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Onde está a verdade – Parte 2

No artigo anterior a investigação se concentrava em determinar se a verdade


estava antes no intelecto ou na coisa. Agora, tendo chegado à conclusão de que se
encontra primeiramente no intelecto, a investigação irá determinar em qual intelecto, ou
melhor dito, em qual ato do intelecto se encontra primeiramente.
Para entendermos essa investigação, deve-se ter em mente, que nosso intelecto
basicamente realiza três atos: a apreensão da coisa; o julgamento da coisa; e o
raciocínio, que envolve a relação entre vários julgamentos.
Pois bem, Tomás diz que “assim como a verdade primeiramente se encontra no
intelecto, do que nas coisas; assim também, por primeiro se encontra no ato do intelecto
que compõe e divide1, do que no ato do intelecto formador da quididade das coisas2”.
Poder-se-ia objetar, como o é, que o intelecto formador da quididade das coisas
tanto compara, como adequa, sua apreensão da coisa à coisa mesma, portanto tendo a
razão formal de verdade presente nele também. E não só isso, pois como primeiramente
apreendemos a coisa, do que a julgamos, seria encontrado nele primeiramente.
Entretanto, justamente pelo fato da verdade ser uma comparação e uma
adequação, é que somente coisas diferentes, que se equalizam de algum modo, podem
ser comparadas e adequadas, pois “coisas idênticas não se adequam a si mesmas”.
Por isso, a razão de verdade se encontra primeiramente no intelecto que contribui
com algo próprio dele, algo este que não está presente na coisa fora da alma, mas que
lhe seja correspondente, de tal modo que se possa adequar.
Ora, esse intelecto contribuidor, não pode ser o formador da quididade, pois ele
apenas possui a similitude da coisa existente fora da alma 3, assim como os sentidos que
recebem apenas a espécie sensível.
Mas quando se começa a julgar sobre a coisa apreendida, então há um elemento
próprio do intelecto, que é o próprio julgamento, que não se encontra na coisa fora da
alma.
E quando tal julgamento se adequa à coisa que está fora da alma, então se diz que
há um julgamento verdadeiro: por isso, o intelecto que julga sobre a coisa apreendida,
dizendo se algo é ou não é a respeito dela, é o que compõe e divide4, onde primeira e
principalmente se encontra a verdade.
Secundaria e posteriormente, contudo, a verdade se encontra no intelecto
formador da quididade ou definição da coisa, de tal modo, que a definição da coisa se
dirá verdadeira ou falsa, a partir da razão da composição verdadeira ou falsa do intelecto
que compõe e divide.
Assim, se algo fosse definido por aquilo que não é, como se alguém definindo o
círculo quisesse adequá-lo ao triângulo; ou quando as partes da divisão, não pudessem
ser compostas entre si, como se alguém definisse algo como animal insensível, o que é
impossível5; haveria, então, uma falsidade. Portanto, uma definição é dita verdadeira ou

1
Que julga sobre a coisa.
2
Que apreende a coisa.
3
Ou seja, não há com o que comparar.
4
Hoje seria mais comum as palavras “sintetiza” e “analisa”, pois sintetizar é compor algo; enquanto,
analisar é dividir algo. / É por isso, inclusive, que o Filósofo também diz que a composição e a divisão
estão no intelecto e não nas coisas.
5
A ideia de animal implica necessariamente sensibilidade: algo sem sensibilidade ontológica não é
propriamente animal.
falsa em ordem à composição; assim como, a coisa se diz verdadeira em ordem ao
intelecto6.
Logo, fica claro, que a verdade: (I) primeiramente se diz a respeito do intelecto
que compõe e divide; (II) secundariamente da definição das coisas, na medida em que
nelas implicam composições verdadeiras ou falsas; (III) posteriormente das coisas, na
medida em que são adequadas ao intelecto divino ou aptas naturalmente a se adequarem
ao intelecto humano; (IV) e finalmente, do homem, por sua capacidade de eleger ser
verdadeiro ou de fazer uma estimação de si ou de outros, verdadeira ou falsa, por aquilo
que diz ou faz; e assim, as vozes e aquilo que significam7 também podem receber o
predicamento de verdadeiras do mesmo modo.

VERDADE:
Comparação e Adequação

(I) (II)
Intelecto que compõe e Intelecto formador da
divide quididade

O segundo que compara e


adequa, na medida em que
O primeiro que compara e
define as coisas pelo
adequa, pelo julgamento.
julgamento do intelecto que
compõe e divide.

(III) (IV)
As coisas fora da mente O homem e os discursos

Na medida em que faz uma


Na medida em que são Na medida em que podem Na medida em que pode
estimação sobre si ou sobre
adequadas ao intelecto vir-a-ser adequadas ao eleger ser verdadeiro, por
outros, verdadeira ou falsa,
divino. intelecto humano. aquilo que diz ou faz.
sobre os ditos e feitos.

6
Aqui, Tomás conclui essas primeiras ordenações da verdade: (1°) na composição, i.e., no intelecto que
compõe e divide em ordem anterior à definição, i.e., ao intelecto formador da quididade; (2°) no intelecto
em ordem anterior à coisa fora da mente.
7
“Voces (...) intellectus quos significant”: literalmente “as vozes e os intelectos que significam”. Verbum
e voce não são a mesma coisa: verbum é a palavra mental, o conceito intelectual, podendo aqui ser
equiparada aos intellectus quo significant; enquanto voce é a palavra exterior, vocalizada.

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