocupe com isso - disse Kernan, com um ar majestoso. - Por
mim, esqueceria essa dívida se não soubesse que você jamais aceitaria tal
coisa. Foi sorte minha aquele dia em que você precisou desse empréstimo.
Mas vamos esquecer o assunto. Parto amanhã de manhã para o Oeste no
primeiro trem. Conheço um lugar ali onde posso negociar as jóias do
Norcross. Beba, Barney, e esqueça seus problemas. Vamos nos divertir
enquanto a polícia quebra a cabeça tentando resolver o caso. Tenho uma sede
digna do Saara esta noite. Mas nas mãos, nas mãos extra-oficiais, do meu
velho amigo Barney, não posso nem mesmo sonhar com um tira.
E então, enquanto o dedo rápido de Kernan continuava a apertar a
campainha, mantendo ocupado o garçom, seus pontos fracos - uma vaidade
tremenda e um egoísmo arrogante - começaram a se mostrar. Contou, história
após história, o sucesso de suas rapinas, os planos engenhosos e os crimes
infames, e mesmo Woods, com toda a familia-ridade que tinha com
delinqüentes, começou a sentir crescer dentro de si uma onda de frio desgosto
e indignação contra aquele que um dia fora seu amigo e benfeitor.
- Estou fora do caso, é claro - disse Woods afinal. - Mas aconselho você a
desaparecer por algum tempo. Os jornais podem se interessar pelo caso
Norcross. A cidade vive uma epidemia de assaltos e assassinatos este verão.
Essas palavras provocaram em Kernan uma súbita explosão de raiva
magoada e vingativa.
- Para o inferno com os jornais - rosnou. - O que é que se lê neles afinal
além de se vangloriar e de fazer suborno em letras garrafais? Vamos supor
que eles peguem o caso, que é que isso quer dizer? É facílimo enganar a
polícia; e os jornais, o que fazem? Eles mandam um monte de retardados
mentais, que chamam de repórteres, à cena; e eles se apressam a ir para o bar
mais próximo e, enquanto tomam umas cervejas, batem umas fotos da filha
do dono do bar, em traje de noite, para imprimir no dia seguinte como a
noiva de um cara que mora no décimo andar, que acha que ouviu alguma
coisa no andar de baixo na noite do assassinato. Isso é o mais próximo que os
jornais conseguem chegar da identidade do criminoso.
- Bem, eu não sei - disse Woods, num tom de reflexão. - Alguns jornais
fizeram bons trabalhos nesse sentido. Veja o Morning Mars, por exemplo.
Levantaram duas ou três boas pistas e acabaram descobrindo os culpados,
depois que a polícia já havia dado tais pistas como falsas.
- Vou lhe mostrar - disse Kernan, se levantando e enchendo o tórax. - Vou
lhe mostrar o que penso dos jornais em geral, e do seu Morning Mars em
particular.
A pouco mais de um metro da mesa onde estavam, havia uma cabine
telefônica. Kernan entrou na cabine, sentou-se e pegou o telefone, deixando a
porta aberta. Encontrou um número no catálogo e pediu a ligação à
operadora. Woods continuou sentado, olhando para aquele rosto frio e
vigilante colado ao fone; ouvindo as palavras que saíam daqueles lábios,
finos e truculentos, torcidos por um sorriso de desprezo.
- É do Morning Mars?... Quero falar com o editor-chefe ... Bem, diga que
é alguém com i nformações sobre o assassinato de Norcross.
"É o editor?. .. Tudo bem... Aqui fala o assassino de Norcross... Espere!
Não desligue; não sou o seu maluco de plantão. .. nenhum perigo disso.
Estava aqui discutindo o crime com um detetive amigo meu. Matei o velho às
2h30 da manhã, duas semanas atrás. .. Tomar uma bebida com você? Necas,
melhor deixar as piadas para seu humorista. Você não é capaz de distinguir
um trote do maior furo de reportagem que já se ofereceu a essa chatice de
pasquim que vocês editam? Sim, é isso aí, um superfuro... mas você não pode
esperar que lhe dê pelo telefone meu nome e endereço... Por quê? Porque
ouvi dizer que vocês são especialistas em resolver crimes misteriosos demais
para a polícia. .. Necas, isso não é tudo, queria dizer também que acho esse
seu jornaleco podre e mentiroso, tão capaz de descobrir um assassino ou
assaltante inteligente quanto um vira-lata cego. .. Não, não é da redação de
um jornal rival, você está falando com a realidade. Eu fiz aquele trabalho, e
as jóias de Norcross estão em minha mala no - 'o nome do hotel não pode ser
revelado no presente momento' - ... você reconhece a frase, não é mesmo?
Achei que sim. É uma que vocês usam sempre. Deixa você um pouco
inseguro, não é mesmo?, o misterioso assassino chamando no telefone o seu
grande e todo-poderoso órgão da imprensa livre, defensor da lei e da ordem,
do bom governo e da justiça, para lhe dizer que, na verdade, seu jornal não é
mais que um impotente saco de peidos? Corta essa... Você não é tão idiota
assim ... Sabe que não sou uma comédia, posso dizer pelo seu tom de voz...
Escute, vou lhe dar uma prova. O segundo botão da camisola da senhora
Norcross estava quebrado. Notei isso enquanto tirava o anel de seu dedo.
Pensei que era um rubi. .. Se os mongolóides de seus repórteres fizeram seu
trabalho direito, você sabe que tenho razão. Pare com isso! Não vai
funcionar."
Kernan virou-se para Woods e disse com um sorriso diabólico:
- O cara está uma fera. Agora acredita em mim. Não cobriu bem o fone
com a mão e ouvi quando dizia a alguém que chamasse a operadora num
outro aparelho para descobrir o número de onde estou chamando. Vou lhe
dizer mais uma e depois escapamos.
"Alô!. .. Sim eu continuo aqui. Você não achou que eu iria fugir com
medo desse trapo de jornal, subornado e vira-casaca, não é mesmo? Vai me
ver na prisão dentro das próximas 48 horas? Quando é que você vai parar
com essas piadas? Olhe, é melhor deixar gente grande em paz e ir cuidar de
fofocas e acidentes de trânsito que são mais sua área, volte a escrever sobre
sujeira e escândalos que é como você sabe ganhar a vida. Adeus, velho. . .
Pena que não tenha tempo para fazer uma visita a seu sanctum asinorum,
onde tenho certeza estaria bastante seguro. Tra-Iá!"
- Ele esta tão louco de raiva quanto o gato que perdeu seu rato - disse
Kernan, desligando o telefone e saindo da cabine.
"E agora, Barney, meu velho, vamos ver um show e nos divertir até que
seja hora razoável de ir para a cama. Para mim, bastam quatro horas de sono,
depois o trem para o Oeste."
Jantaram num restaurante da Broadway. Kernan estava feliz da vida.
Gastou dinheiro como um príncipe de opereta. Mais tarde, foram ao teatro
ver um fantástico musical e depois fizeram uma ceia com champanhe, e
Kernan estava no auge de sua complacência. Às três e meia, a madrugada os
encontrou numa mesa de canto num café aberto a noite toda. Kernan
continuava a se vangloriar, monótono e repetitivo; Woods, triste e pensativo,
refletia sobre o fim de seus dias como agente da lei. Mas, enquanto refletia,
em seus olhos de repente brilhou uma luz especulativa.
- Será que é possível? - disse para si mesmo. - Eu me pergunto, será que é
possível?
E então, fora do café, o relativo silêncio do amanhecer começou a ser
quebrado por gritos fracos e distantes, gritos que mais pareciam vagalumes
de som, uns mais altos, outros mais baixos, aparecendo e desaparecendo entre
o ruído dos carros de leite e dos poucos passantes. Gritos agudos eram,
quando próximos, gritos conhecidos; levavam diversas mensagens aos
ouvidos daqueles milhões de adormecidos da grande cidade, que acordava
para ouvi-los.
Gritos que carregavam em seu pequeno volume o peso das lágrimas e dos
risos do mundo, sua delícia e seu cansaço. Para alguns, escondidos sob a
proteção efêmera do manto da noite, traziam os horrores da luz do dia; para
outros, envoltos na felicidade do sonho, anunciavam um amanhecer que viria
mais escuro que a noite. Para tantos daqueles ricos, trariam talvez a notícia de
que não era mais deles o que lhes pertencera enquanto brilhavam as estrelas;
para os pobres, traziam, como sempre, um outro dia.
Por toda a cidade, começavam os gritos, claros e sonoros, anunciando as
mudanças provocadas pelo escorregar de uma engrenagem na maquinaria do
tempo; dividindo entre os adormecidos à mercê do destino suas devidas
porções de vingança, lucro, dor, recompensa e maldição que um novo
número no calendário trouxera. Apesar de agudos, os gritos carregavam um
lamento, como se aquelas jovens vozes sentissem pena de carregar em suas
mãos irresponsáveis tanto mal e tão pouco bem.
Era assim que ecoava pelas ruas da cidade a transmissão dos últimos
decretos dos deuses, o grito dos pequenos jornaleiros - a chamada da primeira
página. Woods jogou uma moeda ao garçom e disse:
- Compre o Morning Mars.
Quando o jornal chegou, ele olhou rapidamente a primeira página, e,
então, rasgou uma folha de sua agenda e começou a escrever nela com o
pequeno lápis de ouro.
- Quais são as novas? - bocejou Kernan. Woods passou a ele o pedaço de
papel:
Ao The New York Morning Mars,
Favor pagar a John Kernan a quantia de mil dólares de recompensa que
me é devida por sua prisão e condenação. Barnard Woods.
- Imaginei que eles poderiam fazer uma coisa assim -- disse Woods --
quando você fez a chamada para provocá-los daquele jeito. Agora, Johnny,
você tem de vir comigo até o distrito.